sexta-feira, 28 de agosto de 2009

José Carlos Capinan (O Poeta no Papel)


MUDANDO DE CONVERSA

Não me venham falar de éticas
Prefiro locomotivas
Ou motivos loucos para ser feliz
Prefiro vagões de urânio e feijão
Atravessando o país
Vendo o povo acenando lenços brancos
(Campos férteis)
Aos que vão sul a norte
Leste oeste
Trilhos novos, outros brasis

E eu menino outra vez a dar adeus aos tempos da antihistória
Quero sorrir das janelas de trens supersônicos
Em trilhos magnéticos
E novamente pensar que podemos alcançar as estrelas

(Dakar, em maio/2006)
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ALGUMAS FANTASIAS

I

É noite, tudo é mistério, eu vejo
Há quem chore, há quem ligue a chave de ignição
Entretanto em meu coração fortemente chove
Chove chove chove

Enquanto chove, choro e relampeja
Se despem e se despedem todos os amantes
As chaves de ignição acendem os trovões
Apagam-se as velas e assim seja

VII

Os carros são cada ano mais potentes
E capazes de desenvolver velocidades surpreendentes
São capazes de atirar quilômetros animais árvores
gente
Não sei porque a vida se faz tão urgente

VIII

Sou político
E nem sei o que possa dizer com isso
Mas é da época ser político
E há vários políticos
E cada um tem a sua verdade política
E a sua maneira política de ser político
E cada político tem o seu melhor mundo a oferecer
Sou político e também penso que talvez tenha um mundo
Mas nem por isso, talvez somente fantasie inútil
E acredite poder alterar esse inexorável rumo.

Fui tão político às vezes que desdenhei as formas
E contestei as normas
E confessei ridículas as pétalas de rosas
Fui tão político às vezes que fiz da beleza uma coisa perigosa
E tão político às vezes que tornou-se a noite pavorosa
Fui tão político às vezes que se desfizeram as minhas
mãos amorosas
E tão político às vezes que pensei entender a guerra
O chumbo e a pólvora
Fui tão político às vezes que despendi mil impossíveis horas
Dissolvendo em amnésia todas as memórias

As máquinas são políticas
As poéticas são políticas
As canções são políticas
Mas eu desconfio que alguma coisa possa deixar de ser
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MADRUGADAS DE NARCISO

Encalho nas madrugadas as minhas velas em farrapos
Sou eu mesmo os marinheiros
Sou eu mesmo a cabotagem
Sou eu quem traça os portos do roteiro
E torna em desespero a bússola da viagem

Naufrago nas madrugadas
Mas eu mesmo me faço nadar em vão até as mais
longínquas praias
Sou eu a maresia, a calmaria e a tempestade
Sou eu mesmo a terra à vista
Inalcançável
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OUTRAS CONFISSÕES

Narciso se despe, é noite, estão ladrando os cães
Os cães provavelmente ladrarão inteiramente a noite
Enquanto a lua cheia obtura os dentes podres das canções
Um traficante boliviano
Diz alô de Amsterdã
Um fracassado governante
Diz alô num telegrama
Tudo é ópio, para um ex-marxista
Para um ex-espiritualista, tudo é transe.
Tudo é provisoriamente eterno para os poetas
Tudo é eternamente provisório para os amantes
E o poema apenas a configuração do instante
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DIDÁTICA

A poesia é a lógica mais simples.
Isso surpreende
Aos que esperam ser um gato
Drama maior que o meu sapato.
Ou aos que esperam ser o meu sapato,
Drama tanto mais duro que andar descalço
E ainda aos que pensam não ser o meu andar descalço
Um modo calmo.

(Maior surpresa terão passado
Os que julgam que me engano:
Ah, não sabem o quanto quero o sapato
Nem sabem o quanto trago de humano
Nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
Em teorema tão claro.

Como não se cansariam ao me buscar os passos
Pois tenho os pés soltos e ando aos saltos
E, se me alcançassem, como se chocariam ao saber que faço
A lógica da verdade pelos pontos falsos)
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POESIA PURA

Se esta é a busca da noite enquanto noite,
A busca intensa que nada perturba,
Nego a sensibilidade, pois ela acrescenta.
Nego a compreensão, pois ela já tem noções
E pode perturbar a flor pelo conhecer do homem.
Hoje não relaciono, não comprometo.
Quero a coisa em seu íntimo mais grave
Quero a coisa, essencialmente a coisa,
A coisa metafísica, para provar a impossibilidade.
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O REBANHO E O HOMEM

O rebanho trafega com tranqüilidade o caminho:
É sempre uma surpresa ao rebanho que ele chegue
Ao campo ou ao matadouro.
Nenhuma raiva
Nenhuma esperança o rebanho leva.
Pouco importa que a flor sucumba aos cascos
Ou ainda que sobreviva.
Nenhuma pergunta o rebanho não diz:
Até na sede ele é tranqüilo
Até na guerra ele é mudo.
O rebanho não pronuncia,
Usa a luz mas nunca explica a sua falta
Usa o alimento sem nunca se perguntar
Sobre o rebanho o sexo
Que ele nunca explicara
E as fêmeas cobertas
Recebem a fecundidade sem admiração.
A morte ele desconhece e a sua vida.
No rebanho não há companheiros,
Há cada corpo em si sem lucidez alguma.

O rebanho não vê a cara dos homens
Aceita o caminho e vai escorrendo
Num andar pesado sobre os campos.
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Fontes:
- CAPINAN, José Carlos. Confissões de Narciso. Civilização Brasileira, 1995.
- CAPINAN, José Carlos. Inquisitorial. Civilização Brasileira, 1995.

José Carlos Capinan (Letras de Músicas)



Com trechos de depoimentos do autor em Vinte Canções de Amor e Um Poema Quase Desesperado

PONTEIO

(Parceria com Edu Lobo)

Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse ou amor ou dinheiro
Era um era dois era cem
Vieram pra me perguntar
Oh você de onde vai de onde vem
Diga logo o que tem pra cantar
Parado no meio do mundo
Pensei chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra nem sol nem vento

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Pra cantar

Era um dia, era claro, quase meio
Era um canto calado sem ponteio
Violência, viola violeiro
Era a morte em redor mundo inteiro
Era um dia, era claro, quase meio
Era um que jurou me quebrar
Mas não lembro de dor nem receio
Só sabia das ondas do mar
Jogaram a viola no mundo
Mas fui lá ho fundo buscar
Se toma a viola eu ponteio
Meu canto não posso parar

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Pra cantar

Era um era dois, era cem
Era um dia, era claro, quase meio
Encerrar meu cantar já convém
Prometendo um novo ponteio
Este dia bem claro por inteiro
Eu espero não vá demorar
Este dia estou certo que vem
Digo logo que vim pra buscar
Parado no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar
Quem me dera agora

Eu tivesse a viola pra cantar
Ponteio, ponteio
Todo mundo
Pontear

“Em 1967, Ponteio ganhou o III Festival da MPB, enquanto era morto em SantaCruz de la Sierra, Bolívia, um mito latino americano, que derrubara em Cuba, ao lado de Fidel, a ditadura de Fulgêncio Baptista, criando pela primeira vez uma república socialista nas Américas. Neste festival, foram plantadas as sementes da Tropicália. Caetano Veloso defende Alegria, Alegria, e enquanto se preparava para cantar Domingo no Parque, entreguei a Gilberto Gil o poema-letra Soy Loco Por Ti, América. Considero estas três canções precursoras do Tropicalismo. E considero Ponteio o encerramento do ciclo que elejera o Nordeste como síntese de nossa postura estético-política”.

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SOY LOCO POR TI AMERICA
(Parceria com Gilberto Gil)

Soy loco por ti, América
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti, que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y ei cielo como bandera, y ei cielo como bandera

Soy toco por ti, América,
Soy toco por ti de amores

Sorriso de quase nuvem, os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas, o corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Esse país sem nome, esse tango, esse rancho,
Esse povo, dizei-me, arde o fogo de conhecê-la!
O fogo de conhecê-la

Soy toco por ti, América!
Loco por ti de amores
El nombre dei hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo,
El nombre del hombre es pueblo

Soy loco por ti! América!
Loco por ti de amores

Espero o amanhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes, soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra
Quem sabe, canções do mar
Ai, hasta te comover, ai, hasta te comover

Soy toco por ti! América
Soy toco por ti de amores

Estou aqui de passagem,
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes
Entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços Nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher
Nos braços de uma mulher
Mas apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira, manequim,
Ai de mim, nos braços de quem me queira
Nos braços de quem me queira

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores

O anúncio da vitória de Ponteio no III Festival da Record coincidiu com a notícia da morte do Che, que me levou a chorar e a escrever, num repente alucinado, do começo ao fim, sem reescrever uma só linha ou palavra (...). Entreguei o poema, nos bastidores do Festival, a Gilberto Gil. Ele criou o hino que hoje se mantém vivo e que talvez me dê a maior satisfação de tudo que fiz. Esta canção tem um grande significado, talvez seja a que melhor expressa meu sentimento rebelde e lírico e me faz acreditar que pertenço a um momento em que a América Latina era central em nossas idéias e destino, tudo sonhado revolucionariamente. Soy Loco por Ti, América me dá o imenso prazer de, querendo ser poeta, poder assim testemunhar nosso estar no mundo.”

