domingo, 20 de dezembro de 2009

Antonio Brás Constante (Humor, Terror e Salvação em um Conto de Natal)


A cena continha vários detalhes que lembravam o Natal, ainda que não houvesse renas por ali. Havia um pinheiro enorme, pisca-piscas, quase todos os tipos de bebidas, um cheiro diferente no ar... (que não era causado pelas renas, pois elas realmente não existiam por ali)

O que mudava o contexto natalino era que o pinheiro serviu para parar o carro que tinha vindo desgovernado e em alta velocidade na sua direção. Os pisca-piscas, não passavam de sinalizações indicando que aquela estrada estava em obras. As várias bebidas estavam todas armazenadas no corpo do sujeito desmaiado e ensangüentado que jazia abraçado ao volante e, por fim, o cheiro no ar era de gasolina (eu falei que não eram as renas), que saia do tanque perfurado do veículo. O liquido inflamável escorria e deslizava pela terra, chegando cada vez mais perto de um principio de incêndio, localizado na dianteira do automóvel, iniciado devido ao impacto.

Mas havia algo mais. Algo que estava ocorrendo na mente do motorista embriagado. Era ali que estava para ocorrer à verdadeira história de Natal. Quem olhasse de longe para as ferragens retorcidas, não poderia imaginar que naquele momento, um homem estivesse encontrando seu destino de forma tão surreal.

Kaio das Pontes era seu nome, um nome que passou bem perto de ser gravado em uma lápide fria, visto que ele poderia ter morrido em decorrência da brutal batida na qual foi algoz e vítima. Se bem que sua situação ainda era delicada, pois tinha quebrado vários ossos, e perdido muito sangue. Mas, o pior é que seu carro poderia explodir a qualquer momento.

O lugar estava deserto e desolado, nenhum sinal de vida, nem sequer uma placa indicando algum Fast-food de beira de estrada. Em meio ao quase silêncio (ouvia-se apenas alguns ruídos típicos de florestas) uma luz começou a brilhar, próxima ao pára-brisa quebrado (deixando a cena do acidente mais iluminada, porém, ainda silenciosa).

A partir do aparecimento da estranha luz, tudo que estava em volta do veículo congelou. As folhas pararam de se mover, o vento parou de soprar e mesmo os ruídos florestais ao seu redor cessaram. A luminosidade tomou forma, e tal qual o conto de Natal: "Os fantasmas de Scrooge", Kaio também passou a receber a visita de três espíritos (anjos ou demônios, dependendo da crença de cada um). Um para mostrar-lhe o passado, outro o presente e um último apresentando seu futuro.

O primeiro fantasma apareceu na figura de um cachorro vestido de garçom, e que urinou no rosto do moribundo para acordá-lo. Ao perceber o que aquela criatura peluda tinha feito, Kaio começou a praguejar, mas parou ao levar uma mordida na perna. O cão falava, não com palavras, mas com pensamentos, e fedia, como fedia, exalando um odor insuportável de cachorro molhado.

Kaio já não estava mais em seu carro, mas de volta ao seu próprio passado. Ele passou a relembrar de todas as situações que o levaram a beber, as festas, as alegrias e tristezas sempre comemoradas ou esquecidas com álcool.

Ao ver a si próprio naquele passado, começou a perceber o quanto se tornara dependente daquele vício maldito. Mas era tão bom o torpor que a bebida lhe trazia. Era como um elixir que lhe curava todos os seus males. Algo que lhe dava coragem e afugentava a dor e as lembranças amargas de sua vida.

O cão percorreu com ele a trilha tortuosa dos primeiros passos do alcoólatra, e do grande problema nesta unificação entre Homem e bebida, em que nós seres humanos somos péssimos vasilhames, e onde até mesmo os uísques importados viram urina quando estocados em nosso organismo. Pois na grande maioria das vezes que o ser humano resolve bancar o porta-álcool, acaba estragando seu convívio social e até mesmo a sua própria vida, já que de gole em gole tornamos a vida um porre.

O cachorro também lhe mostrou, enquanto abanava a cauda, que mesmo sendo um viciado nos prazeres e desprazeres da bebida, Kaio ainda havia conseguido um emprego razoável e uma família com esposa e filhos. Por fim o cão trouxe-lhe de volta ao seu carro acidentado.

O homem baixou a cabeça, mas antes que pudesse se recobrar de seu estado deprimente apareceu o segundo fantasma. Ele veio na forma de uma gigantesca lagosta com roupas de bailarina (o balé era o sonho de carreira que sua esposa largou para se dedicar ao marido e aos filhos). Lembrando da mordida do primeiro anjo, Kaio (que adorava lagostas) achou melhor não esboçar qualquer reação diante daquela figura estranha que lhe puxou para fora do carro com um beliscão no braço, levando-o diretamente aos acontecimentos que causaram seu acidente.

Ele viu seu dia recomeçar, sempre no bar. Seu corpo mole do trago chegando novamente atrasado ao serviço e desta vez sendo demitido. Ao voltar para casa, reviveu a briga com sua mulher, mais uma entre várias que já se passaram, com um agravante, desta vez houve agressão física com troca de tapas e socos. Ele ouviu novamente o choro de seus pequenos filhos, que por estarem chorando também apanharam. Tudo tão real, tão vergonhoso. Por fim acompanhou sua esposa saindo de casa, levando algumas malas e seus dois filhos, um no colo e outro pela mão.

Kaio poderia ter ido atrás dela, ter lhe pedido desculpas pelas besteiras que fez, implorando que ficasse. Ele poderia ter dito que a amava e que amava seus filhos. Mas preferiu encontrar o conforto de uma garrafa. Bebeu toda que encontrou, até ser expulso do bar. Saiu de lá cambaleando e pegou seu carro.

Veio pela estrada quase em coma alcoólico até perder a direção e bater contra aquele velho pinheiro. Agora estava ali, relembrando todos os seus erros. Estava novamente estropiado e ensangüentado dentro do carro. Seus olhos mareados de lágrimas. A dor do corpo tornara-se menor que a sofrida por sua alma destruída pela bebida e estraçalhada pelas lembranças. O que viria a seguir? Uma rena vestida de Papai Noel?

Então chegou o terceiro fantasma. Uma pomba, nua como qualquer pomba que possa existir, mesmo sendo uma pomba fantasma. Ela mostrou a ele que sua morte traria tristeza para a família, mas também traria alívio. O rosto de sua esposa já não era cheio de medo dos ataques de fúria do marido. Seus filhinhos passaram a dormir melhor, sem acordarem chorando no meio da noite, apavorados com aquele monstro cheirando a cachaça, que gritava enquanto ia quebrando tudo que encontrava pela casa.

A pomba também mostrou o que aconteceria se Kaio sobrevivesse. Ela Mostrou-lhe vários futuros, em alguns deles ele voltava para a bebida, porém, em outros conseguia superar o vício. A escolha devia ser feita. Viver ou morrer. Lutar ou se deixar vencer.

O homem estava totalmente transtornado, seu rosto molhado de lágrimas e sujo de sangue, fedendo a urina de cachorro. A vontade de viver parecia ter se apagado junto com as últimas imagens. Kaio largou o peso do corpo sobre banco e se entregou ao destino. Era tão fácil desistir, abraçar a morte, não ter que enfrentar a vergonha, ou mesmo lutar para mudar a própria vida.

Finalmente o fogo alcançou a gasolina. Naquele fatídico momento, o clamor de seu coração por uma nova chance falou mais alto. Apesar de tudo queria viver. Não podia terminar assim, não como um churrasquinho humano, não agora que tinha visto sua vida sobre uma nova ótica, e que poderia mudá-la, por mais difícil que fosse. No entanto, suas preces não pareciam ter surtido qualquer efeito, pois o mundo a sua volta explodiu. A última coisa que viu foi à imagem da pomba voando...

Tudo estava escuro e sereno. Após uma verdadeira eternidade de trevas, seus olhos emergiram para uma luz, cegante e intensa. Aos poucos começou a ouvir murmúrios e sons irreconhecíveis. A consciência foi voltando ao corpo. Estava em um hospital. Milagrosamente sobreviveu. A explosão o havia lançado para longe do carro e atraído uma viatura da polícia. Estava consciente de que recebera o melhor presente de todos: A vida, juntamente com uma nova chance de ser feliz. A partir dali só dependeria dele. PRELÚDIO: ao olhar pela janela Kaio pode perceber, ao longe, uma rena vestida de Papai Noel...

Fontes:
– Colaboração do autor.
– Imagem = http://animatoons.com.br

Delasnieve Daspet (Album de Poesias Poetas del Mundo)


MELANCOLIA...

Sentada à janela,
Livro nas mãos,
Folha a folha virava.
Em voz alta, lia.

Páginas e páginas à minha frente,
Sem prestar qualquer atenção,
As palavras surgiam como sombras!
Não entendia nada...

Buscava nem ouvir o som,
Perdendo-me na saudade...
A lembrança embarga minha voz,

Lágrimas amargas de fel
Acentuam a melancolia
De mais um dia.
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BONECOS DE PANO

Eis-me, de novo, matutando sobre a vida...
Vejo tanta banalidade:
Se desdobram para ver qual o pior,
O governo, políticos, povo, sociedade.

De repente é como se nada valesse a pena.
Questiono se a própria vida
Vale algo?
São tantos os desmandos que
Acho que nada vale absolutamente nada!

O homem estendido no chão, ensangüentado,
a árvore cortada pela raiz,
dobrados em si,
como bonecos de pano,
me dá a exata noção da nossa precariedade!

Uma bala perdida;
Um carro desgovernado;
Adolescentes bêbados;
Governo sem rota, sem prumo;
Ladrões saindo pela ladrão...
Corram.... a policia vem chegando!

Fatos assim
Nos mostram no dia a dia
A nossa não serventia.

E como bonecos de pano,
somos jogados, ceifados,
quando alguém supõe que já não servimos.

A nossa revelia nascemos.
Não temos escolha.
Num momento supremos somos gerados,
crescemos e morremos como árvores
que tombam cortadas, jogadas, queimadas.

Eis-nos no limbo, ao léu.
No céu aberto em exíguo espaço
Reclamando nossos momentos tão curtos,
Que acabam em espasmos,
No surdo barulho da morte...

