segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 346)


Uma Trova Nacional

É nos instantes de dor,
ante o teu porte sereno,
que um homem "grande", senhor,
se torna um homem pequeno!...
–ERCY MARIA MARQUES/SP–

Uma Trova Potiguar

Na fauna de estimação
tem bicho como tu és.
Com plumas feito pavão
mas sem olhar para os pés!
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - CTS-Caicó/RN
Tema: OCASO - 4º Lugar

Já na idade das fadigas,
pressentindo o ocaso perto,
só as lembranças amigas
vêm povoar meu deserto!
–JOSÉ TAVARES DE LIMA/MG–

Uma Trova de Ademar

Ela é quem me faz chorar
desde a minha mocidade.
Sei que vou me aposentar
sendo escravo da saudade.
–Ademar Macedo/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Foi nos passos e compassos
de um tango dançado a dois,
que eu me encontrei em teus braços
para perder-me depois!
–NÁDIA HUGUENIN/RJ–

Simplesmente Poesia


Um Sonho de Vida
–ESTER FIGUEIREDO/RJ–

Lua que me olha à distância
sabe bem da inconstância
deste enamorado coração:
incauto...ansioso...vivendo de ilusão

Busca e não encontra lenitivo...
para esta dor tem motivo
e que só ELE sabe o segredo.

Vou caminhando pela vida
a passos lentos, sem guarida...
Até quando?-Não sei!

Sei apenas que a sorte
não pode driblar a morte
nem o sonho que eu sonhei!

Estrofe do Dia

Não precisa tijolo nem madeira
o alicerce não tem escavação
Jesus cristo segura com a mão
que o poder do eterno é sem canseira
eu viajo pra lá segunda – feira
deus querendo eu já vou pra terminar
se esse prédio chegar a desabar
o nordeste se tora em três pedaço
vou fazer uma casa no espaço
sem de nada da terra precisar.
–CHICO QUELÉ/RN–

Soneto do Dia


Montes Pequeninos
–GILMAR LEITE/PE–
(À poetisa/companheira Rachel Rabelo)

Como as pérolas das ostras delicadas
que residem nas águas cristalinas,
os teus seios são conchas pequeninas
enfeitando tuas formas encantadas.

As auréolas são luzes rodeadas
clareando expressões puras, divinas,
onde os seios são flores campesinas
com orvalhos de cores enfeitadas.

Resplandece nas curvas dos teus seios
o fulgor dos jardins quando estão cheios
dos sutis beija-flores campesinos.

O teu corpo, de formas divinais,
tem cravado dois plácidos cristais,
que são dúlcidos montes pequeninos.

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) IV – Miss Jane; V – Tudo Eter que Vibra


CAPITULO IV
Miss Jane

Na sala de almoço tive uma nova surpresa. Estava lá, e recebeu-nos com gentil sorriso, a mais encantadora criatura que meus olhos ainda viram.

— Minha filha Jane, apresentou-ma o velho.

Como eu esperava tudo, menos encontrar ali uma figura feminina, atrapalhei-me e gaguejei, visto que sou tímido diante das mulheres formosas. Já com as feias, ou velhas, sinto-me desembaraçadíssimo. Mas cabelos louros como aqueles, olhos azuis como aqueles, esbelteza e elegância de porte como as de miss Jane, eram ingredientes fortes demais para que não produzissem a ruptura do meu equilíbrio nervoso. Gaguejei, já disse, e fui logo tropeçando num pé de cadeira, o que muito me vexou, embora não fizesse rir á moça. Esta contenção de sua parte provou-me que eu estava diante de uma criatura finamente educada e generosa.

Correu sem incidentes o almoço, e nada vi nele de misterioso. Pratos simples, servidos em baixela fina, tudo despido dos excessos que caracterizam a mesa dos ricaços amigos de nas menores coisas exibirem o seu dinheiro.

Miss Jane falou ao pai de três filhotes de pintassilgos que encontrara no pomar, num ninho feito de raízes de capim.

— Gosta de pássaros, senhor Ayrton? perguntou-me num gracioso sorriso.

Confesso que eu até ignorava a existência de pássaros no mundo. A minha vida de cidade, no corre-corre das ruas desde menino, sem nunca umas férias passadas no campo, impedia-me de prestar atenção a essas vidinhas aladas, que constituem um dos enlevos dos contemplativos.

— Gosto, sim, senhora, respondi eu, se bem que em matéria de pássaros só me lembre dum periquito vitima duma menina filha lá da firma.

— Pois aprenderá aqui a adora-los. O sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar, com certeza já lhe atraiu a atenção. Temos tambem vários outros amiguinhos que de lá não saem, pintassilgos, sanhaços, rolinhas, saíras...

— O senhor Ayrton, interveio o professor, vai ficar aqui conosco. Tem muito que ouvir e aprender. Vou revelar-lhe os segredos da natureza, e tu, Jane, lhe revelarás a poesia. Estes homens da cidade têm a visão muito restrita; o mundo para eles se resume na rua, nas
casas marginais e no torvelinho humano.

— Realmente, professor. A impressão que tive hoje durante o meu passeio pelo campo abriu-me a alma. Verifiquei que o mundo não é só a cidade, e que o centro do universo não é a firma Sá, Pato & Cia., como toda vida supus.

— O mundo, meu caro, é um imenso livro de maravilhas. A parte que o homem já leu chama-se passado; o presente é a página em que está aberto o livro; o futuro são as páginas ainda por cortar. E a uma criatura que nem conhece a página aberta ante os olhos, como o senhor, vou eu revelar o que a ninguém ainda foi revelado: algumas futuras!

Olhei para o professor Benson com ar palerma, porque sempre me apalermava o que ele dizia. Tinha o sábio uma linguagem nova para mim, da qual eu apreendia apenas o sentimento formal, não o sentido intimo. Animei-me, entretanto, a uma frase:

— Miss Jane com certeza conhece também essas páginas futuras.

— Sim, eu e ela, respondeu o professor. Só nós dois, no mundo inteiro e desde que o mundo é mundo, gozamos deste privilegio maravilhoso. Enviuvei muito cedo e minha família está hoje reduzida a Jane. É a minha companheira de analises dos cortes anatômicos do futuro.

"Cortes anatômicos do futuro"... A expressão soou-me como outrora a do senhor Sá quando pela primeira vez me falou em 'lançamento por partidas dobradas", coisa que hoje não ignoro mas que na época me valeu por um "corte anatômico".

Nesse ponto do almoço fez-se notar certa zoada distante vinda não sabia eu de onde.

— Deixaste o cronizador aberto, Jane?

— Sim, meu pai. Deixei-o em marcha para 410 anos de hoje, focalizado para 80.° de latitude N. e 40 de longitude. Experiência ao acaso, pois nem verifiquei onde fica esse ponto.

—Groenlândia. O corte não revelará coisa nenhuma, suponho. Não creio que em 410 anos as condições do mundo se alterem a ponto de haver lá outra vida alem da dos esquimós, ursos e focas.

—Em todo o caso vejamos, disse a moça. Temos tido tantas surpresas...

—Minha filha, senhor Ayrton, possui mais frieza de sábio do que eu. Não perde tempo em formular hipóteses quando tem ao alcance meios de verificar experimentalmente.

Ri-me. Acho que a melhor maneira de figurar numa roda onde se falam coisas acima da nossa compreensão é sorrir para o interlocutor que nos dirige a palavra. Se o riso não engana a ele, engana-nos a nós e livra-nos de uma replica verbal, que sai asneira infalivelmente. De todo o dialogo da filha com o pai só me evocou uma imagem já classificada em meu cérebro a palavra Groenlândia.

Lembrei-me dos meus tempos de geografia e da impressão que me causara a descrição da Terra Verde, ou Groenlândia, feita pelo meu barbudo professor Maneco Lopes. E por associação me vieram à mente ursos brancos, focas, leões marinhos, pinguins, esquimós. Querendo contribuir com uma nota para a conversa, e fingindo entender o que eles haviam dito, arrisquei:

— Não há duvida, a Groenlândia é um caso sério. Uma piririca!

Foi a vez do professor Benson franzir os sobrolhos no gesto clássico da incompreensão. Vi que aquele homem, que sabia tudo e lia o futuro, ignorava alguma coisa do presente — a gíria da cidade, e firmei-me na resolução de dar com a giria em cima dele para vê-lo refranzir a testa muitas vezes.

