sábado, 2 de outubro de 2010

Camila da Silva Alavarce (O Papel Ativo do Leitor na Criação Literária)


Partindo do princípio que a ironia, a paródia e o riso são três modalidades literárias próximas que têm em comum o questionamento de uma visão maniqueísta e que geram tensão, Camila da Silva Alavarce debruça-se sobre o estudo desses discursos para identificar as diferentes vozes dissonantes e o papel do leitor na construção dos sentidos dos textos literários. Seu estudo está agora publicado em A ironia e suas refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso, lançamento da Cultura Acadêmica Editora.

Para a autora, a ironia, a paródia e o riso atuam, nos textos literários, com o objetivo de suspender a censura e de burlar as prisões dos discursos monofônicos e consequentemente autoritários. "Isso é possível porque privilegiam a polifonia e o elemento dissonante, legitimados pelo contraste de ideias, traço comum entre esses três tipos de discurso. Logo, essas categorias, como atos de comunicação, optam por determinada ótica ou postura, que entra em choque com outra, e é isso que garante a polifonia", explica.

Como esses discursos convidam o sujeito para colaborar na construção do sentido na comunicação, eles são vias para um movimento de reflexão e de ampliação do conhecimento e da percepção crítica. "O sujeito é valorizado como um ser capaz de assimilar toda a estrutura contraditória desses discursos por meio do exercício da razão", justifica.

O primeiro capítulo dedica-se, portanto, ao receptor da mensagem: o leitor e seu papel ativo na construção do sentido. Em seguida, faz um estudo pormenorizado da ironia, de suas funções e de suas variadas possibilidades de ocorrência.

O terceiro capítulo trata da paródia como um tipo de texto literário que se constitui pelo choque entre discursos dissonantes, como é o caso, num outro nível, da ironia. O quarto é dedicado ao riso, com resgate das teorias de Schopenhauer, Baudelaire e Jean Paul. No quinto, a autora relaciona as três modalidades para, em seguida, proceder à leitura de três obras literárias, analisadas a partir da ironia, paródia e riso: os romances O homem duplicado (2002), de José Saramago, e O cavaleiro inexistente (1959), de Ítalo Calvino, e o conto "O duplo" (1846), de Dostoievski.

Para Camila, a ironia, a paródia ou o riso constituem um convite ao leitor para desvendá-los, perpetuando, assim, o ensejo de ampliação de sua percepção crítica.
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Camila da Silva Alavarce
possui graduação em Letras (2001) e mestrado em Estudos Literários (2003) e doutorado em Teoria Literária (2008) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003). Atualmente, é professora de gramática e de literatura brasileira e portuguesa em três colégios. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária e Literatura Portuguesa, atuando, sobretudo nos seguintes temas: ironia, paródia, riso, análise do narrador e da organização da narrativa.

Fonte:
Cultura Acadêmica Editora.

Luzia Aparecida Oliva dos Santos (Representações Simbólicas do Indígena Construídas pela Literatura Brasileira)


Como entender a representação do indígena na formação do sistema literário brasileiro? Quais os matizes que diferem essa representação ou a aproxima dentre os conceitos impressos pelo indianismo e pelo indigenismo literários? Tais inquietações são o ponto de partida para O percurso da indianidade na literatura brasileira: matizes da figuração, lançamento do selo Cultura Acadêmica.

Luzia Aparecida Oliva dos Santos faz então uma viagem pela literatura brasileira em busca da imagem do índio em seus diversos matizes sob diferentes convenções ideológicas e de estilo, em obras representativas dos vários movimentos culturais existentes. Reúne a análise de dezoito obras pela perspectiva da figuração, que define a presença do nativo brasileiro pela linguagem e a colore de acordo com a época e com as estratégias de cada autor. O percurso se estende da Carta de Achamento, de Pero Vaz de Caminha, até a publicação de Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, buscando-se as afinidades com o universo natural, mítico e aculturado do indígena.