Descartados sem o menor cuidado,
Sem piedade,
Sem ninguém,
Amassado, amorfo...
Morto - já não vota nem escolhe,
Pobre humano!
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PARA UM VIOLÃO

Jaz na parede, encostado,
aquele que foi testemunha
Dos meus loucos amores juvenis,
dos meus dissabores, de minhas desilusões,
dos meus sonhos mortos,
do nó na garganta que sufoca,
do cotovelo que se transforma
em dor no peito e mata.


Jaz, abandonado,
seis cordas que dedilhei,
no abraço colado ao corpo,
de manhã, a tarde,a noite,
nas madrugadas solitas,
da vida que escolhi,
quantas lágrimas soluçamos
em tuas notas.


Jaz, meu companheiro,
solitário e acabrunhado,
num canto jogado,
meus dedos já não tão ágeis,
já não te fazem vibrar como antes.

Fizemos tantas serestas,
polcas, guaranás, chamamés, fados,
em tuas cordas pungentes
todos os sonhos que perdi.

Meu violão,
meu amante,
companheiro,
vamos voltar à boêmia
com novas melodias,
cruzar com a lua altaneira,
versejando c'as estrelas,
beber do orvalho da madrugada
na perfumada brisa das campinas,
novos sonhos, novas saudades,
agora que o tempo já vai ficando
tão longo.... e tão tarde...

E eu, - me findo em canção
sem melodia, nas enluaradas
noites deste sertão.
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DIVAGANDO À BEIRA MAR...

Quero falar de uma exceção variável.
Exceção que agrega infinitos valores
esquecidos ao longo da vida...

Corremos atrás de uma aclamada felicidade
traçada por padrões estabelecidos
quase sempre sem sucesso pois
criamos um ideal fechado por modelo.

Antes de mais nada é preciso separar
a essência e a aparência das coisas da
sensação localizada no observar.

Afinal - o que é a vida a não ser
um suceder constante do tempo
que nos contempla com o
refugio da eternidade?

Já nascemos com prazo certo,
só a morte pára o tempo,
que parece imponderável no azul
do céu e do mar.

Tenho caminhado célere ao
encontro do meu infinito.
A cada dia chego mais perto.
A modernidade se encarrega
de fazer o nosso encontro mais cedo!
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ONDAS NO TEMPO

Como uma pedra
Que se joga no rio
Venho formando ondas no tempo.

Nada importa.
Onde eu vá
Sempre estarei sozinha.

Já não pertenço a lugar algum.
Tudo que me resta são sonhos.
Agora é tarde para mudar,
- Está tudo feito! -
A chuva continua caindo.

Chuva fina e constante.
Olho a chuva,
Não suporto mais vê-la cair...

Findou o inverno
E a primavera com seus brotos e flores
Já surge nas árvores,
Na curva dos dias de sol.

Repouso minha poesia e meu canto
Numa quimera!
Caminho ao teu encontro,
Beijarei tua boca cheia de palavras,
E a saudade líquida fluirá rolando face afora.

Fontes:
– Colaboração da poetisa
– http://www.delasnievedaspet.com.br/
- Fotomontagem = José Feldman

Delasnieve Daspet (1950)


Delasnieve Miranda Daspet de Souza (Porto Murtinho, 12 de setembro de 1950) é advogada, poetisa brasileira. É ativista das causas da Paz, sociais, humanas, ambientais e culturais

Casada e mãe de dois filhos, Delasnieve Daspet, é poeta, Ativista da Biopoesia, cronista, ensaísta, palestrante, professora, educadora, atuante em várias lutas sociais, principalmente nos trabalhos que desenvolve com menores carentes.

Premiadíssima, Daspet também é representante atuante de várias associações e academias literárias e culturais, nos ambitos nacionais e internacionais, tais como:

– Peace Ambassador in Universal Ambassador Peace Circle - Genebra – Suíça;
– Sub-Secretária Geral para as Américas e Embaixadora para o Brasil de Poetas del Mundo, Santiago – Chile;
– Ambassador for Peace – Universal Peace Federation on the International Federation for Word Peace – 2007;
– World Poets Society (W.P.S.);
– Comissão de Direitos Humanos da OAB/MS (presidente)
- Conselheira Estadual de Cultura/MS
- Conselheira Municipal de Cultura Campo Grande/MS

Premios:
– Unesco Prizes World Poetry;
– Médaille D'Argent 2008 - Arts, Sciences, Lettres - pela Société Académique d´Éducation et d´Encouragement, como Poeta e Escritora, Paris-França;
- Premio da Business Professional Women International BPW – Campo Grande - MS: Troféu BPW Mulher-2007;
– Super Cap de Ouro - 2008;

Já publicou e participou de 41 ( quarenta e um ) livros e coletâneas, nacionais e internacionais.

Mantém há oito anos, um grupo de Poetas e Poesias com 180 (cento e oitenta) associados (poetas/escritores de todo o Brasil), e, em outros países da América do Sul e da Europa, tendo como final objetivo, procurar, estimular, estudar e desenvolver as várias vertentes da Poesia.

Idealizadora do tão conhecido e prestigiado festival de poesias "Tertúlia Poética Luna& Amigos", que realiza todos os anos.

Frequentemente requisitada, desenvolve palestras pelo Brasil e assiduamente no Mato Grosso do Sul, onde aborda temas referentes a Cultura da Paz, dos Direitos Humanos e Poesia - Biopoesia – e a integração pela Palavra.

No teatro, Delasnieve Daspet, teve poesias suas adaptadas para as peças teatrais "Romeu e Julieta" e "Sonho de uma noite de verão" (ambas de Shakespeare) em Cabo Verde - África, pela Cena Aberta Companhia de Teatro

Na BIOPOESIA – Poesia da Vida, emprega a poesia nas importantes questões que põem em perigo a vida de cada ser vivo, como o aquecimento global da Terra, as guerras expansionistas, a poluição ambiental.

Conceituada pela expressão peculiar, tornou-se renomada internacionalmente, oportunidade em destacarmos seu extenso prestígio, onde já fora traduzida para o ingles, alemão, espanhol e frances.

Como ativista da Paz, celebra com a união de todas as raças, credos, gênero, a proposta da criação de uma Escola de Paz – onde se ensinem aos homens que o desenvolvimento não se realiza nem no vazio nem no abstrato. Inscreve-se num determinado contexto social e responde a condições sociais especificas.

Publicações

Solo

* Por um minuto ou para sempre;
* Em Preto e Branco;
* Pazeando.

Livros que organizou

* Tertúlia na primavera;
* Tertúlia na Era de Aquário;
* Poetas del Mundo Volume I;
* Poetas del Mundo Volume II.

Coletâneas

* Poesia só poesia;
* Tempo de poesia;
* Seleção de poetas notívagos 2001;
* Nas Asas da Paz;
* Poesias do Brasil;
* Paternon Século XXI;
* Casa do Poeta Brasileiro em Salvador;
* Gigantes;
* Bento;
* Poesia em América;
* Poetas na Bienal do RJ;
* Primavera dos Ipès;
* 10 Rostos da Poesia Lusófona na Bienal do RJ;
* 10 Rostos da Poesia Lusófona na Bienal de SP;
* O Poeta Fala - 2;
* Casa do Poeta Rio-Grandense;
* REVIJUR;
* Conceição do Almeida.

E-Books

* Luna&Amigos - Volume I; Volume II; Volume III; Volume IV; Voilume V, Volume VI.
* Coletâneas de Poesias de Natal
* Delasnieve Daspet - Poesias
* In Limine
* Um Novo Amanhecer
* Buque de Poesias
* Estão Voltando as Flores
* Antologia Arquitetura Literária
* Participação Especial na Antologia Natal 2008 dos Poetas em Foco e Poetas Del Mundo, editada pela EUNANET

Fontes:
Revista Zap, de Elizabeth Misciaci. http://www.eunanet.net/beth/delasnieve_daspet_2.php
http://pt.wikipedia.org/wiki/Delasnieve_Daspet
http://www.poetasdelmundo.com/verInfo.asp?ID=600

Eduardo Maretti (O Condenado )

Pintura digital de João Werner
é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César.
Jorge Luis Borges

Há cinco anos marquei um encontro com Ana no bar. Ana não veio. O bar transformou-se. No outono do encontro, lembro, na tarde precedente à noite que não veio (que veio, mas veio opaca, não obstante
o vídeo, a vodka e o sal), na tarde precedente clarões súbitos rosa-ciano-amarelo-spleen, tudo se movia, era vento, e silêncio entre as nuvens nas esferas do outono.

Hoje primavera plúmbea, ainda há no tempo uma fresta por onde o sol inaugura o tempo escuro que pressinto. Mas pressinto o júbilo também, essa espécie de alegria silenciosa e melancólica em que antigamente mergulhava-se, os bosques ao crepúsculo, bosques contemplados pelos pássaros que se recolhem, habitados pelos morcegos invisíveis, a noite de asas. Oh metal resplandecente! Teu reflexo assassino brilha hoje a luz tumultuosa do crepúsculo e do neon e dos faróis, caos que vejo através da cerveja que bebo por pura nostalgia sem prazer algum – gole ou outro provocando uma náusea inevitável de prazer sufocado.

Mas a rotina da espera – mesmo uma espera inútil – não é talvez mais cruel do que a que vi muitas vezes no sonho em que Ana se penteava em frente ao espelho (o vestido vermelho, o sorriso negro), a rotina que amei porque não tive. Há, apenas, como borboletas voando sobre o asfalto entre arranha-céus, essa saudade do nada, fendas entre os céus, quanta chuva, inundação, manchas na memória e no
lençol.

– Por favor, empresta o fogo.
– Como?
– O fogo.

Acendo o cigarro do jovem decrépito, bonito e sinistro, com os cabelos loiros rasos cortados à máquina. Ele agradece com um gesto largo e lento, quase sem movimento. Tem olhos amendoados e tristes. As sobrancelhas grossas acentuam a expressividade luciferiana: a impressão do olhar situado atrás do rosto, mesmo dos olhos azuis fundos – mas não uma profundidade física, que também existe marcada nas olheiras escuras, e sim como se olhassem de uma dimensão distante, através das noites. O rapaz,
conhecido por todos no bairro por alcunha de Tamêga (não se sabe por quê), ficara louco de tanto cheirar cola, dizem, e, dependendo do seu humor ou talvez da lua, é visto na madrugada falando sozinho e rindo uma gargalhada sem sentido, demente.

