domingo, 7 de janeiro de 2024

Célio Simões (Meu dia no supermercado)

Chegamos do nosso giro de final de ano, por sinal curto em relação aos anteriores e nos demos conta de que os mantimentos caseiros estavam zerados. Despensa rarefeita, geladeira quase deserta, freezer congelando a provisão que fora deixada. Minha esposa elegeu como prioridade dar um grau no apartamento, embora eu não visse nele qualquer vestígio de sujeira. Mas ela é assim mesmo e nesse quesito (nos outros também) eu não dou pitaco. Já me preparava para ganhar a rua pretextando outras providências, quando ela, concluída a inspeção que fez na cozinha, surgiu de lá com um papelucho na mão e pediu: - Se você passar no supermercado compre o que está nesta lista, pois precisamos nos reabastecer. “Espiolhando” vislumbrei rabiscado o rol de gêneros que aos poucos fui decifrando: banana, alface, pepino, tomate, cenoura, limão, maçã, mamão, melancia, maracujá, ovos, alho e cebola. 

Na mesma proporção que eu evito os shoppings, por serem impessoais e repetitivos na aparência em todo lugar, gosto de ir aos supermercados (desde que seja com ela), mas tenho especial predileção pelas feiras livres, por nelas identificar autêntico local de congraçamento, de dinâmicas proativas nas relações sociais e econômicas, verdadeira celebração da cultura popular, reflexo espontâneo da alma de um povo, como sabidamente são em Belém o Ver-o-Peso, a Feira da 25, a da Batista Campos, a da Praça Brasil e outras menos votadas, a despeito da insegurança existente nos espaços públicos, exigindo redobrada atenção de quem nelas comparece. 

Escolhi um supermercado perto de casa e estando lá, saí empurrando o indefectível carrinho, olhos grudados no papel com a lista de compras. Por onde começar? Até que me saio bem com carnes e peixes, principalmente estes, que conheço de sobejo, mas com o resto a coisa complica um pouco ou, para ser sincero, complica muito. É que no setor de hortifruti vejo todo mundo apalpando sensualmente os produtos antes de colocar nos sacos plásticos, mas até hoje ainda não descobri o ponto exato que revela uma batata boa de outra imprópria para o consumo. Como se fossem chocalhos, observo os compradores sacudindo no ar lustrosos maracujás, a modo polidos com óleo de mutamba (óleo aromático), porém uns são devolvidos à gôndola, outros são aproveitados e por mais que eu me esforce, não ouço barulho algum que sirva de referência entre aquele que presta e aquele que não presta. Em tais situações, peço mil desculpas para não ser mal interpretado e apelo à generosidade e ao conhecimento das experientes donas de casa, rogando que me ajudem nas escolhas - e até que tenho encontrado desinteressada colaboração.

Nesse dia, meu carrinho já estava à meio, mas ainda faltava a alface, que minha esposa pediu da “verde e da escura”, esta última vista até então de forma suspeitosa por mim, pois imaginava que aquela cor fuliginosa decorria da sua natural deterioração. De longe, vi uma compradora elegante, trajada como se fosse para uma solenidade, esquadrinhando as alfaces contra a luz forte do teto, praticamente escaneando com os olhos as dobras enrugadas do vegetal, em busca talvez de algum piolho-de-cobra oculto nas folhagens e pensei: essa entende mesmo do riscado, vou pedir ajuda. No que eu tomei seu rumo, da minha ilharga surgiu a voz álacre, amistosa e acolhedora de uma antiga e querida amiga, dessas que fizeram parte do feliz universo da meninice:

- Nossa, olha quem está aqui no supermercado! Quanto tempo meu amigo. Estou muito feliz em reencontrá-lo, em especial neste início de ano. Leio sempre seus textos, acompanho suas postagens nas redes sociais, vibro com as fotos das suas viagens. E você?...

Com o coração em festa trocamos caloroso abraço, ao tempo em que resumi as atividades que tenho nessa fase da vida que eufemisticamente rotularam de melhor idade, dizendo-lhe honestamente que apesar de setentão não me sinto velho, no máximo seminovo, para utilizar a linguagem típica do mercado automotivo. Entretanto, apesar do afeto ressurgido naquele inesperado colóquio, abusei da amizade, postulei e dela recebi eficaz assessoria para a compra de pepinos e cenouras, embora sem minimamente entender como ela sabe que um está bom e o outro não. Despedimo-nos, ela estava com pressa. 

Tudo OK? Não. Reparei que ainda faltava o limão! Mas esse eu tiro de letra, murmurei. Imagina se eu ia errar na compra daquilo que abundava em nosso quintal, na vizinhança, na fazenda e no Bar do Plácido, onde mal saídos das calças curtas, curtíamos a caipirinha que nos permitia vencer a inibição e dançar tipo Carlinhos de Jesus nos salões feericamente iluminados dos bailes de então. É comigo mesmo, pensei. Olhei o bendito papel e lá constava, tipo ordem do dia no quartel: traga 12, de casca fina! No que eu estava me preparando para avaliar a espessura da casca do primeiro, tive outra surpresa: 

- Não acredito! Cara, quanto tempo! Só pode ser presente de Ano Novo!...