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CLARICE
(Parceira com Caetano Veloso)

Há muita gente
Apagada pelo tempo
Nos papéis desta lembrança
Que tão pouca me ficou
Igrejas brancas, luas claras nas varandas
Jardim de sonho e cirandas
Foguetes claros no ar

Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração

Clarice era morena
Como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito de não ser quase ninguém
Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos
Mas jamais que se despiu
Entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes
Do rio

Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração

Tinha receio do frio
Medo de assombração
Um corpo que não mostrava
Feito de adivinhação
Os botões sempre fechados
Clarice tinha o recato
De convento e procissão

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração

Soldado fez continência
O coronel reverência
0 padre fez penitência
Três novenas e uma trezena
Mas Clarice era inocência
Nunca mostrou-se a ninguém
Fez-se modelo das lendas
Das lendas que nos contaram
As avós

Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração

Tem que um dia amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida
Chorando pediu lembrança
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda
Soluçando e lentamente
E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes
Até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda
Todo tempo que existisse

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração?

1966 (...) Morava no Rio de Janeiro, numa espécie de exílio interno, que vivi ao sair da Bahia, em 1964. Eu tinha uma idéia recorrente de voltar. Algumas vivências de adolescente insistiam em permanecer no meu coração, resistindo ao sex appeal das garotas de Ipanema, pelejando com as novas emoções que o Rio oferecia. E eram muitas. Mas a quase namoradinha do interior permaneceu como ícone da beleza nativa, a cobiçada filha de seu Cícero (...). Escrevi Clarice num surto de banzo. E mostrei o poema a Suzana (filha de Vinícius de Moraes) e Macalé. Suzana identificou Caetano como parceiro ideal (...) A morena Clarice foi gravada também por Orlando Silva, o que vim a descobrir após a sua morte”.
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PAPEL MACHÊ
Parceria com João Bosco

Cores do mar
Festa do Sol
Vida é fazer
Todo sonho brilhar
Ser feliz
No seu colo dormir
E depois acordar
Sendo seu colorido brinquedo
De papel machê

Dormir no teu colo
É tornar a nascer
Violeta e azul
Outro ser
Luz do querer
Não vai desbotar
Lilás cor do mar
Seda cor do batom
Arco-íris crepom
Nada via desbotar
Brinquedo de papel machê

Poucas canções eu fiz tomando como ponto de partida uma melodia já composta. Ponteio e Papel Machê foram raras exceções. Gosto de escrever os poemas ou letras livremente, sem um padrão a ser alcançado... Esta parceria com João Bosco é um dos maiores sucessos de tudo que escrevi. Eu estava feliz e bem amado quando a fiz e me interessava muito pelas relações amorosas que dão certo, porque me sinto mal-educado afetivamente (...)”

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br

José Carlos Capinan (1941)



Nasceu em 19 de fevereiro de 1941, em Esplanada, Bahia, filho de Osmundo Capinan e Judite Bahiana Capinan com mais 12 irmãos.

Começou a escrever poesia aos 15 anos.

Em 1960, mudou-se para Salvador, iniciando o Curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Por essa época, estudando também teatro no Centro Popular de Cultura, ligado à UNE, conheceu Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos cursando as faculdades de Filosofia e Administração de Empresas, respectivamente. Atuou na peça "Os fuzís da Senhora Cará", de Brecht, dirigida por Álvaro Guimarães.

No ano de 1963, escreveu e estreou a peça "Bumba-meu-boi", musicada por Tom Zé.

Em 1964 formou-se Artes Cênicas e Direito. Com o golpe militar, foi forçado a deixar Salvador, transferindo-se para São Paulo, indo trabalhar como redator publicitário na agência Alcântara Machado. Por essa época, conheceu Geraldo Vandré (que fazia jingles para a agência), além de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal (do Teatro de Arena) que o levaram para o meio musical de São Paulo. Logo depois foi apresentado a Edu Lobo.

Participou ativamente dos movimentos culturais da década de 1960: Centro Popular de Cultura (CPC), Feira da Música (Teatro Jovem, ao lado de Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Torquato Neto e Gilberto Gil) e Tropicalismo, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Nara Leão, Torquato Neto, Rogério Duarte, Rogério Duprat e Gal Costa.

Em 1965, foi co-autor, com Caetano Veloso e Torquato Neto, da peça "Pois É", interpretada por Gilberto Gil, Maria Bethânia e Vinicius de Moraes, no teatro Opinião, no Rio de Janeiro. Compôs com Caetano Veloso a trilha sonora do filme "Viramundo", de Geraldo Sarno, que contou também com a música-título "Viramundo", esta, composta em parceria com Gilberto Gil.

No ano de 1966, publicou o livro de poemas "Inquisitorial". Em seguida, voltou a Salvador, onde cursou Medicina, profissão que chegou a exercer por algum tempo.

Em 1967, com Torquato Neto, escreveu o programa de televisão "Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo", interpretado por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.

Na década de 1970, foi co-editor ao lado de Abel Silva da "Revista Anima".

Em 1973, dirigiu e produziu o show de Gal Costa e Jards Macalé, no teatro Oficina, em São Paulo, e o espetáculo "Luiz Gonzaga, o Rei do Baião", no teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro.

Em 1976, publicou poemas na antologia "26 poetas hoje", organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. No ano seguinte, lançou pela editora Macunaíma "Ciclo de navegação Bahia e gente".

Em 1982 formou-se em Medicina, pela UFBA. Dois anos depois, estruturou a TV Educativa da Bahia, criando diversos programas para seu lançamento e em 1985 atuou como diretor da emissora.

Em 1986 foi nomeado Secretário Municipal da Cultura, de Camaçari (BA), passando a integrar o Conselho Nacional de Direito Autoral, do Ministério da Cultura (MinC), participando também de comissões de Divulgação Autoral

De 1987 a 1989, atuou como Secretário da Cultura do Estado da Bahia, e como presidente dos Fóruns Nacional de Secretários da Cultura e Estadual de Cultura. Neste mesmo ano editou três livros: "Inquisitorial" (reedição, o original é de 1967) e "Confissões de Narciso", pela editora Civilização Brasileira, além de "Balança Mas Hai Kai", pela editora BDA.

Em 1990, fez o show "Poeta, mostra a tua cara", tendo como convidados especiais Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Geraldo Azevedo, no Jazz Club, no Rio de Janeiro.

No ano de 1995, relançou do pela Editora Civilização Brasileira, "Inquisitorial", seu livro de poemas, contou com ensaio crítico de José Guilherme Merquior, escrito em 1968 e publicado no livro "A astúcia da mímese" em 1969. No ano seguinte, em 1996, publicou "Uma canção de amor às árvores desesperadas", livro de poemas. Neste mesmo ano apresentou-se no projeto "Fala, poeta", acompanhado pelo grupo Confraria da Bazófia, em Salvador, Bahia.

Publicou também "Signo de Navegação Bahia e Gente" e "Estrela do Norte, Adeus".

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Capinan (por Gilberto Gil)

Conheci Capinan estre 1962 e 1963 quando, estudantes em Salvador, todos em diferentes níveis e graus, ele, eu, Caetano, Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, Duda Machado, Álvaro Guimarães, Rogério Duarte, Fernando Batinga e tantos outros vivíamos o dia-a-dia da iniciação nas lides culturais, na política estudantil, nas experiências do sexo, do amor, da aventura de conduzir-nos, num incessante entra-em-beco-sai-de-beco corpoalma a dentro de uma cidade mítica, bela e sensual, de mil histórias antes por outras gentes e poetas vividas e mais outras tantas mil histórias então por outras tantas gentes e poetas por viver.

Éramos todos, ali, um uníssono unissonho de sermos — nos tornarmos gente e poetas a um só tempo. Gente no sentido de indivíduos/átomos do coletivo povo com sua massa material em labuta e luta. (...) Poetas no sentido religioso de mensageiros de Deus, no sentido psicoanalítico de intérpretes dos sonhos, alma psicossocial, qualidade da comida, musculatura distendida após o orgasmo, palco, beijo, idéia-flor, pensamento-ungüento, carnaval, celebração piedosa, a vida no seu vale-quanto-reza, fundamentalismo espiritual.

