sábado, 18 de abril de 2009

Monteiro Lobato (A Facada Imortal)



Todos os tratados de xadrez descrevem a celebre partido jogada por Philidor no século XVIII, a mais romântica que ao anais enxadrísticos mencionam. Tão sábia foi, tão imprevista e audaciosa, que recebeu o nome de Partida Imortal. Embora depois dela se jogassem pelo mundo milhões de partidas de xadrez, nenhuma ofuscou a obra prima do famoso Philidor André Danican.

Também a “facada” do Indalício Ararigboia, um saudoso amigo morto, se vem perpetuando nos anais da alta malandragem como a La Gioconda do gênero ou como está admitido nas rodas técnicas - a Facada Imortal. Indalício foi positivamente o Philidor dos faquistas.

Lembro-me bem: era um rapaz lindo, de olhos azuis e voz suavíssima; as palavras vinham-lhe como pêssegos embrulhados em paina, e sabiamente camaralentadas, porque, dizia ele, o homem que fala depressa é um perdulário que deita fora o melhor ouro da sua herança. Ninguém dá tento ao que esse homem diz, porque quod abundat nocet. Se não valorizamos nós mesmos as nossas palavras, como pretendermos que os outros as prezem? Meu mestre nesse ponto foi o general Pinheiro Machado, num discurso que lhe ouvi certa vez. Que astuciosa e bem calculada lentidão! Entre uma palavra e outra o Pinheiro punha um intervalo de segundos, como se sua boca estivesse perdigotando pérolas. E a assistência o ouvia com religiosa unção absorvendo como pérolas era emitido. Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e conjunções caiam sobre os ouvintes como seixos lançados à lagoa; e antes que cada um chegasse bem lá no fundo, o general não soltava outro. Cacetíssimo, mas de alta eficiência.

- Foi ele então o teu mestre na arte de falar valorizadamente…

- Não. Nasci sonolento. O Pinheiro apenas me abriu os olhos quanto ao valor monetário do Dom que a natureza me dera. Depois de ouvir esse seu discurso é que passei a dedicar-me à nobre arte de fazer com os homens o que fazia Moisés nas rochas do deserto.

- Fazê-los “sangrar”…

- Exatamente. Vi que se somasse minha natural lentidão do falar com alguma psicologia vienense (Freud, Adler), o dinheiro dos homens me atenderia como as galinhas atendem ao quit, quit das donas de casa. Para cada bolso há uma chave Yale. Minha técnica se resume hoje em só abordar a vítima depois de descobrir a chave certa.

- E como consegue?

- Tenho minha álgebra. Considero os homens equações do terceiro grau - equações psicológicas, está claro. Estudo-os, deduzo, concluo - e esfaqueio com precisão praticamente absoluta. O mordedor comum é um ser indecoroso, digno do desprezo que lhe dá a sociedade. Pedincha, implora; apenas desenvolve, sem a menor preocupação estética, o surrado cantochão do mendigo: “Uma esmolinha pela amor de Deus!” Comigo, não! Assumi essa atitude (porque o pedir é uma atitude na vida), primeiro, por esporte; depois, com o fito de reabilitar uma das mais velhas profissões humanas.

- Realmente, a intenção é nobilíssima…

Indalício racionalizara a “mordedura” ao ponto da sublimação. Citava filósofos gregos. Mobilizava músicos de fama.

- Liszt, Mozart, Debussy, dizia ele, nobilitaram essa coisa comum chamada “som” à força de harmonizá-lo de certo modo. O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua, se lhe der forma estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de pedir? Quando lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a vítima não me dá o seu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração técnica com que o tonteio. Paga-me a facada do mesmo modo que o amador de pintura paga o arranjo de tintas que o pintor faz sobre uma estopa, um quadrado de papelão, uma relíssima tábua. O faquista comum, notem, nada dá em troca do miserável dinheirinho que tira. Eu dou emoções gratíssimas à sensibilidade das criaturas finas. Minha vítima tem que ser fina. O simples fato da minha escolha já é um honroso diploma, porque nunca me desonrei em esfaquear criaturas vulgares, de alma grosseira. Só procuro gente na altura de compreender as sutilezas das paisagens de Corot ou dos versos de Verlaine.

Como se requintava a formosura do Indalício nos momentos em que discorria assim! Envolvia-o a aura dos predestinados, dos apóstolos que se sacrificam para aumentar de alguma coisa a beleza do mundo. De sua barba loura, à Cristo, escapavam os suaves reflexos do cendre. As frases fluíam-lhe da boca de fino desenho como o óleo ou o mel escorre duma ânfora grega suavemente inclinada. Suas palavras traziam patins aos pés. Tudo no Indalício eram mancais de esferas. Talvez ajudasse a circunstância de ser surdinho. Isso de não ouvir bem põe veludos em certas pessoas, dá-lhes um macio de violoncelo. Como não se distraem com a vulgaridade dos sons que todos nós normalmente ouvimos, atentam mais em si próprios, “ouvem-se mais”, concentram-se.

Nosso costume naquele tempo era reunir-nos todas as noites no velho “Café Guarany” com y grego - a reforma ortográfica ainda dormia no calcanhar do Medeiros e Albuquerque; ficávamos ali horas trabalhando para a Antártica e comentando as proezas de cada um. Rodinha muito interessante e vária, cada um com a sua mania, a sua arte ou a sua tara. Ligava-nos apenas uma coisa: o pendor comum pelas finuras mentais em qualquer campo que fosse, literatura, perfídia, oposição ao governo, arte de viver, amor. Um deles era absolutamente ladrão - desses que a sociedade trancafia. Mas que ladrão engraçado! Estou hoje convencido de que roubava unicamente com um fim: deslumbrar a rodinha com a primorosa estilização das proezas. Outro era bêbedo profissional - e talvez pela mesma razão: informar à roda sobre o que é a vida do clã de adoradores do álcool que passam a vida nos “botecos”. Outro era o Indalício…

- E antes, Indalício? Que é que fazia?

- Ah, perdia o tempo numa escola do Rio como professor de meninos. Nada mais desinteressante. Fugi, farto e refarto. Odeio qualquer atividade vazia dessa “emoção da caça” que considero a coisa suprema da vida. Fomos caçadores durante milhões e milhões de anos, na nossa longuíssima fase de homens primitivos. A civilização agrícola é coisa de ontem, e por isso ainda espinoteiam com tanta vivacidade, dentro do nosso modernismo, os velhos instintos do caçador. Continuamos os caçadores que éramos, apenas mudados de caça. Como nestas cidades de hoje não existem aquele Ursus speleus que no período das cavernas nós caçávamos (ou nos caçavam), matamos a sede do instinto com as amáveis cacinhas da civilização. Uns caçam meninas bonitas, outros caçam negócios, outros caçam imagens e rimas. O Breno Ferraz caça boatos contra o governo…

- E eu que caço? Perguntei.

- Antíteses, respondeu de pronto o Indalício. Fazes contos, e que é o conto senão um antítese estilizada? Eu caço otários, com a espingarda da psicologia. E como isso me dá para viver folgadamente, não quero outra profissão. Tenho prosperado. Calculo que nestes últimos três anos consegui remover do bolso alheio para o meu cerca de duzentos contos de réis.

Aquela revelação fez que o nosso respeito pelo Indalício aumentasse de dez pontos.

- E sem abusar, continuou ele, sem forçar a nota, porque meu intento nunca foi acumular dinheiro. Em dando para o passadio à larga, está ótimo. O lucro maior que obtenho, entretanto, está na contenteza de alma, na paz da consciência - coisas que nunca tive nos anos em que, como professor de educação moral, eu transmitia às inocentes crianças noções que hoje considero absolutamente falsas. As nevralgias da minha consciência naquela época, quando provava nas aulas, com infames sofismas, que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos!

Com o perpassar do tempo o Indalício desprezou completamente as facadas simples, ou do “primeiro grau”, como dizia ele, isto é, as que apenas produzem dinheiro. Passou a interessar-se unicamente pelas que representavam “soluções de problemas psicológicos” e lhe davam, além do íntimo prazer da façanha, a mais pura glória ali da rodinha. Uma noite desenvolveu-nos o teorema do máximo…

- Sim cada homem, em matéria de facada, tem o seu máximo; e o faquista que arranca 100 mil réis dum freguês cujo máximo é de um conto, lesa-se a si próprio - e ainda perturba a harmonia universal. Lesa-se em 900 mil réis e interfere na ordem preestabelecida do cosmos. Aqueles 900 mil réis estavam predestinados a mudarem-se de bolso naquele dia, naquela hora, por meio daqueles agentes; a inépcia do mau faquista perturba a predestinação, dess’arte criando uma ondulazinha de desarmonia que até ser reabsorvida contribui para o mal estar do Universo.

Essa filosofia ouvímo-la no dia do seu “grande deslize”, quando o Indalício nos apareceu no Guarany seriamente incomodado com a perturbação que essa sua “mancada” podia estar determinando na harmonia das esferas.

Errei, disse ele. Meu assalto foi contra o Macedo, que, vocês sabem, é a maior vítima dos mordedores de S. Paulo. Mas fui precipitado em minhas conclusões quanto ao seu máximo, e dei-lhe um golpe de dois contos apenas. A prontidão com que atendeu, reveladora de que estava ganhando três, demonstrou-me, da maneira mais evidente, que o máximo do Macedo é de cinco contos! Perdi. Pois, três contos… E o peor não está nisso, mas na desconfiança em que fiquei de mim mesmo. Estarei por acaso decaindo? Nada mais grotesco do que ferir em oitenta ao otário cujo máximo é de cem. O bom atirador não gosta de acertar perto Há de enfiar as balas, exatinho, no centro geométrico do alvo.