Na leitura estabelecida pelas análises dos textos, descobre-se como o homem americano foi visto frente às relações sócio-econômicas e culturais determinadas pelo encontro com o colonizador e as consequências derivadas dos conceitos contraditórios que emergiram do quadro de ocupação da terra brasileira. Vê-se como as estratégias de figuração criadas no âmbito literário colocam o nativo em interação com um elemento externo à sua cultura, seja ele o não-índio, o cristão ou o civilizado, responsável pela oposição índio versus brasileiro.
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Luzia Aparecida Oliva dos Santos
é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de São José do Rio Preto, na área de Literaturas em Língua Portuguesa, mestre em Letras, também pela Unesp, em Teoria da Literatura e graduada em Letras pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão. É professora do Departamento de Letras, da Universidade do Estado de Mato Grosso, câmpus de Sinop.

Fonte:
Cultura Acadêmica Editora.

Antônio de Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda) Parte III, final


ALGUMAS OBSERVAÇÕES A MAIS SOBRE BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA

Como foi possível perceber, os contos forma, sem seu conjunto um panorama de um determinado fragmento social em um determinado momento histórico. Desse modo, podemos dizer que sua grande personagem é a cidade de São Paulo no início do século, vista a partir de um aspecto: a imigração.

O subtítulo do livro – Notícias de São Paulo – já define o posicionamento do autor: a realidade captada por pequenos fragmentos. A mesma relação entre literatura e o jornalismo será ainda mais detalhada em “Artigos de Fundo”, o prefácio que não é prefácio. E é a partir daí que encontramos mais claramente a unidade do livro. Em todos os contos, o realismo jornalístico está presente nos assuntos cotidianos, na ausência de idealização, na linguagem enxuta. E sempre ao lado do humor iconoclasta modernista.

Os contos abordam questões corriqueiras do mundo do imigrante italiano e do brasileiro que com ele convive. Em “Gaetaninho” e em “Lisetta”, vemos o sonho da criança que é interrompido pela tragédia da morte ou pelo preconceito sócio-econômico. Em “Carmela” e em “Coríntians (2) vs. Palestra (1)”, os amores das mocinhas que sonham com príncipes e buscam no relacionamento amoroso um reconhecimento social. Em “Amor e Sangue”, o amor já descamba para a irracionalidade e para o crime passional. “Tiro de Guerra nº 35”, “Notas Biográficas do Novo Deputado” e ainda “Nacionalidade” trazem a discussão do patriotismo e do xenofobismo. Aristodemo Guggiani, Gennarinho, os filhos de Tranquillo e o próprio barbeiro vão passando por etapas de aculturação e se tornam filhos do país que os recebeu. “A sociedade” e “Armazém Progresso de São Paulo” mostram o italiano numa ânsia de ascensão econômica e social e, a partir disso, sua prepotência e arrogância. Finalmente, a crítica à imprensa que se faz fortemente presente em “O monstro de rodas”, retratando o abandono em que vivia o imigrante.

Cabe dizer ainda que foi com Alcântara Machado que o tema da imigração firmou-se no Modernismo. Preocupado com o momento social de profunda transformação em que vivia sua cidade, o autor tornou-se o escritor de São Paulo. E falar da São Paulo de sua época era falar daqueles que a estavam compondo: os italianos.

ANTOLOGIA

Artigo de fundo

Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A facha explica o resto.

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.

Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela que tinham cabelos mui pretos, compridos pelas espadoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundos mamelucos.

E os mamelucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil. O colosso começou a rodar.

Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

De consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos.

Nascem os italianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.

E o colosso continuou rolando.

No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:
Carcamano pé de chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?

O pé de chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!

Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Entregou-se. Prosperou.

E o negro violeiro cantou assim:
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!

Brás, Bexiga e Barra Funda como membro da livre imprensa que é tenta fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.

Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.

Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mameluca. São nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionaram e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de São Paulo.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.

O Autor define sua obra como um não-livro, o que, reforçado pelo tom de humor do texto, provoca um estranhamento no leitor que, conseqüentemente, terá que se situar de outra forma que não leitor de contos. A aproximação com o estilo jornalístico vai além do conteúdo. Chega à forma por meio das frases curtas e da linguagem enxuta, garantindo ao texto um ar de contemporaneidade. E também por meio dos espaços em branco entre os fragmentos do texto, que lembram a organização jornalística. Com essa divisão, o autor consegue passar as informações em formas de “flashes”, mostrando a realidade de modo fragmentado, assim como o jornal.

Artigo de Fundo procurar registrar um ponto de vista positivo sobre o imigrante, diz até mesmo representá-los. E cria uma imagem do imigrante esperto, que se adaptou e se integrou à terra brasileira. Logo a seguir, porém, procura a objetividade jornalística: “Não tem partido nem ideal”. E realmente a visão predominante ao longo da obra é do narrador que observa de longe.

