domingo, 3 de novembro de 2024

Paulo Mendes Guerreiro Filho (Aurora e a sua cognata)

A casa dela fica na extremidade da areia, com o lago Guaíba, à direita, um píer, onde estacionam as canoas e os caiaques e, na varanda, uma rede. A paisagem d'alva não esfria o interior do veículo. Ironia uma moça cega morar na Ilha da Pintada.

- Obrigada por me levar ao show, eu sei que não é bem o seu estilo.

- Adorei o show. Já vai amanhecer. Eu te levo ate a porta.

- Espera... Me fala como é a Aurora?

- A cantora ou o sol nascente?

- A cantora, mas, agora, também quero saber o que você está vendo.

- Ok. A tintura do sol recai no lago em tons de bordô e rosa sobre um leve fundo azul...

- Assim não! Fala de uma forma que eu consiga entender.

Neste instante, eu pensei em esganar "Viktor Chklovski" e rasgar sua teoria.

- Antes do sol despontar, é igual ao silêncio que antecede o início do show. Então, o espetáculo se inicia calmo e delicado como a voz da Aurora em “It happened quiet”, e o céu é marinho-vento-frio de outono. Os primeiros raios surgem como um sorriso delicado em um cálice de um Bordeaux Carménère e rosa de All soft inside.

- Sim, eu estou conseguindo ver! A voz, o sorriso dela, e as cores do frio e do vinho.

- Agora, o sol invade o céu com sutileza em tons de amarelo, laranja e vermelho, irradiando todas as formas ao som de “Forgotten love”. É como se aquecer ao leve rebolar da fogueira.

- Você está falando dos quadris dela!? Safado! – diz Luísa ironizando e rindo.

- Não, estou descrevendo o sol nascendo nesta ordem: o amarelo e morno, o laranja é quente e o vermelho queima. – eu respondo rindo.

- São 7:07h, e o sol, em ascensão, conquista a noite com seu brilho amarelo, como o azul do olhar da cantora conquista os fãs, e a canção seria: “Queendom”.

- Sei não. Achei que os olhos dela fossem azuis. – Luísa ironiza.

- Os olhos são o céu, e o olhar é o sol, seria como tomar banho de água fria sob o sol quente. Agora vamos, já é dia.

Luísa sorri, dizendo;

- Espera! Descreve para mim o corpo dela...
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(Este conto obteve o 1. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

sábado, 2 de novembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 63: Confusão

 

José Feldman (O Mistério do Barco Celta)


Na pequena vila de Caerwyn, localizada na costa acidentada da Escócia, uma antiga lenda circulava entre os moradores. Falava-se de um barco celta perdido, que, segundo as histórias, trazia consigo uma maldição. Aqueles que ousassem tocá-lo eram impelidos a ir para o mar, como se as ondas o chamassem. A lenda, até então, era considerada apenas uma história para assustar crianças, até que uma equipe de arqueólogos decidiu investigar a costa em busca de vestígios da cultura celta.

A equipe, liderada pelo Dr. Angus McGregor, um renomado arqueólogo, chegou à vila em um dia nublado de primavera. Com um grupo de estudantes e assistentes, ele começou a escavar uma área próxima a uma enseada isolada. Após dias de trabalho árduo, uma tempestade repentina fez com que o grupo se abrigasse em uma caverna próxima. Enquanto esperavam a chuva passar, um dos estudantes, Lucas, notou algo brilhando sob a água turva da enseada.

Intrigado, ele e Angus decidiram investigar. Com a água ainda agitada, mergulharam e, para sua surpresa, descobriram um barco celta, perfeitamente preservado, encalhado entre rochas. A madeira estava coberta de musgo, mas os entalhes e desenhos que adornavam a proa eram claramente visíveis.

Assim que o barco foi descoberto, a equipe imediatamente começou a estudar o local. Angus, ciente das lendas que cercavam a embarcação, hesitou em tocá-la. No entanto, a curiosidade foi mais forte, e, com cuidado, ele estendeu a mão e acariciou a madeira fria e úmida.