À minha frente estava um sujeito risonho, porte mediano, físico entanguido, trajando bermuda e camisa polo, pilotando outro carrinho, que eu nunca vira antes.  Apertou vigorosamente minha mão e desandou a falar:

- Cara, eu estou muito feliz! Adoro encontrar meus colegas de turma brilhando em suas atividades. Estou aposentado, aproveitando o lado bom da vida, meus filhos já casaram faz tempo e venho sempre neste supermercado comprar as coisas para a minha mulher, porque moramos bem aqui pertinho – e fez um biquinho com os lábios para me indicar o seu local de residência. 

Notei que o carrinho dele, contrastando com o meu, regurgitava de carne, peixes nobres, frango, frutas, folhagens, enlatados, compotas, temperos, pães, bolos e material de limpeza – indicando que sua jubilação não fora pelo INSS. Com esforço, dominei o ímpeto de pedir àquele desconhecido, do qual nem mesmo o nome eu sabia, seu cronograma de compras, visando doravante fazer com ele uma dobradinha, a fim de cumprir sem sobressaltos a espinhosa desobriga. Mas ele não me dava chance falar, empolgado em sua catadupa discursiva sobre os bons e saudosos tempos da faculdade, até que rematou:

- Soubeste do Ambrósio(*)? Agora ele é figurão nacional. Foi eleito para presidir o Conselho Federal de Química, é pouco? Na nossa turma ele nem abria a boca e agora manda e desmanda lá em Brasília. Dá para imaginar isso, irmão?

Sinceramente, mas de química, a única e reiterada experiência que tive foi fazer, quando moleque, cerol de papagaio com cola de sapateiro e vidro moído de magnésia, surrupiado do lixão da Farmácia Esculápio para as porfias domingueiras, por isso percebi logo que se tratava de um engano sobre a minha pessoa. Pisando em ovos para não melindrá-lo, disse-lhe do equívoco que ele estava cometendo e a sua reação foi mais surpreendente ainda: 

- Poxa vida, me desculpa, mas tu és a cara do nosso colega da Faculdade de Química que foi orador da turma, juro que pensei que fosse ele... 

Achei meio fantasiosa a notícia de que eu tivera um sósia nos distantes anos setenta, quando, exultantes e sonhadores, transpusemos o portal de saída da universidade, mas era hora de livrar meu interlocutor daquela saia justa e foi ele mesmo que, incrivelmente, se incumbiu disso. Com expressão iluminada por um largo sorriso, tirou de letra, não se deu por achado: 

- Pois é parceiro, mas mesmo não sendo tu, já que estamos nesse papo, vamos celebrar e desejar que todos os nossos amigos sejam felizes e tenham muita saúde em 2024. Ato contínuo, simulando um brinde, me fez repetir o gesto de tocar duas taças, na hipótese imaginárias, o tradicional “tim tim” dos filmes natalinos. Esse caboclo é meio gira, pensei. Tomara que os demais que estão comprando não nos chamem de doidos, rezei piamente...

Embora constrangido, caprichei na reciprocidade e finalmente ele se foi. Saí dali com a sensação de sincero bem estar por ter, naquele breve tempo, realizado o ideal da convivência humana, mesmo com um estranho. Acho que valeu até mesmo a encenação do brinde que fiz para não decepcioná-lo. A magia do Natal, que naturalmente se estende para além da virada do ano, me fez descobrir que a tal resiliência, palavra muito em moda nas entrevistas televisivas, pode fazer a diferença. É questão apenas de vontade, que a gente incorpora com a prática, a mesma prática que faz as donas de casa darem um show de versatilidade e competência nas suas compras em supermercados. 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
(*) Ambrósio, no texto, é nome fictício.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Célio Simões é advogado, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto dos Advogados do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

Luiz Damo (Trovas do Sul) LIV


Adotemos um costume:
de em lugar nenhum fumar.
Mesmo tendo alguém que fume
não queira se acostumar.
= = = = = = = = = 

A grande e dura saudade
sob a lápide se esconde,
só nos traz perplexidade
e ao grito sequer responde.
= = = = = = = = = 

Antes que venha a aderir
o rol dos menosprezados,
não devo me permitir
ficar de braços cruzados.
= = = = = = = = = 

A vida nunca termina,
sempre está se renovando,
quando a morte se aproxima
vida nova vem chegando.
= = = = = = = = = 

A vida só tem sentido
se vivida intensamente,
cada momento perdido
não se vive novamente.
= = = = = = = = = 

Cada semente lançada
na lavoura da esperança,
nunca seja destroçada,
mas um sinal de bonança.
= = = = = = = = = 

Deve haver felicidade
em cada instante do dia,
na maior profundidade
complemento da alegria.
= = = = = = = = = 

Doces versos ao relento
espalhei sem perceber,
que levados pelo vento
foram distantes crescer.
= = = = = = = = = 

Do infinito a imagem vem,
como nós o imaginamos,
mas na verdade ele tem
o tamanho que lhe damos.
= = = = = = = = =