Dá alguns passos, visivelmente bêbado (orgulhoso, se esforça para demonstrar uma dignidade que, entretanto, possui), e pára. Fica assim, olhando para o chão, de costas para mim, como se quisesse recordar algo, e, mesmo sem vê-la, entendo que sua expressão é de extrema concentração.

Vira-se, chega novamente perto, e pergunta:

– Você gosta de metal?
– Como?

Com um sorriso de escárnio (como sugerindo a minha ignorância), repete, fazendo com as mãos o gesto de tocar guitarra:

– Metal.

Seu falar é manso, quase sussurrante. Exprime cansaço diante de alguém incapaz de entender a espiritualidade de um gosto que se deve, mais do que entender, sentir.

– Já ouviu falar de Iron Maiden, Guns N’Roses...? – explica, como se revelasse uma verdade sagrada, mas, ao mesmo tempo, com uma expressão que agora misturava a tristeza e uma estranha consciência de verdades obscuras muito além do poder verbal, verdades a que, como a uma alma, o tipo de música de que falava servia de corpo.

– Claro, mas não gosto.
– Adeus, Deus. Deus... – ele murmurou, como se não me ouvisse e com expressão entre a tristeza e o desprezo. Fica imóvel, me olhando. Exprime de repente, como se acordasse, a sua indignação com movimentos quase imperceptíveis do olhar, embora os olhos se mantenham fixos. Repete os movimentos anteriores, lentos, graves. Dá novamente as costas, pára, fica um tempo mirando o chão.
Volta-se, olha-me nos olhos e diz:

– A escuridão.

Sua expressão, agora, é a de quem se esforça tremendamente para se fazer entender, consciente de que não o pode.

– A escuridão – repete.

Depois de um longo silêncio de cerca de um minuto, diz, com ar desanimado:

– Você não entende a escuridão.

Vira-se, agora mais rapidamente, e vai embora. Mas, surpreso comigo mesmo, digo compulsivamente:

– Aceita uma cerveja?

O rapaz pára mais uma vez, volta-se, caminha em minha direção cabisbaixo.

– Você não entende o que eu falo, não entende o que eu falo, não entende a escuridão, mas me entende – diz com expressão aflitiva –, mas não, não quero tomar cerveja. Eu só tomo o que não pode. O proibido. Obrigado, meu amigo.

– Qual é o seu nome? – pergunto.

E o Tamêga:
– César. César, o rei de Roma apunhalado.
Disse.

Deu meia-volta e saiu decidido bar afora.

A poucos metros de mim, no canto do balcão, cinco ou seis pessoas discutem política. Chamam-se de “companheiros”. Um destes, o mais exaltado, diz ao balconista:

– Aí, a saideira!
– Não posso não, tá fechando.
– A saideira, companheiro, como pode não ter a saideira?
– Não dá não – diz o balconista, com a irritação silenciosa, mas enfática, ameaçadora, do sertanejo. O olhar cabisbaixo, dissimulado, junto ao tom de voz expressando uma vontade definitiva e incontrariável, desarmou o barbudo “companheiro”.
– Chama o patrão – disse o militante, procurando diluir com um sorriso forçado a antipatia que sua postura provocava num botequim onde o futebol e a mulher eram os assuntos universais.

O gerente do bar é um pernambucano de Garanhuns. O patrão português lhe confia o estabelecimento. Adérson, decidido como sempre (aprendi a respeitá-lo nesses cinco anos de espera), passa por trás do balcão olhando para mim sem sorrir (um nordestino sorri geralmente com os olhos) com cumplicidade.

– Ô companheiro, a gente quer a saideira – diz o barbudo.
– Não tem mais cerveja – diz Adérson.

O grupo reclama muito e pede a conta. A conta vem.

– Nossa! A cerveja aumentou! Você tá louco – diz o barbudo, que se comporta como uma espécie de chefe do grupo. – Mas ontem ...!
– Ontem era ontem – diz Adérson.

Apesar da intimidade com Adérson, que me seduzia a ficar ali para talvez, depois de eu bêbado, me convencer a ir domingo ao estádio ver nosso time na semifinal (quantas vezes ele não fechou o bar comigo lá dentro, para abrir as cervejas que tinham “acabado”, para conversarmos sobre futebol – e era quando ele se permitia tomar um trago), me lembrei de que, não obstante o desejo de ficar mais uma noite bebendo inutilmente, eu alugara a fita, como há cinco anos, para ver O fundo do coração.

Que ridículo!

Esperando Ana no bar há cinco anos, cinco anos acompanhando a evolução do preço da cerveja e acendendo cigarros para vagabundos e trabalhadores bem-sucedidos no bar transformado. É necessário que haja (é necessário que haja) uma história não cumprida, uma chuva impertinente, veredas, rios a atravessar, é preciso Ana não ter vindo e também a transformação do bar para que se realize o destino.
Pago a conta no bar e saio porta afora. Chove um pouco.

Na primeira encruzilhada, encontro o tal César, o Tamêga, parado, mirando o vazio da noite. Sequer o cumprimento, mas sinto com terror que ele me olha pelas costas até eu dobrar, por medo, a primeira esquina, em vez de seguir o caminho cotidiano e mais rápido, em frente, para casa. Tive uma sensação – não existencial ou psicológica, mas física – de alívio ao me ver livre de seu olhar. Eu duelei com o medo. Por um momento achei que, com um ato covarde, pois fugia, eu o tinha vencido.

Súbito, um mulato alto, de bigode, que eu nunca havia visto no bairro, me intercepta no quarteirão seguinte.

– Um cigarro aí, bacana – ele diz.
– Como? – digo, incomodado com a idéia da morte. Não sei por que lembrei de coisas que havia esquecido há muito: um tiro com a espingardinha de chumbo num pardal à beira de um jardim, um gol decisivo que fiz num jogo de futebol de rua, um soco que levei passivamente no rosto de um moleque mais fraco na saída da escola.
– Ora, meu chapa, um cigarro!

O homem, ébrio, mas sóbrio (como eu, não ainda bêbado), ficou irritado com o meu sapato.

– Não tenho cigarro.
– Ora, meu chapa, um cigarro! Claro que tu tem. Olha aí.
– Não tenho cigarro.

Olhei nos olhos dele, só porque os olhos eram frios e refletiam um brilho estranho de punhal adormecido.

Choveu mais. Chovia.

Fiquei valente à toa. Tinha medo, mas fiquei valente. Acendi um cigarro, para mim. O homem, parado à minha frente, entendeu a agressão.

– E aí, bacana, e o cigarro?

Eu tinha motivos para ouvir Roberto Carlos na indefectível emissora tocada no bar, enquanto Adérson defenderia a grandeza da história do Santos Futebol Clube e explicaria detalhadamente o porquê de o time ter sido desclassificado do campeonato, enquanto no bar transformado (as baratas já sobem pelas paredes) as portas baixadas continuariam a denunciar (como há cinco anos) a impotência da espera.

É verdade: depois de cinco anos, cansei de esperar que Ana viesse sensual num vestido de seda me livrar do passado, da soma dos lances de dados do destino de um ébrio irritado com os meus primeiros sapatos novos em cinco anos. Por isso saí do bar para sempre hoje.

Mas o homem foi atrás e queria o cigarro. Queria porque queria um cigarro meu na noite escura. Pensei que no mundo há seis bilhões de seres humanos, pensei na mulher desse homem que, embriagado, me acossava num beco da metrópole, pensei na metrópole e nos seus milhões de olhos obscenos, nos filhos desse homem (haveria filhos?), em César, e na grandeza de Roma, olhei para os olhos apagados do malandro que me acossava e vi a lua cheia sobre sua cabeça, pensei em Deus e não pude entender como Ele poderia me condenar ao inferno por um ato tão espontâneo, tão infantil (pensei também na guerra de mamona nas ruas desertas), tão sincero; finalmente pensei em mim mesmo e achei tudo muito monótono e opressivo, cinco anos esperando Ana no bar e reconhecer que as baratas já subiam pelas paredes.

– Me dá o cigarro, bacana, me dá o cigarro, bacana! – falava o homem, ameaçador.

O bar fechara. Um empurrão e ele teria ficado no chão. Mas escolhi sacar o revólver (foi tão calmo, tão bonito) e dar-lhe dois tiros, um no olho direito (que errei, pois pretendia acertar a boca) e outro no meio da testa. Eu apenas ouvia as risadas frenéticas daquele César decaído em alguma esquina perto. Acho que ninguém viu, nem mesmo o César-Tamêga. A culpa é de Ana. E um pouco também, pensei – enquanto assistia ao filme no vídeo –, de todos os césares.

Fontes:
Revista Cult . Radar Cult. Junho 2001.
Imagem = http://www.joaowerner.com.br

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXIII


II — Barba-Azul

1 — Teses históricas

a) Alain Bouchard (Les grandes chroniques, 1531) e Alberto Magno (La vie de saint Gildas, 1680), registram que o rei bretão Comorre, tendo um oráculo lhe predito que seria assassinado pelo próprio filho, teria matado suas sete esposas. Influência da lenda grega, sem dúvida mas sua última esposa, Santa Triphime, é ressuscitada por Santo Gildas. O tema aparece nos afrescos da capela de Saint-Nicolas (Bieuzy, Morbihan);

b) Collin de Plancy, Ch. Giraud, Michelet crêem que Gilles de Rais, marechal de França, fiel companheiro de Joana d’Arc, inspirou a lenda. Entretanto, desposou uma única mulher, Catherine de Thouars, que a ele sobreviveu. Este homem letrado que atemorizava seus herdeiros com suas despesas fastosas, foi condenado e executado em Nantes (26 de outubro de 1440) com a idade de trinta e seis anos por haver degolado trezentas crianças em sessões de magia. Esse processo parece suspeito e S. Reinach e F. Fleuret tentaram reabilitá-lo. Tal como a imaginação popular censurava aos primeiros cristãos sacrifícios humanos, parece que Gilles de Rais tenha sido vítima de sua fortuna e de seus ataques políticos.

c) Pensou-se em Henrique VIII da Inglaterra que esposou seis mulheres e fez com que duas morressem no cadafalso. Maspero e Gaston Paris fazem dele um vampiro que bebe sangue humano. Doente, neurótico, Barba-Azul é comparado aos grandes criminosos como Landru ou John Christie;

d) A cor extraordinária de sua barba assemelha-o a Indra, a Bés, o Egípcio, ou a Júpiter. Tem uma barba azul quase preta, ou azul-celeste (Oh!) e Sébillot menciona uma barba vermelha. No simbolismo das cores é preciso ver o símbolo do iniciador, o condutor de almas que faz transpor as portas da morte espiritual.