(...) Capinan, como todos nós outros, vivia aquela aventura com a sofreguidão das almas jovens. Vindo de um interior ainda mais agreste, ainda mais nordeste do que o de onde vínhamos eu e Caetano — porque ainda mais longe do mar de águas e de luzes da baía —, Capinan era portador e manifestante de uma alma ainda mais severina, no sentido joãocabralino da palavra. Mais caprino, mais cismado mais dependurado nas argolas das interrogações, como se elas fossem aquelas gangorras toscas pendendo dos galhos das mangueiras dos quintais das casas no seu sertão. De pensamento arisco, arredio, mais litera(l)riamente desconfiado do que os outros, Capinan viria depositar a palavra nas mãos do seu coração semiárido. A sua poesia estava, então, naquela região do sertão, naquele coração semiúmido e de lá ela se faria escrever e falar.

Aqui e ali essa poesia viria a ser, mais tarde, um pouco mais entumescida pelo mar da viagem ao desconhecido ou pelo orvalho das últimas madrugadas neoromânticas, quando dos estertores da revolução política e cultural dos sessenta e dos setenta e logo dos oitenta e tantos quantos foram os anos-luzes do seu percurso por sampas e riodejaneiros. Mas, no fundo, eu quase arriscaria afirmar que a poesia de Capinan repousa, ainda e eternamente, no caroço de umbu da sua caatinga. Umbu cuja carne é assim meio fibra, meio nervo e um tanto pouca, que ao morder se dá mais parca que farta, com seu doce ancorado em seu azedo, cujo gosto é bom mas exigente e dificultoso, e cujo caroço é duro e traiçoeiro para os dentes. Creio que assim será sempre a poesia de Capinan, embora seu verso tenha uma vez ameaçado que “já não somos como na chegada”.

Sabemos que em todos nós há sempre um que vai e um que fica, um que muda e um que permanece, e que há um outro que atento os observa a ambos, quase sempre a um deles distinguindo como se com um amor de pai.

(...) A poesia de Capinan distingue, elege e prestigia aquilo/aquele que nele permanece. Aquilo que não se perde nas névoas do delírio. Como a um fio de Ariadne atado. Aquilo que, como no sonho acordado do menino, leva-o à exploração das grutas obscuras da fantasia mas o traz sempre de volta ao ser do presente, ao claro recinto do seu quarto — ainda que sob tênue luz de lamparina iluminado. Quatro paredes, o teto, seu ambiente. Sempre de volta à obstinada recusa da solidão. De volta a algum/alguém sempre ao seu lado. Ele mesmo, o seu amigo ambíguo, um tanto quanto deslocado, quase que num quarto ao lado, contíguo a si mesmo, mas ainda no âmbito da sua con(si)guidade.

Convidado oficial da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, participa da antologia POEMÁRIO da I BIP.

Fontes:
- CAPINAN, José Carlos. Confissões de Narciso, Civilização Brasileira, 1995.
- http://www.dicionariompb.com.br/

Dalila Teles Veras (A Cidade do meu Desejo)

Desenho de Thomas Larson (Thomate)
A cidade do meu desejo será aquela onde se tenha direito ao trabalho e seja possível realizar o encontro e caminhar por calçadas amplas, mãos dadas com o companheiro(a), sem tropeçar em obstáculos e sem medo de assalto.

Na cidade do meu desejo, não haverá aberrações de arquitetura antimendigo e antiladrão, abomináveis invenções a substituir a invenção maior que é a de melhorar o homem e, quando necessário, aplicar-lhe penas que o possa recuperar e devolvê-lo mais humano ao seio da comunidade.

Na cidade do meu desejo, haverá transporte coletivo abundante para todos e o automóvel será um objeto quase obsoleto, não terá prioridades, obedecerá rigorosamente aos códigos estabelecidos e não será usado como arma nem símbolo de poder.

Na cidade do meu desejo, não haverá confinamento e os logradouros públicos serão realmente públicos, sem grades nem cancelas, os parques serão parques e não prisões com vigias eletrônicos ou iluminação feérica - simulacro de centros de compras.

Na cidade do meu desejo, os cidadãos não precisarão cumprir os seus deveres apenas quando se souberem vigiados, mas saberão cumpri-los porque os mesmos já estarão incorporados aos seus hábitos éticos e culturais.

A cidade de meu desejo será aquela onde todos possam facilmente (re)conhecer os marcos de sua história, contados e recontados através de seus poetas e artistas.

Na cidade do meu desejo, haverá placas indicativas nas casas onde nasceram ou residiram pessoas que melhor contribuíram para a sua melhoria, forma de recordá-las como marcos culturais do lugar.

A cidade de meu desejo deverá estabelecer políticas públicas que propiciem o envolvimento dos cidadãos, criando pontos de contato entre suas culturas distintas, celebração de tolerâncias e diferenças.

A cidade de meu desejo deverá eleger homens probos para administrá-la e legislá-la, que saibam distinguir a diferença entre ser eleito para um cargo público e apoderar-se dele como dono, valendo-se disso para benefício próprio e de apadrinhados.

A cidade só será construída quando os seus habitantes estiverem conscientes de que uma cidade é feita de cidadãos e não apenas de governantes, cabendo a cada um fazer a sua parte na coletividade. O futuro, é preciso lembrar, é hoje e precisa começar a ser construído.

Fontes:
http://www.dalila.telesveras.nom.br/crônicasdalilatelesveras2.htm

Folclore do Piauí (Barba Ruiva, o duende filho de Iara)



"As fábulas e as lendas, são estórias que devem ser contadas e recontadas, para que não se percam as vigas mestras da formação de um povo"
Rosane Volpatto

Um mundo de mistérios nos envolve. Por detrás das lendas há um novo mundo que nos aguarda. Um mundo que vive dentro de nós e que aspira reflexões, mas raramente damos ouvidos a esta "voz interior", que nada mais é do que a nossa consciência-intuição que busca apresentar soluções para os nossos problemas, dos mais insignificantes aos mais importantes. Somente o diário exercício da compreensão e da paciência nos abrirão as portas para este mundo silencioso e tão íntimo.

Para mantermos nosso equilíbrio, precisamos manter unidos o interior e o exterior, o visível e o invisível, o conhecido e o desconhecido, o temporal e o eterno, o antigo e o novo. E...nenhuma outra pessoa pode empreender esta tarefa por nós!

A Lenda do Barba Ruiva nos fala de como uma "voz" pode ficar aprisionada e sofrer com a indiferença daqueles que não querem ouvir.

A LENDA...

Esta é uma lenda popular sobre a Lagoa de Paranaguá no Piauí, que por volta de 1830, já era conhecida. Conta-se que de tão pequena (a lagoa), era quase uma fonte e que cresceu por encanto. Tal magia aconteceu mais ou menos assim:

Na Salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva muito pobre com três filhas. Certo dia, a sua filha mais nova adoeceu sem que ninguém conseguisse o fato que produzira tal moléstia. Permaneceu triste e pensativa até que descobriu que esperava um menino de seu namorado que morrera, sem ter tido a oportunidade de levá-la ao altar.

Chegando ao tempo de dar à luz ao bebê, a moça embrenhou-se nos matos, porém, arrependida, resolveu abandonar a criança. Deitou o filhinho em um tacho de cobre e colocou-o dentro da lagoa. O tacho afundou, mas foi trazido à tona pela Iara, que tremia de raiva e amaldiçoou a moça que chorava à beira da lagoa.

Enraivecida, a Iara provocou o crescimento das águas, que em uma enchente sem fim, alagavam, encharcavam e aumentavam sem cessar. "Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua", nos conta Câmara Cascudo. Desde então, a lagoa tornou-se um lugar mágico, onde se ouvem estranhas vozes e observam-se luzes de origem desconhecida.

Todos os que já se atreveram a morar às margens da lagoa, tiveram que fugir assustados, pois durante à noite, ouviam o choro de um bebê, procedente do fundo das águas, como que solicitando o peito da mãe para alimentar-se. Mas, com o passar dos anos, o choro cessou.

Conta ainda a lenda, que às vezes surge das águas um ser humano que pela manhã é um menino, ao meio-dia um rapaz de barbas ruivas e, pela noite, um velho de barbas brancas. Muito tímido, foge dos homens quando é visto, porém aproxima-se das moças bonitas para observá-las e depois foge. Este é um dos motivos pelas quais as mulheres evitam de lavar roupas sozinhas.