Faltando a sinceridade
a mentira encontra alento
e à luz da falsa verdade
cresce o desentendimento.
= = = = = = = = = 

Há grande falta de afeto
neste mundo a vigorar
e muita gente sem teto
sob a ponte indo morar.
= = = = = = = = = 

Joguei pétalas em cores
para os passos perfumar,
o que vi não foram flores,
mas perfume em seu lugar.
= = = = = = = = = 

Na festa de São João
nunca faltam brincadeiras,
pipoca, doce e pinhão,
à luz de grandes fogueiras.
= = = = = = = = = 

Não tem batalha sem luta,
nem luta sem união,
sendo a vitória uma fruta
colhida da rendição.
= = = = = = = = = 

No fim da vida alguém sente,
quanta chance foi perdida
de viver intensamente
cada momento da vida...
= = = = = = = = = 

O homem tem sede de paz
mas de justiça também,
nem tudo lhe satisfaz,
só procura o que convém.
= = = = = = = = = 

Olho pro campo. Chovendo!
Muda a terra ressequida.
Mal creio que esteja vendo
outro milagre da vida.
= = = = = = = = = 

Outono vem pra trazer,
a certeza da colheita,
frutos que vamos colher
numa operação perfeita.
= = = = = = = = = 

Quando a saudade apertar
nosso coração reclama,
pois deseja sempre estar
ao lado de quem mais ama.
= = = = = = = = = 

Quem passa o tempo brincando
pode estar jogando fora
tudo o que estava ganhando
e assim lastimando chora.
= = = = = = = = = 

São corpos siliconados
com formas esculturais,
só falta serem clonados
pra se ter outros iguais.
= = = = = = = = = 

Se de pai fores chamado
ouve o que teu filho tem,
talvez queira ser amado
tal como o queres também.
= = = = = = = = = 

Se um melhor caminho tem,
neste mundo todo seu,
mostre e diga-nos também
como foi que apareceu…
= = = = = = = = = 

Toda paz que tanto anseia
o homem poderá alcançar,
basta dar a quem o odeia
mais amor sem o odiar.
= = = = = = = = = 

Transformar a tempestade
em luzes para o futuro,
requer força de vontade
para até seguir no escuro.
= = = = = = = = = 

Viva a vida sem receio,
não lastimes nem lamentes!
"Levanta e vem para o meio",
pois não somos diferentes.
= = = = = = = = = 
Fonte> Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014. Enviado pelo autor.

Coelho Neto (O Fauno)

Nascido na Veiga, entre outeiros de relva aveludada e claros, sonoros fios d'agua, criado no meio de ovelhas brancas, em companhia de pastores e zagalas
(pastoras), adorando o sol de ouro puro e as estrelas rutilas de prata, fazendo canções à lua, contando queixas de amor às fontes vivas, era feliz o pastorzinho.

Só pensava em Aleina e no seu rebanho, dando-se por venturoso se a pastora lhe sorria, correndo ao templo rústico com ofertas aos deuses se ouvia balar um novo anho.

À noitinha, em tempo de luar, deixava as folhas cheirosas do seu leito pastrano (rústico) e, à porta da cabaninha, contemplando o céu, ouvia o rouxinol. 

Que lindos os seus pensamentos!

Um dia, alongando-se no caminho, penetrou a floresta, guiado pelas borboletas, e, no recesso sombrio em que se apinhavam as árvores mais velhas, ficou ouvindo o sereno murmúrio das águas apenas nascidas.

Gozava aquele tartareio das fontes, berços das ribeiras, quando descobriu um fauno que ia e vinha de arvore a árvore, tocando ligeiramente as flores desabrochadas.

Empalideceu receoso, quis esconder-se às vistas do deus silvestre, mas a figura do fauno — cornífero, capripede, veludo — fê-lo rir e, como o morador e protetor da selva não se perturbasse com a sua presença, o pastorzinho adiantou-se.

— Que fazes, fauno? perguntou.

Voltou-se o deus e, fitando no pastor os grandes olhos profundos, respondeu:

— Caso as flores, pastor. Sou eu quem leva recados de uma a outra corola. É verdade que a brisa e as abelhas auxiliam-me, mas sou eu quem lhes diz onde há flores púberes, flores que podem celebrar noivado. Sou eu que, à noite, pelo clarão nupcial da lua, visito os ramos sentindo o perfume! É pelo perfume que chego a conhecer a puberdade dessas donzelas cativas que nem por viverem presas às hastes em que nasceram deixam de se entender com os seus namorados, não fossem elas femininas!

O pastorzinho desatou a rir e o fauno, encostando-se a um velho e rugoso tronco, suspirou:

— Eis! Se conhecesses, como eu, os segredos da natureza, não ririas, por certo. Dizes cá, pastorzinho: queres ser sábio como um deus?

— Sim, quero. A que preço? Dou-te a ovelha mais gorda do meu rebanho e uma taleiga (saco pequeno e largo) nova que ainda não serviu.