No instante em que sua pele tocou a superfície do barco, uma sensação estranha o envolveu — um chamado suave, quase hipnótico, que parecia vir do mar. “É só a adrenalina,” pensou Angus, tentando se convencer. Mas, ao olhar para Lucas, viu que ele também estava enfeitiçado, seus olhos fixos no horizonte, como se estivesse ouvindo uma música distante.

Na manhã seguinte, enquanto a equipe se preparava para continuar as escavações, Lucas não apareceu. A princípio, pensaram que ele poderia ter decidido dormir mais um pouco, mas conforme as horas passavam, a preocupação crescia. Angus, sentindo uma inquietação crescente, decidiu investigar.

Após perguntar aos outros membros da equipe, ele seguiu em direção à enseada. Para seu horror, encontrou Lucas de pé, na beira da água, olhando para o mar com uma expressão sonhadora. “Lucas! O que você está fazendo?” ele gritou.

Ele virou-se lentamente, como se estivesse despertando de um transe. “Eu… eu não sei. Senti que precisava vir aqui,” ele murmurou, seus olhos ainda perdidos nas ondas.

Angus o puxou para longe da beira, mas a inquietação permaneceu. A maldição da lenda parecia estar se manifestando.

Preocupado, Angus decidiu se reunir com os moradores locais para pedir conselhos. Ele se encontrou com Mairead, uma anciã da vila, conhecida por sua sabedoria. Ao ouvir a história da descoberta do barco, Mairead balançou a cabeça com seriedade.

“Aquela embarcação não é apenas um artefato. É um portal,” disse ela. “Os antigos celtas acreditavam que os espíritos dos marinheiros mortos habitavam suas embarcações. Aqueles que tocassem o barco poderiam sentir o chamado do mar, como se fossem levados por aqueles que já partiram.”

Mairead advertiu Angus sobre os perigos de continuar a exploração. “Os que foram atraídos para o mar não voltaram. Você deve respeitar a vontade dos que vieram antes de nós.”

Apesar do aviso, Angus e sua equipe decidiram continuar suas investigações. Naquela noite, enquanto os membros da equipe se reuniam em volta de uma fogueira, mais uma pessoa desapareceu: Sarah, a assistente de Angus. Na manhã seguinte, sua mochila foi encontrada na areia, mas Sarah não estava em lugar algum.

Com o coração acelerado, Angus e os outros começaram a procurar na enseada. Quando finalmente a encontraram, Sarah estava novamente na beira da água, hipnotizada pelo mar. “Sarah, volte!” Angus gritou, mas Sarah não parecia ouvir.

Com esforço, conseguiu puxar Sarah de volta para a segurança da areia. “O que aconteceu?” perguntou, ofegante.

“Eu… eu não sei. Senti que precisava ir,” Sarah respondeu, com os olhos ainda vidrados.

Com a situação se deteriorando, Angus decidiu que era hora de confrontar o barco. Naquela noite, ele se aproximou da embarcação sozinho, determinado a entender o que estava acontecendo. Quando tocou a madeira novamente, a sensação do chamado se intensificou, quase irresistível.

“Atraí-los para o mar não é o que você quer!” ele gritou, desafiando os espíritos que habitavam o barco. “Respeito sua dor, mas não posso permitir que mais vidas sejam perdidas!”

Nesse momento, o vento começou a soprar com força, e as ondas rugiam. Angus sentiu uma presença ao seu redor, como se as almas dos marinheiros o observassem. “Libere-os!” ele implorou. “Deixe-os encontrar paz!”

De repente, as visões começaram a aparecer diante dele: imagens de marinheiros antigos, navegando em tempestades, lutando contra as ondas. Angus pôde sentir a dor e a perda desses espíritos, mas também a sua tristeza por não poder partir. Ele percebeu que o barco era um símbolo de esperança e um lembrete dos que haviam se perdido no mar.

Com uma determinação renovada, fez um ritual de despedida, falando em voz alta para os espíritos. “Vocês não estão sozinhos. Não precisam mais chamar os vivos. Em vez disso, sigam em paz!”