Nesse dia foram necessários dez chopes para abafar a inquietação do Indalício; e ao recolher-nos, lá apela meia noite, saí com ele a pretexto de consolá-lo, mas na realidade para impedi-lo de passar pelo Viaduto. Mas afinal descobri a aspirina adequada ao caso.

- Só vejo um meio de te restaurares na confiança perdida, meu caro Indalício: dares uma facada no Raul! Se o consegues, terás realizado a proeza suprema de tua vida. Que tal?

Os olhos de Indalício iluminaram-se, como os do caçador que depois de perder um coatí dá de frente com um precioso veado - e foi assim que teve início a construção d grande obra prima do nosso saudoso Indalício Ararigboia.

O Raul, velho companheiro de roda, tinha-se, e era tido, como absolutamente imune a facadas. Rapaz de modestas posses, vivia duns 400 mil réis mensalmente drenados do governo; mas tratava-se bem, vestia-se com singular apuro, usava lindas gravatas de seda, bons sapatos; para perpetuar semelhante proeza, entretanto, adquirira o hábito de não por fora dinheiro nenhum, e hermeticamente fechara o corpo à facadas, por mínimas que fossem. Recebido o ordenado no começo do mês, pagava as contas, as prestações, retinha os miúdos do bonde e pronto - ficava até o mês seguinte leve como um beija-flor. Em matéria de facadas sua teoria sempre fora de negação absoluta.

- “Morre” quem quer, dizia ele. Eu por exemplo não sangrarei nunca porque de há muito deliberei não sangrar! O mordedor pode atacar-me de qualquer lado, norte, sul, leste, oeste, a jusante ou a montante, e com uso de todas as armas inclusive as do arsenal do Indalício: inútil! Não sangro, pelo simples fato de haver deliberado não sangrar - além de que por sistema não ando com dinheiro no bolso.

Indalício não ignorava a inexpugnabilidade do Raul, mas como se tratasse dum companheiro de roda nunca pensou em tirar o ponto a limpo. Minha sugestão daquele dia, porém, fê-lo mudar de idéia. A inexpugnabilidade do Raul entrou a irritá-lo como intolerável desafio à sua genialidade.

- Sim, disse o Indalício, porque verdadeiramente imune à facadas não creio que haja ninguém no mundo. E se alguém, como o Raul, faz essa idéia de si, é que nunca foi abordado por um verdadeiro mestre - um Balzac como eu. Hei de destruir a inexpugnabilidade do Raul; e se meu golpe vier a falhar, talvez até me suicide com a pistola de Vatel. Viver desonrado aos meus próprios olhos, nunca!

E Indalício pôs-se a estudar o Raul afim de descobrir-lhe o máximo - sim, porque até no caso do Raul aquele gênio insistia em ferir no máximo! Duas semanas depois confessou-me com a habitual suavidade:

- O caso está resolvido. O Raul realmente jamais levou facadas e considera-se em absoluto imune - mas lá no fundo d alma, ou do inconsciente, está inscrito o seu máximo: cinco mil réis! Tenho orgulho em revelar a minha descoberta. Raul considera-se inesfaqueável, e jurou morrer sem a menor cicatriz no bolso; a sua consciência, portanto, não admite máximo nenhum. Mas o máximo do Raul é de cinco! Para chegar a essa conclusão tive de insinuar-me nos desvãos de sua alma com a gazua do Freud.

- Só cinco?

- Sim. Só cinco - o máximo absoluto! Se o Raul se psicanalisasse, descobriria, com assombro, que apesar das suas juras de imunidade a natureza o colocou na casa dos cinco.

- E vai o nosso Balzac sujar-se com uma facada de cinco mil réis! Em que ficou a tua fixação do mínimo em duzentos?

- De fato, hoje não dou facadas de menos de duzentos, e me julgaria desonrado se me abaixasse a uma de cento e oitenta. Mas o caso do Raul, especialíssimo, me força a abir uma exceção. Vou esfaqueá-lo em cinqüenta mil réis…

- Por que cinqüenta?

- Porque ontem, inopinadamente, a minha álgebra psicológica demonstrou que há possibilidade de um segundo máximo no Raul, não de cinco, como está inscrito no seu inconsciente, mas de dez vezes isso, como consegui ler na aura desse inconsciente!…

- No inconsciente do inconsciente!…

- Sim, na verdadeira estratosfera do inconsciente raulino. Mas só serei bem sucedido se não errar na escolha do momento mais favorável, e se conseguir deixá-lo em ponto de bala por meio da aplicação de diversas cocaínas psicológicas. Só quando Raul se sentir levitado, expandido, como a alma bem rarefeita, é que sangrará no máximo astral que eu descobri!…

Mais um mês gastou o Indalício em estudos do Raul. Certificou-se do dia em que lhe pagavam no Tesouro, do quanto lhe levavam as contas e prestações, e quanto costumava sobrar-lhe depois de satisfeitos todos os compromissos. E não há por aqui toda a série de preparos psicológicos, físicos, metapsíquicos, mecânicos e até gastronômicos a que o gênio do Indalício submeteu o Raul; encheria páginas e páginas. Resumirei dizendo que o ataque em vôo pique só seria realizado depois do completo “condicionamento” da vítima por meio da sábia aplicação de todos os “matadores” . O nosso pobre Indalício faleceu sem saber que estava lançando os fundamentos do moderno totalitarismo…

No dia 4 do mês seguinte avisou-se da iminência do golpe.

- Vai ser amanhã, às oito da noite, no Bar Baron, quando o Raul cair na leve crise sentimental que lhe provocam certas passagens do Petit Chose de Daudet, recordadas entre a Segunda e a terceira dose do meu vinho…

- Que vinho?

- Aha, um que descobri em estudos in anima nobile - nele mesmo: a única vinhaça que de mistura com o Daudet do Petit Chose deixa o Raul, durante meio minuto, sangrável no máximo astral! Vocês vão abrir a boca. Estou positivamente criando a minha obra prima! Aparece amanhã no Guarany às nove horas para ouvires o resto…

No dia seguinte fui ao Guarany às oito e já lá encontrei a roda. Pu-los ao par dos desenvolvimento da véspera e ficamos a comentar os prós e contras do que àquela hora estaria se passando no Bar Baron. Quase todos jogavam no Raul.

Às nove entrou o Indalício, suavemente. Sentou-se.

- Então? Perguntei.

Sua resposta foi tirar do bolso e sacudir no ar uma nota nova de cinqüenta mil réis.

- Fiz um trabalho preparatório perfeito demais para que me falhasse o golpe, disse ele. No momento decisivo bastou-me um quit, quit dos mais simples. Os cinqüenta fluíram do bolso do Raul para o meu - contentes, felizes, alegrinhos…

O assombro da roda chegou ao auge. Era realmente escachante aquele prodígio!

- Maravilhoso, Indalício! Mas põe isso em troca miúdo, pedimos. E ele contou:

- Nada mais simples. Depois do preparo do terreno, a técnica foi, entre a Segunda e a terceira dose da vinhaça e o Daudet, ferir fundo nos cinqüenta - e o que eu esperava ocorreu. Ultra-surpreso de haver no globo quem o avaliasse em cinqüenta mil réis, a ele, que na intimidade trevosa do subconsciente só admitia o miserável máximo de cinco, Raul deslumbrou-se… Raul perdeu o controle de si próprio … sentiu-se levitado, rarefeito por dentro, estratosférico - e com os olhos emparvecidos meteu a mão no bolso, sacou tudo quanto havia lá, exatamente esta nota, e entregou-ma, sonambúlico, num incoercível impulso de gratidão! Instantes depois voltava a si. Corou como a romã, formalizou-se e só não me agrediu porque a minha sábia fuga estratégica não lhe deu tempo…

Maravilhamo-nos sinceramente. Aquela Yale psicológica er talvez a única, dos milhões de chaves existentes no universo, capaz de abrir a carteira do Raul para um faquista; e o tê-la descoberto e manejado com tanta segurança era coisa que indiscutivelmente vinha fechar com chave de ouro a gloriosa carreira do Indalício - como de fato fechou: meses depois a gripe espanhola de 1918 nos levava esse precioso e amável amigo.

- Parabéns, Indalício! Exclamei. Só a má fé te negará o Dom da genialidade. A Partida Imortal do grande Philidor já não está sem pendant no mundo. Criaste a Facada Imortal>

Como ninguém da roda jogasse xadrez, todos me olharam perguntivamente. Mas não houve tempo para explicações. Vinha entrando o Raul. Sentou-se, calado, contido. Pediu uma caninha (sinal de rarefação no bolso). Ninguém disse nada.. Esperamos que ele se abrisse. Indalício estava profundamente absorvido nos “Pingos e Respingos” dum “Correio da Manhã” sacado do bolso.

Súbito, veio-me uma infinita vontade de rir, e foi rindo qu rompi o silêncio:

- Então, seu Raul, caiu, heim?…

Realmente desapontado, o querido Raul não achou a palavra chistosa, o “espírito” com que em qualquer outra circunstância comentaria um seu desaso qualquer. Limitou-se a sorrir amareladamente e a emitir um “Pois é!…” - o mais desenxabido “Pois é” ainda pronunciado no mundo. Tão desenxabido, que o Indalício engasgou-se de rir… com o “Pingo” que lia.

Fontes:
http://contosdocovil.wordpress.com/
Imagem = http://ta-ligadao.blogspot.com/

Monteiro Lobato (O Comprador de Fazendas)


Pior fazenda que a “Espiga”, nenhuma. Já arruinara três donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que aquilo é!

O detentor último, um David Moreira de Souza, arrematara-a em praça, convicto de negócio da China. Mas já lá andava, também ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num desânimo.

Os cafezais em vara, batidos de pedra ou esturrados de geada ano sim ano não, nunca deram de si colheita de entupir tulha. Os pastos ensapezados, enguanxumados, ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios de macegas mortiças, formigantes de carrapatos. Boi entrado ali punha-se logo de costelas à mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido de meter dó.