— Que? indagou o velho sábio.

— Sim, expliquei eu sem erguer os olhos para miss Jane com medo de desnortear. A Groenlândia é um caso, um numero. Quanto o pinguim cisma p'ra cima do peixe e o urso gréla a foca...

Mas o professor Benson cortou-me as vazas.

— Não refletiu nunca, meu caro senhor Ayrton, na oportunidade do silencio? O silencio é sábio, é uma das mais altas formas da sabedoria. Foi silenciando que Jesus deu ao "Que é a verdade?" de Pilatos a única resposta acertada...

— Papai, interveio a moça evidentemente apiedada da minha situação, está aí uma experiência que ainda não fizemos! Involuir a corrente e operar um corte no ano 33, a ver se apanhamos essa cena histórica...

— Realmente é uma ideia, minha filha, e mais curiosa do que o exame da Groenlândia, onde, como diz cá o amigo, o urso gréla a foca...

CAPITULO V
Tudo Éter que Vibra


Saí daquele almoço com as ideias mais desnorteadas do que nunca. Um elemento novo contribuía para isso; miss Jane, criatura singularmente perturbadora, pois, além de agir sobre meus fragílimos nervos como todas as moças bonitas, ainda me tonteava com a sua mentalidade de sábio. De tudo quanto a jovem disse só me ficou claro no espirito a história dos passarinhos do pomar. Até ali pareceu-me uma criatura tal as outras, mas depois do "corte anatômico" tudo se complicou e passei a ve-la qual um misterioso ídolo de divindade dupla, mixto de Afrodite e Minerva.

Depois do almoço levou-me o professor a ver os laboratórios. Atravessei numerosas salas e pavilhões cuja composição entendi menos que a do gabinete. Quanta maquina esquisita, tubos de cristal, ampolas, pilhas elétricas, bobinas, dínamos — extravagâncias de sábio! Eu conhecia varias oficinas mecânicas, mas nelas nunca me tonteava. Tornos, maquinas de cortar e furar, bigornas, martelos automáticos, laminadores, fresas, tudo isso eu via e compreendia, pois apesar de complicados na aparência evidenciavam logo uma função esclarecedora. Mas ali, santo Deus! Que caos! Não consegui entender coisa nenhuma e mesmo depois que o velho sábio mas explicou manda a verdade confessar que fiquei na mesma.

Isto aqui, disse ele na primeira sala, são aparelhos eletro-radioquimicos, na maioria criados ou adaptados por mim e que constituíram o ponto de partida da minha descoberta. Se o amigo Ayrton fosse técnico, eu os explicaria um por um, mas será difícil fazer-me entender por quem não possui uma solida base de ideias científicas. Resumirei dizendo que neste velho laboratório consumi os trinta anos da minha mocidade em pesquisas pacientíssimas, culminantes na construção daquela antena que o amigo lá vê no alto da torre.

Olhei e vi uns fios entrecruzados formando um desenho geométrico.

— Parece uma teia de aranha! murmurei.

— E é de fato uma teia de aranha. A aranha sou eu. Com essa teia apanho a vibração atômica do momento.

— "Vibração atômica do momento"... repeti, fazendo um furioso esforço mental para compreender a novidade.

— Sim. A vida na terra é um movimento de vibração do éter, do átomo, do que quer que seja uno e primário, entende?

— Estou quasi entendendo. Já li um artigo no jornal onde um sábio provava que só há força e matéria, mas que a matéria é força, de modo que os dois elementos são um, como os três da Santíssima Trindade tambem são um, não é isso?

— Mais ou menos. Nomes não vêm ao caso. Força, éter, átomo: denominações arbitrarias de uma coisa una que é o principio, o meio e o fim de tudo. Por comodidade chamarei éter a esse elemento primário. Esse éter vibra e, conforme o grau ou intensidade da vibração, apresenta-se-nos sob formas. A vida, a pedra, a luz, o ar, as árvores, os peixes, a sua pessoa, a firma Sá, Pato & Cia.: modalidades da vibração do éter. Tudo isso foi, é e será apenas éter.

Não pude deixar de sorrir lembrando-me da cara que fariam os senhores Sá, Pato & Cia. se ouvissem as palavras do sábio. Éter, eles...

— Mas não há somente éter no mundo, continuou o mestre. Se só houvesse éter e fosse de sua essência vibrar, a vibração seria uniforme e tornaria impossível a manifestação de formas de vida. Seria o estatismo eterno.

— Sei, um zum-zum, uma zoada de não acabar mais.

— Muito bem, está compreendendo. A vibração do éter, pois, sofreu a interferência... Sabe o que é interferência?

— Uma coisa que se insinua pelo meio; intrometer a colher torta na conversa dos mais velhos deve ser, cientificamente, uma interferência.

— Perfeitamente. Sofreu a interferência do que cá no vocabulário que criei com minha filha chamo — o Interferente. Isto de palavras não tem importancia, como já disse. Só vale a ideia. O Interferente poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou de Vontade. Os filósofos que filosofam com palavras passam a vida a debater qual a melhor palavra a aplicar ao meu Interferente, como se palavras jamais esclarecessem alguma coisa.

— Vai indo muito bem, professor. Há o éter que vibra e há o Interferente que se mete no meio...

— Isso. Interfere e provoca a variação vibratória. Essa variação cria correntes que se chocam umas com as outras, modificam-e se dão origem a todas as formas de vida existentes. A vida, pois, não passa da vibração do éter modificada pela ação do...

— Interferente! concluí, glorioso.

Parece que o professor Benson mudou a ideia que formava de mim. Viu que o discípulo aprendia depressa e, voltando atrás, como se valesse a pena instruí-lo mais a fundo, passou a explicar-me dezenas de coisas do seu laboratório, na intenção de confirmar-me nos princípios que o levaram á dedução da formula: Éter + Interferência = Vida.

Depois que me viu já bem seguro das suas teorias, continuou:

— Preste atenção agora, que este ponto é capital. O interferente não interfere sempre. O Interferente interferiu uma só vez!

Parei um pouco atordoado.

— Espere, doutor. Dê-me tempo de assentar as ideias. O Interferente veio, interferiu e parou de interferir. É isso?

— Perfeitamente. Quebrou a uniformidade da vibração, perturbou o unissonismo...

— O zum-zum!

— ...e desde então o fenômeno vida, que tambem podemos denominar universo, desenvolve-se por si, automaticamente, por determinismo. As coisas vão-se determinando...

— Uma puxa a outra.

— Isso. Uma determina a outra. Daí vem falarem os velhos filósofos em lei da causalidade, "todo efeito tem uma causa", "toda causa produz efeitos", etc.

—Aristóteles. . . ia eu arriscando.

—Deixe Aristóteles em paz. Estamos na determinação universal, e a vida, ou o universo, é para nós o momento consciente desta determinação.

—"Momento consciente"... repeti forçando o cérebro.

—O senhor Ayrton, por exemplo, é um momento consciente da determinação universal ás 13 horas e 14 minutos do dia 3 de janeiro do ano de 1926, aos 22.° e 35' de latitude S. e 35.° e 3' de longitude ocidental do meridiano do Rio de Janeiro.

—Admirável! exclamei com entusiasmo e cheio de orgulho, compreendendo afinal a minha verdadeira significação na vida. Mas o futuro, doutor? Muito mais que a definição científica do que sou, interessam-me as suas visões do futuro.

—Para lá chegar temos que ir por este caminho. Começamos do éter inicial, admitimos a Interferência e estamos na Determinação, que é o que os filósofos chamam presente... O futuro é a Predeterminação.

Franzi os sobrolhos. A palavra era nova para mim e a ideia muito mais. O professor Benson expô-la com luminosa clareza e mostrou-me o maravilhoso do determinismo. Em certo ponto da sua exposição lembrei-me do amigo corretor e da sua comparação do 2 + 2 = 4. Fingi que era minha a imagem e arrisquei:

— Dois mais dois igual a quatro.

O professor Benson entreparou, com a fisionomia radiante. Em seguida estendeu-me a mão.