A tempestade começou a acalmar, e um silêncio profundo caiu sobre a enseada. Angus sentiu uma onda de alívio e compreensão, como se os espíritos finalmente fossem libertados.

Na manhã seguinte, após a tempestade, a equipe encontrou Sarah e Lucas acordados na praia, sem lembrança do que havia acontecido. Relataram que haviam sonhado com o mar, mas não tinham ideia de como haviam chegado ali.

Angus contou a eles sobre a noite anterior, e juntos decidiram que era hora de deixar o barco em paz. Com o apoio dos moradores da vila, fizeram uma cerimônia de despedida, envolvendo o barco em flores e agradecendo aos espíritos.

Embora a lenda do barco celta continuasse a existir, a experiência de Angus e da equipe trouxe um novo entendimento. O barco não era apenas uma relíquia; era um lembrete da conexão entre os vivos e os mortos, e da necessidade de respeitar o que havia sido.

Ao deixar Caerwyn, Angus olhou para o mar, sentindo-se em paz. A maldição havia sido quebrada, e os espíritos agora poderiam finalmente descansar. E assim, enquanto o sol se punha no horizonte, a equipe partiu, levando consigo não apenas uma história, mas também um profundo respeito pela herança dos que vieram antes deles.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = 147 =


Soneto de
LUIZ POETA
Rio de Janeiro/RJ

Lírico artefato

Não sigo a frota, quando a rota é sem destino.
Que poliglota fala a linguagem do mar?
... sei velejar com a inocência de um menino:
Faço um barquinho... e deixo o vento me levar.

A ingenuidade foi meu ponto de partida
Busquei amar sem questionar a alma alheia,
Fui enganado... ou me enganei, pois minha vida,
É mais que o canto sedutor de uma sereia.

Há, na candura, essa espécie de contato
Que sempre foge da frieza de um retrato
E mostra um rosto que sorri à revelia

Da poesia que se torna um artefato,
No exato instante em que o dragão foge o rato
E a explosão do amor detona a fantasia.
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Trova de
FLÁVIO ROBERTO STEFANI
Porto Alegre/RS

Reunião, hoje em dia,
neste mundo a balançar,
é, senhores, quem diria,
ao redor de um...celular!...
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Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Isolado encanto

Salão repleto, nobre de artes belas,
murmúrios, gestos, ares estilistas.
O afago forte nos pincéis de artistas
moldura abraços, traços, luz nas telas.

A flor disposta à porta em todas vistas
exala as auras plácidas, singelas.
Porém as vistas todas são aquelas
voltadas às paredes tão benquistas.

Se os quadros levam ao encantamento
no brilho mais audaz de um só momento...
o vaso à entrada ampara, preterida,

a forma que transforma a transparência:
- a tela estampa a vida, é consequência;
a flor no entanto é causa, pois tem vida!
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Trova Premiada no Japão
RELVA DO EGYPTO REZENDE SILVEIRA
Belo Horizonte/MG

Nós fios de luz – as pautas –
são as notas musicais
aves migrantes, incautas,
arpejando madrigais.
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Poema de
MARIA LÚCIA SIQUEIRA
Curitiba/PR

A janela

Vem de outras eras as fontes do espírito.
Os jasmins renascem nos canteiros,
a chuva já deu badaladas no telhado.
E quem sou? Me pergunto na noite morna.
Talvez uma ave noturna lenta demais
para atravessar as planícies.
Toda imensidão termina no ocaso.
E para além do sol... onde estão os meus olhos amados?
Sempre atravesso essas sombras ao anoitecer,
diante do quartel de estrelas que me policia.
E a janela é um avental que me convida
a continuar servindo.
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Fábula em Versos
adaptada dos Contos e Lendas da África
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

A Lenda do Macaco e do Crocodilo

No rio profundo, um crocodilo esperava,
um macaco travesso, sua fruta roubava.
“Venha, amigo, venha aqui me contar,
sobre a vida no fundo, onde o sol não vai brilhar.”
O macaco, astuto, viu a armadilha,
mas decidiu brincar, com uma brilhante artimanha.