A Sociedade

- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rira misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rira do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a rua da liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiíiia-uiiiiia!
- O que você está fazendo aí no terraço, menina?
- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.
- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!
- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçoarra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de fozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.
- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.
- Não!
- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu!
... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!
- Meu pai quer fazer um negócio com o seu.
- Ah sim?
Cristo nasceu na Baía, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!

Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?
- Já sei, mulher, já sei.

Mas era cousa muito diversa.

O cav. uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga de longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.
- O doutor...
- Eu não sou doutor, senhor Melli.
- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. Tinha a sua fábrica ao lado. 1200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O cav. uff. Com o capital. Arruavam, os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, grandíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital o senhor compreende é impossível...
- Per Baco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.
- Doppo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.
- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
- Francese? Não é fio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... sob a minha direção si capisce.
- sei, sei... O seu filho?
- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do conselheiro desviou os olhos do cav. uff. Na direção da porta.
- Repito un’altra vez: o doutor pense bem.

O isotta Franschini esperava-o todo iluminado.
- E então? O que deve responder ao homem?
- Faça como entender, Bonifácio...
- Eu acho que devo aceitar.
- Pois aceite...

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda e senhora

Têm a honra de participar a V. Exa. E Exma. Família, o contrato de casamento de sua filha Teresa Rita com o sr. Adriano Melli.

Rua da Liberdade, n. 259-C.

O cav. uff. Salvatore Melli e senhora

Têm a honra de participar a V. Exa. E Exma. Família o contrato de casamento de seu filho Adriano com a senhorinha Teresa Rita de Matos e Arruda.

Rua da Barra Funda, n. 427.

São Paulo, 19 de fevereiro de 1927

No chá do noivado o cav. uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batas, Olio di Lucca e bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta.

Neste conto, Alcântara Machado procura retratar a dificuldade de integração sofrida pelos italianos e, ao mesmo tempo, sua capacidade de adaptação e até superação diante das famílias tradicionais e preconceituosas. Os personagens, verdadeiros estereótipos de uma sociedade, representam as etapas que vão da dissociação até a integração de duas culturas. A esposa do conselheiro retrata todo o preconceito existente em relação aos imigrantes. Rejeita qualquer tipo de união entre a sua família paulistana tradicional e a do “novo rico” italiano. Revela os últimos vestígios de resistência da aristocracia. Teresa Rita alude à aceitação decorrente de qualquer processo de assimilação cultural. Para as novas gerações, o caráter estrangeiro, imigrante, perde seu valor depreciativo, assume naturalidade. O conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda, como o próprio nome revela, representa a verdadeira família aristocrata e passadista em decadência. O outro lado da questão é retratado primeiramente por Adriano Melli, estereótipo do “novo rico”, caracterizado pelo seu vestuário meticuloso e afetado. O carro, as luvas, o chapéu contrastam com o traço aristocrático e ultrapassado do fraque do conselheiro. Ainda mais contrastante é a figura do imigrante Salvatore Melli, que em oposição ao tradicional título de conselheiro, ostenta o de cavagliere ufficiale, denunciando a novidade da posição alcançada no novo país. Porém, a mobilidade social ascendente através do prestígio econômico não diminui a distância cultural marcada na linguagem, no gosto, nos símbolos do prestígio. O novo rico ainda usa a “bigodeira” característica dos primeiros imigrantes. Dirige-se ao conselheiro ainda com certa humildade, ao menos no tratamento, chamando-o de “doutor”, mesmo certo de sua superioridade econômica. E a língua de origem não é esquecida nos mementos de maior afetividade do personagem.

A questão do narrador adapta-se ao estilo jornalístico de narra. O caráter realista do conto exige uma observação direto dos fatos. Outro traço forte neste conto, assim como nos demais, conforme já foi abordado, é a variação dos pontos de vista por meio dos diálogos. Com essa técnica, o leitor toma conhecimento das idéias que caracterizam as personagens e sugerem uma visão de mundo. Daí surge o desenvolvimento da tensão entre as partes.