— Guarda a tua ovelha e a taleiga. Dar-te-ei toda a ciência dos deuses se me quiseres ceder as tuas ilusões. Troquemos as nossas almas: levarás, com a minha, a eternidade e a sabedoria. Eviterno e onisciente, que fortuna! pastor! Eu ficarei com as ilusões da tua e sujeito à vida efêmera que as almas humanas vivem no corpo em que transitam. Conhecerás todos os segredos da terra, todos os mistérios do céu; verás tão claro no futuro como no presente e a tua mocidade será perpetua como a cor azul do eliseu e a cor verde do mar. Queres?

— Sim, quero, disse o pastor contente.

— Vem comigo. Habito uma caverna a dois passos daqui e no tempo que baste a uma abelha para sugar o mel de um nectário farei a troca das almas. Levarás a riqueza e eu ficarei com as ilusões que valem menos que o fumo que sobe da lenha verde. 

Pôs-se a rir, de contente, o pastorzinho e, rindo, acompanhou o fauno à caverna.

Era uma furna sombria, merencória e humilde: parecia que ali se agasalhava o inverno. Contínua, com triste som, uma gota d'água pingava e os passos, ainda os mais leves, retumbavam no côncavo rochoso com um soturno ressoo longo e amedrontador. E disse o fauno:

— Senta-te, vou fazer lume.

E, puxando folhas secas, fez fogo e, em volta da chama, sentaram-se os dois.

Pôs-se o fauno a murmurar palavras encantadas e os olhos do pastorzinho logo se fecharam, pendendo-lhe a cabeça loura e, dormindo, quedou no leito de ramos.

Então o deus silvestre, colando a sua boca à do pastor, sorveu-lhe a alma cheia de ilusões e transmitiu-lhe, com a eternidade, o seu espírito onisciente.

Logo despertou o pastorzinho e, olhando, um momento, em torno, ergueu-se e, tristonhamente, partiu. Ficou o fauno a fitar o lume alegre, pôs-se a cantar contente e, levantando-se num pincho (salto), entrou a bailar em redor da fogueira.

E assim cantava o que fora imortal:

“Estrelas são gotas de luar. Ó cântaro da lua, cheio de leite, que desastrada zagala andou contigo aos boléos (boleando) para que assim derramasses tanto leite na eira?

Bem hajas, zagala — não fosses tu e não haveria estrelas. A luz do sol é sangue, a luz da lua é leite”. 

E cantava ainda:

“Quão lindo é o olhar da virgem! Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar. Pode o mergulhador descer à pesca da perola, nos penetrais mais íntimos das águas... quem é capaz de descobrir o segredo dos olhos verdes, abismos de sedução onde cantam sereias?

Um beijo é um germe, é o pólen que vai de lábio a lábio. O amor... que importa a morte?!”.

Assim cantava o fauno e ria perseguindo, a correr, as borboletas e toda a brenha parecia rir com o alegre fauno. Mas, de vez em vez, gritos rolantes atroavam.

— Fauno do bosque, dá-me as minhas ilusões, toma a tua alma com a eternidade, a onisciência e todo o seu poder divino. Restitui-me as ilusões que me roubaste. Conhecer toda a verdade é viver no vazio, é ver o fim de todo o Bem, o fim de todo o Amor; é jazer, vivo, num sepulcro porque o nada é a expressão da vida. E as minhas ilusões eram o azul desse vazio, o horizonte feliz desse infinito lúgubre. Dá-me as ilusões, toma a tua alma.

E o fauno, ouvindo o pastor, abalsava-se (embrenhava-se), fugindo, a cantar, pelo bosque verde:

“Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar”.

E o pastorzinho? Pobre pastor deserdado! E vós, que andais pelos bosques, não vos fieis em faunos.

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Itararé/SP)


Letra: Dorothy Jansson Moretti
Música: Maestro Gerson Gorski Damaceno

Itararé das campinas
e mil recantos amados 
das verdejantes colinas  
e dos vales ondulados...

Das araucárias e pinus,
envolvidos na fragrância, 
os ventos te cantam hinos, 
ó terra de nossa infância!

Do Rio Verde e Caiçara, 
da Gruta das Andorinhas, 
quem dera eu te alcançara 
nessa trilha que caminhas!

Das araucárias e pinus 
envolvidos na fragrância, 
os ventos te cantam hinos 
ó terra de nossa infância!

De tua gente expansiva  
brilhantes realizações 
 te fazem sempre mais viva 
 junto aos nossos corações!

Das araucárias e pinus 
envolvidos na fragrância,
os ventos te cantam hinos, 
ó terra de nossa infância!

Artur de Azevedo (Contos em versos) As Vizinhas

I
O Felizardo tinha,
Havia um mês apenas,
Uma formosa e lânguida vizinha,
Flor da flor das morenas,
Por quem se apaixonara
Desde o momento em que lhe viu a cara.
À janela sozinha,
Nunca a pilhou, mas sempre acompanhada
Por uma quarentona
Rechonchuda e anafada (adiposa).