O Barba Ruiva, como ficou conhecido, é tido como filho de Iara, a Sereia. Pacífico, a entidade não fere e não maltrata ninguém e é tido como um duende bom. A sina à qual está preso, só terminará quando uma mulher atirar sobre sua cabeça algumas gotas de água benta e algumas contas de um rosário, para convertê-lo então, ao cristianismo.

Bibliografia
O Folklore Piauiense - Leônidas e Sá (Litericultura, II, 125-128 e 363-370)
Folklore no Brasil - Basílio de Magalhães
Lendas Brasileiras - Câmara Cascudo

Fontes:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendabarbaruiva.htm
Imagem = http://indiosdobrasilsomostodosirmaos.blogspot.com

Guy de Maupassant (A Morta)


Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.

Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.

E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.

Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"

Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me falou dela.

Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!

Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.

Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.

E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."

Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror! Eu soluçava, a fronte no chão.

Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!

Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.

Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.

E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago aos destroços.

Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.

Vaguei durante muito, muito tempo. Não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que procura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!

Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!

Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.

E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."

O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras luminosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."

Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.

Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.

Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.

E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:

"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:

"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”.

Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.
(31 de maio de 1887)

Fontes:
MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos. (Trad. José Thomas Brum). Porto Alegre: L&PM, 1997. Coleção L&PM Pocket, vol. 24.
Imagem = http://camaradostormentos.blogspot.com/

Guy de Maupassant (1850 – 1893)



“O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?”

Henry René Albert Guy de Maupassant (5 de Agosto de 1850, Fécamp - 6 de Julho de 1893, Paris) foi escritor, poeta e um dos maiores contistas de todos os tempos. Sua obra é conhecida por retratar situações psicológicas e fazer crítica social com técnica naturalista.

Maupassant teve uma infância e uma juventude aparentemente felizes no campo, em companhia da mãe, uma mulher culta e depressiva, que foi abandonada pelo marido.

Na década de 1870, ele se dirigiu a Paris, onde se firmou como contista e teve contato com os grandes escritores realistas e naturalistas da época: Zola, Flaubert e o russo Turguêniev.

Entre 1875 e 1885, produziu a maior parte de seus romances e contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, muitas das quais algumas se tornaram mundialmente conhecidas, como Bola de Sebo, O Colar, Uma Aventura Parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss Harriett e O Horla.

Maupassant talvez tenha sido, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo.

Rico e famoso, ele teve muitos casos amorosos, mas a sífilis o atormentou por mais de uma década, ocasionando-lhe pesadelos, angústia e de alucinações.

A riqueza e a fama bateram à sua porta, e ele teve uma profusão de casos amorosos. No entanto, a partir de 1884 a sífilis manifestou-se em seu organismo, ocasionando-lhe uma doença nervosa feita de angústias inexplicáveis, de estremecimentos e de alucinações. Algumas dessas sensações estranhas e opressivas foram registradas em contos tão célebres quanto assustadores, como O Horla e É ele. Em 1882, após terríveis sofrimentos, tentou o suicídio. Hospitalizado, veio a morrer no ano seguinte, em estado de semidemência, com apenas 43 anos de idade. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse, em Paris.
–––––––––-
A Obra de Maupassant

O primeiro aspecto que chama atenção na obra de Maupassant é a sua variedade temática. Poucos escritores conseguem dar esta impressão de registro de totalidade da existência, de criação de um universo fecundo, múltiplo e quase inesgotável. Escreve sobre Paris, então capital do Ocidente, enfocando várias classes: burgueses, operários, prostitutas, boêmios, intelectuais, funcionários. Escreve também sobre a vida rural, fixando a avareza, a selvageria e a capacidade de resistência dos camponeses. Algumas de suas obras-primas referem-se à Guerra Franco-Prussiana, de 1870. No fim da vida, atormentado por pesadelos, cria histórias cheias de personagens paranóicas.

Há contos para todos os gostos: dos cômicos aos dramáticos, dos pitorescos aos trágicos. Alguns mostram a dor da passagem do tempo; outros, a alegria do presente. Há os que celebram o amor ideal e há os que cantam a brevidade do amor erótico. Muitos registram o cotidiano, alguns enveredam pelo caminho da assombração. Como um pintor impressionista, Maupassant pinta as luzes de Paris: as que reverberam no Sena, as que cintilam nos parques e as que brilham à noite nos boulevards. Luzes que envolvem as personagens nos dramas essenciais da condição humana: a paixão, o prazer, a solidão, o tédio, a morte. É o cronista da vida européia do fim dos Oitocentos, mas também um escritor de dimensão universal.

Quanto à estrutura do gênero, Maupassant fundamenta e dá prestígio a um tipo de narrativa breve, hoje chamada de conto tradicional ou conto anedótico. Caracteriza-se por uma reviravolta surpreendente, quase sempre no desfecho da história. Ou seja, o final do relato deve apresentar algo de inesperado e de impactante ao leitor. Para que esse efeito de surpresa se realize, o contista francês confere a seus textos um teor objetivo mediante a máxima economia de detalhes, da linguagem seca e direta e do diálogo coloquial. Além disso, entre suas virtudes principais situa-se a capacidade de, em poucos traços, definir caracteres e revelar a classe social dos protagonistas.

Há quem julgue Maupassant um artista de superfície, por tentar reproduzir apenas a realidade exterior, sem maior aprofundamento psicológico. Alguns de seus contos, de fato, são crônicas de época; outros, meras anedotas. Contudo, como observou um crítico, “o escritor é profundo na aparente superficialidade porque reconhece o vazio da vida de suas personagens, que buscam o prazer, mas que encontram apenas a destruição fatal”.

05/08/ 1850, Tourville-sur-Arques, França
06/07/1893, Paris, França

Fontes:
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u759.jhtm
http://educaterra.terra.com.br/literatura/temadomes/2003/10/07/004.htm
http://www.pensador.info/p/obras_guy_de_maupassant/1/

A A de Assis (Concurso é Concurso)



Sempre é válido insistir: quem participa de concursos precisa estar preparado para o que der e vier. O resultado é imprevisível e há necessidade de muito espírito esportivo. Você faz a trova com máximo carinho, toma todos os cuidados para evitar cochilos, e só envia quando acredita haver boas chances de ser premiado. O problema é que os demais concorrentes fazem a mesma coisa... e eles são tão bons quanto você.

A grande aventura começa no momento em que o envelope é colocado no correio. Chegará ou não ao seu destino? Como a norma é o remetente usar o mesmo endereço do destinatário, nunca se está seguro do que acontecerá no percurso.

Dando tudo certinho, a trova entrará na “briga”. Três, cinco, dez julgadores, todos dignos da maior confiança e geralmente mestres no ofício. Mas, claro, cada qual com seu jeito de gostar e sua maneira de avaliar.

E aí é que entra aquela velha história de que em um concurso você joga com 70 por cento de competência e 30 por cento de sorte. A sorte vai por conta de sua trova cair ou não no gosto da maioria dos julgadores. Há trovas que recebem nota 10 de um julgador e nota 01 de outro, ou às vezes nem isso. Há também o risco de um belo achado passar despercebido, como há o risco de um grave defeito não ser notado, etc. Quer dizer: a intenção dos julgadores é sempre a melhor possível, porém ninguém é perfeito.

Cabe então a cada concorrente entender que concurso é assim mesmo... e o jeito é bater palmas para os irmãos premiados e esperar pela próxima oportunidade. Mesmo porque, na grande maioria dos casos, se a trova da gente não ganha é porque outras havia realmente melhores...

Fonte:
Editorial Trovia Junho / 2003

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Reforma Ortográfica 4

Fonte:
Imagem = Quar4o Mundo: coletivo de quadrinistas independentes

Kavera (O Amigo Esquisito)



Detestava conversa. Foi sozinho, como sempre ia, a um bar alemão onde havia o péssimo costume de se dividir a mesa com estranhos, caso estivesse lotado.

Foi logo se estressando...

— Pô, não está vendo que a mesa tá ocupada?

— Estou, mas, e daí?

— Como, e daí?

— Mas essa cadeira está vazia!

— Mas a mesa não!

— Mas eu não me sentarei na mesa e, sim, na cadeira.

— Mas essa cadeira está na minha mesa, não tá vendo?

— A cadeira ou a mesa?

— Vem cá, você é louco, é?

— Bem, se eu for, a minha resposta não terá nenhum valor técnico, apenas nominal.

— Ah, confirma?

— Essa sua pergunta descende de uma indagação minha, estando, portanto, atrelada a ela.

— Como assim? Que papo é esse?

— Bem, se você estiver correto e eu for louco, as minhas respostas serão meros devaneios. Logo, se estamos conversando, o nosso diálogo é insano.

— Insano é você, louco! Sai fora!

— Não posso. Estamos conversando.

— Eu não! Não tô conversando nada com você, ô maluco! Doido!