— Meus parabéns! Vejo que o senhor Ayrton é muito mais inteligente do que a principio supus. Nessa imagem está toda a minha filosofia; 2 + 2 significa o presente; 4 significa o futuro. Mas, assim que escrevemos o presente 2 + 2, o futuro 4 já está predeterminado antes que a mão o transforme em presente lançando-o no papel. Aqui, porém, são tão simples os elementos que o cérebro humano, por si mesmo, ao escrever o 2 + 2, vê imediatamente o futuro 4. Já tudo muda num caso mais complexo, onde em vez de 2 + 2 tenhamos, por exemplo, a Bastilha, Luis 16, Danton, Robespierre, Marat, o clima de França, o ódio da Inglaterra além Mancha, a herança gaulesa combinada com a herança romana, o bilhão de fatores, em suma, que faziam a França de 89. Embora tudo isso predeterminasse o "quatro" Napoleão, esse futuro não poderia ser previsto por nenhum cérebro em virtude da fraqueza do cérebro humano. Pois bem: eu descobri o meio de predeterminar esse futuro — e ve-lo!

— Mas é assombroso, professor! É a mais espantosa descoberta de todos os tempos! exclamei de olhos arregalados. Entretanto, permita-me uma duvida. Se esse futuro ainda não existe, como o pode ver?

— O 4 antes de ser escrito tambem não existe; no entanto o amigo o vê tão claro no presente 2 + 2 que o escreve incontinente.

O argumento calou fundo. Pisquei sete vezes, com a testa fortemente refranzida.

— O futuro não existe, continuou o sábio, mas eu possuo o meio de produzir o momento futuro que desejo.

Tonteando pelo tom categórico daquela afirmativa não ousei duvidar, e estava ainda apalermado com a maravilhosa revelação quando miss Jane apareceu, esplêndida de formosura. Esqueci toda aquela altíssima ciência que já me dava dor de cabeça e regalei os olhos na sua imagem perturbadora. Saudou-me com um gesto amável e disse, dirigindo-se ao
professor:

— Tinha razão, meu pai. Já fiz o corte e lá só vi as eternas brancuras da neve.

E voltando-se para mim:

—Tem aprendido muita coisa, senhor Ayrton?

—Mais que em toda a minha vida, miss Jane, e começo a bendizer o acaso que me fez vitima de um desastre.

—E está tão no começo ainda! Quando entrar no segredo de tudo e puder ver diretamente uns cortes, o seu assombro vai ser ilimitado.

—Já prevejo isso, senhorita, e...

E engasguei-me. Miss Jane olhara-me nos olhos e eu não era criatura que suportasse de frente um olhar assim. Cheguei a corar, creio, o que inda mais aumentou a minha perturbação. Felizmente a boa criatura, vendo que eu me calava, voltou-se para o professor Benson e disse:

— Mas agora, meu pai, tréguas ás revelações. O café está na mesa e com uns bolinhos tentadores que eu mesma fiz. Senhor Ayrton, vamos...
––––––––
continua… VI – O Tempo Artificial

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

domingo, 25 de setembro de 2011

Paraná Trovadoresco

Almirante Tamandaré Meu amor sempre me espera à tarde com um lanchinho, mas eu fico na quimera de tomarmos nosso vinho. HARLEY STOCCHERO Apucarana Cada um tem seu destino! A pedra faz o castelo, o bronze, a máquina e o sino, o ferro faz o martelo. FAHED DAHER Arapongas Cidade dos passarinhos, Arapongas, Paraná. Aqui se constroem ninhos, que a todos acolhem cá! MARIA GRANZOTO Campo Largo Eu curto todo momento e não perco um só segundo. Num minuto em pensamento posso estar em outro mundo! ÁUREO BAIKA Campo Largo tem história ! … Em caminhos de tropeiros, caminhos que abriram glória e foram os verdadeiros !! MIGUEL ANGEL ALMADA Campo Mourão Professor pro atrasadinho, já com fama de mal-vindo: – Por favor, fique quietinho! – Mas, já tem gente dormindo? SINCLAIR POZZA CASEMIRO Castro Saibamos as leis de cor, Façamos do lar um templo, mas nada educa melhor do que o nosso bom exemplo. HILDA KOLLER Contenda Ao professor muito devo, devo ao médico também. Mas o livro é meu enlevo, tudo que sei dele vem. HILDEMAR CARDOSO MOREIRA Curitiba Sempre que ponho em meus versos as coisas do coração, os pensamentos, dispersos, tomam forma de oração! ALDO SILVA JÚNIOR Deus nos deu inteligência, arbítrio e também saber. Não inverta esta sentença: Viva... e deixe-me viver! ANGELO BATISTA Pinheiros ou araucárias, com formas de belas taças dão pinhas extraordinárias e ao pinhão rendemos graças! ARIANE FRANÇA DE SOUZA A mulher, eu sei, confesso, é luxo da natureza... Fruir seu corpo é acesso às loucuras da beleza! APOLLO TABORDA FRANÇA E na escalada da vida tenho uma grande ambição: de ser a amiga escolhida pra te levar pela mão. ARACELI FRIEDRICH Diz um sábio singular este aforismo, a valer: Deus criou o bem e o mal compete à gente escolher. ARGENTINA DE MELLO E SILVA A passarada desperta canta louvores ao dia e a flor se dá por oferta enquanto o fruto anuncia. ANTÔNIO SALOMÃO Para observador atento, sempre há o que ouvir e ver. Mesmo nas vozes do vento, encontrará o que aprender. CAMILO BORGES NETO No comércio, o cidadão, nunca vive sossegado. Quando escapa do ladrão, cai no golpe do fiado. CASSIANO SOUZA ENNES Sol e chuva, distinção, desta Cidade Sorriso sob qualquer condição, me sinto no paraíso!!! CECÍLIA SOUZA ENNES Não seja bobo, sorria das coisas que vê na vida. Faça uma trova por dia, que é saúde garantida. CECILIANO JOSÉ ENNES NETO Ao meu Deus peço um favor, bom presente para o mundo: Um saco cheio de amor, daqueles que não tem fundo! CRISTIANE BORGES BROTTO Salve Ano Novo! Risonho, feliz, tranquilo a chegar! Vem, como meu grande sonho: de a tudo e a todos amar! CYROBA BRAGA RITZMANN Quando deito do teu lado e acordo nos braços teus, viajo no céu estrelado e chego perto de Deus! GILBERTO FERREIRA Explode no firmamento um sol de raro esplendor, espargindo pelo vento, eflúvios de eterno amor! GLYCÍNIA DE FRANÇA BORGES Minha mãe que eu adorava, para mim tão boa e linda com tanto amor me falava que lhe escuto a voz ainda! HEITOR BORGES DE MACEDO Faça a criança feliz! Ensine a mesma a pensar. Dê-lhe na ponta do giz razão pra não fracassar! JOSIAS DE ALCÂNTARA É na tarde que desmaia, é numa canção dolente que a saudade se atocaia para apunhalar a gente. LOURDES STROZZI-CURITIBA Se caem do céu as águas com tanta beleza e encanto, por que desencanto e mágoas há nas águas do meu pranto? Mª DA CONCEIÇÃO FAGUNDES Minha sogra, por pirraça, como fosse um megafone, no coreto lá da praça bota a boca no trombone. NEI GARCEZ É na ausência que a saudade nos invade e fere a gente, porque a ausência, na verdade, na saudade está presente. ORLANDO WOCZIKOSKY Na vida vivo tentando tornar meu mundo risonho, pois a tristeza vem quando existe ausência de um sonho. VANDA ALVES DA SILVA Se ausência é cena vazia, guarda, invisível, latente, a marca de algo que, um dia, ali já esteve presente VANDA FAGUNDES QUEIROZ Descontraia sua testa, sorrir é grande investida! Quem transforma a vida em festa vence tensão reprimida! VÂNIA MARIA DE SOUZA ENNES A tua ausência é o refrão de uma tristeza sem fim, onde o tempo ao dizer não, permite à dor dizer sim. WALNEIDE FAGUNDES DE S. GUEDES As nuvens choraram tanto, que o sol compensa o escarcéu, tecendo com doce encanto mais sete cores no céu! WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ Ibiporã Semblante santificado cabeleira cinza escuro, mamãe viveu seu passado planejando meu futuro. MAURICIO FERNANDES LEONARDO Irati Toda semente que eu planto nos sulcos da minha dor, germina regada em pranto, mas, desabrocha em amor! MAFALDA DE SOTTI LOPES Ivatuba Volta, amor! – é o teu retorno felicidade e prazer. Teu corpo é um caminho morno que eu adoro percorrer! ELIDIR D’ OLIVEIRA Joaquim Távora Pôr-do-sol, campos desertos, e o pinheiro então parece estar de braços abertos a sussurrar uma prece. ADILSON DE PAULA Lapa Nas águas mansas do lago, nas verdes ondas do mar, nas delícias de um afago, vejo a mão de Deus pairar. JOSÉ WESTPHALEN CORRÊA Londrina “Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe…” - Por mais que um ser nos perfure, que nossa alma não desabe! CIDINHA FRIGERI Maringá  Neste planeta sofrido, com tanto lixo fedendo, há muito louco varrido, pouca vassoura varrendo. ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS Flores e folhas caindo, que lindo é este processo… O outono chega sorrindo, pois renascer é sucesso! ARLENE LIMA Senhor, neste amanhecer, louvo a tua criação: da aurora ao entardecer, eu te encontro em meu irmão! CÔNEGO BENEDITO VIEIRA TELLES Ausência é uma coisa séria, sobretudo a dos ateus, que só vivem da matéria, ausentando – se de Deus. JOSÉ BIDÓIA  Diante do encanto desfeito por promessas não cumpridas, eu sempre encontro outro jeito de entrelaçar nossas vidas. OLGA AGULHON Quem tem sonhos hoje em dia, nunca perca a esperança. Diz velha sabedoria: “Quem espera sempre alcança!” JOSÉ FELDMAN Morretes A primavera cantemos anos juvenis, risonhos… Além nós todos sabemos, restarão só nossos sonhos! LÚCIO DA COSTA BORGES Palmeira Confesso é no teu perfume e no sabor do teu beijo, que para mim se resume a volúpia do desejo. HEITOR STOCKLER DE FRANÇA Paranaguá Se o beijo guarda o perfume de estranha, esquisita flor é porque o beijo resume a vida e a glória do amor. LEÔNCIO CORREIA Paranavaí A trova quando é sentida viaja em nossa emoção Nos faz fiéis toda a vida, une os povos, faz irmãos DINAIR LEITE A Terra no seu início, foi palácio verde em flor! Agora é um precipício de enchentes e dissabor. OTAVIO LEITE GOETTEN Eu comprei uma ampulheta pra entender o tempo assim. Vi que era uma silhueta de um vai e volta sem fim. RENATO LEITE GOETTEN Pinhais Meu girassol pobrezinho saudoso, não resistiu. Morreu olhando o caminho por onde meu bem partiu… LIGIA CHRISTINA DE MENEZES Pinhalão Todo filho vem dos pais, vem o mel da flor silvestre; não há dor sem dor nos ais nem discípulo sem mestre. LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE Piraí do Sul Contra mágoas, dissabores, um santo remédio há. Receita: Rua das Flores – Curitiba – Paraná. VERA VARGAS Piraquara A saudade rasga o véu do tempo e traz do passado minha mãe, que lá do céu sempre tem me abençoado. HORÁCIO F. PORTELLA Ponta Grossa A esperança em nossa vida, pelo valor que ela ostenta, pode até ser resumida, como o pão que nos sustenta. AMÁLIA MAX Registrando alguma ausência, contabilidade ingrata, nosso amor pediu falência, desistiu da concordata! FERNANDO VASCONCELOS Um erro, mesmo pequeno, ganha maior dimensão pela força do veneno que há na ausência do perdão… MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA Entre todos os recantos é aqui que me sinto bem: - o meu lar tem tais encantos que outros lugares não têm! SONIA MARIA DITZEL MARTELO Quatro Barras Nas noites da minha vida, vida errada, vida certa, cada estrela me convida a uma nova descoberta. AIRO ZAMONER Rio Branco do Sul A vida é um mar de rosas legando beleza e olor, às criaturas bondosas, que sabem semear o amor. SARA FURQUIM São Jerônimo da Serra Belo e vetusto pinheiro! Tão alto… é grande a distância… foi meu leal companheiro nos doces anos da infância… DÉSPITA PERUSSO São Jorge do Ivaí Tão suave é o teu carinho: Há nele a calma de um lago… - Tem a ternura de um ninho e a paz de um materno afago! HULDA RAMOS GABRIEL São José dos Pinhais Esta estação é tão linda… Cobrindo os campos de flores. Que seja sempre benvinda! Com alegria e muitas cores. PATRÍCIA CRISTIANE DE SIQUEIRA São Mateus A frase dura que escapa da boca de muitos pais é tão cruel como um tapa e, às vezes, machuca mais! GERSON CESAR SOUZA Tomazina Curitiba tem seus bares com requinte de Paris, Aos boêmios, seus altares, e aos poetas, lar feliz. CECIM CALIXTO União da Vitória Quero rever os meus pagos, ouvir toda a velha história. Quero sentir os afagos… da minha União da Vitória! HELY MARÉS DE SOUZA
Fonte: Almanaque Paraná 1 e 2.