As capoeiras substitutas das matas nativas revelavam, pela indiscrição das tabocas, a mais safada das terras secas. Em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana caiana assumia aspecto de caninha, e esta virava uma taquariça magrela, das que passam incólumes por entre os cilindros moedores.

Piolhavam os cavalos. Os porcos escapos à peste encruavam na magrém faraônica das vacas egípcias.
Por todos os cantos imperava soberano o ferrão das saúvas, dia e noite entregues à tosa dos capins, para que em outubro se toldasse o céu de nuvens de içás, em saracoteios amorosos com enamorados savitus.
Caminhos por fazer, cercas no chão, casas de agregados engoteiradas, combalidas de cumieira, prenunciando feias taperas. Até na moradia senhorial insinuava-se a breca, aluindo panos de reboco, carcomendo assoalhos. Vidraças sem vidro, mobília capengante, paredes lagarteadas… Intacto, que é que havia lá?

Dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro, avelhuscado por força de sucessivas decepções e, a mais, roído pelo cancro dos juros, sem esperança e sem concerto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça grisalha.

Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o viço do outono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinha inventam os anos, de mãos dadas à trabalhosa vida.

Zico, o filho mais velho, saíra-se um pulha, amigo de erguer-se às dez, ensebar a gaforinha até às onze e consumir o resto do dia em namoricos mal-azarados.

Afora este malandro, tinham a Zilda, então nos dezessete, menina galante, porém sentimental mais do que manda a razão e pede o sossego dos pais. Era um ler Escrich, a rapariga, e um cismar amores de Espanha…
Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto, em quadra de café a cinco mil réis, pôr unhas num tolo das dimensões requeridas. Iludidos por núncios manhosos, alguns pretendentes já haviam abicado à Espiga, mas franziam o nariz, indo-se arrenegar da pernada, sem abrir oferta.

— De graça é caro! — cochichavam de si para consigo.

O redemoinho capilar do Moreira, ao cabo de coçadelas, sugeriu-lhe um engenhoso plano mistificatório: entreverar de caetés, cambarás, unhas-de-vaca e outros padrões de terra boa, transplantados das vizinhanças, a fímbria das capoeiras e uma ou outra entrada acessível aos visitantes. Fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um pau d’alho trazido da terra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho, no suficiente para encobrir a mazela do resto. Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um vício da terra, ali o alucinado velho botava a peneirinha…

Um dia recebeu carta de seu agente de negócios, anunciando novo pretendente: “Você tempere o homem — aconselhava o pirata — e saiba manobrar os padrões, que este cai. Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você espigá-lo com arte de barganhista ladino”.

Preparou-se o Moreira para a empresa. Advertiu primeiro aos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimos de língua. Industriados pelo patrão, estes homens respondiam com manha consumada às perguntas dos visitantes, de jeito a transmutar em maravilhas as ruindades locais. Como lhes é suspeita a informação dos proprietários, costumam os pretendentes interrogar à socapa os encontradiços. Ali, se isso acontecia — e acontecia sempre, porque era o Moreira em pessoa o maquinista do acaso — havia diálogos desta ordem:

— Tem geada por aqui?

— Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo.

— O feijão dá bem?

— Nossa Senhora! Inda este ano plantei cinco quartas e malhei cinqüenta alqueires. E que feijão!

— Berneia o gado?

— Qual o quê! Lá um ou outro carocinho, de vez em quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem erva nem feijão bravo. O patrão é porque não tem força. Tivesse ele os meios, e isto virava um fazendão. Avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos da hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças emurchecidas.

— Estou com palpite que desta feita a coisa vai! — disse o filho maroto. E declarou necessitar, à sua parte, de três contos de réis para estabelecer-se.

— Estabelecer-se em quê? — perguntou admirado o pai.

— Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda.

— Na Volta Redonda?.. Já me estava espantando de uma idéia boa nessa cabeça de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha, não é?

O rapaz, se não corou, calou-se. Tinha razões para isso. Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho uma de porta e janela, em certa rua humilde, casa baratinha, de arranjados. Zilda queria um piano, mais caixões e caixões de Escrich.

Dormiram felizes essa noite, e no dia seguinte mandaram cedo à vila em busca de gulodices de hospedagem — manteiga, um queijo, biscoitos. Na manteiga houve debate:

— Não vale a pena — reguingou a mulher. — Sempre são seis mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a peça de algodãozinho que tanta falta me faz.

— É preciso, filha! Às vezes uma coisa de nada engambela um homem e facilita um negócio. Manteiga é graxa, e a graxa engraxa!

Venceu a manteiga.

Enquanto não vinham os ingredientes, meteu dona Isaura unhas à casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou o menos magro dos frangos e uma leitoa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito; estava a folheá-la quando:

— Lá vem ele! — gritou Moreira da janela, onde se postara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada por um velho binóculo; e sem deixar o posto de observação, foi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados. — É moço… Bem trajado… Chapéu panamá… Parece o Chico Canhambora…

Chegou afinal o homem. Apeou-se. Deu cartão: Pedro Trancoso de Carvalhais Fagundes. Bem apessoado. Ares de muito dinheiro. Mocetão e bem falante, mais que quantos até ali aparecidos. Contou logo mil coisas, com o desembaraço de quem no mundo está de pijama em sua casa — a viagem, os incidentes, um mico que vira pendurado num galho de embaúva.

Entrados que foram para a saleta de espera, Zico, incontinenti, grudou-se de ouvido ao buraco da fechadura, a cochichar para as mulheres ocupadas na arrumação da mesa o que ia pilhando à conversa. Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:

— É solteiro, Zilda!

A menina largou disfarçadamente os talheres e sumiu-se. Meia hora depois voltava, trazendo o melhor vestido, e no rosto duas redondinhas rosas de carmim. Quem entrasse a essa hora no oratório da fazenda notaria, nas vermelhas rosas de papel de seda que enfeitavam o Santo Antonio, a ausência de várias pétalas, e aos pés da imagem uma velinha acesa, pois na roça o “rouge” e o casamento saem do mesmo oratório.

Trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas:

— O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro senhor, muito agreste. Eu sou pelo Poland Chine. Também não é mau o Large Black. Mas o Poland! Que preciosidade! Que raça!

Moreira, chucro na matéria, só conhecedor das pelhanças famintas, sem nome nem raça, que lhe grunhiam nos pastos, abria insensivelmente a boca pasmada.

— Como em matéria de pecuária bovina — continuava Trancoso — tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos erradíssimos. Pois não! E-rra-dí-ssi-mos! Nem seleção, nem cruzamento. Quero a adoção i-me-di-a-ta das mais finas raças, o Polled Angus, o Red Lincoln. Não temos pasto? Façamo-lo. Plantemos alfafa. Fenemos. Ensilemos. O Assis Brasil confessou-me uma vez…

O Assis Brasil! Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura! Era íntimo de todos eles — o Antonio Prado, o Luís Pereira Barreto, o Eduardo Cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária. E de ministros!

— Eu já aleguei isso ao José Bezerra…

Nunca se honrara a fazenda com a presença de cavalheiro mais distinto, assim bem relacionado e tão viajado. Falava da Argentina e de Chicago como quem veio ontem de lá. Maravilhoso!

A boca do Moreira abria, abria, e acusava o grau máximo da abertura permitida a ângulos maxilares, quando uma voz feminina anunciou o almoço.

Apresentações.

Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de coração aos pinotes. Também os tiveram a galinha ensopada, o tutu com torresmos, o pastel e até a água do pote.

— Na cidade, senhor Moreira, uma água assim, pura, cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos. Felizes os que podem bebê-la!

A família entreolhou-se; nunca imaginaram possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente sorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento com o precioso néctar. Zico chegou a estalar a língua…

Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura. Os elogios à culinária puseram-na rendida. Por metade daquilo já se daria por bem paga da trabalheira.

— Aprenda, Zico — cochichava ao filho — o que é educação fina!

Após o café brindado com um “delicioso!”, convidou Moreira o hóspede para um giro a cavalo.

— Impossível, meu caro, não monto em seguida às refeições; dá-me cefalalgia — Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma palavra. — À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um passeiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.

Enquanto os dois homens se dirigiram para lá em pausados passos, Zilda e Zico correram ao dicionário.

— Não é com S — disse o rapaz.

— Veja com C — alvitrou a menina.

Com algum trabalho encontraram a palavra.

— “Dor de cabeça!” Ora! Uma coisa tão simples…

À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e louvou tudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiro que, pela primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. Os pretendentes em geral malsinam de tudo, com olhos abertos só para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclamações quanto ao perigo das terras frouxas; acham más e poucas as águas; se enxergam um boi, não despegam a vista dos bernes.
Trancoso, não: gabava! E quando Moreira, nos trechos mistificados, com dedo trêmulo assinalou os padrões, o moço abriu a boca:

— Caquera? Mas isto é fantástico!

Em face do pau d’alho, culminou-lhe o assombro.

— É maravilhoso o que vejo! Nunca supus encontrar nesta zona vestígios de semelhante árvore! — disse, metendo na carteira uma folha como lembrança.

Em casa, abriu-se com a velha:

— Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à minha expectativa. Até pau d’alho! Isto é positivamente famoso!…

Dona Isaura baixou os olhos.

A cena passava-se na varanda. Era noite. Noite trilada de grilos, coaxada de sapos, com muitas estrelas no céu e muita paz na terra. Refestelado numa cadeira preguiçosa, o hóspede transfez o sopor da digestão em quebreira poética.

— Este cricri de grilos, como é encantador! Eu adoro as noites estreladas, o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz…

— Mas é muito triste!… — aventurou Zilda.

— Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra, modulando cavatinas em plena luz? — disse ele, amelaçando a voz. — É que no seu coraçãozinho há qualquer nuvem a sombreá-lo…
Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e desta feita passível de conseqüências matrimoniais, houve por bem dar uma pancada na testa e berrar:

— Oh, diabo! Não é que eu ia me esquecendo do… — Não disse do quê, nem era preciso. Saiu precipitadamente, deixando-os sós.

Continuou o diálogo, mais mel e rosas.

— O senhor é um poeta! — exclamou Zilda a um regorjeio dos mais sucados.

— Quem o não é, debaixo das estrelas do céu, ao lado de uma estrela da terra?

— Pobre de mim! — suspirou a menina, palpitante.

Também do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus olhos alçaram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezes da Via Láctea, e sua boca murmurou em solilóquio um rabo d’arraia, desses que derrubam meninas:

— O amor!… A Via Láctea da vida!… O aroma das rosas, a gaze da aurora! Amar, ouvir estrelas… Amai, pois só quem ama entende o que elas dizem.

Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar inexperto da menina, soube a fino moscatel. Zilda sentiu subir à cabeça um vapor. Quis retribuir. Deu busca aos ramalhetes retóricos da memória, em procura da flor mais bela. Só achou um bogari humílimo:

— Lindo pensamento para um cartão postal!

Ficaram no bogari. O café com bolinhos de frigideira veio interromper o idílio nascente.

Que noite aquela! Dir-se-ia que o anjo da bonança distendera suas asas de ouro por sobre a casa triste. Via Zilda realizar-se todo o Escrich deglutido. Dona Isaura gozava da possibilidade de casá-la rica. Moreira sonhava quitações de dívidas, com sobras fartas a tilintar-lhe no bolso. Imaginariamente transfeito em comerciante, Zico ficou a noite inteira em sonhos com a gente da Tudinha, que, cativa de tanta gentileza, lhe concedia afinal a ambicionada mão da pequena.

Só Trancoso dormiu o sono das pedras, sem sonhos nem pesadelos. Que bom é ser rico!

No dia imediato visitou o resto da fazenda, cafezais e pastos, examinou criação e benfeitorias. E como o gentil mancebo continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na véspera a pedir quarenta contos pela Espiga, julgou de bom aviso elevar o preço. Após a cena do pau d’alho, suspendeu-o mentalmente para quarenta e cinco; findo o exame do gado, já estava em sessenta. E quando foi abordada a magna questão, o velho declarou corajosamente, na voz firme de um alea jacta est:

— Sessenta e cinco — e esperou de pé atrás a ventania.

Trancoso, porém, achou razoável o preço.

— Pois não é caro — disse. Está um preço bem mais razoável do que imaginei.

O velho mordeu os lábios e tentou emendar a mão:

— Sessenta e cinco, mas… o gado fora!

— É justo — respondeu Trancoso.

— E… e fora também os porcos!…

— Perfeitamente.

— …e a mobília!

— É natural.

O fazendeiro engasgou. Não tinha mais o que excluir, e confessou-se de si para consigo que era uma cavalgadura. Por que não pedira logo oitenta?
Informada do caso, a mulher chamou-o de “pax-vobis”.

— Mas, criatura, por quarenta já era um negocião! — justificou-se o velho.

— Por oitenta seria o dobro. Melhor. Não se defenda. Eu nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. É do sangue. Você não tem culpa.

Amuaram um bocado. Mas a ânsia de arquitetar castelos com a imprevista dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou a aura para insistir nos três contos do estabelecimento, e obteve-os. Dona Isaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão — a casa do Eusébio Leite.

— Mas essa é de doze contos — advertiu o marido.

— Mas é outra coisa que não aquele casebre! Muito mais bem repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa. Escura…

— Abre-se uma clarabóia.

— Também o quintal precisa de reforma em vez do cercado das galinhas…
Até noite alta, enquanto não vinha o sono, foram remendando a casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. Estava o casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando Zico bateu à porta.

— Três contos não bastam, papai. São precisos cinco. Há a armação, de que não me lembrei, e os direitos, e o aluguel da casa, e mais coisinhas…

Entre dois bocejos o pai concedeu-lhe generosamente seis.

E Zilda? Essa vogava em alto mar de um romance de fadas. Deixemo-la vogar.

Chegou enfim o momento da partida. Trancoso despediu-se. Sentia muito não poder prolongar a deliciosa visita, mas interesses de monta o chamavam. A vida do capitalista não é tão livre como parece… Quanto ao negócio, considerava-o quase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.

Partiu Trancoso, levando um pacote de ovos. Gostara muito da raça de galinhas criadas ali. Também um saco de carás, petisco de que era mui guloso. Levou ainda uma bonita lembrança, o Rosilho do Moreira, o melhor cavalo da fazenda. Tanto gabara o animal durante os passeios, que o fazendeiro se viu na obrigação de recusar uma barganha proposta, e dar-lho de presente.

— Vejam vocês! — disse Moreira, resumindo a opinião geral. — Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um doutor, e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer o focinho, como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente!

À velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do jovem capitalista. Levar ovos e carás! Que mimo! Todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo. E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa durante a semana inteira.

Mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. E mais outra. E mais outra ainda.
Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo, e nada. Lembrou-se de um parente morador na mesma cidade, e endereçou-lhe carta pedindo que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço, abatia alguma coisa. Dava a fazenda por cinqüenta, e até por quarenta, com criação e mobília.

O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar o envelope, os quatro corações da Espiga pulsaram violentamente: aquele papel encerrava o destino dos quatro.

Dizia a carta: “Moreira, ou muito me engano ou estás iludido. Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais, capitalista. Há o Trancosinho, filho da Nha Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão que vive de barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente tem corrido o Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. Finge-se às vezes de comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios pelas roças e exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas, ou a filha, ou o que encontra — é um vassoura de marca! — e no melhor da festa some-se. Tem feito isto um cento de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de tempero, o patife. Como aqui Trancoso só há este, deixo de apresentar ao pulha a tua proposta. Ora, o Sacatrapo a comprar fazenda! Tinha graça”.

O velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missiva sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces e seus olhos chisparam.

— Cachorro!

As quatro esperanças da casa ruíram com fragor, entre lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens. Zico propôs-se a partir incontinenti na pegada do biltre, a fim de quebrar-lhe a cara.

— Deixa, menino! O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão e ajusto contas.

Pobres castelos! Nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentos de ilusões. Os formosos palácios d’Espanha, erigidos durante um mês à custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. Dona Isaura chorou até os bolinhos, a manteiga e os frangos.

Quanto a Zilda, o desastre operou como um pé-de-vento através da paineira florida. Caiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe as faces. Todas as passagens trágicas dos romances lidos desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todos eles. E dias a fio pensou no suicídio. Por fim, habituou-se a essa idéia e continuou a viver. Teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só em Escrich.

Acaba-se aqui a história. Para a platéia, apenas. Para as torrinhas, segue ainda por meio palmo. As platéias costumam impor umas tantas finuras de bom gosto e tom, muito de rir; entram no teatro depois de começada a peça, e saem mal a ameaça o epílogo.

Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito de aproveitar o rico dinheirinho até ao derradeiro vintém. Nos romances e contos, pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor, levado por fórmulas de escola, lhes arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha reticenciada a que chama “nota impressionista”, franzem o nariz. Querem saber — e fazem muito bem — se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinal vendeu a fazenda, a quem e por quanto.
Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade!

Vendeu a fazenda o pobre Moreira? Pesa-me confessá-lo: não! E não a vendeu por artes do mais inconcebível qüiproquó de quantos tem armado neste mundo o diabo. Sim, porque afora o diabo, quem é capaz de intrincar os fios da meada, com laços e nós cegos, justamente quando vai a feliz remate o crochê?
O acaso deu a Trancoso uma sorte de cinqüenta contos na loteria. Não se riam. Por que motivo não havia Trancoso de ser o escolhido, se a sorte é cega e ele tinha no bolso um bilhete? Ganhou os cinqüenta contos, dinheiro que para um pé-atrás daquela marca era significativo de grande riqueza.

De posse da maquia, após semanas de tonteira, deliberou afazendar-se. Queria tapar a boca ao mundo realizando uma coisa jamais passada pela sua cabeça: comprar fazenda. Correu em revista quantas visitara durante os anos de malandragem, propendendo, afinal, para a Espiga. Ia nisso, sobretudo, a lembrança da menina, dos bolinhos da velha e a idéia de meter na administração o sogro, de jeito a folgar-se uma vida vadia de regalos, embalada pelo amor da Zilda e os requintes culinários da sogra. Escreveu, pois, ao Moreira anunciando-lhe a volta, a fim de fechar-se o negócio.

Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na Espiga, houve rugidos de cólera, entremeio a bufos de vingança.

— É agora! — berrou o velho. — O ladrão gostou da pândega, e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a balda, ora se curo! — concluiu, esfregando as mãos no antegosto da vingança.

No murcho coração da pálida Zilda, entretanto, bateu um raio de esperança. A noite de su’alma alvorejou ao luar de um “quem sabe?”. Não se atreveu, todavia, a arrostar a cólera do pai e do irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de contas. Confiou no milagre. Acendeu outra velinha a Santo Antonio…
O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde pela fazenda, caracolando o Rosilho. Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da escada, de mãos às costas.

Antes de sofrear as rédeas, já o amável patife abria-se em exclamações:

— Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o grande dia. Desta vez, compro-lhe a fazenda.

Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse, e mal Trancoso, lançando as rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu e rompe-lhe para cima ímpeto de queixada.

— Queres fazenda, grandessíssimo tranca? Toma, toma fazenda, ladrão! — E lépt, lépt, finca-lhe rijas rabadas coléricas.