Quem seria a matrona
Ele ignorava, mas, na vizinhança,
Tendo indagado, soube, sem tardança,
Que das duas vizinhas
Uma era a filha e outra a mulher do Prado,
Velhote apatacado,
Que a vender galos, a vender galinhas,
E outros bichos domésticos, vivia
Durante todo o dia
Na praça do Mercado.

Felizardo ficou muito contente
Ao saber que a matrona
Da morena era mãe, porque a tal dona
Indubitavelmente
Mostrava ter por ele simpatia;
Quando a cumprimentava, ela sorria
Com um sorriso de sogra em perspectiva.

A morena adorada
Era mais reservada,
Menos demonstrativa;
Sorria-lhe igualmente,
Mas disfarçadamente
E de um modo indeciso,
Como se fora um crime o seu sorriso.

II
Um dia Felizardo, que era esperto,
Tendo a jeito apanhado um molecote
Da casa das vizinhas, deu-lhe um bote
E o efeito foi certo,
Porque não há moleque
Que por uns cinco ou dez mil réis não peque.
— Como se chama a filha do teu amo?
— Mercedes. — E a senhora? — Julieta.
— Pois ouve cá: dona Mercedes amo.
Toma esta nota. Dobro-te a gorjeta
Se acaso te encarregas
De lhe entregar uma cartinha... Entregas?
— Entrego, sim senhor. — Quando trouxeres
A resposta, terás quanto quiseres!

A secreta cartinha
Uma declaração de amor continha,
E terminava assim: «Se me autoriza
A pedi-la a seu pai em casamento,
Três letras bastam... nada mais precisa...
Sim ou não... minha vida ou meu tormento.»
Veio em breve a resposta
Pela tal mala-posta,
E exultou Felizardo,
Lendo, escrito em bastardo,
O grato monossílabo ditoso
Com que sonhava um coração ansioso.

No mesmo dia foi o namorado
Ter com o pai da morena
À praça do Mercado.
Não preparou a cena:
Refletiu que modesto
Devia o velho ser, por conseguinte,
Dispensava etiquetas. Deu no vinte,
Como o leitor verá, se ler o resto.

III
Em mangas de camisa estava o Prado.
Na barraca sentado,
Entre galos, galinhas, galinholas
Das raças mais comuns e das mais caras, —
Frangos, patos, perus, coelhos, araras,
Passarinhos saltando nas gaiolas,
Saguis mimosos, trêmulos, surpresos,
Acorrentados cães, macacos presos,
E no ambiente um cheiro
De entontecer o próprio galinheiro,
Quando foi procurado
Por Felizardo. — Felizardo Pinho
É o meu nome; conhece-me, seu Prado?
— De vista, sim, senhor, que é meu vizinho.
— Eu amo ardentemente sua filha,
E não sou para aí um farroupilha.
Não quero agora expor-lhe as minhas prendas;
Apenas digo-lhe isto:
Vivo das próprias rendas,
Tenho boa família e sou bem visto.
Venho, por sua filha autorizado,
Dizer-lhe que domingo irei pedi-la.
Até lá pode ser bem informado,
Afim de que me aceite ou me repila.
O pai, que estava atônito e pasmado,
Interrogou: — É sério? É decidido?
O senhor gosta da Mercedes? — Gosto,
E tudo, tudo arrosto,
Para ser seu marido!
— Bom; domingo lá estou, e é crença minha
Que ficaremos do melhor acordo;
Mas vá jantar, que sábado, à tardinha,
Mando pra casa o meu perú mais gordo.

No domingo aprazado
O Felizardo, todo encasacado,
Inveja das catitas mais catitas,
Foi recebido pelo velho Prado
Na sala de visitas.
— Vou chamar a Mercedes, disse o velho,
Enquanto o namorado, num relance
Mirando-se no espelho,
Achava-se um bom tipo de romance.

Voltou à sala o Prado,
Trazendo pela mão... a quarentona.
— Aqui tem minha filha! Embatucado,
Felizardo caiu numa poltrona.

O mísero protesta:
— Perdão, mas não é esta!
— Eu não tenho outra filha! sobranceiro
Exclama o galinheiro.
Felizardo, fazendo uma careta,
— Mas a outra?... — pergunta. — A Julieta?
Essa é minha mulher! — Minha madrasta,
Acrescenta Mercedes. — Basta! basta
Perdão, minha senhora!
Murmurou Felizardo, e foi se embora,
Correndo pelas ruas.
Não houve nunca mais noticias suas

Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

sábado, 6 de janeiro de 2024

Versejando 130

 

Mensagem na Garrafa – 73 –

Natali Cristiane dos Santos Silva
Sorocaba/SP

TROCADOS

Esqueça de me perguntar se ainda há amor em mim!

Não é justo depois de tanto tempo você forçar os meus olhos a te verem aqui! Sentado na chuva esperando meu SIM!

Não, Não, repito Não, o meu amor já chegou ao limite e você nem notou, aliás, nada nunca notou.

Quantas vezes você se perguntou como eu estava nestes últimos 3 anos?

Como eu estaria depois daquele maldito dia?