A Sociedade aborda o tema da assimilação cultural de uma perspectiva um pouco diversa da habitual nos demais contos. A família imigrante aqui é vista a partir da já atingida ascensão econômica e prestes a conseguir a almejada posição social. Em relação ao restante da obra, Adriano Melli é o menino que sonhava andar de carro já crescido e adaptado. Essa ascensão fica mais evidenciada ao final do conto. No chá de noivado, Salvatore Melli relembra à preconceituosa mãe de Teresa Rita os tempos em que o imigrante lhe vendia cebolas. E dá destaque à já clara decadência da família aristocrata: vendia fiado. Fica óbvia a denotação do esforço de trabalho daquele que sofre o preconceito em contraste com a ociosidade da camada social aparentemente estabilizada.

Alcântara Machado aproveitou-se de uma característica comum ao Modernismo para dar um traço pessoal à sua obra: o cômico. Era essa a base de sua visão de mundo. Não buscava criar situações corriqueiras. A situação, a linguagem e os personagens é que ficam marcadas pelo cômico. Em “A Sociedade”, o ridículo é produzido pela situação ambígua da família paulistana: ao mesmo tempo em que é preconceituosa, precisa do imigrante. Os personagens estereotipados, permitindo ao leitor uma rápida associação com a realidade, também tornam-se cômicos. Finalmente a linguagem relaciona-se com o anedótico tanto pelo estilo coloquial, com traços que lembram muito o estilo modernista de Mário de Andrade, como pela imitação das expressões típicas dos italianos. Esse último aspecto traz não só a comicidade devido à sua estranheza dentro do texto, mas traz também a associação com a realidade da personagem. Em sua, Alcântara Machado faz com que a sociedade paulistana ria de sua própria imagem.
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Fonte:
Estudo copiado do material do Curso Universitário, disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/barrafunda

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

José Feldman (A Minha Poesia)

Pintura de Angela Kelly Topan
Hoje estava a navegar pela internet, encontrei uma poesia de Florbela Espanca, denominada “Amiga”, que coloco na postagem abaixo. Então fiquei a pensar, e me deixar envolver pela poesia de Florbela e criar uma minha. E fiz num rebento.

Algo deste poema da Florbela está imbuído dentro do poema, mas tem certas versos que a maioria dos poemas devem ter, pois eles possuem um significado especial.

Por isso, peço que me perdoem e permitam-me este momento mágico para postar algo meu, entre tantos grandes nomes de norte a sul, leste a oeste deste enorme e querido Brasil que constituem este blog.

Permitam-me fazer uma dedicatória antes. Pode parecer meio cafona (nem lembro se ainda se usa esta expressão, será que estou tão velho assim?), mas deixo aqui registrado que este poema, ou que ao menos deveria ser um, me perdoem os entendidos no assunto, mas ele é para todas as mulheres que são como musas na vida dos homens, que preenchem um espaço vazio e fazem da vida destes felizardos serem repletas de poesia.
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Deixa-me ser o teu amigo, Amor,
O melhor e mais querido de todos os seus amigos,
pois sem tua presença, não há calor
e sem calor não haverão abrigos.

Deixa eu sentir a sua presença,
o seu abraço, o seu carinho,
faça que este momento seja a diferença,
como a água que se transforma em vinho.

Que mesmo que de ti me venha mágoas e dor
Ainda assim serás sempre um sonho maravilhoso,
Bendita sejas onde for
Estarás sempre em meu coração como um tesouro valioso.

Beija meu rosto uma vez só mais, com ternura,
guardarei este beijo qual diamantes
para sempre me embriagar em sua formosura
seus sorrisos, seus olhares, sua voz, cativantes.

Seja este momento de magia,
de encanto e de prazer,
seja o verso de minha poesia,
meu eterno amanhecer.

Juliana Matos (Amor Antigo)


Era um amor tão bonito
Daqueles que em realidade admirava-se
Olhos nos olhos, a corte pregava
Com a certeza da felicidade acompanhada

As mãos trêmulas tocavam-se admiravelmente
E as estrelas sempre presenciavam o total sabor
Deste amor leve que vários instantes crescera
Em meio a sons da natureza ao esplendor

Dois seres, um caminho e um sentido
A vida já não se fazia a mesma solitária
Cada detalhe agora compunha um jardim florido
Que juntos cultivariam sempre a sorrir

Era um amor tão doce, quase conto de fadas
Brilhava no horizonte por tamanho existir
Como se o tempo fosse esquecido
Quando os dois, frente a frente, se faziam sentir...