2 — Tema da curiosidade. Iniciação

O tema da curiosidade é comum a todos os países e visa principalmente a mulher. Na. Bíblia achamos Loth, Eva e Sodoma. As Mil e uma noites fazem da curiosidade uma ampla interpretação. Esse segredo conjugal está presente em Parsifal onde a duquesa de Brabante perde seu esposo por lhe haver perguntado quem era ele. Essa curiosidade visa um ritual que nos escapa; talvez o da preparação para o casamento. A jovem é sujeita a uma prova difícil: a tentação do local secreto. Em seguida vem a última prova, o simulacro da morte; ritual de morte e de ressurreição na qual o neófito, despojando o velho, desperta num mundo novo, o do conhecimento. É o caso da religiosa colocada no seu ataúde. Para essa cerimônia de iniciação a mulher pode vestir seus mais belos adornos, ou se impor a nudez ritual do batismo dos primeiros cristãos (forma nivernesa da lenda). A magnificência da morada de Barba-Azul lembra os castelos encantados e esse grande senhor, cortês e feio, não dá a razão dos seus crimes.

3 — O quarto secreto

Esse local secreto parece ser o lugar do saber por excelência. É a loja. Um conto de Carnoy L’homme de fer (O homem de ferro), mostra que a criança desobediente não pode conhecer o derradeiro segredo. A forma original do Conte du magicien et son apprenti (Conto do mago e seu aprendiz) parece ser a Histoire du radja Madama Kdma na qual um príncipe instruído por um feiticeiro tenta e consegue escapar-lhe; Cosquin (Études folkloriques) e W. Crooke (North Indian Notes and queries, 1894) narram contos semelhantes.

Porém o quarto secreto aparece mais claramente na introdução do livro mongol Siddhi-Kûr, no qual o caçula descobre a “chave da magia” espiando pela fresta de uma porta. A curiosidade é pois recompensada. Os contos de Velay (Cosquin), da ilha de Zanzibar, de Bosnia permitem, ao iniciado triunfar depois de haver transgredido um regulamento de interdição. Este último conto, recolhido por Desparmet, assemelha-se ao de Aladin (As mil e uma noites): um jovem sem fortuna quer desposar a filha do rei.

Contudo, quase sempre, essa curiosidade é nociva.

O homem é expulso do paraíso pelo seu gesto da desobediência (conto hindu de Somadeva Rhatta; história do Terceiro calendário de mil e uma noites). Sem se instruir nos três estágios impostos (purificação, saber, poder), o neófito quis penetrar no santuário secreto: da mesma forma é enxotado dessa confraria (Roman des sept vizirs (Romance dos sete vizirs), enquanto que o príncipe do Fidèle serviteur (Fiel servidor) (Carnoy) enamora-se de um retrato conservado num quarto interdito.

L’enfant de la Vierge Marie (O filho da Virgem Maria) (Grimm), Le bénitier d’or (Cosquin), Maria Morewna (Ralston e depois Marnier) e numerosas variantes mencionadas por Saintyves, referem-se ao tema da interdição do Quarto Secreto. Doze quartos corresponderiam aos doze apóstolos, o décimo-terceiro quarto sendo o do Santo dos Santos.

Carrouges estende esse simbolismo aos romances policiais para interpretar o mistério dos quartos fechados.

4 — O objeto denunciador

Um objeto mágico denuncia o culpado que tentou penetrar no local, secreto. É o caso do conto de Perrault, do Oisel emplumé (Pássaro emplumado) de Grimm, de La veuve et ses filles (A viúva e suas filhas) de Loys Brueyre. O objeto pode ser uma chave, um ovo, um pequeno cofre, um retrato e até uma região.

Depois o próprio objeto mágico tornou-se a representação do quarto iniciativo. Essa “casa dos homens”, esse centro de reunião de iniciados transforma-se num cofre que encerra o saber. Andrew Lang vê nisso tudo a sobrevivência do culto primitivo e acrescenta o anel jogado ao mar e encontrado depois no corpo de um peixe. Mas a chave, símbolo axial, pode ser considerada pelo seu poder de ligar e desligar; seu conhecimento tem então o mesmo poder que a palavra de Ali Babá ou a do Pequeno Polegar. Às vezes o objeto desaparece: um sinal aponta o culpado; são os cabelos de ouro do Homme de fer (Carnoy) ou o dedo dourado de uma criança desobediente (Steele Swahili, Tales, 1870; Contes Cambodgiens, 1868; Conte Chao Gnoh); o ouro é então o emblema das energias solares.

5 — Auxílios

Essa luta entre o iniciado e o iniciador implica auxílios exteriores. Esses auxílios provém dos pais, de um religioso, de um sábio, de um jovem (W. Crooke observa o caso de um herói aconselhado pela filha de seu inimigo). Os mortos que aconselham são numerosos (Cosquin, Steele, L’oiseau de vérité (Pássaro de verdade), Les trente-deux récits do Trône (As trinta e duas narrativas do trono) ou Vicramaditia, La légende de la mort (A lenda da morte) (de Le Braz); D. Juan também recebeu os conselhos do comendador. Os animais, aliados do homem, sob a influência da Índia, previnem contra o perigo. Com Perrault essa parte é abreviada e os irmãos chegam inopinadamente.

6 — Conclusão

Parece que o conto de Barba-Azul visa a iniciação de um ser; sua curiosidade impede-o de beneficiar do ensinamento desta arte mágica. Os elementos interiores desse tema, conhecido em todos os países, se encontram num ritual que parece reservado aos iniciados.
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continua...
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Fonte: BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

sábado, 19 de dezembro de 2009

Trova LXXXIX - Izo Goldman (São Paulo)

Isnelda Weise (Album de Poesias de Poetas del Mundo)


ÁguAlento

Translúcida, fria, morna, ou ardente
mas sempre presente,
em alguma estação.
Água, deságua
em bocas sedentas,
em corpos ferventes,
que do flagelo fogem em busca de alento,
tal qual grande rede.
Estação sede.
Água deságua
em rostos suados,
em ruas seminuas,
em becos escuros sem cor nem horizonte.
Estação fonte.
Água deságua
com modéstia imensa
em qualquer lugar.
Brota, sorrateira, e abastece, indolente
o solo estéril,
em tempo de estio.
Estação rio.
Água deságua
Em noite brejeira,
eis que sua audácia em forma de chuva,
esconde o luar.
Para, aguaceira, na aurora do dia
encher de jasmim toda jardineira,
e fazer-se primavera.
Estação mar!

Córrego I

Escorre com cautela entre os pedregulhos,
E tomba no mar de utopia que te aguarda
Sem pressa.
Qual prova irrefutável da esperança,
De vida que não cansa
De insistir.
E prossegue....

****

Espreguiça-te languidamente:
Entre realidade e palco,
Entre afeição e desencanto,
Entre existência e extinção,
Rumo ao infindável
E terno sonho meu.

*****
Água de Março

Quando em cascata se solta
Água é qual salto sem rede
Vida que nem sempre volta
Queda a fartar quem tem sede.

Água é anistia de pecado
Córrego a irrigar nossa alma
Quando o coração extenuado
Pede o frescor de água calma.

Água de março é cacimba
Riacho cantante na forma
De oásis a sonhar fonte infinda.

E acima da fugaz sobrevida
Prossegue entre pedras, contorna
Lavando a mão que a trucida.
====================

SER POETA

Ser poeta é caminhar por trilhas rasas
Contra vento mais ameno ou chuva forte
É saber que muito além de todo norte
No infinito da beleza pairam asas.

É cantar o ausente lar à luz do agora
O advento de outro sonho feito espera
Deleitar-se com a imagem da quimera
Ao ver todas as certezas indo embora.

Ser poeta é brindar o universo
Com a canção e alforria de um só poema
É aninhar-se no conforto da anistia.

Para então beber da taça de seu verso
Ante o encanto que desfaz qualquer dilema
O imortal e doce néctar da poesia!

Fontes:
http://www.poetasdelmundo.com
http://www.seblumenau.org
Imagem = montagem por José Feldman

Rossyr Berny (Navegando ao Sabor das Ondas)

Pintura por computador de Celito Medeiros
EM QUE MARES E EM QUE MARGENS?

Sempre que passas
estou isolado na outra margem do rio
Isolado no caminho oposto ao teu

Qualquer modo que uso
para transpor rios calmos
ou mares profundos
não mais te encontro na outra margem

Se passas pelo outro lado da rua
é tanta gente e trânsito entre nós
que só encontro teu perfume

Mesmo apressada
teu olhar em mim repousa,
Ousa, se apossa

Em que margens de que dias
estaremos sós para nós dois
ancorados no mesmo porto?

Em que rios ou mares sem margens
nos aportaremos
para armazenagem e troca de frutos?

NOS TRILHOS DO TREM QUE TANTO TARDA

Dos mil sentidos da vida
o que ouço gritar na madrugada
é o silêncio bocejante de Deus

Os quatro elementos da natureza
sãos trilhos sobre dormentes
onde a sobrevivência agora repousa
desamparada

O planeta dorme nos trilhos dos trens
sem preocupar-se com a advertência:
pare ouça escute afaste-se

II
A noite
mastiga o dia descarrilado
Por isso não amanheceu por aqui

Mas a hora é ativa mundo afora,
onde é língua mortífera e arrasa países
É terremoto na Nicarágua Índia
Deitam o Japão em escombros

III
Aqui nos dormentes dos trilhos
só ouço meu próprio respirar taquicárdico
Rumino celeiros de solidão

IV
E o trem
por que tanto tarda?