“Vou te levar, se me prometer,
que nunca mais vais tentar me comer!”
O crocodilo riu, achando que era um jogo,
mas o macaco pulou, e escapou como um fogo.
Aprendeu uma lição, sobre a esperteza,
e nunca mais quis saber de certeza.

A esperteza pode salvar, dos perigos que rondem,
mesmo os mais fortes devem saber que se escondem.
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Trova Popular

Ó morte, ó tirana morte,
contra ti tenho mil queixas
quem hás de levar, não levas,
quem deves deixar, não deixas!
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Instinto

Escondes nesse corpo, fino manto
As cores da mais pura donzelice
Permitas que navegue em tal encanto
Fascina-me a candura, essa meiguice

Do teu fatal sabor estou faminto
Desejo fenecer no doce enlace
Não posso resistir ao meu instinto
O brilho do querer tomou a face

Armaste uma delícia... Oh, nobre teia!
É natural, princesa, que me atraia
O meu pensar em ti, ledo, passeia

Tu és o mar revolto, eu sou a praia
Um beijo teu em mim, decerto enleia
De laço assim não há, amor, quem saia
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Trova de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN (1876 – 1901) Natal/RN

Paixão é diamante bruto,
que burilado, a rigor,
surge mudado no tempo
em linda estrela de amor. 
= = = = = = 

Poema de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Invasão 

A primavera chegou de madrugada 
e entrou pela janela do meu quarto 
vestida de prateado. 
Enluarando a minha cama 
cobriu o meu corpo insone 
e anestesiou os meus sentidos. 
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Trova de
VICENTE LILES DE ARAÚJO PEREIRA
São Simão/SP

O sol pela rocha aberta
parece aviso divino,
indicando a rota certa
ao barqueiro sem destino.
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Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

O embrião

Mãe! Por que não me deixas ver teu mundo?
Por que acabas assim com minha vida?
Por que será que estás tão decidida,
a praticar tal ato tão imundo!

Mãe! Eu não sou um ser nauseabundo!
Não sou uma doença contraída!
Faço parte de ti, fui concebida!
Sou vida no teu útero fecundo!

Não queiras destruir-me por favor!
Não transformes em ódio, aquele amor,
do momento da minha concepção!

Eu sei que não pensavas conceber…
Mas, por favor mãe, deixa-me nascer,
eu sou um ser humano em formação!
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Trova do
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Como Colombo, singrando
esta vida - incerto mar,
vivo no mundo esperando
um Novo Mundo encontrar...
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Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Horas rubras

Horas profundas, lentas e caladas
feitas de beijos sensuais e ardentes,
de noites de volúpia, noites quentes
onde há risos de virgens desmaiadas.

Ouço as olaias rindo desgrenhadas...
tombas astros em fogo, astros dementes
e do luar, os beijos languescentes
são pedaços de prata pelas estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
os meus braços são leves como afagos,
vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca misteriosa...
e sou talvez na noite voluptuosa
ó meu poeta, o beijo que procuras.
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Trova Funerária Cigana

Sou triste como a caveira
no cemitério rolando,
que vai com o correr do tempo
em negro pó se tornando.
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Olhares que Sorriem 

Ainda que cubram
os belos sorrisos, 
sejamos em brilho 

as janelas do novo estribilho.
Ainda que tirem nossas asas
sejamos o som do andarilho. 
Mesmo que os dias anuviem,
brindemos à paz nesse trilho.
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Trova de 
SINCLAIR POZZA CASEMIRO
Campo Mourão/PR

O instante existe e convém
a quem procura harmonia,
ter consciência e, por bem,
renovar-se a cada dia!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Catorze versos

Ah, se compor sonetos não tivesse
tão complicadas regras a seguir,
não sairia agora dessa messe,
deixando outras missões para o porvir!

Porém, comigo, às vezes acontece
de me insurgir demais contra o exigir...
Não vou correr atrás de uma benesse,
dar meu suor sem nada conseguir...