Pedro Ornellas (Trovas: Saudade é…) Parte 6 e final


101
Saudade - coisa engraçada:
é tal qual água corrente
que quisesse, já passada,
voltar de novo à nascente.
Antônio Zoppi – Americana SP

102
Saudade é imenso navio
no mar de minha existência,
a navegar no vazio
deixado por sua ausência...
João Paulo Ouverney – Pindamonhangaba SP

103
É tão viva tal sentença
Que tenho na consciência:
A saudade é a presença
Constante da tua ausência!
Ivan Herzog de Oliveira – Petrópolis RJ

104
A saudade é uma semente
de lágrimas orvalhada;
brota na noite do ausente
e floresce na alvorada.
Maria Thereza Cavalheiro – São Paulo

105
Saudade é gota caída,
é pranto que ninguém vê:
-É uma lágrima sentida
que leva sempre a você.
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

106
A distância é um horizonte
separando as existências.
Saudade é uma longa ponte
ligando duas ausências.
Antônio Zoppi – Americana SP

107
Saudade – ventura ausente,
Um bem que longe se vê,
Uma dor que o peito sente,
Sem saber como e porquê.
Bastos Tigre – Recife PE

108
- Que é saudade? - Reticências...
Vozes de ontem num cicio...
Um cheiro forte de essências
que guarda o frasco vazio...
Maria Thereza Cavalheiro – São Paulo

109
É a saudade um recado
que parece até incoerente
pois lembra um bem do passado
que causa dor no presente.
Carmen Felicetti – Petrópolis RJ

110
Saudade - mãos de veludo
que nos levam ao passado,
onde reencontramos tudo
em escombros transformado.
Colombina – São Paulo SP

111
"Saudade" - tema da prova
que me vence, me intimida...
- Quem pode pôr numa trova
o que enche toda uma vida?
José Maria M. de Araújo – Rio de Janeiro RJ

112
Saudade - coisa que a gente
não explica nem traduz;
faz do passado, presente,
e traz sombras, sendo luz...
Colombina – São Paulo SP

113
É sempre assim a saudade:
luz nas sombras da incerteza,
mal a ferir sem maldade,
pranto a sorrir na tristeza.
Francisco Nogueira - SP

114
Saudade é grito gaudério,
que num segundo se expande
e forma seu grande império
nas coxilhas do Rio Grande.
Ayda – Santiago RS

115
O amor quando acaba, cobra
tributo que nos assalta.
Saudade é aquilo que sobra
daquilo que já nos falta.
Antônio Zoppi – Americana SP

116
Saudade é o fundo de um poço
onde minha alma vegeta,
mantendo vivo, no fosso,
o coração do poeta!
Francisco Macedo – Natal RN

117
Saudade, meiga Saudade
filha do amor e da ausência,
és a nossa mocidade
durante toda a existência.
Bastos Tigre – Recife PE

118
Definir o que é saudade
é difícil como quê...
É espécie de enfermidade
de estar longe de você.
Vera Milward de Carvalho – Caxambu MG

119
De alguém que amamos, a imagem
que está longe vemos perto...
- Saudade é como miragem
que engana o olhar no deserto.
Stélio Autran – Rio de Janeiro RJ