SER MENINO

Quando menino era fácil reter nas mãos
o céu tombando em chuvas
ensaiando maremotos nas sarjetas

Quando exausto de peraltices
arrombava represas de barro
e ia construir outras em sono

Era certo que na enxurrada vindoura
soltaria seus sonhos navegando
arquitetados com folhas de sabatinas

Tudo só terminava
quando queria que terminasse
Buscava o poente apagando as estradas
e acendia o luzeiro do céu e das praças

Era tão fácil ser herói quando se era menino
porque não era bélico ser herói
Por certo na enxurrada vindoura
soltaria meus sonhos navegando
sem que generaizinhos-de-ouro ou chumbo
pusessem a pique a esquadra de barquinhos


POETA FORÇA-TAREFA

os dias e as dores dos dias
cobram à exaustão o meu oficio:
vim aos mundos ser poetas
ainda que em passos recentes
tenha sido fungo ou bactéria
árvore lodo água montanha ou gramínea
sou a poeira cósmica do big-bang
manhãs e adormeceres rebentam-me os ouvidos
pulsos e pulsares do peito me anunciam guerreiro
a lutar pela salvação do homem
impuro ou purificado
tenho texto na testa em letra escarlate:
venho às vidas e aos mundos ser poetas

II

é por fúria de justiça que amo o ser humano
poeta de oficio
zelo para que acordes em paz
ao teu digno dia de trabalho e amor
acaso me descuide de tanto zelo
acordarás sem a honra do teu labor
nem a amada no leito a acolher-te
por isso a permanente vigília
o verso e a voz em riste
para iguais conquistas de todos
compartilho do teu largo riso por estares feliz
mas culpo-me acaso a felicidade não te venha

III

guilhotina estas mãos escrevinhadoras
se elas não forem os poemas
que te libertarão da miséria e das desigualdades/'
animal furioso ou homem bom
defendo com adagas de luz
e força-tarefa
a segurança da tua vida de justo

IV

os tempos e as vozes dos tempos
rebentam-me os ouvidos
cobrando os afazeres de meu oficio
o cristo e os cães do peito
gritam gritam para que eu te guarde:
venho às vidas e aos mundos
ser os teus poetas-de-guarda

Extraído de Letras en Movimiento aBrace. Montevideo: Bianchi editores; Edições Pilar, 2006. 63 p. Em cooperación con el Movimiento Cultural aBrace.

CONSTRUTORES DE PRECIPÍCIOS

(seleção)

É um canto patético este canto de Rossyr Berny. A sua realidade poética e existencial esplende pela fraturas e interrupções sucessivas, por um permanente processo de coagulação verbal e sintática. Em Rossyr Berny o expediente quase remoto ganha uma força nova e até agressiva”. (LÊDO IVO, da Academia Brasileira de Letras)

PORTO IMPROVÁVEL

Perdido de ti
sou metade de mim

Em meio a oceanos revoltos
minúsculo barco
o melhor porto que busco
é o milagre do teu abraço

Isso se deixares rastros
aos meus digitais, faro, olhos
Te buscam enlouquecidos

Isso se deixares indícios
nos faróis céus cios
madrugadas indormidas

Isso se nos ventos de tua passagem
deixares resquícios na paisagem

Talvez te denuncie algum flagrante
de meu nome em tua lembrança
E a saudade te surpreenda em pranto

Perdido de ti
sou pedaço de mim

Serei inteiro contigo inteira
quando teu peito reabrir-se ao meu
no porto fantasma do teu retomo

DESMEMÓRIA

Se demorares um pouco mais
talvez me encontre fera
louco
Apenas pó

Descobrirás
que na primeira crise por tua ausência
comecei a gritar
grunhir
mugir
berrar

Lobo a acuar estrelas
mijei postes
escarvei
pastei

Elegi estrebarias para meu sono
e carniças para meu sustento

A última crise por tua ausência
trouxe o sossego dos desmemoriados

LUZ TORTA

A luz vem torta
apagando a frouxa penumbra

Vem cega
pelas mãos dos caminhos descalços

Quebrada
desce escadas
Tropeça em correntes
de sobressaltados fantasmas

A luz vem tonta
Desenhada pelos aposentos
afoga-se nas rugas do cariado casario

Dos poros humanos
a luz nasce morta

Vem tonta
a trôpega energia
Filha dos olhos vazados do cotidiano
--------
Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/rossyrberny/
http://www.antoniomiranda.com.br

Rossyr Berny


Rossyr Berny nasceu em São Gabriel/RS e reside em Porto Alegre desde 1973. É jornalista formado pela PUCRS e Professor pela “Faculdade de Formação de Professores São Judas Tadeu. Também pela PUCRS é mestrado em Teoria da Literatura.

Associado à Federação Nacional de Jornalistas, International Federation of Journalists, Associação Riograndense de Imprensa, Casa do Poeta Riograndense, Associação Gaúcha de Escritores.

De 1976 a 2002 publicou 15 livros de poemas e o romance-histórico “Entreguem o matador à família do morto – Brasil 500 D’anos”. Neste 2006 comemorará 30 anos de Literatura com a publicação de sua antologia poética “Construtores de precipícios”, traduzida ao Francês e ao Espanhol, com lançamentos na Europa e Mercosul, além dos novos “Amor tsunami” e “Vê-las à luz de velas – e alguns cantos escuros”.

Traduziu do Espanhol ao Português livros de poemas e contos de Carlos Pereira Higgie (2), Rubinstein Moreira e Néllida Marina H. Manfrú, todos uruguaios.

Como Editor, criou há 20 anos a Editora Alcance Ltda e há dois anos adquiriu a Editora Tchê!. Ambas somam dois mil títulos editados.

Divorciado, é pai do Rossano, Schariza e Dênis.

Neste mês de maio foi homenageado por seus 30 anos de Literatura pela "Associação de Escritores do Uruguai", em Montevidéu; e pela "Academia Portenha de Lunfardo" e "Sociedade de Escritores Argentinos", em Buenos Aires. Igualmente proferiu palestras e recitais nas entidades citadas.

Profissionalmente é Editor e proprietário das Editoras Alcance e Tchê!, ambas do Rio Grande do Sul. Atualmente edita vários livros de autores do Brasil e Mercosul para a Feira do Livro de Porto Alegre.

E com muita dedicação organiza com sua equipe o projeto CALENDÁRIO POÉTICO DE MESA para 2007, promovendo poetas de todo Mercosul. Informações de como participar em www.editoraalcance.com.br

Realizando Sonhos
(Gabriela Barquett)

"Rossyr Berny aporta em Porto Alegre no dia 13 de abril de 1973, vindo de São Gabriel/RS. Nada na bagagem, mas o coração abarrotado de sonhos.

As barreiras foram muitas, porém, menores que sua força interior. Passadas pouco mais de duas décadas e um rápido olhar para trás, o balanço positivo: três cursos superiores (Jornalismo, Mestrado em Literatura e Formação de Professores); 13 livros editados; cinco traduziu do Espanhol para o Português; sua obra traduzida e reunida Señales vitales , a ser publicada proximamente em Montevidéu, traduzida por Rubinstein Moreira

Seu primeiro livro Homem-autômato foi lançado m 24 de setembro de 1976, em Porto Alegre. A obra causa furor r revolta, por sua ousadia sendo acusado de comunista e subversivo. Não fora para menos. Na época da ferrenha ditadura militar, seus pares resguardavam-se nos poemas melosos e na boca calada. O livro foi proibido em sua própria terra natal. Daí para frente, mais uma dúzia de livros vieram enriquecer sua bibliografia, tornando-o conhecido poeta pelo arrojo, mas também com espaços para o canto da mulher amada. (Ten três filhos, e há uma década o amor definitivo: Nádia)

Abdicou da profissão de jornalista, bancário e professor para cuidar exclusivamente de sua editora, a Alcance, a qual tem sido porta e janela para autores de valor, mas que têm chance nenhuma no mundo das grandes editoras.

Tantas lutas, alguns esfolamentos e muitas conquistas. Lema? Uma batalha perdida é uma batalha a menos a perder. Uma convicção? Renascer é mais irreversível que parecer.

Agora está publicado mais do que um novo livro: sua antologia poética com aproveitamento para a agenda permanente. Por quê? Acredita que sua poesia (como a de tantos poetas de valor) deve ser consumida permanentemente. É um grande achado, uma descoberta genial. Livro/Agenda/Livro/Agenda. Só poderia ser idéia do Rossyr."

... A respeito de Rossyr Berny

Eu tenho medo que dia desses
o Rossyr Berny desapareça.
Que um disco voador, imenso, luminoso
desça devagarinho dos céus
e arrebate o Rossyr e leve de novo
para o lugar de onde ele veio.

Porque somente um tempo-nauta, um extra-terrestre
é capaz de fazer com a apalavra, a simples palavra
que nós usamos todo dia
o que o Rossyr faz;
primeiro adula, beija, acaricia
brinca, desnorteia,
joga para o alto, depois puxa, coloca bem embaixo
no meio da lama, do esgoto, suja,
para depois fazer com que apareça cristalina
e pura no murmúrio doce de um riacho.
chicoteia, usa, abusa dilacera
transforma em pomba da paz, depois em fera
rosnando e avançando contra o poder abusado
contra a face hipócrita dos que pensam
que a PALAVRA é coisa para ser ignorada
o Rossyr usa a palavra e faz dela uma arma
e são tantas e tão perigosas
que é quase um arsenal.

Então ele lapida, lubrifica e de repente
já não são mais perigosas
mas tão lindas, tão intensamente líricas,
enluaradas, românticas
uma declaração de amor
para quem quer ler, ou ouvir ou sentir na pele
como um arrepio.

Quanto mais eu leio o que o Rossyr escreve
mais eu tenho certeza
que toda essa beleza
selvagem
não pode ser daqui, do nosso planetinha
Tem que ter vindo de outras galáxias
de outras paragens mais iluminadas.

Sua Antologia Poética
Percursos do Feroz Cotidiano
Está sempre perto de mim, na cabeceira
E, se eu fosse a mulher aquela do BILHETE (janeiro/28)
eu choraria tanto ao ler a poesia
e seria tão pungente esse meu pranto
tão humilde meu pedido de perdão,
que ele de certo me perdoaria...