— Claro que está! Acabou de dizer “doido” pra mim. Não vê? Estamos dialogando.

— Que droga, meu Deus! O cara é doido de tudo! Que azar!

— Não acho! Acho até sorte sua!

— Sorte? Chama isso de sorte? Tô numa conversa franca aqui com o meu amigo, você chega e me interrompe assim? Isso é sorte, é?

— Você não iria aguentar muito tempo com esse seu amigo esquisito aí! Os algoritmos dele estão ó...!

— Algoritmos? Esquisito? Por acaso está chamando o meu amigo aqui de esquisito?

— Sim, estou. Mal consigo vê-lo! Tampouco ouvi-lo!

— Ele é discreto. Bem diferente de você, né?

— De fato, eu sou visível e falo, portanto somos significativamente diferentes.

— Hum...

— Mas podemos ter algo em comum.

— Ah é? O quê, por exemplo?

— Você! Você seria a nossa interface.

— Interface? Que papo doido é esse?

— A nossa ponte, o nosso elo. Você nos conecta um ao outro. Quando ele falar alguma coisa, você traduz para mim. Simples, não? Porque, olha, sinceramente, não consigo entender absolutamente nada desse seu amigo aí.

— É, pra entender tem que ter inteligência, sabia? Não é pra qualquer um não.

— O meu cérebro é bastante limitado, tenho que admitir. O meu sistema ocular insiste em não vê-lo.

— Ver quem?

— Ora, o seu amigo aí.

— O meu amigo? Escuta aqui ó, vou sair fora, tá legal? Você é piradão mesmo! Fique aí com ele, já que devem ter muito em comum. Tchau pra vocês dois.

— Tchau. E obrigado, hein? Estava mesmo procurando uma mesa só pra mim.

Fonte:
- Kavera. Bazófias peristálticas: cronicas de botequim. SP: Marco Zero, 2005.
- Imagem = http://www.flickr.com

José Valdir Pereira (Lançamento do Livro "Semeador de Emoções")



C O N V I T E

29 de agosto, sábado, às 17h, no Teatro Cacilda Becker, em Cacoal

O escritor e poeta José Valdir Pereira, a Academia de Letras de Rondônia, a Academia de Letras de Cacoal e a Fundação Cultural de Cacoal convidam para o lançamento do livro

"Semeador de Emoções",
de José Valdir Pereira,
dia 29 de agosto, sábado, às 17h,
no Teatro Cacilda Becker,
no município de Cacoal, Rodnônia.

Ficha técnica:

Gênero: Poesia
Autor: José Valdir Pereira
Editora: Scortecci
Capa e ilustrações: Viriato Moura
Ano: 2009

Sinopse:
"Semeador de Emoções" traz lições das quais emanam advertências, sugestões e exemplos de dignidade humana, convincentes e oportunas que encerram e nos transmitem verdadeiras lições de sabedoria e proficiência de vida.

Informações:

(69) 3441 1192 (Cacoal)
(69) 8451 3424 (Porto Velho)
E-mail acler@acler.org

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Pedro Albino de Aguiar (Acadêmicos da Academia de Letras de Rondônia em Trovas)



A vida dos Acadêmicos
Eu vou contar em trovinhas,
Se alguém de mim discorda,
Pode me dar uns “tapinhas”.

Capitão Esron Menezes,
“Retalhos da Nossa História”,
Só falta ser Marechal,
Pra ser maior a vitória.

A Yêdda Borzacov,
Historiadora da boa,
Não guarda papas na língua,
Mas nunca falou à toa.

Tem a Eunice Bueno,
Poetisa requintada,
Já morou até na índia;
Precisa dizer mais nada.

Tem o Viriato Moura,
É médico tão renomado,
Que eternizou Porto Velho,
Bastou mandar um recado.

Temos o Matias Mendes,
Escritor de Guajará
E também do Guaporé;
Vive pra lá e pra cá.

Tem o confrade Jakobi,
Telemedicina, meu!
Daí eu tenho certeza,
Entende mais do que eu.

E tem o Átila Ibañez,
Que mora ali em Vilhena,
É o portão de entrada
Desta terra brazileña.

Conheço o Joaquim Cercino,
Do tempo da fundação,
Pelo que tenho lembrança,
Entramos pelo portão.

Antônio Cândido da Silva,
“Enganos da Nossa História”,
Por causa desses enganos,
Merece uma palmatória.

O Bolívar Marcelino,
Sonetista de primeira,
Escreve tudo certinho,
Só na língua brasileira.

Já o Gesson Magalhães,
Que também é sonetista,
Escreve que nem Camões,
Parece ser mais letrista.

Zelite Andrade Carneiro,
Nossa Desembargadora,
Além de ser poetisa,
É uma ótima escritora.

Tem o Édson Jorge Badra,
Que nasceu em Guajará,
Ele é crítico literário;
Escritor melhor não há.

Temos o Abnael,
Exemplo de educação,
Que além de Historiador,
É nosso fiel irmão.

Temos o Cláudio Feitosa,
O Diretor Financeiro,
Que além de Historiador,
Cuida do nosso dinheiro.

O Aparício Carvalho,
Que é autor de “Candelária”,
Além de Ex-Presidente,
Vem curando até malária.

Temos o Hélio Fonseca,
Nosso membro fundador,
O primeiro Presidente;
Ele é ótimo escritor.

Dimas Ribeiro Fonseca,
Outro Desembargador,
Além de escrever bem,
É um ótimo Orador.

Emmanuel Pontes Pinto,
Ele é um dos pioneiros;
Fundador da Academia,
Junto a outros companheiros.

Também temos o Raymundo,
Que é Nonato de Castro,
Pois, além de fundador,
Sempre deixou o seu rastro.

E temos o João Teixeira,
Para engrossar a lista,
Escreve diariamente,
É um ótimo Jornalista.

Temos o Dante Fonseca,
Marco Domingues Teixeira;
Escrevem juntos a História
Desta terra alvissareira.

Temos os que já se foram:
O Dr. Ary Pinheiro,
O Paulo Nunes Leal,
Outro fiel companheiro.

Tivemos Paulo Saldanha,
Vitor Hugo, Amizael,
Irmão Calixto Medeiros,
Cada qual o mais fiel.

E tem o Valdir Pereira,
josevaldir.com,
Que além de Presidente,
Tem um Site muito bom!

O último é Pedro Albino,
Que além de Trovador,
Escreveu Sessenta e Nove
Poemas com muito humor,
E ainda tem no prelo
Novos Poemas de Amor.
---

Pedro Albino de Aguiar (1944)



Nasceu em 03-03-1944, no antigo distrito de Ibicuitinga, hoje município, onde fez o Primário. Registrou-se em Morada Nova – Ce, para onde se mudou em 1964 para continuar os estudos. Filho de Raimundo Castelo de Aguiar e Maria Francisca de Jesus. Sempre contando com a ajuda dos pais, transferiu-se para Fortaleza - Ce em 1967, objetivando trabalhar para poder continuar estudando.

Em Fortaleza concluiu o 2º Grau no Colégio Estadual Liceu do Ceará e o curso superior de Administração de Empresas, na Escola de Administração da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Juntamente com outros intelectuais cearenses, entre eles Carneiro Portela, Antônio Girão Barroso, Jader de Carvalho, Rembrandt de Matos Esmeraldo e outros, fundou o Clube dos Poetas Cearenses – CLUPCE, onde se reuniam semanalmente na Casa de Juvenal Galeno, objetivando discutir e expandir a poesia e a cultura regional.

Através do CLUPCE participou da I e III Antologia “Os Novos Poetas do Ceará’, Editora Henriqueta Galeno, 1971/73. Escreveu vários artigos no jornal Tribuna do Ceará, como correspondente do interior. Trabalhou de 1968 a 1977 na Cia. de Eletricidade do Ceará – COELCE (antiga CONEFOR)

Quando concluiu o curso superior, em dezembro de 1977, foi selecionado para trabalhar no Governo do Ex-Território Federal de Rondônia, onde prestou serviços como Administrador e exerceu várias funções públicas no período de 17-02-1978 a 19-08-2002, quando se aposentou.

Mestre em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Professor da UNIR, da UNIRON e da FATEC.

Publicou os seguintes livros:
Poemas, Sonetos & Trovas, 1989;
Versos Soltos X Rimados & Pensamentos, 1992;
69 Poemas de Amor, 1995,

Participou de várias antologias editadas pela Secretaria de Cultura do Estado de Rondônia.

Cadeira numero 18 da Academia de Letras de Rondônia, tendo por patrono Humberto de Campos.

Secretário Geral da Academia de Letras de Rondônia – ACLER, eleito no dia 04 de janeiro de 2008, para um mandato de dois anos - 2008/2009.