Palavras em vão

Fontes:
http://palavraemvao.blogspot.com/
Imagem = http://retalhosdeamor.blogspot.com/

Silviah Carvalho (O Vulto)


Eu, que fui à vida uma sonhadora,
Desfiz meus Sonhos ao ver seus,
Olhos pairados em outro Mundo.

Eu que sufoquei minha solidão,
Sonhando preencher meus dias ao seu lado,
Vi seus pés galgando outra estrada,
Passo a passo até afastar-se completamente de mim,

Eu que tantas vezes tentei cruzar seu caminho,
Mas você sempre encontrou um atalho,
Para não encontrar-se comigo,
Para não sentir pesados os meus olhos em seus olhos,
Ou minhas mãos em suas mãos.

Eu que tentei ser alguém em sua vida,
Fui apenas uma sombra, um vulto na solidão,
Tu foste tudo para mim, e me fizeste nada para você.

Algum dia quando o sol brilhar mais forte em seu caminho,
O meu vulto se tornará real em sua frente,
E não haverá atalho para você.

Porque o meu caminho começará,
Aonde o seu terminar,
E então o vulto será você.

Fontes:
http://umcoracaoqueama.blogspot.com/

Caio Porfírio Carneiro (O Anel)


Não conseguia expor bem o tema, que pedia detalhes seguidos, porque ela, sentada lá no meio do público, fazia-lhe sinais continuados. Irritava-se e os membros da mesa pediam silêncio e atenção.

Palestra terminada, quis saber quem era aquela moça jovem, bonita, que o
atrapalhava. Ela, porém, se antecipou. Subiu os poucos degraus, postou-se diante da mesa:

- Preciso falar com o senhor.

Todos curiosos. E ele se mostrou aborrecido:

- Quem é você?

- O senhor não sabe quem sou eu. Mas eu sei quem é de fato o senhor.

Encarou-a, levantou-se:

- Fale baixo. O que você quer?

- Quero lhe dizer só duas palavras e lhe dar um presente.

- Presente? Depois.

- Agora. É rapidinho. Pode ser ali no canto.

O silêncio e a curiosidade aumentavam entre os assistentes próximos. O público procurava se aproximar para cumprimentá-lo.

Ele resolveu-se, contrariado:

- Com este povo todo... Está bem. Um minuto só.

Dirigiram-se para perto do cortinato, atrás da mesa. Suspirou:

- E então, moça, o que deseja?

- O senhor conheceu, anos atrás, uma moça e lhe deu de presente um anel, lembra-se?

- Faz tempo.

- O senhor a engravidou e desapareceu, não foi?

- Como é?

Ela mostrou-lhe o anel:

- Antes de morrer ela me deu o anel de presente. Até mandou lhe avisar que estava muito doente e o senhor nem sinal. Pois está aqui o anel. Está reconhecendo? Vim devolvê-lo. Sou filha dela. Filha daquela gravidez.

Ele gaguejava:

- Quer dizer... quer dizer...

- O senhor sabe o que quer dizer.

Jogou no bolso dele o anel:

- Dê de presente a outra moça. O senhor ainda tem idade para recebê-lo de volta anos depois. Parabéns pela palestra. O senhor é muito famoso.

Ele tentou segurá-la:

- Volte aqui.

Ela se foi apressada e perdeu-se no meio do povo que ainda procurava cortejá-lo.

Ele voltou à mesa e sentou-se calado. Uma voz sussurrou-lhe:

- O que ela lhe disse? Está sentindo alguma coisa?

Ele suspirou, dedos tamborilando de leve na mesa. A outra mão, fria, acariciava o anel no bolso. A voz insistiu:

Está indisposto?

- Não, não. Quero só um copo d’água.

SP., 22/05/2009.Ribeirão Preto – Hotel Stream – às 7:40 da manhã.

Fonte:
http://caioporfiriocarneiro.blogspot.com/

Nilto Maciel (O Copo Azul do Menino Caio)


Havia dias não conseguia ler nada, não por mandriice ou fastio das letras, mas por obra de um vírus não-letal, que me deixou quase cego. E cadê tua Maria Kodama? – perguntarão os desconfiados. Para não lhes dar resposta indecorosa, dou um passo adiante.