O pobre rapaz, tonteado pelo imprevisto da agressão, corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que Zico lhe sacode no lombo nova série de lambadas de agravadíssimo ex-quase-cunhado.

Dona Isaura atiça-lhe cães:

— Pega, Brinquinho! Ferra, Joli!

O mal-azarado comprador de fazendas, acuado como raposa em terreiro, dá de esporas e foge a toda, sob uma chuva de insultos e pedras. Ao cruzar a porteira, inda teve ouvidos para distinguir na grita os desaforos esganiçados da velha:

— Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!

E Zilda?

Atrás da vidraça, com os olhos pisados do muito chorar, a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em nuvens de pó, o cavaleiro gentil dos seus dourados sonhos.
Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o único negócio bom que durante a vida inteira lhe deparara a fortuna: o duplo descarte — da filha e da Espiga…

Fontes:
- O. Pimentel (org.). Antologia de contos. RJ: Livraria Cultural, 1961.
- Imagem = http://www.classificadosvitoria.com.br

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Concurso Clube Da Simpatia 2009 - Portugal


Tema: NINHO

1º Prêmio
Não falte à criança um ninho,
não falte ao velhinho um lar;
e a ninguém falte carinho,
nem a alegria de amar!
António Augusto de Assis - Brasil

2º Prêmio
Há no futuro um caminho
por onde passa a esperança...
No passado existe um ninho
onde a saudade descansa!
Sebas Sundfeld – Brasil

3º Prêmio
O meu lar é o meu ninho,
bem recheado de afecto:
- O amor do meu filhinho
e a ternura do meu neto!
Maria de Lourdes Graça Cabrita – Portugal

MENÇÕES HONROSAS

No coração fiz um ninho
com fios de amor e bem,
pus-lhe dentro, com carinho,
as crianças de ninguém.
Glória Marreiros – Portugal

Em persistente trabalho,
um valente passarinho,
vence o medo do espantalho
e, nele, faz o seu ninho!...
Hermoclydes Siqueira Franco – Brasil

Quisera ser passarinho,
p’ra viver em liberdade
e poder voltar ao ninho,
quando sentisse… saudade!
Maria Madalena Ferreira – Brasil

Eu prezo tanto o meu lar
por ser aconchegadinho,
que chego mesmo a pensar
que é o céu, este meu ninho!
Fernando Máximo – Portugal
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Fonte:
Colaboração de A. A. de Assis

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sarau na Escola Municipal Prof. Ary de Oliveira Seabra (Sorocaba)



A Escola Municipal Professor Ary de Oliveira Seabra estará inaugurando no dia 17/04 a sua Biblioteca denominada Monteiro Lobato, haverá comemoração nos períodos da manhã, tarde e noite.

O grupo Coesão Poética (Sorocaba) realizará sarau comemorativo ao evento a partir das 19h.

Local: Rua 6, s/n
Jardim Eliana - Bairro Novo Cajurú - Sorocaba/SP

Contatos: email: aryseabra@yahoo.com.br
Telefone: (15) 9103-7803 (Viana)

Fonte:
Douglas Lara

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Além da Terra, Além do Céu)


O TEMPO PASSA? NÃO PASSA

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.
––––––––––––––––––––––––

A BRUXA

Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida. E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras

Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.
–––––––––––––––––––––––-

A HORA DO CANSAÇO

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
–––––––––––––––––––––––––––-

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.
–––––––––––––––––––––––––-

AS SEM RAZÕES DO AMOR

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
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CANTIGA DE VIÚVO

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
acabou.
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CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
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MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
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O AMOR BATE NA PORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...
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POEMA PATÉTICO

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
e o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
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Nilto Maciel (Como Surgiram Palma e seus Habitantes)

Igreja de Santa Luzia (Baturité/CE)
Quase todas as minhas narrativas longas têm como cenário a fictícia cidade de Palma. E também alguns contos. Palma seria Baturité. Não sei se a omissão do nome real da cidade se deveu à vontade de me esconder, me sentir mais livre para criar ou de não parecer tão real, não ser um cronista. Para substituir Baturité, inventei primeiro Jeriquitiba. Depois Tamboaçu.

O topônimo Palma apareceu primeiro nos contos “A Beata de Palma”, “As Pontas da Estrela” e “Tony River”, do livro Babel, publicado em 1997, mas escrito logo após Itinerário, entre 1975 e 1976. Originalmente, no entanto, nas três peças eu ainda não denominava Palma a cidade de minha ficção. Assim, a segunda dessas narrativas intitulava-se “O Menino com uma Estrela na Testa” e se passava em Tamboaçu, tal como a primeira. Este nome perdurou talvez até 1982, quando passei a reescrever meus contos publicados em jornais e revistas.

Como disse, Jeriquitiba é o primeiro nome da cidade de minhas histórias. Apareceu apenas uma vez, em “História da Selvagem Batalha das Cruzes em Jeriquitiba e na Estrada que a Liga ao Resto do Mundo”, escrito em junho de 75, reformulado em julho de 85 e transformado em “Calvário”.

“A Beata de Palma” se inicia assim: “Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder”. Em outros contos e romances se verá a estação de trens, comum a diversas cidades do interior. Maria Efigênia é o nome da protagonista, que reaparece em “As Pontas da Estrela”. As beatas também estão presentes em histórias deste e de outros livros. Na verdade, tencionava escrever um romance. A beata seria uma das personagens.

A primeira descrição da cidade está também naquele conto: “Por pouco não me perdi naquele labirinto de ruelas, becos sem saída, florestas de árvores nas praças, coretos, igrejas, capelas. Sim, além da majestosa igreja matriz, outras dez se espalhavam pela cidade”.

As cercanias de Palma podem ser vistas em “Calvário” (a estrada, a poeira levantada pelo caminhão, a cruz fincada no chão) e “O Fim do Mundo de Sinhá” (o sitiozinho, a choupana velha, a roça), bem como a própria cidade (“A Noite das Garrafadas”).

A nomenclatura dos logradouros de Palma, no entanto, surgirá somente com a novela A Guerra da Donzela, escrita entre 1976 e 1977.

Em Tempos de Mula Preta, segundo livro de contos publicado, porém escrito logo após os de Babel, o nome Palma só aparece em “Impossível Contar a História de Palma”, de abril de 78. Entretanto, em outros contos há referências a nomes de logradouros e à sua arquitetura e geografia, como em “Ave-Marias” (“Pela 7 de Setembro, Isidoro cavalga o jipe a toda. Esporeia, chicoteia, upa, upa, bicho danado. À porta do Café Portuguez, uma rodinha ri, gesticula, cabriola em redor do Dr. Pinheiro”.(...) “Pela Dom Bosco, o jipe pula, relincha, peida, em tempo de voar”. (...) “A moça continua debruçada à janela, olhos voltados para o namorado que caminha no rumo da Matriz”. (...) “Montado no jipe, Isidoro escramuça pelos becos do Potiú. A poeira vermelha o persegue”.); em “As Sete Onças de Neo” (“Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas”.); em “Cavalos de Tróia” (“No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa”.); e em “O Castigo de Deus”, escrito em fevereiro de 78, (“Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado”.)

Palma e seus personagens são relativamente antigos. Quando a ditadura Vargas chegava ao fim, no Ceará ainda mandava Francisco de Meneses Pimentel, no poder desde 1935. Em 1937 tornou-se interventor, sendo demitido em 28 de outubro de 1945. Em Baturité ainda dominava o Comendador Ananias Arruda, apesar de ter exercido o cargo de prefeito até maio de 1943, nomeado em 1935 e eleito no ano seguinte.

Meu pai, Luiz Maciel Filho, nasceu no distrito de Guaramiranga, termo de Pacoti, comarca de Baturité, em 7 de dezembro de 1908, sendo filho de Luiz Fernandes Maciel e Raimunda Nunes Maciel, e faleceu em 10 de janeiro de 1988, em Fortaleza. Minha mãe, Francisca Alves Maciel, filha de Luiz Alves Pereira e Francisca Alves Pereira, nasceu em 11 de abril de 1908 e faleceu em 14 de julho de 1995, em Fortaleza. Casaram-se na Matriz de Baturité em 18 de setembro de 1930.

Morávamos numa casa comprida e estreita da Avenida Dom Bosco. Papai comerciava. Exportava produtos da região. Vivia bem, tinha prestígio, viajava para Fortaleza, vestia-se como rico. Mamãe cuidava da casa e dos filhos: Alda, Amadeu, José, Lúcia, Izeida e Ailton. Todos os partos devem ter sido assistidos por parteira. No ano seguinte nasceu Edinardo. Dois ou três filhos morreram bebês.

A Avenida Dom Bosco, chamada vulgarmente “calçamento”, era revestida de pedras. O asfalto viria muito mais tarde. No meio, dividindo-a em duas, havia árvores, que depois foram criminosamente eliminadas.

O batismo da tal avenida deve datar de 1939 ou mais adiante. Pois é dessa época a edificação do Ginásio Domingos Sávio, dos Padres Salesianos, construído em amplo terreno à margem dela. Nele estudei nos anos de 1957 e 1959 a 1961.
***

Desde muito cedo me apaixonei por futebol. Recortava fotos de times e jogadores estampadas em jornais e colava num velho livro mercantil. Do futebol avancei para outros assuntos: atrizes e atores do cinema, carros, aviões, cidades, arranha-céus, montanhas. Embora proibido de levar jornais para casa, todo dia visitava a mercearia de papai e tio Quincas. Passava horas e horas lendo e vendo os jornais. Um dia descobri os suplementos literários. Minha curiosidade se voltou para a literatura. Lia todos os suplementos. Contos, crônicas, poemas, artigos de Braga Montenegro, Fran Martins, Moreira Campos, Otacílio Colares, Otacílio de Azevedo, Eduardo Campos, Artur Eduardo Benevides, João Clímaco Bezerra, Milton Dias, João Jacques, Francisco Carvalho e tantos outros.