Já que não posso, assim, bem sonetear,
eu me distraio com catorze versos,
mas sem, sequer, seu nome mencionar.

Meu coração não mais fica tristonho,
nem aborreço ilustres controversos;
e posso acalentar, enfim, meu sonho!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Como se diz lá na roça, 
o amor é um bichim-de-pé: 
quanto mais a gente coça, 
mais boa a coceira é...
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Meu verso

Meu verso vem do Nordeste,
vem do roçado, vem do Sertão,
vem das veredas lá do agreste,
vem das cacimbas e dos grotões.

Meu verso vem dos garimpos,
das catras dos garimpeiros,
da coragem dos vaqueiros
vestidos no seu gibão,
vem do sereno da noite
do perfume do Sertão.

Meu verso simples, sem medo,
vem do sítio, do rochedo,
vem do povo do Sertão,
que com a luz do arrebol
trabalha de sol a sol
para ganhar o seu pão.

Vem da Serra do Carranca
onde a beleza não manca,
e a onça faz sentinela.
Da Serra da Mangabeira
onde a Lua vem brejeira
tecer a renda mais bela.

Meu verso vem da goiaba,
do puçá e da mangaba,
da seriguela e do mamão.
Da pinha e da acerola,
da atemóia e graviola
plantadas no roçadão.

Nasceu na bela Umbaúba,
Boa Vista, Bela Sombra,
na Lagoa de Prudente,
na Chiquita e no Vanique,
onde há muito xique-xique
e o sol parece mais quente.

Brejões, Lagoa do Barro,
Santo Antonio, Traçadal,
Olho D´Água, Rio Verde,
Baixa dos Marques, Coxim,
Ibipetum, depois Pintada,
onde passa a velha estrada,
Zequinha e Lamarca morreram.

Sodrelândia, Deus me Livre,
Pé de Serra, Poço da Areia,
Riacho das Telhas também.
Poço do Cavalo, Matinha,
Mata do Evaristo e Veríssimo,
Olhodaguinha e Ipupiara.

Meu verso nasceu no mato,
não tem brilho, nem ornato,
vem do Morro do Mocó,
da Serra do Sincorá,
vem do morro do Araçá,
nasceu pobre e vive só…
= = = = = = 

Poetrix de
ELIANA MORA
Rio de Janeiro/RJ

sentimento clandestino

Tu, em viagens ao mundo,
Eu, ali, sempre escondida,
nos porões do teu navio.
= = = = = = 

Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

Esquecimento
 
Tu te esqueceste que esqueci de te esquecer
Mas me lembrei de relembrar tua partida
E o esquecimento na lembrança tem poder
De relembrar que possuíste minha vida.
 
E por lembrar-te não consigo compreender
Por que não posso me esquecer desta ferida
Que o esquecimento da lembrança vem trazer
Me relembrando que jazias esquecida.
 
E vou lembrando e te esquecendo enquanto sigo
Revigorando o esquecimento da lembrança
Enquanto lembro como era estar contigo.
 
Até que um dia eu me lembrei de ter-te aqui
E fui eu mesmo me esquecendo nesta dança
E me lembrando de esquecer que te esqueci…
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Pra cantá, estudamo um meis
e num é que nóis se gabe:
nóis quebra um galho em ingleis
e portugueis... nóis já sabe!
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Poema de 
ANTONIO BATICÃ FERREIRA
Canchungo/Guiné-Bissau

Infância

Eu corria através dos bosques e das florestas
Eu ouvia o ruído vibrante de um bosque desvendado,
Eu via belos pássaros voando pelos campos
E parecia ser levado por seus cantos.

Subitamente, desviei os meus olhos
Para o alto mar e para os grandes celeiros
Cheios da colheita dos bravos camponeses
Que, terminando o dia, regressavam à noite entoando

Canções tradicionais das selvas africanas
Que lhes lembravam os ódios ardentes
Dos velhos. Subitamente, uma corça gritou
Fugindo na frente dos leões esfomeados.