120
A alma gela-se de tédio,
enchem-se os olhos de ardor.
Saudade – dor que é remédio,
remédio que aumenta a dor!
Bastos Tigre – Recife PE

121
Resto da chama incontida
do amor, outrora envolvente,
saudade – é fumaça ardida
queimando os olhos da gente!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

122
Pondo-me agora em contato
com meus sonhos de criança,
saudade é porta-retrato
na carteira da lembrança!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

123
Num constante escarafuncho
que eu condeno mas aceito
esta saudade é um caruncho
causando estrago em meu peito!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

124
Sodade, pra sê bem franco,
é uma perebinha à toa,
mas que a casca eu sempre arranco
pro módi a cocera boa!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

125
Saudade é um retrato antigo,
na carteira, desbotando,
que eu sempre levo comigo
para olhar de vez em quando!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

126
Saudade é uma voz sem fala
é mal que a cura dispensa...
é uma ausência que se instala
disfarçada de presença!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

127
Saudade, uma dor infinda,
um barco longe do cais...
Desejo de ter-se ainda
o que já não se tem mais!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

128
Pelos trilhos da lembrança,
a saudade, trem expresso,
traz, no vagão da esperança
meu passado de regresso!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

129
De tudo o que já foi dito
resta dizer que a saudade
é um velho poema escrito
com tinta de mocidade!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

130
Que gosto dela eu assumo,
pelo bem que faz agora...
Porque a saudade é o resumo
dos bons momentos de outrora!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

131
Saudade, doce tristeza,
resto de um sonho frustrado...
Brasa teimosa, ainda acesa
entre as cinzas do passado!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

132
Felicidade – inebriante
coquetel servido a dois...
Saudade – a conta gigante
que a vida manda depois!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

133
Saudade, um sonho guardado...
magia que se eterniza...
num filme bom do passado
que o pensamento reprisa!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

134
Por uma prenda, o rabicho
que por teimoso eu sustento,
faz da saudade bolicho
que toda noite eu freqüento!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

135
Não me dá chance de fuga
esta saudade que amarga...
Parece até sanguessuga
que quando gruda, não larga!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

136
Faz companhia ao sozinho,
permite ao velho ser jovem
- Saudade - estranho moinho
que as águas passadas movem!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

137
É soberana e dispensa
todo escrutínio que eu faça...
Saudade, eterna presença
de um passado que não passa!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

138
Saudade é dor que maltrata...
É a mente correndo atrás
de coisas que a vida ingrata
leva e de volta não traz!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

139
Amarelado e restrito
aos aposentos do peito,
Saudade é um poema escrito
no pretérito perfeito!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

140
Saudade dói, mas conforta,
e ao confortar, no abandono,
faz papel de folha morta
que enfeita os quadros de outono!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

141
Vi meu drama retratado
numa canção boiadeira;
se a saudade é o boi malvado,
sou "menino da porteira"!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

142
Saudade, de forma clara,
define assim quem amou:
é uma lembrança que pára
de um tempo que não parou!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

143
Saudade é fada menina
cujo lar de habitação
é uma casa pequenina
nos fundos do coração!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

144
Saudade é chama que brilha
de um lampião encantado
lançando luz sobre a trilha
que nos conduz ao passado!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

145
Saudade lembrança boa
de quanto a vida era bela
por conta de uma pessoa
que um dia fez parte dela!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

146
Saudade é a teima esquisita
em se apegar a um passado
que a gente não acredita
que tenha mesmo passado!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

147
Saudade, um perfil risonho
que ao ser por mim recomposto,
toda vez que recomponho
ganha os traços do teu rosto!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

148
Saudade é um bem que da gente
há muito já se apartou
mas continua presente
nas lembranças que deixou!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

149
Saudade, espelho da vida,
dentro do peito guardado
que sempre traz refletida
a imagem do meu passado!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

150
Saudade é joçá de roça
que vem dos canaviais;
sem que se coce já coça...
E se coçar, coça mais!
Pedro Ornellas – São Paulo/SP

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Florbela Espanca (Mensageira das Violetas) II


JUNQUILHOS...

Nessa tarde mimosa de saudade
Em que eu te vi partir, ó meu amor,
Levaste-me a minh'alma apaixonada
Nas folhas perfumadas duma flor.

E como a alma, dessa florzita,
Que é minha, por ti palpita amante!
Oh alma doce, pequenina e branca,
Conserva o teu perfume estonteante!

Quando fores velha, emurchecida e triste,
Recorda ao meu amor, com teu perfume
A paixão que deixou e qu'inda existe...

Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde,
Que venha aquecer-se ao brando lume
Dos meus olhos que morrem de saudade!

MENTIRAS

Ai quem me dera uma feliz mentira

que fosse uma verdade para mim!

J. Dantas


Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito...

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!

AOS OLHOS DELE

Não acredito em nada.
As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar.

E assim fugiram o
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:

Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Mas avisto os teus olhos, meu amor,

Duma luz suavíssima de dor... E grito então ao ver esses dois céus:
Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

DOCE CERTEZA

Por essa vida fora hás-de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d´ouro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d´ouro e risos de mulher,
Muito beijo d´amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer...

Hás de tecer uns sonhos delicados...
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!...

Mas nunca encontrarás p´la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d´amor que são meus versos!...

VERSOS

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...

Versos!... Sei lá! Um verso é o teu olhar,
Um verso é o teu sorriso e os de Dante
Eram o teu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês...

À TUA PORTA HÁ UM PINHEIRO MANSO

À tua porta há um pinheiro manso
De cabeça pendida, a meditar,
Amor! Sou eu, talvez, a contemplar
Os doces sete palmos do descanso.

Sou eu que para ti atiro e lanço,
Como um grito, meus ramos pelo ar,
Sou eu que estendo os braços a chamar
Meu sonho que se esvai e não alcanço.

Eu que do sol filtro os ruivos brilhos
Sobre as louras cabeças dos teus filhos
Quando o meio-dia tomba sobre a serra...

E, à noite, a sua voz dolente e vaga
É o soluço da minha alma em chaga:
Raiz morta de sede sob a terra!

A TUA VOZ DE PRIMAVERA

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

TRAZES-ME EM TUAS MÃOS DE VITORIOSO

Trazes-me em tuas mãos de vitorioso
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso
Que a solitária estrada perfumou.

Neste meio-dia límpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.

O silêncio, ao redor, é uma asa quieta...
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de tulipa entreaberta...

Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo...
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo...

EU...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

TORTURA

Tirar dentro do peito a emoção,
A lúcida verdade, o sentimento! –
E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso d´alto pensamento,
E puro como um ritmo d´oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

A MINHA DOR

A você

A minha dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres d´agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro!
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

A FLOR DO SONHO

A flor do sonho, alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!...
Milagre... fantasia... ou talvez, sina....

Ó flor, que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh´alma
E nunca, nunca mais eu me entendi...

NOITE DE SAUDADE

A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão ´scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

AMIGA


Deixa-me ser a tua amiga, amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa, a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom!
Seja o que for Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...

PARA QUÊ?!

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que nosso peito ri `a gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d´amor? Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d´amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Fonte:
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket).

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) II – A Minha Aurora; III – Capitão Nemo


CAPITULO II
A Minha Aurora

Pela primeira vez depois de recolhido àquela mansão punha eu o nariz fora do meu quarto de doente.

Senti-me surpreso. A casa do professor Benson não era ao tipo da casa vulgar. Dava antes ideia de uma espécie de castelo, não pelo estilo, que não lembrava nenhum dos castelos clássicos que eu vira reproduzidos em cartões postais, mas pela massa e o estranho da construção. Olhei para aquilo com marcado espanto. Além do corpo fronteiro, evidentemente moradia familiar, erguiam-se pavilhões, galerias envidraçadas e vários minaretes altíssimos, ou, melhor, torres de ferro enxadrezado, entretecidas de fios de arame.

— Que diabo de casa é esta? perguntei ao criado, voltando-me para ele.

O criado, um tipo de misterioso aspecto e mais com ar de autômato do que de gente, permaneceu imovel atrás de mim, sem mostras de ter ouvido.