Fonte:

Artur de Azevedo (A Filosofia do Mendes)



Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara - ela chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela, e não teve forças para fugir-lhe.

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta.

Essa imprudência teve mau resultado: um dia Bárbara Mendes entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

- Que é isto?

- Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.

- Hein?

- Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a vida!... Não estás contente?

- Muito...

- Estou te achando assim a modo que...

- É a surpresa... a comoção... a alegria...

- Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes é ciumento e brutal e, mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos possível, e nas ruas só andava de tilburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.

Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

- Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para o seu bem...

O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se péla: receia que eu o mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo contrário!

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.

As maxilas batiam uma na outra.

- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade desses obséquios...

O Fulgêncio continuava a tremer.

- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo me sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar - não há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.

Fonte:
- Domínio Público
- Imagem = http://wellcorp.blogspot.com

Antonio Hohlfeldt (O Conto de Atmosfera)



(...) Em Autran Dourado (...) o escritor está sempre a reescrever seus textos, e mais do que isso, a combiná-los em conjuntos diversos. Isso ocorreu tanto em relação às obras de estréia quanto a outras que se seguiram, na aparente busca de uma obra ampla e contínua, que permita ao leitor grandes relações ou que, ao contrário, as esconda. Estreando em 1947, com uma novela, Teia, a que se seguiria outra, "Sombra e Exílio" (1950), narrativas de dimensões médias que bem poderiam caber na classificação com que se preocupa este volume, Autran Dourado viria porém a preocupar-se com a questão dos "gêneros ao longo do tempo. criando em outro momento obra congênere, sobre a qual os críticos discutiram, e discutiram, sem que se chegasse a qualquer conclusão. Refiro-me a O Risco do Bordado — (1970), para uns, romance, como no caso do critico Hélio Pólvora, para outros, contos, talvez enquadrados na melhor tradição clássica, como parece decidir Temístocles Linhares, que termina por considerá-las representantes de qualquer gênero; uma vez que "todas as suas estórias autônomas. Podem ser lidas cada uma de per si, sem necessidade de imbricá-las uma na outra. Depois, cada uma delas conserva o seu tom peculiar".

O que importa, porém, neste caso, é que, como anotava Hélio Pólvora, a obra de Autran Dourado "é uma das mais felizes combinações, em nossa prosa, de regionalismo e psicologismo", com o que viria a concordar depois o crítico norte-americano Malcolm Silverman, ao falar de uma "introspecção regionalista, mostrando que” através de uma cuidadosa e calculada manipulação desse influxo regionalista ou ambiental (isto é, o material), Dourado canaliza e desdobra a psique de suas criaturas (isto é, o espiritual) para levá-las a revelar-se num crescendo geralmente orientado para um “clímax”.

É o mesmo crítico quem, citando ao romancista, lembra não se ter nem ele mesmo decidido a respeito do gênero desta obra, embora tenha-se preocupado com outras questões que envolvam seu trabalho. Em depoimento a Edla van Steen, por exemplo, Dourado afirma: "eu fui um dos primeiros a usar a técnica do fluxo de consciência, o que espantou, escandalizou um pouco. O diálogo incluso, o diálogo dentro da própria narrativa, o sujeito vendo, falando e pensando ao mesmo tempo, criou alguma dificuldade de leitura."

A troca de pessoas durante a narrativa, apontada em relação a Clarice Lispector, também é prática comum em Autran Dourado, que sobre isso assim se refere: “venho usando desses recursos conscientemente. Em certos casos (. .. ) passo uma história escrita originalmente na terceira pessoa para a primeira, e o efeito é sempre surpreendente, quando não desconcertante, mesmo para mim ( ... ). Na mudança da pessoa ou do tempo do verbo, é espantoso como somos obrigados a ser bons artesãos; senão nos perdemos, e o recurso não funciona". Também à semelhança de outro mineiro, Guimarães Rosa, enfocado neste volume no capítulo dedicado ao conto rural, Autran Dourado preocupa-se com a etimologia dos nomes de suas personagens, criando-as e estudando-as cuidadosamente.

Nem sempre, porém, houve esta consciência tão forte no escritor, o que leva Silverman a dizer que a primeira grande modificação em direção ao que depois se tornaria o Autran Dourado que todos admiramos, dar-se-ia com Tempo de Amor, em que "um personagem-tipo persistentemente perseguido pelo autor torna-se de repente tridimensional e refinado. Não é mais mostrado: ele próprio mostra o que é, passando de títere atormentado a atormentado ator". O próprio escritor, aliás, concorda que todo seu aprendizado se deu justamente a partir deste livro, que ante as dificuldades de editoração, ele reescreveu diversas vezes. Dai nasceria a experiência dos blocos narrativos entremeados que reutilizaria em O Risco do Bordado, principalmente, tornando-o uma espécie de "esfinge" enigmática, pronta a devorar todo e qualquer leitor — inclusive o crítico — que dela se aproxime.
Graças a todo o seu artesanato, cuidadosamente elaborado e exercitado (todo o livro de Autran Dourado leva alguns anos para construir-se, seja um romance ou uma coletânea de narrativas curtas), chegou ele a um "sistema expressivo altamente eficaz. Autran Dourado, aperfeiçoando cada vez mais a sua linguagem narrativa, pousa entre o realismo e o simbolismo, interpondo uma cortina de valores poéticos entre o leitor e a descrição dos cenários, dos caracteres e dos vertiginosos acontecimentos", no dizer de Fábio Lucas.

Tematicamente, poder-se-ia referir à obra de Autran Dourado na base da síntese que Hélio Pólvora dela realizou: "a decadência senhorial, o desajuste entre o tempo histórico e o tempo social", mas isso não basta. Silverman observou, corretamente, haver "similaridades" que entrelaçam todas as obras, como um continuum — "uma por vezes densa 'cor local' em ,que ou frente à qual as personagens de ordinário atormentadas de Dourado lutam consigo (e em si) mesmas, ora com sucesso, o mais das vezes não, para tornar as suas vidas suportáveis".

O tom da maioria destas narrativas, segundo ainda o mesmo crítico, "tende a ser de modo geral soturno, em harmonia com o arquétipo sistematicamente conturbado do escritor; os finais quase sempre acomodam-se ao caráter predominante; e o estilo mostra-se tão agudamente analítico quanto no caso das composições mais largas, em que pesem as limitações estruturais".

Quem melhor apreendeu, em sua globalidade, a obra de Autran Dourado, alcançando ver a totalidade dos imbricamentos que todos os elementos até aqui levantados pelos diversos críticos, realizam, foi Maria Lúcia Lepecki. Em obra fundamental para a compreensão do escritor, a crítica mostra que "todas as narrativas de Autran Dourado organizam-se em torno de um núcleo ideológico mínimo e totalizante como significação-significado: a morte. Problema fundamental com que se debatem, consciente ou inconscientemente, seus personagens, agentes da narrativa, amor te caracteriza-os e torna-se presença inarredável em nível de conflitos, de ambiente físico, de objetos, de animais e até de matéria". A morte confere sentido ao mundo e à própria vida, pois, como ela demonstra em seguida, "entendendo a morte como passagem, esta ficção no-la mostra qual prova (que até pode ser, mas nunca, apenas, provação) inevitável, cujo cumprimento integra o ciclo vital e não o interrompe. Os mortos de toda a obra de Autran Dourado ( ... ) continuam a viver, tornando-se até agentes provocadores de conflitos no protagonista e/ou outras personagens".

É sob esta perspectiva que surge a dimensão mítica da literatura de Autran Dourado, estruturada sobre a oposição entre espaços e, consequentemente, entre tempos" (. .. ) As oposições de tempos e espaços vinculam-se, por sua vez, à problemática da busca — integrante da vivência do homo religiosus, sempre e necessariamente à procura do absoluto, do transcendente ou do 'real' suscetível de conferir sentido ao 'mundo de baixo'. Através da correlação tempo-espaço-vida, chega-se à viagem como submotivo desta ficção" .

Maria Lúcia Lepecki mostra haver um tempo narrativo primordial, o imperfeito do indicativo, em todas as narrativas de Autran Dourado, o que a) veicula a persistência de valores arcaicos, dentro de um tempo histórico subtextual; e b) cria o conteúdo mítico (que não só existiu como ainda existe em processo de criação): o passado é a fonte de sabedoria, tanto mais valiosa e digna de crédito, quanto mais remotamente se localize em relação aos agentes. Mas também a imaginação cumpre importante papel, pois preenche as lacunas possíveis.

O próprio escritor concorda plenamente com a tese da crítica, ao afirmar que sempre utiliza "uma pessoa real filtrada pelas lentes da memória e da imaginação (a pessoa real pode morrer que continuará viva na memória do autor)", seja para inspirar-se, seja para conduzir sua narrativa .