Ah! o giante que é
o homem que diz ser muitos homens
na agonia de multiplicidade
dos homens que ele é... (fevereiro/03)

Se vocês não acreditam em mim
verifiquem a agenda poética
exatamente em setembro 16 e leiam:

“Eu não nasci neste mundo
estou sempre surpreso com meus cotovelos
e as conquistas alheias (...)

cheguei à vida e galáxias erradas
vou embora pra casa
no próximo cometa que passar”

Viram?... eu estou avisando vocês
Eu tenho muito medo
que dia desses o Rossyr Berny desapareça
...e nos esqueça.

Livros publicados:

1. Homem-Autômato - Poesia - 1976
2. Desuniverso - Poesia - 1978
3. Exercício da lágrima - Poesia - 1979
4. Cativez de pólvora - Poesia - 1980
5. Não se suicidar é preciso - Poesia - 1980
6. Poemas de Veraneio - Poesia - 1980
7. Invernia - Poesia - 1982
8. Somos todos munição - Poesia - 1983
9. Antologia poética - Poesia - 1984 - (Obras de 1976 a 1983)
10. Carlinhos Hartlieb - Biografia - 1986
11. PaZtores de mísseis - Poesia - 1987
12. Revelação das sombras - Poesia - 1992
13. Percursos do feroz cotidiano - Poesia - 1997 - (Nova antologia, com obras de 1976 a 1997 e aproveitamento de agenda permanente)
14. Estações do Homem - Poesia - 2000
15. Entreguem o matador à família do morto - Brasil 500 Danos - Romance-histórico - 2000
16. Armas Amores - 25 anos de Poesia. Acompanha CD de poemas, com declamação do autor.

Fontes:
http://www.editoraalcance.net/rossyr/livros/rossir_livros_4.htm
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/rossyrberny/

Lygia Bojunga Nunes (1932)


Lygia Bojunga Nunes (Pelotas, RS, 26 de agosto de 1932), ou simplesmente Lygia Bojunga, é uma escritora brasileira.

Iniciou a sua vida profissional como atriz, tendo-se dedicado ao rádio e ao teatro, até voltar-se para a literatura. Com a obra Os colegas (1972) conquistou um público que se solidificou com Angélica (1975), A casa da madrinha (1978), Corda bamba (1979), O sofá estampado (1980) e A bolsa amarela (1981). Por estes livros recebeu, em 1982, recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen, o mais importante prêmio literário infantil, uma espécie de Prêmio Nobel da literatura infantil. O prêmio foi concedido pela International Board on Books for Young People, filiada à UNESCO. Os colegas já antes havia conquistado o primeiro lugar no Concurso de Literatura Infantil do Instituto Nacional do Livro (INL), em 1971, com ilustrações do desenhista Gian Calvi.

Ao completar 8 anos, sua família se mudou para o Rio de Janeiro, "... ao nos mudarmos para o Rio, fomos morar em Copacabana e eu logo me entreguei ao mar, à praia e à vida do bairro de tal maneira que parecia até que o planeta Terra tinha um só nome: Copacabana".

Logo após ser escolhida para estrelar a peça inicial do Teatro Duse, criado por Paschoal Carlos Magno (o fundador do Teatro do Estudante no Brasil), Lygia foi contratada para a companhia profissional Os Artistas Unidos.

Após abandonar sua carreira de atriz, Lygia passou 10 anos escrevendo para rádio e televisão. "... naquele tempo escrever/criar personagens era, pra mim, uma forma de sobreviver e de poder construir a casa que eu queria pra morar (a Boa Liga); só depois, quando eu abracei a literatura, é que eu me dei conta que escrever/criar personagens era muito mais que um jeito de sobreviver: era – e agora sim! – o jeito de viver que eu, realmente, queria pra mim.

Aos 33 anos Lygia foi morar "lá no fim de um vale, nas montanhas do Estado do Rio: tinha chegado a hora de viver agarrada com a natureza".

Tempos depois ela fundava, junto com seu segundo marido, "um inglês ótimo que o acaso fez bater naqueles verdes", uma pequena escola rural chamada TOCA, que os dois mantiveram durante 5 anos.

Em 1982 Lygia se mudou para a Inglaterra; "foi lá que eu compreendi por inteiro que o escritor é cidadão da sua língua; comecei então a alternar o meu tempo de Londres com o meu tempo de Rio; mas não ouvir a minha língua foi ficando uma penalidade cada vez maior, então fui esticando cada vez mais o meu tempo de Rio, e agora, com a casa que eu criei pros meus personagens, quer dizer, com a editora, o meu tempo lá em Londres ainda se reduziu muito mais.”

"Em 1988 eu tive uma coisa que, disseram, era uma recaída teatral": Lygia escreveu e apresentou o monólogo Livro em palcos de bibliotecas, universidades e espaços culturais do Brasil afora e também no exterior, iniciando então uma nova etapa de seu trabalho e uma nova maneira de aprofundar sua relação com o livro - um projeto que ela chamou de As Mambembadas.

Ao longo da década de 90 Lygia desenvolveu mais três trabalhos dentro do projeto d’As Mambembadas, onde buscou juntar seus dois eus: a atriz e a escritora. Levou para o palco o livro de sua autoria Fazendo Ana Paz, representando os sete personagens da história; depois, escreveu e encenou De cara com a Lygia e Depoimento, ambos voltados para a teatralização do fazer literário. E de novo mambembou com essas apresentações intermitentes – feitas da maneira mais artesanal possível – pelo Brasil afora.

Em junho de 2002, na ocasião do lançamento de Retratos de Carolina – o livro de estréia da editora Casa Lygia Bojunga – a autora apresentou para o público o seu mais recente trabalho teatral: A entrevista, onde, durante mais de um hora, "dialoga" com um entrevistador invisível. Mais um solo da autora, "... minha trilha no palco é tão solitária quanto o ato da escrita...”

Quando a Casa iniciou a produção de Retratos de Carolina, a câmera de Peter registrou Lygia junto ao mar – exatamente no local onde, no livro, Lygia se despede de Carolina.

Também em junho de 2002 a CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) convidou Lygia para a representação teatral de Os colegas, comemorando os 30 anos de publicação daquele primeiro livro da autora. A câmera de Silvana Marques captou Lygia na platéia, com as flores comemorativas que a autora levou para sua casa acobertada por um livro: símbolo de uma pequena editora que se propõe guardiã dos personagens de Lygia Bojunga.

Em 26 de maio de 2004, Lygia Bojunga recebeu da Princesa Victoria, da Suécia, o prêmio ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award), o maior prêmio internacional jamais instituído em prol da literatura para crianças e jovens.

Também em 2004 Lygia recebeu o prêmio FAZ DIFERENÇA (Personalidade Literária do ano)

A escritora e o estilo

Lygia Bojunga Nunes tem recebido reiterados elogios da crítica especializada, quer brasileira, quer estrangeira. No cenário brasileiro, com freqüência tem sido reportada como a herdeira ou sucessora de Monteiro Lobato, por estabelecer um espaço em que a criança tem — através da liberdade da imaginação — uma chave para a resolução de conflitos, o que Monteiro Lobato mostrou saber fazer com maestria. Algumas vezes, no cenário internacional, costuma-se compará-la a Saint-Exupéry e a Maurice Druon, pela notável sensibilização infantil destes através de O pequeno príncipe e O menino do dedo verde, respectivamente. Com efeito, misturando com habilidade o real e a fantasia, Lygia alcança, num estilo fluente, entre o coloquial e o monólogo interior, perfeita comunicação com seu leitor.

Consciente de que literatura é comunicação, a autora não recusa tratar de temas considerados problemáticos como suicídio, em 7 cartas e 2 sonhos (1983) e O meu amigo pintor (1987); assassinato, em Nós três (1987) e abandono dos filhos pela mãe, no conto Xau, no volume do mesmo nome (1985).

Com o livro Um encontro com Lygia Bojunga Nunes (1988), reuniu textos sobre sua relação com a literatura, apresentando, de forma dramatizada, o resultado de seu trabalho.

Esse é também o início de uma reflexão metaliterária, que se estende por Paisagem e Fazendo Ana Paz, ambos de 1992, onde refletiu sobre o que é fazer literatura, fazendo literatura, linha que tem em Feito à mão (1996), uma realização radical, pois o livro foi feito com papel reciclado e fotocopiado — uma alternativa à produção industrial.

Com Seis vezes Lucas e O abraço, também de 1996, retoma um tema instigante deste final de século: uma literatura dirigida a qualquer leitor, estando no objeto-livro a maneira de adequá-la às diversas etapas da vida humana.

É um dos maiores nomes da literatura infanto-juvenil brasileira e mundial, assim consagrada pela qualidade de sua obra e caracterização da problemática da criança, acuada dentro do núcleo familiar.

Sua obra já foi publicada em alemão, francês, espanhol, sueco, norueguês, islandês, holandês, dinamarquês, japonês, catalão, húngaro, búlgaro e finlandês.

Seus livros têm sido altamente recomendados pela crítica européia e estão sendo radiofonizados em vários países, sendo que um deles, Corda bamba, foi filmado na Suécia.

Casada com um inglês, vive parte de seu tempo em Londres e parte no Rio de Janeiro. A autora prepara uma transposição para o teatro de 7 cartas e 2 sonhos.