Aos saltos, os leões perseguiram a corça
Derrubando as lianas e afugentando os pássaros.
A desgraçada atingiu a planície
E os dois reis breve a alcançaram
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Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

O nosso amor vem de quando
Deus criou o amanhecer...
E ainda estarei te amando,
quando Deus envelhecer...
= = = = = = 

Hino de 
Cruzeiro do Sul/AC

No regaço da Selva assombrosa
onde outrora espumava o Tapi
Uma Bela Cidade Ruidosa
Vimos hoje fagueira surgir.

Para o seio da Mata orvalhada
as aragens correndo lá vão
E no cimo da Selva ondulada
Thaumaturgo Azevedo dirão.

Pasma o índio bravio confundido
Empolgando uma flecha nos ares
Ao ouvir que é tão repetido
Vosso nome nos nossos palmares.

O lampejo do sol do progresso
D’ouro ufano este alcantil
Contemplado será no universo
Novo estado no chão do Brasil.

E do trono dos seus esplendores
Sobre nuvens bordados de azul
Deus semeia cascata de flores
E abençoa o Cruzeiro do Sul.
= = = = = = 

Trova de
DOMITILLA BORGES BELTRAME
São Paulo/SP

A mamãe cura o dodói,
afaga, põe atadura…
e o rosto do seu herói
se lambuza de ternura!
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Soneto de 
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Musa impassível

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó conserva o mesmo orgulho e diante
De um morto o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia crebra*,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos!
= = = = = = 
* crebra = frequente
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Num jogo da fantasia
entre a loucura e a razão,
vislumbro na cama fria
teu corpo que busco, em vão.
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Recordando Velhas Canções
Meu mundo caiu 
(samba-canção, 1958) 

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu e agora
Diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você, nem a ninguém
Não fui eu que caí

Não sei se você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar
= = = = = = = = = = = = = 

Aparecido Raimundo de Souza (Saudades)


 “A saudade é um momento único que não nos deixa voltar ao tempo em que a saudade, como um todo, não ia além de uma palavra vazia, que nada dizia à saudade que hoje nos atormenta a alma.” (Tompson de Panasco, morador de rua)

(Para a “Teusa”)

TENHO SAUDADE DAS BRIGAS, dos desencontros, das bobeiras e das suas ceninhas de ciúmes. Tenho saudade dos seus abraços, dos seus olhares de meiguice e benevolência. Saudade das palavras que não dissemos um ao outro e das coisas simples e corriqueiras que deixamos de fazer. Na verdade, eu não tinha tempo para me dedicar a você... talvez, por isso, tenha saudade do tempo em que você me ligava perguntando onde eu estava e a que horas chegaria do serviço. Saudade da mesa posta todos os dias, na hora do café, do almoço e do jantar. 

Saudade do seu esmero em fazer o melhor e dar o que havia de mais saudável em você. Apesar disso... eu não tinha tempo para me dedicar a seus mimos... e agora, repare, agora tenho saudade do amor que você nutria por mim, do “morzinho” dito às amigas, quando perguntavam por seu “namorido...” Saudades iguais das suas preocupações com as minhas roupas no roupeiro... lembro perfeitamente de cada detalhe, dos desvelos, dos resguardos, bem como da sua aplicação em cada dia fazer o melhor e me agraciar com o perfeito que emanava de dentro de seu interior.  

Mas, ainda assim, apesar disso tudo, eu não tinha tempo para me dedicar a você... tudo seguia nos trilhos, guardado com a fascinação do apuro diligente e ímpar. Tudo tão limpinho e asseado... cada coisa no seu devido lugar. Lembro-me das meias, das cuecas e dos lenços dobrados e passados com um prazer que brotava de dentro de você de forma tão cristalina e pura como água de nascente. Que saudade! E eu, cego, não tinha tempo para me dedicar a você... idêntica saudade da sua casa simples, que você batia o pé e dizia “nossa casa,” onde eu recebia uma felicidade perene, e desfrutava de uma paz acolhedora e, por conta disso, me sentia como se fosse senhor de tudo, tipo um rei diante de seu castelo. 