Adolescente, cioso de ser também rebelde, descuidei-me dos estudos. Porém lia tudo: as antologias, não somente aquelas de minha série escolar, jornais, revistas, almanaques. Lia poemas, contos, trechos de romances. Portugueses quase todos; alguns brasileiros. Nada dos modernistas ainda. Lia antes do dia da lição, com muita antecedência, por curiosidade e prazer. Enquanto ria da cara do professor de geografia, lia, com sisudez, trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos. Mais tarde, li os livros de Amadeu, que se dizia poeta e escrevia e copiava, diariamente, sonetos de poetas brasileiros. Todos falavam de amores não correspondidos. Num caderno grande, desses para comércio, de anotações mercantis. Um desses poemas se iniciava assim: “Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...” Muito mais tarde, encontrei-o em Juca Mulato, de Menotti Del Picchia.

Por influência dos irmãos Ailton e Amadeu, engendrei sonetos, durante algum tempo. Apesar de não amar ainda, eu também me pus a chorar de infelicidade amorosa. Preocupava-me, porém, apenas com a forma e a rima. Um desses sonetos, anos mais tarde, 1964, tive a ousadia de enviar a um jornal de Fortaleza. Publicou-se, talvez por obra de Otacílio de Azevedo, com algumas modificações: “Ser poeta é ter no peito a tormentosa/ Chaga funesta em ânsias retratada.../ É ver em tudo a forma mais formosa/ E num sonho incensar a coisa amada!”

Minha primeira leitura de livro parece ter sido Três Figuras: o Frade Poeta, o Padre Voador e o Frade Preceptor. Li-o durante um retiro no colégio dos salesianos, em setembro de 61. Convidado a conhecer a biblioteca do colégio e a retirar um livro para leitura, depois de alguns minutos de pesquisa, interessei-me pelas três figuras. Talvez por se tratar de um dos poucos livros mais ou menos profanos da pequena biblioteca.

Amadeu embarcou, em 1957, para o Planalto Central, onde se construía Brasília, e deixou alguns livros. Um deles, Pussanga, contos de Peregrino Júnior. Lido este, folheei um romance obsceno, A Mulher do Caixeiro-Viajante, de autor desconhecido, certo Alcides Vaz. Livro recomendado para maiores de 18 anos. Puro erotismo. Deste período é também a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que me pareceu obscuro, sobretudo a primeira parte. Mesmo assim, não tive, em nenhum momento, vontade de desistir da leitura. A pequena biblioteca doméstica eu a devorei nos anos seguintes, até 1963.

Em 1962 li, pela primeira vez, um romance, um grande romance: Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Contava 17 anos de idade e acabava de chegar a Fortaleza, pela segunda vez.
Já preparado para leituras mais agudas, logo me aproximei de A Besta Humana, de Émile Zola. Durante e logo após a leitura, senti profunda repugnância pela nossa espécie. Então éramos aquilo? Causou-me verdadeira comoção. Pois eu me tinha acostumado aos românticos e me defrontava com um naturalista. Por muitos dias, o céu me pareceu mais escuro, sombrio, baixo, como se fosse chover muito, desabar tempestades duradouras. As ruas, de uma tristeza inexplicável; nas casas escondiam-se assassinos em potencial; as pessoas tramavam, em silêncio, bestialidades inomináveis. Permaneci doente por longo período. No entanto, outros livros me dariam um pouco de alegria, como Agulha em Palheiro e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

Lida a pequena biblioteca doméstica, onde encontrar outros livros? Nas livrarias nem pensar, porque não dispunha de dinheiro. Eu deixava de merendar ou assistir a filmes para comprar livros. E, sem nenhuma orientação, comprava quase sempre bons livros. Adquiri, então, o gosto pelo livro velho, usado.

Eu tinha sede de conhecimento, de leitura. Lia tudo o que via. Pedia livros por empréstimo. Mas não me bastavam. Restavam-me as calçadas das ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, onde camelôs vendiam livros usados, velhos, antigos, cheios de traça e mofo, roídos de traças, sujos, páginas amarelecidas, rasgadas, anotadas. Alguns nem capas tinham mais. Havia livros de todos os gêneros, dos mais variados autores. Nenhum deles, porém, eu conhecia. Passava horas a folheá-los. Nada daqueles nomes das antologias escolares. Nada de Camões, Machado de Assis, Herculano, Alencar, Bilac e outros citados e analisados em sala de aula. Então quem seriam aqueles dos livros das calçadas? Seriam bons escritores? Valeria a pena ler aqueles livros tão antigos? Os nomes não me eram familiares, todos ingleses, franceses, alemães. Folheava um volume, lia um trecho, apanhava outro, espirrava, tanto era o pó acumulado em suas páginas ao longo dos anos. Depois de algum tempo, perguntava o preço de um volume grosso, capa vermelha, título curioso. E ia comprando e lendo romances góticos, novelas de cavalaria, contos fantásticos, misteriosos.
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Aos 18 anos de idade, me dediquei à política. A Revolução Cubana, a renúncia de Jânio Quadros, a resistência ao golpe militar em 1961 me levaram aos livros e periódicos socialistas. Eu, Ailton e Edinardo chegamos a nos fazer vendedores da do Partido Comunista. Líamos o jornal do Partido, assim como A Liga, de Chico Julião, e outras gazetas esquerdistas.
Nunca chegamos a nos entender. Tornei-me, aos poucos, um pró-chinês, depois da divulgação dos crimes cometidos por Stalim. Ailton se dizia socialista, mas contra o “comunismo” da China e da URSS. Um amigo, Joatan, se dizia democrata. Mais tarde, eu e Edinardo estivemos juntos no mesmo grupo trotskista.

Como todos os jovens de minha geração, fui “educado” para ser anticomunista. Inicialmente pelos padres e os católicos de Baturité. Só falavam no “perigo comunista”. O jornal A Verdade, fundado por Ananias Arruda em 1917 (vejam a data), de circulação semanal ou mensal, trazia sempre artigos de teor anticomunista. Vi filmes contra a Revolução Cubana, li a revista Readers Digest e uma porção de livros desse nível.

Tudo isso acabou em 1º de abril de 1964. Joatan até fugiu de Fortaleza. Deve ter se embrenhado na Serra de Baturité.

Em pleno regime ditatorial, só restava ler. E me voltei de novo para a literatura. Dediquei-me a escrever ou rabiscar poemas e contos. Entre outubro de 65 e setembro de 67, li dezenas livros: O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Jóias do Conto Ídiche; Quem Perde Ganha, de Graham Greene; A Tragédia de Zilda, de Menotti Del Picchia; A Volta ao Mundo em 80 Dias; A Brasileira de Prazins; Sete Palmos de Terra; Iracema; Ubirajara; O Gaúcho; Senhora. Cinco ou seis anos depois, reli Iracema. Passaram-se mais dez anos para reler os dois primeiros de Alencar nesta relação e pela primeira vez conhecer O Guarani e O Sertanejo. Li também O Moço Loiro; Eurico, o Presbítero; O Vinagre e a Sede, de Sinval Sá, meu professor de português; Clara dos Anjos; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Quincas Borba; As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo; Poemas, de Verlaine; Pensamentos, de Pascal; umas novelas do Marquês de Sade; Os Vegetarianos do Amor, de Pitigrilli; Contos Escolhidos, de Machado; Ascânio, de Alexandre Dumas; e outros. Lembro-me também de dois romances, em edições antigas, que mantive comigo durante muito tempo: A Última Encarnação de Vautrin, de Balzac, e A Fossa, de Alexandre Kuprin. Li também Cleo e Daniel, de Roberto Freire.

Em 1967, estudante do Colégio Municipal de Fortaleza, voltei à militância política. Apesar disso, não deixei de lado as leituras. Tomava uns tragos de cachaça, antes de entrar no colégio. Durante o dia, trabalhava numa pequena mercearia de um cunhado. Trabalhava pouco e lia muito. E tentava imitar os clássicos estrangei¬ros. Numa dessas imitações, um conto, havia um personagem copiado do Capote de Gogol.

Da biblioteca do colégio retirei, por empréstimo, grossos volumes de contos e romances, como a série “Maravilhas do conto moderno”: norte-americano, italiano, russo, brasileiro, fantástico, etc. Fascinou-me nesses livros a oportunidade de conhecer o melhor da literatura universal. Ora, em pouco tempo conheci Guimarães Rosa, D’Annunzio, Trilussa, Pitigrilli, Moravia, os russos, todos os pilares da ficção curta.

Muitos e muitos livros lidos naqueles anos eu não lembro nem sequer os títulos. Não sei precisar quantos. Recordo, no entanto, de ter vendido mais de quinhentos volumes, todos lidos, a um comprador de livros velhos, talvez um daqueles vendedores da Rua Guilherme Rocha.
***

Não gostava dos ficcionistas brasileiros, especialmente dos nordestinos. Nem de Machado e Alencar. Outros nunca consegui ler. Como Érico Veríssimo e Jorge Amado. De ambos devo ter lido um ou dois livros apenas.

Quando descobri Graciliano, li-o de uma vez. Mas já depois de 77. Estava em Brasília e queria “conhecer” o Nordeste. Nostalgia, talvez.