Como estariam minhas feridas que por anos lambi na escuridão do meu quarto, rindo da minha ignorância, afinal eu me enganei e deixei que você me enganasse.

Não tenho mágoas, nem isto você merece!

Ainda não tenho rumo, mas NUNCA, NUNCA mais permitirei que os meus pés confusos, mas hoje sóbrios, caminhem em ruas onde eu possa encontrar os teus dedos finos e longos, mas encardidos de desamor.

Vá, tome seu rumo, nunca houve um abrigo para mim no teu peito, e hoje eu me recuso a te dar o meu.

Tenho hoje um farol, não igual ao teu, por que este sim me ilumina.

Não, Não, nunca te troquei, não me chame de infiel.

Apenas não houve amor, houve dependência, como uma droga que só vicia, mas no meu caso foi imoral e com o tempo descobri que foi fatal.

Fatal para as mais puras raízes da minha alma, da minha história, mas como diz aquela música, "Valeu, valeu, valeu demais".

Me levantei em meio ao pó sob os aplausos da minha dor.

Foi a minha vez de caminhar e não olhar pra trás.

Jurei, jurei para mim e para o meu espírito que nunca mais OLHARIA PRA TRÁS.

E não seria nesta madrugada tão triste em que vejo seu corpo magro e maltratado pelo tempo que falharia com a minha promessa, nem comigo.

Aceite estes trocados, aceite minhas migalhas, isto eu posso te dar, afinal foi isto que recebi de ti, e embarque no próximo trem.

Isto não é um conselho por que nem eu mesma aceito isto de ninguém, mas volte para sua terra, talvez exista alguém ainda lá ansiando a tua volta.

Eu repito, não estava lhe esperando.

Vá, junte seus trapos e embarque, a minha vida continua e tenho a impressão que cheguei atrasada para a festa.

Um dia lhe mandarei flores, não como um sinal de homenagem, mas de luto, como sinal da minha morte, na tua vida.

"O amor é claro, mas também sombrio, a escolha é sua"

Aparecido Raimundo de Souza (Habilidades de camuflagem)


LOLITA DA CUCA FRESCA entra na loja exatamente no intervalo do seu almoço. Tinha uma hora para engolir a marmita e voltar às pressas para o serviço. Trabalhava na faxina de uma empresa de telefonia e o serviço não poderia, de forma alguma, lerdear. Por seu turno, não se arrimavam, em seus planos, perder tempo. A duração dele, em seu relógio, se fazia preciosa e austera.  Com esse pensamento deixou o almoço para depois e saiu em busca do que demandava levar à termo. Naquele dia, impreterivelmente apertado, e em face da rapidez estonteante com a qual os ponteiros fustigavam os segundos (deixando os à beira de um ataque inesperado), a qualquer momento a coisa toda poderia se degringolar, e, o pior de tudo, se fazer fatal. 

A hora de mandar a “boia” para o vazio da barriga se consubstanciava no único espaço que lhe permitia dar um giro em busca do pretendido. Como trabalhava próximo à várias lojas de comércio, concluiu, se fosse à passos ligeiros, voltaria em tempo, não de engolir o almoço. Simplesmente para comprar o que carecia dar de recordação para uma pessoinha muito especial em sua vida. Com essa fixação borbulhando o seu afogadilho, submergiu as batidas do coração em várias lojas. Todas, por azar, superlotadas. Na que lhe pareceu ser a mais cômoda e com poucos personagens em ebulição, se dirigiu à área masculina a varejar uma prenda que encantasse a quem homenagearia. 

Escolheu uma camisa elegante e dentro do orçamento que saldaria sem atropelos. O “mimo” se destinava a seu pai, que completaria noventa e cinco anos. O longevo, apesar da idade, se fazia esperto. Todos finais de semana passava a mão na sua esposa e a levava para um clube próximo de onde moravam. Ali bebiam refrigerantes, comiam algumas besteiras, dançavam até não aguentarem mais, e, em seguida, retornavam para o aconchego do lar. Dona Palmira, sua mãe, como nos anos anteriores, anunciou que faria uma festinha surpresa para seu companheiro de quase setenta anos. 

Lolita da Cuca Fresca jamais chegaria de mãos abanando, tendo em conta que apesar de pobre e humilde, seu pai sempre se fizera benemerente e magnânimo. Construíra casas espaçosas nos fundos do quintal imenso, onde, aliás, mais dois irmãos com suas respetivas famílias, dividiam o espaço, cada um no seu próprio quadrado, obviamente, agrupados ao lado dos autores de suas existências. Presente comprado, Lolita da Cuca Fresca se encalçou em busca de uma caixa que fosse rápida. Havia um público proceloso entrelaçado em filas quilométricas. Foi aí que deu de sorte com uma pequena. Nela, três pessoas. Olhou para o relógio de pulso. Daria tempo, se a coisa fluísse ligeira. 