Prêmios

1971
Prêmio INL (Instituto Nacional do Livro) – Os colegas – Ed. José Olympio;

1973
Prêmio Jabuti – Os colegas – Ed. José Olympio;

1974
Lista de Honra – International Board on Books for Young People (IBBY) – Os colegas – Ed. José Olympio;

1975
O Melhor para a Criança – FNLIJ – Angélica – Ed. AGIR;

1976
O Melhor para a Criança – FNLIJ – Os colegas – Ed. AGIR;

1978
O Melhor para o Jovem – FNLIJ – A casa da madrinha – Ed. AGIR;

1978
Lista de Honra – IBBY – Os colegas – Ed. AGIR;

1980
Grande Prêmio APCA (Críticos Autorais) – O sofá estampado – Ed. José Olympio;

1980
O Melhor para o Jovem – FNLIJ – O sofá estampado – Ed. José Olympio;

1982
Prêmio HANS CHRISTIAN ANDERSEN – IBBY (pelo conjunto de sua obra) – o mais tradicional prêmio internacional de literatura para crianças e jovens;

1982
Prêmio Bienal Banco Noroeste de Literatura Infantil e Juvenil – O sofá estampado – Ed. José Olympio;

1985
Prêmio literário O Flautista de Hamelin – A casa da madrinha – Ed. AGIR – outorgado pela cidade de Hamelin, Alemanha;

1985
Prêmio Os Melhores para a Juventude – A casa da madrinha – Ed. AGIR – concedido pelo Senado de Berlim;

1985
Prêmio Molière (Teatro) – O Pintor – Ed. AGIR;

1985
O Melhor para o Jovem – FNLIJ – Tchau – Ed. AGIR;

1986
Prêmio Mambembe de Teatro: O Pintor – Ed. AGIR;

1987
Seleção dos melhores livros da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique – Tchau – Ed. AGIR;

1993
Prêmio Jabuti – Câmara Brasileira do Livro (CBL) – Fazendo Ana Paz – Ed. AGIR;

1993
Prêmio White Ravens – Fazendo Ana Paz – Ed. AGIR;

1996
– Prêmio Orígenes Lessa – Hors Concours – FNLIJ – O abraço – Ed. AGIR;
– Prêmio Orígenes Lessa – Hors Concours – FNLIJ – Seis vezes Lucas – Ed. AGIR;

1997
– Prêmio Jabuti – Câmara Brasileira do Livro (CBL) – Seis vezes Lucas – Ed. AGIR;
– UBE (União Brasileira de Escritores) – Prêmio Adolfo Aizen – O abraço – Ed. AGIR;

1999
Prêmio Orígenes Lessa – Hors Concours – O Melhor para o Jovem – FNLIJ – A cama – Ed. AGIR;

2000
Prêmio Júlia Lopes de Almeida – Hors Concours – União Brasileira de Escritores – UBE – A cama – Ed. AGIR;

2004
– ALMA – Astrid Lindgren Memorial Award (pelo conjunto de sua obra) – o maior prêmio internacional jamais instituído em prol da literatura para crianças e jovens, criado pelo governo da Suécia;
– Prêmio FAZ DIFERENÇA ( personalidade literária do ano ) - O GLOBO

Obras

* Os Colegas - 1972
* Angélica - 1975
* A Bolsa Amarela - 1976
* A Casa da Madrinha - 1978
* Corda Bamba - 1979
* O Sofá Estampado - 1980
* Tchau - 1984
* O Meu Amigo Pintor - 1987
* Nós Três - 1987
* Livro, um Encontro - 1988
* Fazendo Ana Paz - 1991
* Paisagem - 1992
* Seis Vezes Lucas - 1995
* O Abraço - 1995
* Feito à Mão - 1996
* A Cama - 1999
* O Rio e Eu - 1999
* Retratos de Carolina - 2002
* A Bolsa Amarela - 2005
* Aula de Inglês - 2006
* Sapato de Salto - 2006
* Dos Vinte 1 - 2007

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.casalygiabojunga.com.br/

Carlos Drummond de Andrade (Viúva Loura)


- "Viúva, 21 anos..."
- Tadinha. A vida é isso.
- "Loura..."
- Melhorou.
- "Fazendeira, rica..."
- Epa, muda completamente de figura.
- "Pertencente a tradicional família mineira..."
- Corta essa!
- "Recém-chegada do interior..."
- Então, não custa sondar a barra.
- "Procura companhia masculina..."
- Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.
- "Que seja jovem..."
- Você acha que 38 anos está na pauta?
- "Bem intencionado..."
- Nunca fui outra coisa na vida.
- "De fino trato..."
- Não é por me gabar, mas...
- "Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio..."
- Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos.
- "Para passeios e ..."
- Etc., lógico.
- "Futuro compromisso matrimonial..."
- Corta! Corta!
- É mesmo.
- Aliás, eu não tenho mais de 38. Tinha, semana passada.
- E rica... Rica de que? Talvez de predicados apenas.
- Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico. Pera aí, mau- caráter.
- Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou prevenindo pra você não se grilar. Viúva, mineira, loura... Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura. É artificial. Se é artificial...
- Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.
- Olha, eu conheci uma loura que, além de outros negativos, era careca.
- Ora, peruca resolve.
- Sei não, mas tudo isso junto- mineira, viúva, loura, 21 anos, rica...
- Que é que tem?
- É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.
- Foi uma graça de Deus.
- Você não merece tanto.
- Será outra graça de Deus.
- Deus não deve ser assim tão desperdiçado com suas graças.
- Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania.
- Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até de monjolo?
- Continua.
- "Cartas com sigilo absoluto..."
- Evidente.
- "Indicações pessoais..."
- Minha ficha é mais limpa do que caixa d'água de edifício quanto o síndico vai ao terraço.
- "E fotos..."
- Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta. Mas tiro de calção, frente, perfil e fundos.
- "Para a portaria desse jornal, sob n° 019 834."
- Pera aí. Tou anotando. 019?
- 834.
- Legal. 834 é o número de meu edifício, 19 é pavão, que tem a perna dourada. Lê mais.
- Já li tudo, ué.
- Lê outra vez. Repete.
- Vai decorar?
- Vou gravar melhor na nuca, vou raciocinar em bloco, vou...
- Se habilitar, né?
- Correto.
- Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?
- Vou ver pra conferir.
- Pode nem ser viúva.
- E daí?
- Diz que tem 21 anos, mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes 21.
- Então você admite que ela é mineira.
- E que cria galinha sem ração, na base da parapsicologia?
- Também sou mineiro, uai.
- E nunca me confessou. Eu jurava que você fosse capixaba.
- Fui. Questão de limites, minha terra passou pra banda de cá. Não espalha, sim?
- Me tapeou esse tempo todo.
- Esquece.
- Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro mascarado.
- Fica em família, né?
- A tradicional?
- As duas. Eu na minha, ela na dela.
- Agora sou eu que digo: tadinha.
- Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu transo. No figurino.
- É verdade que tem muito carioca por aí, muito paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você chegue tarde.
- Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio Fittipaldi. Comigo é Fórmula-1.
- Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
- Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra esconder que é mineiro...
- Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer!

Nilto Maciel (A Paisagem e o Homem Cearense em Tigipió, de Herman Lima)


O primeiro livro de Herman Lima, Tigipió, é de 1924. Escreveu ainda o romance Garimpos, as histórias curtas de A Mãe-da-Água, impressões de viagens, memórias, uma História da Caricatura no Brasil e livros sobre a técnica do conto, como Variações Sobre o Conto. Para alguns críticos, depois de Gustavo Barroso, é o nome mais importante do conto cearense no início do século XX.

Nas 14 narrativas de Tigipió o leitor encontra um narrador voltado para a geografia que vai do litoral ao sertão cearense. Os dramas se desenrolam quase sempre em lugares abertos, amplos, devastados por secas. Aqui e ali aparece uma sala, um quarto. No mais das vezes, o leitor se vê diante de imensos espaços rurais, estradas, caminhos e praias. Os personagens são sertanejos endurecidos pela vida áspera, mulheres lindas, sensuais, sedutoras, pescadores igualmente embrutecidos. Vivem intrigas violentas, envoltas em amores frustrados, mistérios, vinganças, loucuras, traições, que terminam em tragédias pessoais ou familiares.

No entanto, a linguagem das narrativas é pomposa, recheada de vocábulos em desuso, mesmo na literatura escrita do século XX. Alguns não se encontram em dicionários: “Bandos de urubus, de vinte a trinta, frufrulejam (grifo nosso) as asas” (...). É até possível imaginar-se Herman Lima jovem diante dos livros de Coelho Neto, atento, maravilhado, a anotar esta e aquela frase: “O rancho negro desenvolveu-se em hemiciclo com os músicos ao centro zangarreando, as mulheres aos guinchos” (Coelho Neto, Rei Negro, p. 110, apud Novo Dicionário Aurélio). “E, aos primeiros compassos de um baião fogoso e estonteador zangarreado pelo vaqueiro” (...) (Herman Lima, “Sereias”).

Entretanto, numa história em primeira pessoa, “Coração”, cujo narrador é um caboclo, João, a linguagem é naturalmente simples. O uso de vocábulos como “sufragante”, “maginando”, pass’os (pássaros) e relamp’os (relâmpagos) não tornam ininteligível a leitura.

Permeiam as narrações, quase sempre espichadas, longos períodos de descrições de ambientes e aspectos físicos de personagens. Assim, muitas vezes os personagens desaparecem para dar lugar ao ambiente, isto é, o leitor se vê diante de largos murais, pinturas do espaço onde vivem os personagens.

No conto “Tigipió”, o mais longo do livro, há referências a diversas cidades e localidades do Ceará, em tempo de seca, “uma só terra devastada e morta, savanas nuas, ermos escalvos”. Os personagens principais são o velho Cesário, sua filha Matilde e Heitor. Viviam os dois primeiros do “fabrico de chapéus de palha”, numa casinha de “tacaniça sem reboco”, no sertão, proximidades do Rio Jaguaribe. O cenário sertanejo reaparece em “Choça Vazia”, embora a narrativa se aproxime mais do gênero crônica: “À margem da estrada, entre a mata reinante, fica, num claro, vazia e silente, uma choça antiga.

Em “Ventura Alheia” vê-se um “tabuleiro ermo”, onde os personagens “viviam do cultivo das terras, lindas vazantes que se estendiam ao fundo das casas, à beira do riacho de Russas.”

Um dos contos mais famosos de Herman Lima é “O Arrieiro”. O narrador, o engenheiro Norberto Sales, conta uma história vivida durante a seca de 1919, entre Aracati e Quixadá. Narra uma viagem do sertão a Fortaleza, assim como a volta. “Léguas e léguas sem fim,” (...) “o calor da fogueira universal esbraseando a paisagem de redor, o horizonte refervendo, e o céu e a terra, tudo envolto no mesmo turbilhão de labaredas invisíveis.” Como o título indica, em “Sertanejos” o drama se desenvolve também no sertão: a “várzea larga”, a “mata quieta”, estradas, veredas, cavalos, cangaceiros. No sertão de Quixeramobim vivia Juventina, de “Coração”. Que termina seus dias em Fortaleza, a mendigar. O início de “Os Caboclos” é uma descrição longa de um pedaço do sertão: várzeas imensas, cortadas de carnaubais.