Antes disso, devo ter lido apenas trechos dessa literatura em antologias. Sentia ojeriza por tudo quanto cheirasse a sertão, mato, interior. José Américo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego não passavam de contadores de histórias sertanejas. E eu queria escrever como Machado de Assis, uma prosa de ficção sem cheiro de mato, urbana, nacional, universal. Eu não conhecia a lição da aldeia e do universal ou não a compreendia. Queria personagens universais, atemporais, criaturas sem nenhuma semelhança comigo mesmo. Nada de românticos, naturalistas e realistas. Escrevi então contos alegóricos, filosóficos talvez, reunidos no volume Itinerário. Exemplo disso também é o conto publicado em O Saco nº 1 (abril de 1976): “Em que deu a sabedoria do homem que transformava estátuas em seres vivos”, depois reescrito em forma de auto versificado e intitulado “Juízo Final”. Os personagens chamavam-se Homthues e Estrangeiro. Essa fase logo chegou ao fim. Em vez de alegóricos Brucutus, Cônegos, Jeovás, Platões, Pompéias, inventei um João aleijado e ensandecido por anos de prisão, um José Cristiano suicida, e mesmo um Ele e uma Ela que se unem e separam. Em fevereiro de 1977 fiz publicar um conto de linhagem totalmente diversa daquela: “Detalhes interessantes da vida de Umzim”, história de retirantes nordestinos. Minha literatura “regionalista” não nasceu, porém, depois de 77. Pois “Umzim” saiu no Saco, em 76. Creio que Carlos Emílio tem alguma “culpa” nisso, apesar de muito mais novo. Ele só falava do Ceará, do Brasil, apesar de ler Joyce e outros “ingleses” no original. Falava muito de Guimarães Rosa, também. São desse período os personagens nordestinos do segundo e terceiro volumes de contos, embora em alguns deles a geografia e o tempo sejam imprecisos, como em “O Grande Jantar”, situado numa corte européia logo após a descoberta da América.
Enquanto lia, escrevia, ou tentava compor histórias, contos, rascunhos de romance. Em 69 guardava na gaveta dezenas dessas narrativas, escritas a partir de 65. Algumas delas foram reunidas em livro em 74. As demais eu as rasguei.

A primeira tentativa de escrever um romance se deu em 62. Pareceu-me, porém, realista em demasia, e eu já (ou sempre) buscava o avesso do realismo ou o fantástico, o alegórico, o picaresco.

Outras tentativas de romance surgiram, esboços vários. Eu queria o romance novo, partindo de Alencar: índios, sertanejos, rebeliões, matanças, Conselheiro, cangaço, até às cidades grandes, o cosmopolitismo, a selva urbana, a violência nas cidades, o caos.

Publicado o primeiro livro, conheci alguns escritores novos, como Renato Saldanha, Gerim Cavalcante, Carlos Emílio, Airton Monte, Gilmar de Carvalho, Paulo Veras, Yehudi Bezerra. E continuei a escrever contos e a enviá-los para jornais, a partir de 1976. Alguns deles reuni em Tempos de Mula Preta, outros em Punhalzinho Cravado de Ódio. Quase todos foram reescritos, depois de publicados em jornais e revistas. Alguns receberam outros títulos.
***

Minha mudança para Brasília (saudade da terra natal, da família, dos amigos) talvez tenha servido para sedimentar em mim o ânimo de escrever uma literatura regional. São desse tempo os primeiros contos baturiteenses, cearenses, extraídos da memória: “Cavalos de Tróia”, “Romos”, “O castigo de Deus começou ao meio-dia” (depois apenas “O Castigo de Deus”) e “Impossível contar a história de Palma”, verdadeira confissão de incapacidade ou impossibilidade de escrever a história de minha terra.

Em carta de 24 de abril de 77, Carlos Emílio me dizia: “Precisamos, portanto, duma recapturação de nossa pré-história (é isso que eu estou fazendo), reinaugurar a cosmovisão do índio, dos seres desaparecidos e que viveram nessa terra muito antes de nós, os invasores, um retorno às fontes populares (cordel, autos, histórias narradas oralmente, os mitos da terra, da água, do ar e do fogo do povo” (...)

Essa fase baturiteense é também a fase das novelas ou romances, iniciada com A Guerra da Donzela. Na verdade, o primeiro projeto de um romance indianista surgiu em 1976 e contaria a guerra entre brancos e nativos no decorrer dos séculos XVII e XVIII, travada nos sertões nordestinos e especialmente no Ceará. O personagem principal seria um escritor que planeja escrever o romance dos índios de Baturité. Um romance dentro de outro. Esse romance teve várias versões, sofreu cortes, modificações profundas, e nunca vingou. Dele surgiu, de forma resumida, Os Guerreiros de Monte-Mor. O enredo é simples: Em meados do século XIX inicia-se mais um movimento nativista no Brasil. Semelhante à Inconfidência Mineira, à Conjuração Baiana, à Confederação do Equador. O palco dessa nova rebelião é a Serra de Baturité, no Ceará. Forma-se um exército revolucionário, composto de apenas três soldados: João da Silva Cardoso e seu neto José, ambos descendentes dos índios jenipapos, e um nativo da tribo xocó. Suas armas mais poderosas são morcegos das cavernas. A intenção do grupo é criar um novo país. Talvez um império. Ou uma república de índios. O romance é a história jocosa desses rebeldes. Seus planos, suas lutas, seus fracassos. Não se trata, porém, de um romance histórico. Melhor chamá-lo de romance picaresco. Porque seus personagens principais – o Regimento Cardoso – são bufões. Aventureiros imaginários de um período de muitas aventuras, farsas, bufonarias. O século XIX brasileiro, e cearense em particular, é cheio disso. Inicia-se com a chegada do naturalista Feijó às terras do Ceará. Sua missão: achar salitre para a fabricação da pólvora portuguesa.

A primeira aventura político-militar, no entanto, se dá em 1817, com a Revolução Nativista de Pernambuco, similar nordestina da Inconfidência Mineira. O movimento se estendeu por outras províncias do Norte. Na vila do Crato, mais tarde relegada a segundo plano com o aparecimento do Padre Cícero de Juazeiro, José Martiniano de Alencar (pai do romancista), Tristão Gonçalves e outros heróis e farsantes proclamam uma república, que dura uma semana e resulta no enforcamento dos primeiros republicanos do Brasil.

Em 1822 dá-se a grande farsa da aclamação de Pedro I. Dois anos depois, o imperador dissolve a Constituinte e faz irromperem novos focos de rebelião. No Ceará instaura-se a segunda república, que adere à Confederação do Equador, ou República do Equador, também de curta duração. Alguns aventureiros e farsantes ditos nativistas e republicanos esquecem as aventuras e voltam ao palco para as farsas da monarquia. Uns são conservadores, apelidados de caranguejos; outros, liberais, alcunhados de chimangos ou ximangos. E brigam pelos papéis principais. Em meio a tantos aspirantes a chefes, surgem aqui e ali truões, como o lendário padre Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, chamado de Canoa Doida, por andar um pouco caído para diante, a cabeça baixa pendendo para os lados, passadas curtas, mas muito rápidas, como informa João Brígido.

***

Para chegar ao nome Palma, levei anos de leituras. Como se sabe, Baturité surgiu da aldeia ou missão jesuítica de Nossa Senhora da Palma. A atual cidade de Baturité, situada a cerca de cem quilômetros de Fortaleza, foi também palco dos acontecimentos do resumo de linhas atrás, quando ainda se chamava vila de Monte-mor o novo d’América. Antes de 1764, no entanto, denominava-se simplesmente Missão da Serra de Baturité, onde foram reunidos índios das tribos Canindés, Paiacus, Jenipapos e Quixelôs, todos Tarairiús, uma das famílias de tronco independente dos Tupis e Gês (a outra era a dos Cariris) que habitava o território cearense. A formação da missão se deveu, sobretudo, a uma solicitação feita em 1739 às autoridades de Pernambuco pelo capitão-mor dos Jenipapos, Miguel da Silva Cardoso. Em 1858 a vila passou a cidade e no ano seguinte aportava em Fortaleza a barca francesa Splendide, procedente de Argel, trazendo 14 dromedários, a seguir conduzidos a Baturité, onde resistiram algum tempo. Outra farsa imperial.

Como levar a sério uma História tão repleta de farsas e bufonarias? Assim também esta história, com seus personagens tão bufões quanto os bufões reais (ou imperiais).
***

Outro projeto de romance contaria as histórias de diversas gerações de caboclos (descendentes de índios) da Serra de Baturité, desde a eliminação da aldeia até o século XX. Seria um romance longo. Um roman-fleuve. Desmembrado, esse projeto deu origem a quase todas as novelas e romances, como A Guerra da Donzela, A Busca da Paixão, Os Varões de Palma e Os Luzeiros do Mundo.

Criada Palma, outras histórias foram escritas, porém já sem nenhuma ligação ideológica com o projeto inicial, como O Cabra que Virou Bode, A Rosa Gótica, A Última Noite de Helena e Carnavalha. Quase todas escritas até 1990.

É desse período minha paixão pelos temas indígenas, sobretudo a História dos povos primitivos do Nordeste e do Ceará, em particular. Escrevi, então, contos como “Santa Sekiki”, em 1979.
Passada a euforia indianista, voltei-me para a recriação ou a invenção de Palma e seus habitantes. Aqui e ali, aproveitei um fiapo de memória, como em A Rosa Gótica. Agarrado a esses fiapos, eu me deixava embalar pela imaginação, como em Os Luzeiros do Mundo. Na verdade, quase tudo o que escrevi vem da imaginação, é invenção pura.

A fase de leituras dos clássicos estrangeiros e brasileiros acabou cedo, talvez em 1980, embora desde os anos 1970 eu viesse lendo escritores contemporâneos. Julgando-me escritor feito, pouco escrevi depois de 1990. Passei a ler a pedido dos amigos ou escritores novos. Recebia livros quase que diariamente. E foram ficando para trás muitas e muitas obras fundamentais da literatura universal. Escritas mais de duzentas narrativas curtas, uma dezena de narrativas médias, dezenas de poemas, resta-me reescrevê-las e publicá-las.
Fortaleza, fevereiro de 2006.