Correu e embicou na traseira de um rapazola vestido com uma camisa do Flamengo. Na frente dele, uma moça toda de preto. À boca do guichê, um distinto de costas lembrava Jason Statham (ator e lutador de artes marciais). A funcionária, naquele momento, se fazia estressada com um monte de papéis nas mãos (possivelmente carnês). Apesar disso, manejava tudo com destreza. Contudo, um fato estranho ocorria sem explicação. O sujeito que encabeçava a “bola da vez,” ou seja, o assemelhado ao “infiltrado Jason,” não saia do lugar. Igualmente a moça toda de preto e o sujeito com a camisa do seu time predileto. Lolita da Cuca Fresca resmungou com seus botões: “Essa lesma do recebimento, deveria ser rápida, parece uma tartaruga empacada.” 

Cinco minutos quase, e nada de deslanche. “Meu Deus! Preciso voltar.” Ao seu cangote, uma senhora com uma menina de uns treze anos, ambas grudadas em seus respectivos celulares, espreitavam pela chegada da vez. E o tempo se esvaia. Nas outras caixas, modo igual, se aglomeravam mais pagantes. A demanda, entretanto, fluía. Golfava sem delongas. Lolita da Cuca Fresca, ao contrário, se remexia presa a um incômodo cada vez mais enervante. Dez minutos e nada. A sua carreira de seres viventes, parecia morta. Mais dez minutos e teria que abandonar o presente e correr para o trabalho. A senhora, atrás dela, indignada, deu sinais de vida. Grunhiu: “Final de ano, natal e virada de 2024 às portas, gente saindo pelo ladrão, um monte de caixas, e as esperas não evoluem.” 

Lolita da Cuca Fresca sorriu para a criatura e informou: “Estou em horário de serviço e tudo indica, não serei recepcionada. Esperarei mais cinco minutos... se a droga continuar desse jeito, engasgada, vou me embora sem o que vim fazer aqui.” Os cinco minutos voaram e nada. Nesse instante, um segurança se aproximou. Risadinha marota no rosto cheio de espinhas. Antes que falasse alguma coisa, Lolita da Cuca Fresca tomou a dianteira e reclamou:
— Moço, estou em horário de almoço. Vim comprar um presente para meu pai. Entrei nessa espelunca e a droga da molengona do caixa parece não ter pressa... 

Ajuntando as palavras, se desfigurou numa feição de poucos amigos e continuou:
— Vou ter que ir embora sem levar o que adquiri para dar a meu velho. Essa senhora aqui, como pode perceber, se faz deveras aperreada... 
O segurança se abriu numa fala que lembrava o som de uma taquara rachada:
— Senhorita, pelo que presumo, acredito não tenha prestado a devida atenção.
Lolita da Cuca Fresca, o rosto ainda mais enfurecido, se abrasou:
— No que não “prestei a devida atenção,” cavalheiro?

— No rapaz a sua frente.
— Reparei sim. O que tem ele?
Refez a indagação à senhora com a adolescente no celular. A mulher olhou longamente para o rapaz e concluiu:
— Um espécime normal... meio paradão, mas hoje em dia...
O segurança, em resposta, e rindo de ambas as compradoras, mandou bala:
— Senhoras, o rapaz vestido com a camisa do Flamengo... e os demais...

A senhora desviou os olhos do celular e se adiantou:
— Fala logo, moço. O que está acontecendo com o flamenguista?  Acaso se prostrou arrependido? Quer mudar de time? 
Lolita da Cuca Fresca engrossou o papo. Observou, braba:
— A engraçadinha do caixa, Deus que me perdoe, parece não ter mais ninguém para atender...
O segurança, sem deixar de manter a fuça debochada:
— Essas “pessoas,” não são “pessoas,” sé é que me entendem, caríssimas senhoras...

As duas cercam o segurança e indagam a uma só voz: 
— O que o senhor quer nos dizer com essa conversa de que os que estão a nossa frente “não são pessoas”?
O Segurança insiste fazendo charme numa repetição odiosa:  
— Essas “pessoas” como mencionei, não são “pessoas,” Olhem com atenção... 
O fardado se afasta alguns passos e, aos gargalhos estridentes, como se fosse um retardado, obstina:
— Por favor, olhem com atenção. Só peço isso: botem reparo com atenção...
— Diabos, moço. Estamos fazendo isso... fala, por Deus. O que esses três aqui na nossa aba são?
O subalterno desfere a pancada final. Se retira, precipitado, chacoteando esgoelado: 
— Manequins.     

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Caldeirão Poético LXXV


Luiz Pistarini
Resende/RJ, 1877 – 1918

À MINHA MÃE

Morta sublime! Ó minha Santa Morta!
Há quanto tempo já que te pranteio!
Que o teu carinho me não mais conforta,
nem mais me abrigas no teu casto seio!

Ah! lembro-me ainda bem! segundo creio,
pequenino, eu brincava ao pé da porta;
e, ao ver-te no caixão de flores cheio,
mãe! nem sonhava que estivesses morta!

Mas um dia passou... um mês... um ano...
e dois... e três... e mais... e, ó desengano!
nunca mais me beijou teu lábio amigo!