Repeti-lhe a pergunta, e nada. Lembrei-me então da minha conversa com o corretor, quando me deu informes sobre o sábio Benson e contou que vivia misteriosamente, servido por criados mudos. Sem duvida era aquele um dos tais. Isto me fez estremecer. O pouco que eu vira já me provara não ser o morador do castelo um homem comum — e o viver servido por mudos ainda mais me aguçava a ponta do enigma.

Prossegui, entretanto, no meu passeio, conformado em fazê-lo cm silencio, uma vez que o mutismo era a senha da casa. Em redor do castelo estendiam-se campos e florestas. Região montanhosa mas de relevo suave, cochilas mansas que ao longe ganhavam corpo até se erguerem na morraria de um dos contrafortes da serra do Mar. Nos vales, belos capões de mata virgem; e nas lombas, um tapete de gramíneas crioulas, naquela época revestidas de florzinhas róseas.

Notei logo que a natureza não era ali trabalhada. Tudo vivia em estado selvagem, sem sombra de intervenção humana além da impressa nos caminhos. Nem gado nas pastagens, nem sombras de cultura — porteiras ou cercas. Um pedaço de natureza virgem onde o homem só abriria passagens que lhe dessem o gozo das perspectivas naturais.

Compreendi que não estava numa fazenda. Homem de posses, o professor Benson teria aquilo apenas para recreio dos sentidos, sem o menor recurso ás possibilidades do solo. Unicamente em redor da casa havia algo beneficiado: belo jardim todo garrido de rosas; aos
fundos, o pomar.

Caminhei por espaço de meia hora e, no alto de uma colina, sentei-me no topo de um cupim para admirar a vista soberba dali descortinada. Impressionava estranhamente aquele castelo de inexplicável arquitetura, em meio duma natureza rude e calma, onde só uma ou outra ave silvestre rompia o silencio com o seu piar.

Afeito ao meu viver de cidade, no tumulto das ruas, aquele silencio e aquela solidão punham-me novidades n'alma. Senti no cérebro um referver de ideias novas, a saírem da casca que nem pintos.

A impressão geral que tive diante da natureza liberta da presença e ação do homem, coisa que via pela primeira vez, foi da minha absoluta nihilidade — da nihilidade absoluta dos meus patrões, naquele momento a se esbofarem no escritório e a maldizerem do empregado desaparecido sem licença. — Para eles era eu o empregado — e tambem vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde peça da maquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia. houveram por bem montar dentro de uma certa aglomeração humana. Mas ali não me via empregado de ninguém; era um ser igual ás ervas que esverdeciam as colinas, ás árvores que frondejavam nas grotas e ás aves que piavam nas moitas. Sentia-me deliciosamente integrado na natureza.

Minha loquela desaparecera. A necessidade de falar a todo o transe, tamanha que me fazia ás vezes falar sozinho, se substituira pela necessidade do silencio. Cheguei a agradecer a finura do velho sábio em dar-me um companheiro mudo, compreendendo que, se em vez dele ali estivesse o meu barbeiro, terrível alto falante de futebol e jogo de bicho, bem certo que eu chegaria ao extremo de amordaça-lo.

Talvez até nem fosse mudo de nascença o criado, mas apenas emudecido por influição local. Comigo vi que tambem emudeceria, se permanecesse algum tempo naquele deserto. O ar livre abriu-me o apetite e o apetite aberto fez-me lembrar do almoço e da ordem de aparecer antes dele no gabinete do professor Benson. Tratei de voltar — e ao pôr pé no castelo já me sentia bem outro homem, varrido das preocupações de outrora e absolutamente exonerado, por incompatibilidade psicológica, das funções de factotum crônico dos senhores Sá, Pato & Cia.

CAPITULO III
O Capitão Nemo

Quando o criado me fez entrar no gabinete do doutor Benson o velho não se achava ali. Aproveitei o ensejo para correr os olhos pelas paredes e admirar, ou antes, embasbacar-me com as estranhas coisas que via. Devo dizer que não compreendi nada de nada.

Conhecia o gabinete de trabalho dos meus patrões e o de muitos outros negociantes. Tambem conhecia consultórios médicos, salas de advogado, salões de hotel, e facilmente tomava pé num deles. Os moveis, os quadros das paredes, os objetos de cima de mesa, os bibelôs, as estatuetas, essas coisas todas me valiam por marcas digitais das que revelam a profissão do dono. No gabinete do professor Benson, porém, tudo me era desnorteante e, fora as poltronas, nas quais o corpo afundava, como nas do Derby Club, onde estive uma vez á procura dum figurão, tudo mais me valia por citações em caracteres chineses numa página em lingua materna. Pelas paredes, quadros — não quadros comuns com pinturas ou retratos, mas quadros de mármore, como os das usinas elétricas, inçados de botõezinhos de ebonite. E reentrâncias, afunilamentos que se metiam pelos muros como cornetas de gramofone, lâmpadas elétricas dos mais estranhos aspectos, grupos de fios que vinham aos quatro, aos cinco, aos vinte e de repente se sumiam pelo muro a dentro.

Todavia, o que mais me prendeu a atenção foi, ao lado da secretária do professor, um enorme globo de cristal, e sobre ela, apontado para o globo, um curioso instrumento de olhar, ou que me pareceu tal por uma vaga semelhança com o microscópio.

Eu lera em criança um romance de Julio Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas, e aquele gabinete misterioso logo me evocou varias gravuras representando os aposentos reservados do capitão Nemo. Lembrei-me tambem do professor Aronnax e senti-me na sua posição ao ver-se prisioneiro no "Nautilus".

Nesse momento uma porta se abriu e o professor Benson entrou.

— Bom dia, meu caro senhor... Seu nome? Ainda não sei o seu nome.

— Ayrton Lobo, ex-empregado da firma Sá, Pato & Cia., respondi, fazendo uma reverencia de cabeça e carregando no ex com infinito prazer.

— Muito bem, disse o professor. Queira sentar-se e ouvir-me.

O hábito de sempre falar de pé aos ex-patrões impediu-me de cumprir a primeira ordem dada pelo meu novo chefe, e vacilei uns instantes, permanecendo perfilado. O professor Benson compreendeu a minha atitude; pos-me a mão no ombro e, paternalmente, murmurou na sua voz cansada:

— Sente-se. Não creia que o vou reter aqui como a um subalterno. Disse que iria ser o meu confidente e os confidentes não se equiparam aos homens de serviço. Sente-se e conversemos.

Sentei-me sem mais embaraço, porque o tom do misterioso velho era na realidade cordial.

— O senhor Ayrton, pelo que vejo e adivinho, é um inocente, começou ele. Chamo inocente ao homem comum, de educação mediana e pouco penetrado nos segredos da natureza. Empregado no comercio: quer dizer que não teve estudos.

— Estudos ligeiros, ginasiais apenas, expliquei com modéstia.

— Isso e nada é o mesmo. Eu preferia ter para confidente um sábio ou, melhor, uma organização de sábio, inteligência de escol, das que compreendem. Em regra, o homem é um bipede incompreensivo. Alimenta-se de ideias feitas e desnorteia diante do novo. Mas costumo
respeitar as injunções do Acaso. Ele o trouxe ao meu encontro, seja pois o meu confidente. E saiba, senhor Ayrton, que é a primeira criatura humana aqui entrada desde que conclui a construção deste laboratório.

—O castelo, quer dizer?

—Sim, o castelo, como romanticamente lhe apraz chamar esta oficina de estudos onde realizei a mais extraordinária descoberta de todos os tempos.

Sem querer dei um recuo na poltrona, pensando logo na pedra filosofal e no elixir da longa vida.

— Não se assuste, nem arregale, dessa maneira, os olhos. Nem tente adivinhar o que é. Saiba apenas que se acha diante de um homem condenado a levar consigo ao túmulo o seu invento, porque esse invento excede á capacidade humana de adaptação ás descobertas. Se eu o divulgasse, pobre humanidade! Seria impossível prever a soma de consequências que isso determinaria. Se houvesse, ou antes, se predominasse no homem o bom senso, a inteligência superior, as qualidades nobres em suma, sem medo eu atiraria á divulgação a minha maravilhosa descoberta. Mas sendo o homem como é, vicioso e mau, com um pendor irredutível para o despotismo, não posso deixar entre eles tão perigosa arma.