Para Silverman, este tempo, "em si, é não mais que incidental na obra de Dourado, mais uma parte da mente deformada e deformante dos protagonistas que uma medida para a evolução da trama. A intemporalidade significa em si mesma universalidade, e é precisamente o talento de Autran Dourado em projetar padrões universais de comportamento humano ao focalizar introspecções individuais que fez dele um dos mais destacados ficcionistas brasileiros". AIiás, o aspecto acima citado é especialmente verificável nos recentes Novelário de Donga Novais e sobretudo no livro de contos As Imaginações Pecaminosas (1981), em que, a todo o momento, o narrador está a interrogar-se sobre se tal fato terá mesmo ocorrido ou terá sido mera imaginação sua e dos demais agentes que com ele repartem o conhecimento do(s) fato(s) pretenso(s).

Esta mesma ambigüidade, já anotada em Salim Miguel e essencial em Autran Dourado, ocorre também episodicamente nos contos do crítico literário e ficcionista baiano Hélio Pólvora. Estreando na ficção curta com Os Galos da Aurora (1958), a que se seguiria A Mulher na Janela (1961) — projetando-se aqui mais uma vez uma questão de gênero, pois o volume pretende mesclar crônicas e contos — sua obra viria a afirmar-se com Noites Vivas, (1972), que cheguei a aproximar das narrativas das mil e uma noites, em plena área mítica, através da introdução ambígua de um constante "talvez", onde a memória suportava a ponte de transição do universo rural para o urbano. Seguir-se-ia Estanhos e Assustados (1966), que Flávio Loureiro Chaves vincularia ao regionalismo, em aparência, para mostrar, ferem, que seu texto "esconde camadas mais profundas sob a superfície do cenário exótico e particularizado", embora ocorra neste livro, como no anterior e no que se seguiria, e que se constitui até o momento na obra mais recente do autor, Massacre no Km. 13 (1980), um condicionante da paisagem à existência das personagens, provavelmente devido às "raízes evidentemente naturalistas do escritor, traduzias, desde o primeiro conto, no telurismo, no animalismo que marca suas personagens, num quase fatalismo". A propósito deste último livro, numa observação extensiva a todos os seus demais trabalhos, Lygia Fagundes Telles afirma que "sua emoção é trabalhada por um estilo vigoroso, implacável, e é esse estilo que imprime às idéias uma força selvagem, um vigor original, impregnado às vezes de alto sopro lírico. Temos assim um texto raro, arrebatador, que nos comove e nos provoca a lúcida admiração que só as verdadeiras obras de arte conseguem nos provocar".
Na verdade, os enredos de Hélio Pólvora, como registrei justamente a respeito deste livro mais recente, são apenas razões aparentes para que ele possa ampliar o estudo dos climas que muito gosta de desenvolver: pairam sobre suas personagens e as narrativas que delas emanam ou sobre elas se constroem, uma tensão provocada pela indagação constante sobre o que irá lhes suceder. Mas o narrador, longe de cair na armadilha do simples conto de ação, dilata o enredo, suspende a trama, tece longos circunlóquios a respeito de uma série de outros elementos para, então, num repente, reunir a tudo num único parágrafo, geralmente curto, que não é aquele "clímax" do conto clássico de um Maupassant, porque na verdade não resolve nada, mas, ao contrário, apenas permite uma ampliação do que o narrador vinha realizando: é como se, dado o "motivo", o escritor dissesse ao leitor: suspendo aqui a narrativa. Complete-a você. O leitor, evidentemente, pensará em Machado de Assis. O que terá ocorrido exatamente com o filho de Capitu? E com o estudante do conto sempre citado, "Missa do Galo"? E o casal inspirador da tão ansiada canção? Pois o mesmo ocorre no caso de Hélio Pólvora: como irá o adolescente situar-se na cidade? O que esperar da mulher louca (será ela a débil mental ou realmente o marido e padastro, um perverso?), presa junto à casa? Escapará o assassino que usa a gilete contra indefesas donzelas? E assim por diante.

Eminentemente interrogativo é o texto do carioca mineiro Sérgio Sant'Anna. Com apenas dois livros de contos, O Sobrevivente (1969) com que estreava na literatura, e Notas sobre Manfredo Rangel, Repórter (1973). Sérgio goza de imenso renome, possuindo mais dois largos romances e tendo publicado recentemente duas narrativas de dimensões menores. No entanto, não há gênero fixo para o escritor, se bem que vários críticos, já à época de sua estréia, prognosticassem sua maior dedicação ao romance, a partir do conto, como ocorreu com Assis Brasil e Fausto Cunha . (Assis Brasil, em A nova literatura, já assinalava: "é outro escritor que tende também para o romance, daí a sua predileção por enredos" (op. cit., p. 136). enquanto Fausto Cunha escrevia. "Sérgio Sant'Anna incorpora ao seu conto - que em alguns casos já aspira a ser novela e dirige-se visivelmente para a marca do romance - alguns elementos do jornal, do cinema e da publicidade" A leitura aberta.)

Seja como for, todos os contos de Sérgio Sant' Anna, como aliás, seus romances, mantêm constantes, que, sinteticamente estudadas por Malcolm Silverman, mostram que, "salvo poucas exceções, Sérgio Sant' Anna baseia seus enredos ou no ramerrão da vida diária (urbana). ou, inversamente, em alguma forma de (romântico) escapismo" .

Para este crítico, há também unidade quanto às perspectivas espaciais, pois os locais, ou seja, o espaço, desempenham um papel capital na ficção de Sérgio Sant' Anna, suprindo, em conjunto com as atmosferas a eles inseparavelmente ligadas, a força externa que enseja o desenvolvimento interno das personagens. Esta atmosfera, em geral, "reduz-se a uma sensação única, dosada em termos ora físicos, ora psíquicos", em que a ironia e a semidemência, ou um estado de "infernização demoníaca" é a melhor imagem que as pode expressar, seja ao nível dos contos mais realistas em sua linguagem, como os encontramos em qualquer um dos dois volumes, seja mesmo em seus romances. Dir-se-ia que as personagens passam a ser possuídas ou manejadas por forças ou elementos externos que as comandam, quase como autômatos, até o final de suas reações possíveis.

O crítico Hélio Pólvora, quando da estréia de Sérgio Sant' Anna, tecia-lhe algumas restrições quanto à inconclusa dos climas que o escritor buscava criar, enquanto Assis Brasil acreditava haver boa situação dos flagrantes escolhidos pelo escritor. Seja como for, e a evolução da obra de Sérgio Santana bem o demonstrou, o escritor enveredou para' um caminho relativamente raro em nossa literatura, identificável a partir de O Alienista de Machado de Assis e que tem boa prática, hoje em dia, num escritor como Marcos Rey, que estudamos em outro capítulo deste volume, dedicado ao conto de costumes. Há qualquer coisa de "pícaro" nas personagens de Santana, até mesmo pela intensa mobilidade que — em especial nos romances — suas personagens experimentam, embora ao nível do enredo os espaços se fixem em diminutas porções, através de figuras arquetípicas, como observa Malcolm Silverman, para quem, ainda, "o autor mostra marcada preferência por uma linguagem espontânea, coloquial e fluente, que, em suas variações, é manejada de modo a refletir realisticamente as diversas índoles dos variados narradores-protagonistas".

Falecido recentemente, o caráter experimental da obra literária de Osman Lins coloca-o como figura excepcional em nossas letras. Ensaísta, dramaturgo, romancista, Osman Lins produziu apenas um livro de contos, com que estreava na literatura, Os Gestos (1957) e posteriormente Nove, Novena (1966), a que classificaria, generalizadamente, apenas como "narrativas".

Quando de sua estréia, Fausto Cunha queixava-se do excesso de "poeticidade" que seus contos apresentavam. Este aspecto seria mais tarde ampliado, o que levaria João Alexandre Barbosa a referir que Osman Lins "não conta: escreve. Mas, por este ato, cria um espaço em que se situa a fabulação. E faz surgir, então, a narrativa como se fora uma imposição inevitável decorrente do enlaçar-se e fundir-se das palavras, refundindo a indagações da sensibilidade ao encontro com a realidade. Daí, possivelmente, o caráter ornamenta da linguagem utilizada ( ... ) e que nos parece responder, por outro lado, a um princípio estrutural de extração de significados a partir da própria organização literária" .