Não te vi nunca mais! E, na orfandade,
clamo, agora, nas trevas, com saudade:
— Mãe! por que foi que não morri contigo?...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Mariná Valentim de Moraes Sarmento
Santa Maria Madalena/RJ, 1908 – 2003

IMPOSSÍVEL

Passaste como passa uma aventura,
ficaste como fica uma saudade;
irás como quem busca a eternidade,
guardei-te como sonho de ternura!

E que dizer do quanto de doçura
deixaste em mim com tal sinceridade?!
E que dizer de ti, se é só verdade
o quanto que me deste de candura?

Não te perdi, porque tu não viveste
o mundo de ilusão, que em mim prendeste,
e perderia se jamais guardasse

o que jamais de ti esqueceria;
e assim passando, nunca chega o dia,
que te esquecendo, teu amor voltasse!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Nabor Fernandes
Valença/RJ, 1910 – ?

RECORDAÇÃO DA INFÂNCIA

Saí pela manhã... O sol se erguia
no píncaro do monte descalvado:
a brisa matutina sacudia
levemente o capim do verde prado.

Parei junto a uma casa: parecia
do tempo de menino descuidado,
ouvindo a juriti que desferia
seu canto doloroso e compassado.

Não posso definir o sentimento
que da alma se apossou, nesse momento!
Vi minha mãe, lembrei de seus carinhos,

vi meus irmãos, a casa, a relva, o monte,
o mesmo sol se erguendo no horizonte,
cantando no arvoredo os passarinhos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Othon Costa
Rio de Janeiro/RJ, 1905 – ?

SE O RETRATO FALASSE...

Talvez, já não te lembres, mas um dia
eu te encontrei beijando ardentemente
aquele meu retrato, confidente
dos teus raros momentos de alegria.

Comovido, vaidoso, compreendia,
nesse episódio simples e inocente,
que por certo eu vivia assim presente
no retratinho meu que te seguia.

Então, aproximei-me e, em galanteio,
disse, enquanto o retrato no teu seio
escondias, sorrindo jovial:

— Se esse retrato, meu amor, falasse,
ainda há pouco talvez te aconselhasse
a beijar neste instante o original...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Pedro de Alcântara Worms
Rio de Janeiro/RJ,   ? – ? 

ALMOÇO DE NOIVADO...

"Bom partido", daí dona Consuelo
dar banquete ao noivado de Tereza,
usando essa conversa já modelo:
— ... “a noivinha é quem fez a sobremesa...”

E que celebração!... Quanto desvelo!...
Foi tudo do melhor e com largueza,
não houve um só senão... um atropelo,
até aquele instante — que beleza!...

A hora do brinde, o noivo, empanturrado,
elogia, gentil, o lauto almoço:
— ... "mas eu nunca comi com tal agrado,

mesa assim nunca vi!...” E, num endosso,
diz o filho caçula ao convidado:
— ... "nós também nunca viu, assim, seu moço!...”

Fonte> Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Benedita Azevedo (A Seresta)

Sentada à mesa, na seresta, ao lado de meu marido, observo as pessoas. Alguns casais, mas, a maioria é de mulheres sozinhas, alguns homens e duas garçonetes.  O conjunto formado pela bateria, dois violões e um trompete, faz jus ao nome “Manda Vê”. Tanto os músicos quanto os participantes são pessoas com idade superior a cinquenta anos.

Uma senhora comanda o show. Cada convidado pode cantar até duas músicas. Uns tocam, outros cantam e alguns dançam. Percebe-se que todos estão ali em busca de compartilhar seus dotes e dar importância às suas vidas. Parece que todos se conhecem.

O salão amplo, com mesas nas laterais, deixa toda a extensão central para os dançarinos. Ao lado esquerdo de quem entra, há o bar de onde servem bebidas e algumas iguarias,  para tira-gosto, dando ao proprietário o lucro necessário, já que não são cobradas,  entrada nem consumação.

Os seresteiros cantam suas músicas como se vivessem à época que foram lançadas, nos anos 50, 60 ou mais antigas. Poucos arriscam um repertório mais atualizado. Quando alguém canta um samba, a pista de dança enche. Alguns casais, e as mulheres na falta de um parceiro, dançam sozinhas ou com outras, extravasando sua solidão. Mas, parecem felizes.

A dirigente com sua lista chama os cantores, elogiando os dotes de cada um. Alguns cavalheiros vão alternando de par e dançam com várias senhoras. Assim o baile que começou às 22 horas vai se estendendo...

Logo após a meia noite, entra um grupo com um grande bolo, cantando parabéns. Colocam sobre uma mesa onde está uma das cantoras. Todos se aproximam e engrossam o coro. A senhora apaga as 78 velinhas e é abraçada por todos. A nora explica, que, a aniversariante fizera questão, de festejar seu aniversário, ao lado de seus amigos de seresta. O bolo foi distribuído para todos os presentes.

Antes do final, as pessoas começaram a se despedir. Então fiquei imaginando aquelas senhoras chegando sozinhas a casa, de madrugada,  sem ninguém para contar o que aconteceu, durante a festa ou depois dela. Dormem e acordam sozinhas. Quantas terão Filhos, netos, sobrinhos, afilhados para lhes dar atenção e carinho?