O primeiro livro lido por mim após o arremetimento do pequeno ser é de meu amigo Caio Porfírio Carneiro. Não um amigo do peito, porque pouco nos vimos, sobretudo porque moramos em cidades bem distantes uma de outra. Ele sempre em São Paulo (“sempre” é exagero de linguagem), para onde se mudou em 1955. Naquele ano eu não o conhecia ainda, como não conhecia nenhum escritor, a não ser os dos livros célebres, como José de Alencar, Machado de Assis, Alexandre Herculano, todos mortos antes do meu nascimento. Enquanto Caio morava na maior metrópole brasileira, eu sobrevivia em Baturité (até 1961), depois em Fortaleza e Brasília. E nunca o via, embora lesse seus livros. Lia por sabê-lo escritor de alta linhagem, além de ser meu conterrâneo. Vi-o pela vez primeira numa tarde do início do século XXI, em Fortaleza, para onde voltei em 2002. Apresentou-mo (ora, eu já o conhecia dos livros, desde os anos 1970) o jovem Pedro Salgueiro, que conhece de perto quase todos os grandes escritores brasileiros nascidos no século XX. Frequenta ou frequentava casas e escritórios – onde toma ou tomava chá, come ou comia biscoito, cochila ou cochilava nos sofás – de nomes eminentes como Dalton Trevisan, José J.Veiga e Rachel de Queiroz. E eu me encantei com Caio, sua prosa nervosa e galopante. Sua simplicidade, sua simpatia. Recebe jovens e velhos sem pedantice, em todo o tempo a brincar.

Toda essa digressão poderá parecer enfadonha ao leitor. É que quero deixar de lado a pretensão de ser crítico literário. Ou escrevinhadeiro de resenhas ou comentários. Serei apenas um cronista que lê (desculpem-me os cronistas se os ofendo, eu que nem consigo escrever crônica) e se serve das leituras para rabiscar frases engatadas a frases.

E aqui começa de fato a crônica da leitura do novo livro de Caio. O título é simpático, embora simples: O copo azul (Scortecci, São Paulo, 2009). Pequenos contos, de uma a cinco páginas. De tão curtos, são poucos os narradores ou protagonistas com nomes explícitos. Mas não é por serem concisos que os nomes são omitidos. É porque Caio escreve alegorias, parábolas, como em “O ponto”. Caio escreve metáforas. É um filósofo. Quando há nomes, como Maria Viviane, o nome não é do narrador ou do personagem central. Maria Viviane é apenas uma lápide.

Alguns desses contos se aproximam perigosamente da nova tendência do chamado “realismo urbano” e destoam do conjunto, como “E daí” e “Capuz”. (Outros escritores muito conhecidos têm se perdido nessas ruelas, como Dalton Trevisan.) Outros relatos de Caio se abeiram da brincadeira literária, como “Pois é”, construído à maneira de peças teatrais. “A travessia” segue esta linha. O melhor do livro está no pintar a alma do homem, perdidos em si mesmos. Seres angustiados, desiludidos (ou ainda iludidos) com sonhos, amores, novidades. Homens velhos à procura do passado. Ou de mulheres que somem, desaparecem, se esfumam nas ruas.

E o que dizer da linguagem, sempre esmerada, tratada com cuidado de ourives, como se cada frase surgisse após longo alisamento manual, como o fazem os artesãos de pequenas peças de barro? Dedicação de artista, de escultor, de apaixonado pela própria obra. Quem escreve com raiva, ódio, vontade de ferir, maltratar, não alcança a arte. Mas falar disso não cabe aqui, pois muito já foi dito a respeito do que seja arte.

Caio Porfírio Carneiro escreve com arte. Até quando brinca, ele brincalhão por natureza, quase menino ainda aos 80 anos. Escreve certo por linhas retas, sem parecer jornalista. Sua linguagem é clara, como se conduzisse o leitor, lado a lado, em conversa franca, por caminhos estreitos ou largos, sob sol forte ou chuva. Ou ao luar. Não quer enganar o leitor, levá-lo a atalhos que vão dar em abismos. Não se embrenha pelos cipoais ou pela caatinga. Não é um regionalista típico. Também não é discípulo cego dos antigos. Caio é Caio. Pra todo tipo de leitor.