— Quer dizer, atrevi-me a murmurar, que se o doutor quisesse...

— Se eu quisesse, interrompeu-me o velho sábio, tornar-me-ia o senhor do mundo, pois me vejo armado de uma potência que até hoje os místicos julgaram atributo exclusivo da divindade.

Dei novo recuo na cadeira, desta vez meio na duvida se falava com um somem sadio dos miolos ou com um maluco. O ar sempre sereno do professor Benson acomodou-me, porém.

— Mas não quero. A dominação sobre o mundo não me daria prazeres maiores que os que gozo. Não me faria ver mais azul e límpida aquela serra, nem respirar com mais prazer este ar puro, nem ouvir melhor música que a do sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar. Além disso, estou velho, tenho os dias contados e nada do que é do mundo consegue interessar-me. Vivi demais, satisfiz demais a minha outrora insaciável, mas hoje saciada, curiosidade de sábio. Só aspiro a morrer sem dor e desfazer-me na vida do universo transfeito em átomos. Quem sabe se cada um desses átomos não levará consigo a capacidade de gozo que há em mim, e se com esse desdobramento não elevo ao extremo as minhas possibilidades?...

Não compreendi muito bem, lento que sou de espirito, a alta filosofia do professor; mas calei-me, cheio de admiração pelo homem que podendo ser imperador, presidente de republica, rei do aço, sultão ou o que lhe desse na telha, visto que podia tudo, contentava-se com ser um misterioso velhinho ignorado do mundo e á espera da morte naquele sereno recanto da natureza.

Nisto um criado surgiu á porta e fez sinal.

— Vamos ao almoço, senhor, Ayrton. Depois continuarei nas minhas confidências, disse-me o professor erguendo-se com dificuldade da poltrona.
––––––––
continua… IV – Miss Jane; V – Tudo Eter que Vibra

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 345)

Uma Trova Nacional

Uma Trova Potiguar

Nas flores de meu terraço,
cultivo o amor à beleza,
e assim preservo um pedaço
do primor da natureza.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Amparo/SP
Tema: NATUREZA - Venc.

Grassa o inverno... E a natureza
se agasalha, enquanto espera
para eclodir, em beleza,
nas flores da primavera!
–ALMIRA GUARACY REBELO/MG–

Uma Trova de Ademar

Minha mente é qual jazida
onde o verso prolifera...
De poesia eu pinto a vida
com cores da primavera!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

A primavera opulenta,
rica de cantos e cores,
palpita, anseia, rebenta,
em cataclismo de flores.
–GUERRA JUNQUEIRO/PT–

Simplesmente Poesia

Acróstico
–SERGIO SEVERO/RN–

P assa o Inverno e éis chegada,
R adiante, a Primavera,
I ndicada pelas Flores,
M uitos Tons e mil Olores,
A pós um ano de espera.
V enha, Linda Primavera,
E colora minha Vida,
R epondo a Graça perdida,
A nda! Que o Verão não espera.

Estrofe do Dia

A primavera, é portanto,
diva e berçário das cores,
quando a natureza viva
eclode em seus esplendores,
mostrando a crentes e incréus
todas as cores dos céus
no colorido das flores!
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Reciclagem
–DARLY O. BARROS/SP–

O outono chega e o seu poder externa,
provando ser do clima o novo dono
mas, prevenida, a natureza hiberna
– colo de mãe e só o quer, no outono...

E como é próprio da missão materna,
zelosa, a terra vela por seu sono:
entre deveres e atenções se alterna
sonhando-a, gloriosa, no seu trono...

Com esse fito, age – o tempo é breve –,
se a brisa sopra, ainda só de leve,
há que pensar no inverno e em seus rigores!

Meses mais tarde, coroando a espera,
a terra-mãe exibe a primavera,
engalanada de verdor e flores...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Ialmar Pio Schneider (Participação e Poesia)

aquarela de Angela Ponsi
Vivemos numa época conturbada, mas nem por isto é necessário mergulharmos na solidão e ignorar o que existe ao nosso redor. Sempre encontraremos alguém que possa nos compreender, com nossos defeitos e virtudes e nos aceitar. Segundo meu entender, não fomos criados para o ostracismo, nem jamais seremos auto-suficientes, pois “uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto”. Assim aprendi desde cedo.

Em certa fase da vida, quem sabe atravessando momentos existenciais difíceis, compus o seguinte soneto, que consta na pág. 133 do meu livro Poesias Esparsas Reunidas, abaixo referido, como segue:

SONETO DA LIBERTAÇÃO –

Quero o caminho da libertação
para seguir na vida mais confiante,
se alimentava mórbida ilusão
procurarei bani-la, doravante.

Preciso estar alerta a todo instante
e suportar a humana condição,
minha vigília deve ser constante
neste universo envolto em turbilhão…

Levo comigo a chama da esperança
e apesar dos percalços da existência
tenho fé, tenho amor, tenho confiança…

Não mais serei o náufrago perdido
pelos mares da angústia e da impaciência,
porque vencendo-me, terei vencido !

- Canoas - 29.01.85.

Lá se vão mais de quinze anos e quando o leio, ainda me parece tão atual, pois muito me ajudou a transpor certa fase que me deprimia, sensivelmente. Não posso ignorar que todos tenhamos a cruz para carregar e o calvário de cada um é a passagem terrena. Por isso que procuro dentro da filosofia, motivos que me levem à participação por intermédio da própria poesia, utilizando meu gênero preferido que é o soneto. Muitos deles (foram tantos), estão impregnados até de pessimismo, mas a mensagem que pretendi imprimir-lhes é de aceitação, sem o que não vejo paz de espírito. Também é certo que existam para todos nós, bons e maus momentos. A vida não passa de uma tragicomédia, plena de altos e baixos, que nos fazem rir e chorar, às vezes até conjuntamente.

Ao finalizar estas poucas e singelas linhas, quero agradecer do fundo do coração aos amigos e colegas que compareceram em minhas sessões de autógrafos na banca da Fundação Cultural de Canoas, na 16ª Feira do Livro de Canoas, nos dias 29 de junho (apesar da chuva ininterrupta) e 7 de julho, quando lancei meu livro de poemas Poesias Esparsas Reunidas, que abrange minha produção poética publicada na imprensa, bem como aos que adquiriram a obra ou me honrem com a leitura dos meus versos. Sem medo de cair em lugar-comum, não tenho palavras que demonstrem cabalmente minha gratidão. Devo dizer simplesmente: Muito obrigado, amigos ! Sejam todos felizes... É o desejo ardente do poeta que existe dentro de mim desde sempre.

Fonte:
http://ialmarpioschneider.blogspot.com/2009_12_01_archive.html

sábado, 24 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 22

Antonio Brás Constante (Assalto (In) Cômodo)


É um assalto!

Como?

Eu disse que é um assalto!

Mas, nem revolver você tem...

É que sou contra a violência. O desemprego me obrigou a partir para o mundo do crime, mas procuro fazer isso de forma pacífica.

Olha. Não me leva a mal, mas o que faz você pensar que eu vou aceitar ser assaltado por alguém que não usa armas e não gosta de violência?

Justamente para evitar mais violência desnecessária. Se você não colaborar comigo e chamar a polícia, vou acabar preso. A prisão vai servir de escola para me transformar em uma pessoa pior. Quando sair de lá provavelmente vou passar a ser violento e agressivo em meus assaltos. Você não quer isso quer?

Sei...

Sem falar que se eu fosse praticante da violência, ao invés de estarmos dialogando calmamente como agora, você estaria com uma arma apontada para sua cabeça, sendo agredido, humilhado, quem sabe até mesmo morto. Se tivesse problemas cardíacos poderia ter um ataque ou algo parecido...

E você acha que alguém em juízo perfeito vai dar dinheiro para um ladrão somente baseado nesses argumentos?

Claro. Pense bem. Se todos os assaltantes agissem assim, não haveria tantas mortes, violência, famílias que perdem seus maridos, filhos, irmãos entre outros em assaltos. As verbas contra a violência poderiam ser destinadas para outros fins como a geração de empregos, diminuindo assim o índice de assaltos até finalmente acabar com eles de vez.

Ok. Toma este dinheiro aqui...