Fontes
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com
Imagem = http://www.hotelmais.com.br

Juvenal Bucuane (Poesia de Moçambique)


Escritor moçambicano, nascido a 23 de Outubro de 1951, em Xai-Xai, dividiu-se entre a poesia e a prosa. No entanto, os seus primeiros livros, A Raiz e o Canto (1985) e Requiem-Com os Olhos Secos (1987) , são de poesia. Em 1989 publicou, em prosa, Xefina e O Segredo da Alma . Em 1992 deu à estampa um novo volume de poemas, Limbo Verde . Bucuane foi diretor e secretário administrativo da revista literária Charrua (1984) e é membro efetivo da Associação de Escritores Moçambicanos.
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O minuto que vem

Há medo
leio-o
nos rostos dos homens
medo do minuto que vem (?)
Que grande desgraça traz
o minuto que vem?
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Leio medo
nos rostos dos homens,
rostos que não falam,
mas têm nessa voz muda
o latejar do enigma que emprenha o minuto que vem!
................................................................
Criemos uma canção, homens,
criemos uma canção de luta e de amor
que será de triunfo
no minuto que vem,
sobre o medo e a resignação!
...............................................................
Cantemos sobre o medo
do minuto que vem!
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O Húmus do homem novo

Não quero que vejas
nem sintas
a dor que me amargura;
Não quero que vejas
nem virtas
as lágrimas do meu pranto.
Deixa que eu chore
as mágoas e as desilusões;
deixa que eu deambule;
deixa que eu pise
a calidez do chão desta terra
e o regue até com o meu suor;
deixa que me toste
sob este sol inóspito
que me dardeja o lombo sempre arqueado...
Este penar
é o resgate da esperança
que em ti alço!
Este penar
é a certeza do amanhã que vislumbro
na tua ainda incipiente idade!
Não quero que vejas
nem sintas
o meu tormento
ele é o húmus do Homem Novo
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Juvenal Galeno (Poesia Cearense)



A Moda

O que eu desejo, senhoras,
É que se cumpra o rifão:
— Cada terra com seu uso,
Cada roca com seu fuso: —
Eis a minha opinião!

Mas, vestir-se o brasileiro
Como lhe ordena o francês...
Não acho isso direito!
Viver o povo sujeito
Aos figurinos do mês!

É mesmo falta de brio,
É fazer-se manequim;
Dizem que somos macacos...
Pois antes trajarmos sacos,
Do que servir de saguim!

Devemos ter nossa moda,
Tenha a sua o japonês;
Vista o prusso à prussiana,
Ande o russo a russiana,
Ninguém roube a do chinês.

Cada qual conforme o clima
De sua terra natal;
Que se o Norte tem calores,
No sul existem rigores
Da viração glacial.

Mas ornar-se quem tirita
Como quem sopra... é de mais!
Se trajamos nos estios
Como a França nos seus frios,
Não somos racionais!

E que roupagem ridícula
Nos impõe o tal Paris!
Que não levem... rabos tais!
Às damas puseram rabo! —
Pois não é um menoscabo
A esta terra infeliz? —
(...)

Batinas e polonaise,
Hoje, bico — amanhã, não;
Muitas trouxas, muitos regos,
Babados e repolegos,
Arregaços... confusão!

E franjas, fitas e penas!
No meio dessa babel,
A mulher desaparece...
Nem o marido a conhece
Nequele horendo pastel!
(...)

E é tamanha a tirania,
Que aqui não sabe ninguém
Como andará pela rua,
Ou consorte ou filha sua,
Em dias do mês que vem!

Já disse o suficiente...
Às damas peço perdão!
Apenas bato o abuso...
Cada terra com seu uso...
Esta é minha opinião!
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Os Barões
I

Eu não canto os barões assinalados
Por atos de virtude ou de heroismo...
Mas espertos e torpes titulados,
Egrégios na baixeza e no cinismo!
Que os primeiros são tão raros
Nesta terra em que nasci,
Ao passo que dos segundos
Mais de um cento conheci!
E deles cada qual o mais tratante,
Mais néscio e mais servil...
Em fidalgos ruins já ninguém vence
Por certo o meu Brasil!
E se alguém duvidar ponha a luneta
E o passado examine dos barões...
Empurre no presente uma lanceta
E verá o que sai... que podridões!
Ou procure, que tenho na gaveta,
Alguns apontamentos ou borrões...
Mas trabalho é demais... ninguém se meta,
Antes leia estes traços a crayons.

(...)

III

Que ativo contrabandista
Foi outrora, — e ainda o é —
Aquele esperto Fulgêncio,
O barão do Gereré!...

Quem mais ligeiro no ofício?...
Sagaz!
Por entre as trevas da noite...
Trás... zás!

As cousas vinham dos barcos,
Sem o fisco examinar...
Pelas artes de berliques,
Passavam todas no ar;

E por artes de berloques,
Nunca as poderam pegar!
E as que vinham pelo fisco
Mudavam de condição...
Popelinas despachadas
Por fazenda de algodão!

E desse modo Fulgêncio
Depressa se f'licitou...
Passando mil contrabandos
Em pouco tempo enricou,
E para não ser Fulgêncio,
Um baronato arranjou!

Hoje é fidalgo...
Dos nobres é:
Barão exímio
Do Gereré!...

(...)
======================

O Caipora
— No meio da mata, menino, não corras,
Que o vil caipora
Agora,
Nesta hora
Passeia montado no seu caititu;
E arteiro e malino
Se encontra o menino...
Ai dele! que o leva no seu grande uru!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Seus olhos pequenos são negros, e feros,
Quais d'onça, luzentes,
Ardentes...
E os dentes
São como os do mero, ferinos, cruéis;
E o duro cabelo,
Assim, como o pêlo
Dos bravos queixadas, que são-lhe fiéis.

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Qu'ousado e valente o tal caboclinho,
De penas coberto,
Esperto...
Decerto
Se vê-te quer fumo, pedir-t'o lá vem;
Se acaso lh'o negas,
Se não lh'o entregas,
Quem é que te salva? Lá vais ao moquém!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Se acaso te encontra... lá vais para a grota
Debalde lutando,
Gritando,
Chorando,
Na embira amarrado do seu grande uru!
Não corras menino,
Que o índio malino
Na mata passeia no seu caititu!

E o louco menino
Não quis escutar;
Fugindo de casa
Não pôde voltar.
–––––––––––––––––
Fontes:
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno.
GALENO, Juvenal. Lendas e canções populares, 1859/1865. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno.

Juvenal Galeno (1836 – 1931)



Juvenal Galeno da Costa e Silva (Fortaleza, 27 de setembro de 1836 — Fortaleza, 7 de março de 1931) foi um poeta brasileiro, de grande destaque nas letras cearenses.

Filho de José Antônio da Costa e Silva, proeminente agricultor, fez seus primeiros estudos em Pacatuba e Aracati, e cursou Humanidades no Liceu do Ceará, em Fortaleza, formando-se em 1854.

O pai desejava que ele trabalhasse na área agrícola e por isso o manda para o Rio de Janeiro estudar "assuntos de lavoura", com o objetivo de observar a cultura cafeeira.

Conta-se que ao se tornar amigo de Paula Brito, proprietário de uma famosa tipografia na época, Juvenal chegou a conhecer Machado de Assis, Quintino Bocaiuva e Joaquim Manuel de Macedo. Foi nesta altura que iniciou sua colaboração literária na revista Marmota Fluminense, a mesma em que Machado de Assis escrevia.

Em seu retorno ao Ceará, Juvenal Galeno traz o seu primeiro livro de poemas, impresso às suas custas, na Tipografia Americana, Prelúdios Poéticos, publicado em 1856.

Seguiram-se A Machadada (1860), Porangaba (1861), Lendas e Canções Populares (1865), Canções de Escola (1871), Lira Cearense (1872) e Folhetins de Silvanus (1891), entre outros.

Tornou-se Deputado Estadual em 1859, em Fortaleza; no mesmo ano, iniciou amizade com Gonçalves Dias, então integrante da Comissão Científica de Exploração em visita ao Ceará.

Em 1887 tornou-se membro-fundador do Instituto Histórico do Ceará. Foi ainda Diretor da Biblioteca Pública de Fortaleza, entre 1889 e 1906.

Juvenal Galeno foi um dos fundadores do instituto da Ceará, Patrono da Cadeira nº 23 da Academia Cearense de Letras.

O poeta ficou cego em 1906, por causa de glaucoma. Em 1919, com ajuda de sua filha, Henriqueta Galeno, sua residência tornou-se um lugar de promoção cultura, com a criação da Casa de Juvenal Galeno. Faleceu de uremia aos 95 anos de idade, em Fortaleza, no dia 7 de março de 1931.

Juvenal Galeno pertence à segunda geração do Romantismo. Suas obras foram admiradas por grandes escritores do período, como José de Alencar, que escreveu, sobre Lira Cearense: "creia-me, livro tão original ainda não se escreveu entre nós e o Ceará deve lisonjear-se de ter quem lhe dê na literatura pátria um lugar que não têm outras províncias mais ricas e adiantadas em progresso material."

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://www.astormentas.com/

terça-feira, 14 de abril de 2009

Gonçalves Dias (O Gigante de Pedra)



O guerriers! ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Afin que l'étranger cherche, en voyant leurs cimes,
Quelle montagne est mon tombeau!
V.Hugo.Le Géant.

I
Gigante orgulhoso, de fero semblante,
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.

Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E à aurora, que surge, não há de acordar!

Co'os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe 'stá.

E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam,
Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II
Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p'ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;

E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,
E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,
Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!

Tornam prados a despir-se,
Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
Nos abismos do porvir!

E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito.
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!

III
E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV
Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida

Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o germe da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá.

Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D'altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!

V
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados,
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.

Porém se algum dia fortuna inconstante
Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!
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