Fortaleza, 15 de agosto de 2009.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/205

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 7)


Trova do Dia

Se acaso seu filho abusa,
diga-lhe um “não”, que faz bem.
Muita vez uma recusa
salva o futuro de alguém.
A.A. DE ASSIS/PR

Trova Potiguar

Chuvas de estrelas cadentes,
luzindo em toda amplidão,
emergem, sonhos latentes,
secretos, no coração.
FABIANO WANDERLEY/RN

Uma Trova Premiada

2006 > Fortaleza/CE
Tema > RUA

A noite, pela cidade...
coração triste e alma nua,
eu sempre encontro a saudade
me procurando na rua!
ROBERTO RESENDE VILELA/MG

Uma Trova de Ademar

Traz alentos, novas vidas,
muda a cor da plantação;
a chuva sara as feridas
que a seca faz no sertão.
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram

Janela, a bem da verdade,
teu ranger, esse chiado,
são gemidos de saudade
na voz rouca do passado.
ERNESTO TAVARES DE SOUZA/SP

Uma Poesia livre

Jeanette De Cnop/PR
SEGREDO

Foram docemente intermináveis
os momentos em que seu rosto querido
repousou sobre meu peito...
Extasiada,
eu me ausentei tão longamente
de mim mesma,
habitando,
enquanto isso,
algum espaço inimaginável
- provavelmente a morada
da tal felicidade -,
que eu só queria muito
saber agora
o que foi que meu coração
segredou ao seu ouvido!

Estrofe do Dia

Ao sol sair eu senti
O frescor da madrugada
O riacho em enxurrada
Leva meus sonhos a ti
O canto da juriti
Anuncia o novo dia
Meu sertão é alegria
Este lar que Deus me deu
Hoje o dia amanheceu
Com cheiro de poesia.
PETRONILO FILHO/PB

Soneto do Dia

Dorothy Jansson Moretti/SP
T E M P O

O tempo apaga um sonho já desfeito
na aridez de uma vida mal traçada,
uma paixão que se evolou do peito
como essência do frasco evaporada.

Tudo finda, como água já passada
que não retorna nunca mais ao leito:
do tempo que se foi não resta nada,
é verbo no pretérito perfeito.

Mas no incontido caminhar dos anos,
paciente, a transportar os desenganos,
ele ameniza o nosso sofrimento.

Lava que esfria e se transforma em rocha,
se algum desgosto ainda nos arrocha,
o tempo é o óleo bom... do esquecimento.

Fonte:
O Autor

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Neusa Padovani Martins (Dormi!!!)


Recordo-me de minha deliciosa infância no sítio de minha família. As variadas plantações de tudo um pouco me levavam a andar muito por todo o imenso terreno. Num determinado momento lá estava eu no meio do canavial, depois corria entre os pés de laranjas-lima, outra hora estava entre carreiras sem fim dos pés de feijão. Mas o dia mais lembrado por mim é aquele em que cansada adormeci entre os tantos pés de abóboras.

Foi assim que aconteceu: eu cansada de tanto andar resolvi, sem mais nem menos, que já era hora de relaxar. Deitei-me então e adormeci olhando para o imenso céu azul, protegida pela cerca viva de cipestres que faziam sombra em mim. Passado o tempo, nem sei quanto na verdade, ouvi ao longe a voz de meu irmão, nascido antes de mim alguns anos atrás. Rapazinho peralta, era meu amado companheiro de loucas aventuras. Junto ao chamado dele eu ouvi também a voz do nosso caseiro. Ambos aparentavam certa aflição ao gritarem meu nome. Ainda sonada levantei-me cambaleante e em poucos instantes ambos acercavam-se de mim querendo saber o que havia me acontecido. – Dormi ! - respondi eu.

Naquela noite, meu pai me aconselhou, assustando-me, dizendo-me que por aqueles pés de abóbora moravam algumas cobras venenosas. Não se faz necessário que eu diga que nunca mais andei por lá. Mas em alguns outros lugares sim, sempre calçada com imensas galochas de borracha que minha mãe me obrigou a usar, dizendo-me sempre que se sentisse sono deveria voltar correndo para a casa grande para me deitar. Conselho que segui a risco.

Numa destas vezes de sono intenso, não tive dúvidas do que deveria fazer. Corri de volta para a casa grande e depois de lavar bem as mãozinhas minúsculas, pegar minha amada chupeta e meu querido travesseirinho, entrei num dos vários quartos da casa, fechei muito bem a janela, já que sempre gostei de dormir no escuro, fechei a porta com a chave e me acomodei naquela imensa e deliciosa cama macia. Não avisei a ninguém que estaria ali. Apenas deitei-me e adormeci.