A última história do livro, “A Mãe-d’água”, quase tão longa quanto a primeira, encerra esse ciclo sertanejo. Hugo, o protagonista, viaja de Fortaleza para Aracati e, em seguida, para o sertão, nas proximidades de Limoeiro, para viver uma história de amor.

O espaço praiano e marinho do Ceará está presente nos demais contos de Tigipió. O primeiro deles é “Sereias”, como não poderia deixar de ser. O drama se inicia na praia de Meireles, em Fortaleza. O pescador Bento Caiçara vai ao mar, para pescar. Termina diante de sereias: “O pobre alçou-se em desvario, bracejou, ofegante, exausto, os membros chumbados, impotentes, os ouvidos zoando, ele todo numa luta surda e titânica, a reagir contra o assombro.”

Em “Alma Bárbara” o drama se inicia num lugarejo praiano, próximo à cidade de Aracati, num “lagamar confronte”, e termina no mar. Em outra ação, no rio Salgado. Em “As Guabirabas” vêem-se dunas, coqueirais, a praia e “ondas abrindo mansamente, em leque, esfroladas de espumas, morros alvíssimos, onde passavam pescadores, mais ao fim o farol” (...). Fortaleza reaparece em “As Mulheres”. O velho Rufino, lenhador e camaroeiro, vivia “à margem do rio Cocó”. Em “Gata Borralheira” a protagonista Genoveva vivia com uma tia viúva e suas duas filhas, sempre a correr a praia, “sozinha, à cata de mariscos”. Mais tarde, já mocinha, enamorou-se de um desconhecido, com quem se encontrava “sob as árvores”, “entre os cajueiros”. Mais adiante se dá o afogamento do namorado. A moça enlouquece: “Quando era noite de lua, a louquinha abalava para a praia, e ficava sobre um penedo rasteiro às vagas, atenta ao marulhar constante da onda.” E finalmente, ao “avistar” o iate branco do seu príncipe, nada em busca dele. “A onda erguia-a, repuxava-a, trepava-lhe pelos ombros.” No desfecho, a moça “ainda pôde jogar-lhe um beijo, antes de afundar.

Outra tragédia marinha se mostra em “Ressaca”. O velho pescador Manuel Lucas vivia, com a filha Rosa, “num casebre abandonado, além de Mucuripe, quase ao pé do farol.” Certo dia, ao voltar para casa, não encontra a moça. Desesperado, sai em busca da filha, pela praia. “Mas, de repente, um vagalhão estupendo, alto e negro como a muralha de um forte, ergueu-se-lhe em frente, a poucos passos.” E dá-se a tragédia.

Os personagens dos contos de Herman Lima são sertanejos embrutecidos pela seca e pela violência, pescadores afeitos à solidão do mar, às vezes aventureiros fora de seu habitat. As personagens são mulheres lindas, voltadas exclusivamente para o amor. O sertanejo Cesário, de “Tigipió”, se vinga da vida, ao provocar a própria morte, assim como a da filha e seu namorado Heitor. Matilde, a filha de Cesário, era “uma cabocla linda e viva, de tentadores encantos”. O desfecho de “Alma Bárbara” é outra tragédia. Pedro e o irmão da “mulatinha” que o primeiro tentara possuir num rio se matam, a golpes de faca. Ritinha, da mesma narrativa, “era mesmo um mimozinho deveras”. A outra, a mulatinha, apresentava um “ocorpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato”.

O engenheiro de “O Arrieiro” não é um sertanejo e vive momentos de angústia, ao se imaginar refém de perigoso assassino, Mariano, “feitor lombrosiano”. Viúvo, Rufino, de “As mulheres”, propõe casamento a Joana. Casados, conhece a mulher outro homem, João Vicente, o “paroara”. Inicia-se, então, a trama propriamente dita. Após uma briga, Vicente decide eliminar o rival e o mata. A mulher, no entanto, foge de casa só. Genoveva, de “Gata Borralheira”, ao se fazer púbere, é “trigueirinha e linda a valer”. Justino, de “Sertanejos”, é vingativo. Quando “rapazelho tímido”, a serviço do tio Zé Balaio, sofre deste duro castigo, ao “permitir” que uma égua se alarmasse “frente a um garrancho negro” e disso resultasse um rasgão num saco de farinha. Feito homem, se transforma em bandoleiro e ataca a tropa do tio. Juventina, de “Coração”, é pintada como a mais linda das mulheres: “Os olhos dela brilhavam, que nem duas estrelas Papaceia”. (...) “Os beiços eram duas fatias da fruta do mandacaru.

O apreço pelos naturalistas se pode perceber numa referência a Aluísio Azevedo no conto “Tigipió”. Como eles, Herman Lima também cultua a descrição de traços fisionômicos, físicos e psicológicos dos personagens. Justino, de “Ventura Alheia”, “era um caboclo airoso e vivo, muito fornido de corpo, de cara bonita e franca, de uma alegria sem par.” Damião, “pequenino, raquítico, o tronco abaulado, os ombros para cima, só tinha em proporção a cabeça, uma cabeçorra horrível, de olhos esbugalhados, vítreos e mansos, como olhos de peixe ou de sapo.” A beleza física estaria relacionada à beleza espiritual, assim como a feiúra corporal à deformação do caráter, da personalidade. Mariano, de “O Arrieiro”, tem “cara fosca e modos torvos, olhos injetados, trunfa caída sobre a testa, a dentuça vasta à mostra no prognatismo feroz, o corpanzil ereto e longo, com a musculatura enxuta do mestiço do Norte” (...).

Herman Lima não é apenas um dos melhores contistas cearenses do início do século XX. É também um dos mais autênticos narradores/descritores da paisagem e do homem cearenses.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: d’a Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008.

Alex Giostri (Sobre as Palavras e suas Inflexões)

Imagem do filme A Hora do Rush
(Jackie Chan e Chris Tucker)

Um carro possui um motor. O motor é movido a combustível. Sem o combustível, o carro não anda. Ao ator é interessante pensar que o seu corpo físico é o motor e que a palavra é o alimento de seu corpo, isto é, o combustível. O indivíduo traz consigo sua identidade emocional e suas características psíquicas que o definem como um ser singular. Para que possa comunicar-se com alguém demonstrando parte do que é como pessoa, esse indivíduo utiliza-se das palavras, que são o seu combustível, que, por sua vez, é o que transforma as suas sensações abstratas em linguagem.

Pensando assim, ao ator não basta apenas utiliza-se dessa linguagem, das palavras, se não souber manejá-las, compreendê-las. Essa compreensão, esse manejo, é, ao ator, o que se classifica como inflexão. Como a boa maneira de expor a palavra ao seu espectador. É quando o ator, além de trabalhar a respiração no momento exato, dando as pausas necessárias na hora exata, dá à palavra, às letras, às sílabas, todo um tratamento minucioso no ato da fala, possibilitando assim que quem o assiste sinta-se impressionado com o que ouve. Impressionado no sentido de impressão.

A inflexão é a impostação da voz, é o conhecimento das palavras e de seu poder de alcance, é da relação íntima que o ator tem com o seu combustível. E essa relação entre o ator e a palavra se faz através da leitura, do entendimento das palavras (de seus significados) e dos exercícios que faz dia-a-dia. Há muitas maneiras de dizer a mesma palavra. E aí entra a respiração, o olhar, o tom da voz, a agilidade da fala, o trabalho corporal. É apenas mais um dos ingredientes para a construção do ator, mas é um dos fundamentais, pois é, a palavra, a via de acesso mais direta e rápida na maioria das vezes.

A falta de boa inflexão e, automaticamente, da boa fala, está ligada à falta de leitura e de intimidade com as palavras, mas também está ligada à ansiedade, que é capaz, se não for bem resolvida, de complicar a vida do ator. É na ansiedade que os batimentos cardíacos se desestabilizam (para mais ou para menos); é a ansiedade que aumenta a insegurança do ator, seja ela o tipo que for (tipo de insegurança – causa).

É válido lembrar que o espectador está na platéia para assistir ao que se oferece. Isso significa que o espectador está disposto a ouvir o que os atores têm a dizer. E sendo essa uma afirmação óbvia, ao ator cabe a compreensão de que a sua única obrigação é a de transmitir a mensagem daquilo que está em jogo na cena. E tal mensagem só chega ao entendimento do outro, que é o espectador, se for bem transmitido, de maneira delicada (mesmo que intensa). Um ótimo exercício é sempre o ator colocar-se na posição de quem ouve. É o trabalho do distanciamento.

A inflexão está ligada à técnica. Mesmo o ator visceral, aquele que age com o impulso, com a emoção à flor da pele, mesmo esse ator deve ter dentro de si um espaço racional para controlar o que sai de sua boca. E esse espaço se dá naturalmente. Não há técnica para alcançá-lo. O que o ator pode fazer é mergulhar dentro de si e aguardar que algo toque o coração. É ouvir as suas limitações e jogar com elas em prol de seu trabalho e de sua platéia.

O bom resultado é conseguido também através da leitura incansável do mesmo texto e do entendimento de cada pontuação do autor, de cada palavra posta no texto. O ator deve compreender que tudo que há no texto foi posto por alguém que pensou muito sobre aquele universo. E que cada palavra, ou falta de palavra, que cada pontuação, ou falta de pontuação, que cada concordância verbal, ou falta de concordância verbal, que todas elas foram postas propositalmente pelo autor (na maioria dos casos, mas pode haver um erro ortográfico) e que tudo isso passa a ser o seu guia de trabalho, o guia do ator.

Essa busca pela palavra, pelo aprimoramento técnico daquilo que sai da boca do ator, dessa busca pelo silêncio, pelo tom mais adequado, pelas pausas precisas, são e sempre serão a busca pela própria profissão, pela própria vida. O estar em cena sob os refletores, sob os aplausos, deve ser entendido como uma conseqüência e não como objetivo.

Fonte:
http://www.alexgiostri.com.br/artigos.html