Mas meu tempo se fazia demasiadamente escasso e você... você sempre ficava em segundo plano... saudade das suas roupas simples, dos seus vestidinhos do tempo “do ronca,” saudade seu cabelo cortado curtinho, do par de brincos que nunca saia das suas orelhas... saudade das suas preocupações com a higiene dos cômodos da casa, tudo assim numa sincronia esmerada... saudade dos seus cuidados com o papagaio, com a comida e a água do coelho. E nem assim eu parava para dar um pouco de atenção a sua atenção... meu corpo estava ao seu lado, mas a minha mente... voava por devaneios inconstantes. Tenho saudade, igualmente, da sua simplicidade... 

Não somente dela, saudade do tempo em que dormíamos abraçados, de conchinha. Saudade do seu ronco, da sua implicância com o rádio alto e o tempo demasiado que eu passava sentado na frente do computador. Que bobo fui...  tenho saudade, grande saudade, acredite... saudade do seu perfil de mulher batalhadora, trabalhadora, que não deixava faltar o pão de cada dia. Saudade das suas ausências logo cedo nas manhãs de sábado, quando você se levantava em silêncio e ia para a feira com o carrinho de compras. 

Saudade de ir com você, de mãos dadas, cortar aquelas folhas perto da quadra do “Campo do Motivo” para levar para o restaurante onde você dava um duro desgraçado todo domingo, chovesse ou fizesse sol... saudade do seu cansaço... saudade da visão da perna que fazia você mancar em decorrência de seu ex-marido ter lhe espancado com severa brutalidade. Neófito, eu procurava por alguma coisa impossível e isso me fazia não enxergar a ternura da luz pulsante que estava bem ali ao meu lado... saudade da saudade que ficou quando você me mandou embora, alegando que um “antigo alguém com quem namorara reaparecera de repente.” 

Saudade de quando me levou até o portão e eu entrei no carro e você ficou me olhando, olhos compridos, silenciosos, como se interiormente, num repente intempestivo me pedisse perdão ou silenciosamente implorasse para que eu não partisse... saudade, imagine... saudade até de quando brigava com você e você queria se aconchegar ao meu lado e eu a empurrava e virava para o lado oposto da cama. Saudade do amor que não fizemos, dos carinhos que não permutamos, das lágrimas que não enxuguei quando lhe pegava chorando pelos cantos. 

Saudade do seu sorriso, saudade do seu rosto, da sua voz, do calor do seu corpo... saudades enfim, de não poder mais voltar e lhe dar um abraço, um beijo nos olhos e esperar pelo seu “tchau,” quando virava a esquina... quando também me dirigia para o escritório. Hoje, agora, carrego minhas dores todas juntas no mesmo lado do peito despedaçado. Essas saudades se avolumaram. Pior, me perseguem como sombras fantasmagóricas. E eu então me questiono terrivelmente, me indago até a exaustão: em que parte, em que ponto, em que momento da minha estrada incerta EU REALMENTE PERDI VOCÊ??!!

É quase madrugada,
não consegui dormir,
cabeça preocupada,
vontade de fugir.
Olhando no espelho
fica estampada
a solidão em mim

Depois de tanto tempo,
vivendo lado a lado,
não posso aceitar
que está tudo acabado,
não dá pra acreditar
que o desamor chegou,
agora é o fim...

Meu Deus! Ela reclama
de falta de atenção
e diz não ter espaço
no meu coração,
e tudo o que ela faz
pra mim não tem valor.
Só penso no Senhor...

Meu Deus! Ela não sabe
que a minha intenção
é ver a nossa vida
mudar de direção,
não sabe que é por ela
que eu peço todo dia
as bênçãos do Senhor...

Meu Deus! Vem dar um jeito
nesta amargura,
e tira do meu peito
a dor que não tem cura,
faz ela entender
que a história desse amor
não pode terminar assim...

O que o Senhor uniu,
ninguém vai separar,
é ela que eu amo
e sempre vou amar.
Escute esta oração,
estende as suas mãos
e salva ela pra mim.

Fonte: Texto enviado pelo autor