Apesar do pesado janelão estar fechado, a luz do sol da tarde teimava em entrar pelas frestas existentes. Elas me incomodavam um pouco porque sempre gostei do escuro, mas tratei de virar-me de frente para a parede para não ver a luz do sol. Pela pesada e imensa porta nada passava porque não havia nenhum rastro de sol por ali. Adormeci rapidamente sem precisar sequer pensar em carneirinhos, como gostava de fazer por pura diversão.

Não sei precisar que horas seriam. Ouvi gritos pela casa e passos de várias pessoas pelo imenso salão que comportava todas as portas do tantos quartos existentes ali. Minha mãe dizia sem parar que uma cobra poderia tê-“la “ mordido e “ela” estaria caída pelas plantações. Ou então “ela” poderia ter escorregado na encosta do ribeirão e a estas horas já deveria ter descido rio abaixo. Ou então “ela” estaria perdida na parte de trás do sítio que ainda não havia sido explorado. Minha mãe só dizia coisas ruins para a tal “ela” que eu não sabia precisar quem seria tal criatura que corria tão grande risco de vida assim.

Ouvi meu pai discutindo com minha mãe sobre o fato dela ter deixado que “ela” andasse sozinha por ali. Queria saber onde minha mãe estava que nada viu. Minha mãe deveria estar desconcertada com o vozeirão nervoso de meu pai que falava rápido na frente de outras pessoas que ali se encontravam, embora eu não soubesse quem eram afinal. Ouvi-a dizer que estava na casa de D. Maria, nossa caseira, aprendendo a bordar.

Olhei para a imensa janela daquele quarto e não vi mais a luz do sol espreitando o ambiente. Mas das frestas da porta enorme vi uma luz me espiando e pensei de onde será que ela estaria vindo afinal. Naqueles dias eu não tinha mais do que sete anos. Menos, talvez. Tampouco conseguia armar em meu pensamento um raciocínio simples que me informasse que o sol se fora e as luzes do salão haviam sido acesas. Eu simplesmente continuava sonada, ainda com vontade de dormir mais.

Até que de repente entendi que estavam me procurando; era a mim que queriam saber o paradeiro. Meu irmão então, meu amado companheiro de brincadeiras teve a intuição de gritar meu nome pela casa várias vezes: - Neguinha, Neguinha... onde você está? E assim foi que apressada levantei-me da cama e me dirigi à porta tentando abri-la e para minha surpresa a chave estava presa. Assustada gritei para meu pai por socorro. A gritaria que se seguiu me deixou apavorada e ouvi então batidas fortes na porta que insistia em pemanecer fechada.

Meu pai então me disse para tentar virar a chave novamente e o obedeci. Então não se sabe como a porta se abriu e eu finalmente saí para a sala. Olhei então para todos aqueles rostos incrédulos que pareciam querer me devorar para depois então mostrarem imenso alívio. Meu irmão feliz correu antes de todos para me abraçar, perguntando-me alegre o que foi que aconteceu. Ainda sonada, respondi-lhe assustada : - Eu dormi !

Não sei qual era meu problema, nem mesmo se eu tinha algum, a verdade é que eu dormia demais e sempre nas mais adversas situações. Como naquela vez em que estávamos meus dois primos, meu irmão, a filha do caseiro e eu brincando de esconde-esconde pela imensa casa. Corríamos pra lá e pra cá sem parar, escondendo-nos e encontarndo-nos. Até que num determinado momento escondida debaixo de uma das imensas camas de um dos quartos, vi-me cansada e com sono. Enfiei então minha mãozinha no bolso do meu macacão e peguei minha adorada chupeta e a coloquei na boca sugando-a sem parar, como se pudesse ali me enroscar no ventre de minha amada mãe. Nem preciso contar que adormeci de imediato só indo acordar quando os gritos do meu irmão e do meu pai ecoaram pelo casarão me fazendo acordar.

Com a maior cara de pau saí debaixo da cama e dei-me com meu pai com cara de poucos amigos esperando minha explicação. Sem ter o que explicar para aquele pai enfezado respondi simplesmente a verdade :- Dormi!

Fonte:
Portal Vânia Diniz