"Um jogo refinado e um jogo em estado bruto a que se entrega o autor", ainda no dizer do mesmo crítico, nada se apresenta de maneira gratuita ou casual nesta literatura, até mesmo os títulos, como em Nove, Novena, em que se faz referência não apenas ao número de narrativas como ao elemento religioso — novena — que integra o ritual em seu contexto: "a todo o instante, Osman Lins procura buscar a gênese do homem, mobiliza as noções acerca da evolução da espécie, escora-se em explicações antropológicas para considerar a natureza mutável e transitiva do gênero humano", afirma Fábio Lucas em extenso estudo sobre o escritor. Para ele, "o autor cria e, ao mesmo tempo, se interroga acerca da linguagem, progride impulsionado por uma asa escondida — o talento, que, no caso, compete com o artesanato. A síntese, vai encontrá-la na velha arte egípcia, aquela de traços breves e dimensões monumentais", porque "enquanto cria tensões, alinha entre elas as indecisões do escritor, põe em questão a própria arte" .

Metatexto, neste sentido, seus contos "ambicionam apresentar um simultaneísmo de eventos, de diálogos, de cenários e de monólogos, tentando a instauração de tensões multipolarizadas. É a sua originalidade. A totalidade de cada conto é menos uma soma de diversos elementos vitais e técnicos do que a compactação de tudo em torno de conflitos que se repetem em níveis, contextos, instâncias e situações diferentes. Daí a multiplicação de recursos tipográficos para situar cada pólo em seu compartimento", ainda no dizer do mesmo crítico, que conclui: "A sucessão de monólogos indica apenas a mudança de ângulo visual pelo qual se filtra a relação humana nos seus diferentes índices de profundidade. ( ... ) Os diálogos perdem muito da função tradicional, pois são mais ilustrativos de situações, prolongamento de um conflito interior ( ... ); o jogo não é de palavras, mas crispação no plano da consciência, onde a linguagem procura inaugurar-se e compreender o destino do homem, investigar as origens humanas, a finalidade da existência".

Em depoimento realizado pouco antes de sua morte, indagado sobre o que entendia por "ficção", Osman Lins respondeu: "Acho ser a fixação, através da palavra escrita. e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal de mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que, no entanto. se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos".

Por isso mesmo, tem razão Wendel Santos ao dizer que "não é a estória que conta, mas a forma da estória. Não tendo mais uma forma fixa de começo, meio e fim, a narrativa não permite, em momento nenhum, o repouso da percepção: suspensa, ela precisa descobrir o melhor modo de ir até o mundo. Tudo isso divide a consciência leitora, que fica indecisa entre o histórico e o meta-histórico", o que determina o nível de exigência no texto de Osman Lins: o que a narrativa exige é a aprendizagem da leitura aberta; da leitura que não se pretende fechar, pois sabe que a única realidade que se fecha, na existência do homem, é a realidade da morte" , afirmativa contra a qual, quem sabe, posicionar-se-ia Autran Dourado, mas que permite, em todo o caso, a Antonio Houaiss afirmar: "acabados, arredondados, cuidados, que sugerem, que impressionam, que podem, às vezes, ajudar a confiar — todos, aliás, colocando um problema ético ou filosófico de forma vivencial, excluído qualquer aparato técnico Explícito, a não ser aquele atribuído à personagem de que tal aparato possa derivar" (o crítico referia-se, evidentemente, ao primeiro livro do escritor), a verdade é que a obra de Osman Lins poderia ter ido bem mais além. E embora seus textos provoquem certa reação por parte dos leitores ainda presos ao folhetinesco romantizo, nem por isso são efetivamente tão complexos: seu vocabulário não foge ao comum, a psicologia de suas personagem é bastante acessível à nossa compreensão e, enfim, excluído o eventual aparato visual de alguns contos, os demais — mesmo numa primeira complexidade pela múltipla perspectiva das narrativas — amoldam-se à atenção do leitor, desde que este entenda estar a lidar com palavras que, fora do "estado de dicionário" a que se referiu o poeta, estarão sempre amplamente dispostas a ofertar a seu manipulador — escritor ou leitor — amplo chão de interpretações. Se o estilo é a casa do homem, como já se disse, o clima a ser criado pela palavra é o teto da "construção. E sob certa perspectiva, sua motivação.

(Extraído de Conto Brasileiro Contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, 230 p.)

Fontes:
http://www.jornaldecontos.com/
imagem =
http://botecoliterario.wordpress.com

Almir Câmara (Caldeirão Literário da Bahia)



POUCO, MAS BASTANTE

As coisas boas que não conhecemos,
sabendo até que elas estão em vida,
de faltas suas não padeceremos
se a nossa alma estiver abastecida.

Não vale a pena a elas se ter acesso
se para consegui-las for preciso
sentir nosso conforto agora opresso,
pois tempo futuro é muito impreciso.

Feliz do ser que o pouco for bastante
para levar a vida que ele gosta
sem a riqueza ver muito importante.

Quem reputa o bastante muito pouco
de muita coisa boa se desgosta
e se consome num viver de louco.

(04/07/1989)
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O SABOR DA TRISTEZA

Nada pode ser tanto condolente
quanto ver a chorar um sofredor
que está cativo de uma grande dor
sem ver um só calor que lhe acalente.

Não, não há nada mais comovedor
do que assistir as lágrimas de um ente,
que está a sofrer uma dor ardente,
fluírem sem tirá-lo dessa dor.

Suas lágrimas são sangue incolor,
mas que deixa impressões de alto calor,
fazendo a gente chorar com certeza.

Elas têm o sabor da água do mar,
sabor que não dá para costumar,
pois é também o gosto da tristeza.

(18/07/1990)
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CONFERÊNCIAS AMARGAS

Tenho do meu rincão muita saudade,
mas só do tempo que eu era criança,
pois lá eu só vivi toda essa idade
e tudo ficou fixo na lembrança.

Hoje se vê por lá outra verdade,
tudo se transformou, houve mudança.
Por toda parte tudo é novidade.
Para mim não existe mais pujança.

As árvores antigas não há mais.
O povo mais velho, também jamais.
De amigos que deixei, só referências

Até seu rio não é mais o tal,
está sujo, doentio, não vital.
É triste fazer estas conferências.

(10/10/1990)
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ENDEREÇO DA FELICIDADE

Se é um endereço onde há felicidade
que você está tanto na procura,
não vá onde houver pompa com fartura
nem onde muito houver necessidade.

No primeiro lugar há corredura
para sempre se ter prosperidade,
enquanto no outro, que disparidade,
só manter-se vivo é carreira dura.

Investigue onde o pouco for bastante,
onde não haja inveja assinalada,
onde parar se possa algum instante,

onde valor ninguém dê a adereço
e onde a raiva ninguém veja instalada,
pois, com certeza, é lá esse endereço.

(12/10/1990)
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O HOMEM FELIZ

O homem feliz não é muito exigente.
No geral é de classe média baixa.
Não é considerado diligente,
mas sempre tem algum dinheiro em caixa.

Também não é julgado inteligente,
sua cultura é de pequena faixa,
mas todos o acham uma boa gente
e a amizade de todos, ele encaixa.

Muitas vezes eu fico-lhe observando
viver bem sem haver tanta exigência,
e nesse exame dou-lhe o grau distinto.

E assim, sem ganas, vai se conservando.
Pode não ser de grande inteligência,
porém é um racional de grande instinto.

(14/10/1990)
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CALÚNIA, ARMA DO MAL

Se tua ira algum dia aconselhar-te
fazer acusações falsas a alguém,
contém-te, nada inventes de ninguém,
ainda que se ponha a atrapalhar-te.

Defende-te com as armas só do bem,
usando-as com justiça e com muita arte,
mas a calúnia deixe bem à parte.
Ela atingirá tua alma também.

Se a vomitares, num lance cruel,
pedes logo desculpas da desfeita,
confessando que tu foste infiel.

Faças como o cachorro que retoma
sua vomição logo após a feita
e do mal sanarás seu hematoma.

(03-11-1990)
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Sobre o Autor
Almir Querino Câmara, filho de Antonio Querino Câmara e Maria Madalena Lemos Câmara, nasceu em Faisqueira, vila do Município de Ubaitaba, Bahia, em 16 de outubro de 1932. Reside em Vitória da Conquista, Bahia, desde maio de 1964. É casado com Heleusa Figueira Câmara, tem 4 filhos (Diana, Mônica, Danilo e Verônica) e 6 netos (Matheus, Heleusa, Raquel, Isaque, João Pedro e Leonardo).
Formado em engenharia civil em 11 de dezembro de 1958 pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia. Foi engenheiro da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, Bahia de 16/03/1973 a 31/12/2005. É engenheiro credenciado da Caixa Econômica Federal desde maio de 1975.
Vem se dedicando a fazer versos rimados desde maio de 1989. Participou no livro Coletânia de Poesias, Volume I, da Usina de Letras, publicado em 2005

Fonte:
Antonio Miranda