Uau! Tudo isto? Como você é generoso...

Generoso nada. Pega este dinheiro e vai comprar uma arma. Sou um homem da lei. Se essa moda que você está pregando der certo vou acabar sem emprego. Por isso escuta bem, se eu te pegar tentando dar uma de assaltante bonzinho novamente, te prendo e cubro de porrada. Agora some daqui.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Spaceblog

Florbela Espanca (A Mensageira das Violetas) I


CRISÂNTEMOS

Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.
Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d´amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!
Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...
Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!

NO HOSPITAL

À Théa

Na vasta enfermaria ela repousa
Tão branca como a orla do lençol
Gorjeia a sua voz ternos perfumes
Como no bosque à noite o rouxinol.
É delicada e triste. O seu corpito
Tem o perfume casto da verbena.
Não são mais brancas as magnólias brancas
Que a sua boca tão branca e pequena.
Ouço dizer: - Seu rosto faz sonhar!
Serão pétalas de rosa ou de luar?
Talvez a neve que chorou o inverno...
Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:
É um astro cansado, que do céu
Veio repousar nas trevas dum inferno!

VULCÕES

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro...e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...
Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

O MEU ALENTEJO

Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Dourando tudo...ondeiam nos trigais
D´ouro fulvo, de leve...docemente...
As papoulas sangrentas, sensuais...
Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram por entre o ouro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros...
Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador...
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: onde há pintor,
Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?!

PAISAGEM

Uns bezerritos bebem lentamente
Na tranqüila levada do moinho.
Perpassa nos seus olhos, vagamente,
A sombra duma alma cor do linho!
Junto deles um par. Naturalmente
Namorados ou noivos. De mansinho
Soltam frases d´amor...e docemente
Uma criança canta no caminho!
Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d´amor e de ventura,
Ó meu amado e lindo Portugal!

VOZES DO MAR

Quando o sol vai caindo sob as águas
Num nervoso delíquio d´ouro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d´epopéias? Tens anseios
D´amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
...Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

CRAVOS VERMELHOS

Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d´esculturais sorrisos?!
...Bem sei vosso segredo...Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,
O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga..."

ANSEIOS

À minha Júlia

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não ´stendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

A ANTO!

Poeta da saudade, ó meu poeta qu´rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,
Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração...
Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!

NOITE TRÁGICA

O pavor e a angústia andam dançando...
Um sino grita endechas de poentes...
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!...
Tenho medo da noite!... Padre nosso
Que estais no céu... O que minh´alma teme!
Tenho medo da noite!... Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece...
Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ´squece!

ERRANTE

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

CEGUEIRA BENDITA

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho...
Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

Fonte:
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket).

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) I – O Desastre


(ROMANCE AMERICANO DO ANO 2228) (1)
1) Na 1.ª edição o titulo era o seguinte: "O CHOQUE DAS RAÇAS ou O PRESIDENTE NEGRO."

Nota dos Editores

Este romance de Monteiro Lobato, escrito em três semanas para o rodapé d'A MANHÃ, de Mario Rodrigues, no ano de 1926, antes da partida do autor para os Estados Unidos, constitui uma verdadeira curiosidade literária. Embora aparentemente uma "brincadeira de talento", encerra um quadro do que realmente seria o mundo de amanhã, se fosse Lobato o reformador — e em muitos pontos havemos de concordar que sob aparências brincalhonas brilha um pensamento de grande penetração psicológica e social. O conserto do mundo pela eugenia, o ajuste do casamento por meio das "férias conjugais", a criação da cidade de Eropolis, o teatro onírico... Como H. G. Wells, Monteiro Lobato talvez não tenha imaginado coisas, e sim apenas antecipado coisas. (1)

(1) A 1 ª edição de O PRESIDENTE NEGRO trazia a seguinte dedicatória: "A Arthur Neiva e Coelho Netto, dois grandes mestres no trabalho, na ciência e nas letras."

CAPITULO I

O Desastre

Achava-me um dia diante dos guichês do London Bank á espera de que o pagador gritasse a minha chapa, quando vi a cochilar num banco ao fundo certo corretor de negócios meu conhecido. Fui-me a ele, alegre da oportunidade de iludir o fastio da espera com uns dedos de prosa amiga.

— Esperando sua horinha, hein? disse-lhe com um tapa amigável no ombro, enquanto me sentava ao seu lado.

— É verdade. Espero pacientemente que me cantem o numero, e enquanto espero filosofo sobre os males que traz á vida a desonestidade dos homens.

— ?

— Sim, porque se não fosse a desonestidade dos homens tudo se simplificaria grandemente. Esta demora no pagamento do mais simples cheque, donde provém? Da necessidade de controle em vista dos artifícios da desonestidade. Fossem todos os homens sérios, não houvesse hipótese de falsificações ou abusos, e o recebimento de um dinheiro far-se-ia instantâneo. Ponho-me ás vezes a imaginar como seriam as coisas cá na terra se um sábio eugenismo desse combate á desonestidade por meio da completa eliminação dos desonestos.
Que paraíso!

— Tem razão, concordei eu, com os olhos parados de quem pela primeira vez reflete uma ideia. A vida é complicada, existem leis, polícia, embaraços de toda espécie, burocracia e mil peia?, tudo porque a desonestidade nas relações humanas constitui, como dizes, um elemento constante. Mas é mal sem remédio...

E por aí fomos, no filosofar vadio de quem não possui coisa melhor a fazer e apenas procura matar o tempo. Passamos depois a analisar vários tipos ali presentes, ou que entravam e saíam, na azafama peculiar aos negócios bancários. O meu amigo, frequentador que era dos bancos, conhecia muitos deles e foi-me enumerando particularidades curiosas relativas a cada qual. Nisto entrou um velho de aparencia distinta, já um tanto dobrado pelos anos.

— E aquele velho que ali vem? perguntei.

— Oh! Aquele é um caso sério. O professor Benson, nunca ouviu falar?

— Benson... Esse nome me é desconhecido.

— Pois o professor Benson é um homem misterioso que passa a vida no fundo dos laboratórios, talvez á procura da pedra filosofal. Sábio em ciências naturais e sábio ainda em finanças, coisa ao meu ver muito mais importante. E tão sábio que jamais perde. Dou-me com esses rapazes todos que trabalham nas seções de cambio e por eles sei deste homem coisas impressionantes. Benson joga no cambio, mas com tal segurança que não perde.

— Sorte!

— Não é bem sorte. A sorte caracteriza-se por um afluxo de paradas felizes, por uma media mais alta de lucro do que de perda. Mas Benson não perde nunca.

—Será possível?

— É mais que possível, é fato. Deve possuir hoje enorme fortuna. Mora em um complicado castelo lá dos lados de Friburgo, mas não cultiva relações sociais. Não tem amigos, ninguém ainda viu o interior do casarão onde vive em companhia de uma filha, servido por criados mudos, ao que dizem. Você sabe que depois da guerra o mundo inteiro jogou no marco alemão.

—Sei, sim, e fui uma das vitimas...

—Pois o mundo inteiro perdeu, menos ele.

—Absurdo! Só se fabricava marcos para vender.

—Ao contrario, comprava e revendia marcos já feitos. O marco, talvez você se lembre, teve em certo periodo uma oscilação de alta. Renasceram as esperanças dos jogadores e o movimento de compras foi enorme. Benson vendeu nessa ocasião. Logo em seguida começou o marco desandar até zero e para nunca mais se erguer.

—Vendeu no momento exato, como quem sabe qual o momento exato de vender...

—Isso mesmo. Com o franco fez coisa idêntica. Comprou exatamente nos dias de maior baixa e vendeu exatamente nos dias de maior alta. Tem ganho o que quer ganhar, o raio do homenzinho...

—E para que necessita de tanto dinheiro?

—Ignoro. Não leva a vida comum dos nossos ricaços, não dá festas, não consta que seja explorado por mulheres. É positivamente misterioso o professor Benson — um verdadeiro magico que vê através do futuro.

Ri-me da expressão do meu amigo e qual filosofo barato murmurei com superioridade:

— Como pode ver através do que não existe? O futuro não existe...

O corretor respondeu-me com uma frase que naquele momento não compreendi:

— Não existe, sim, mas vai existir necessariamente.

— Dois mais dois — é o presente. A soma quatro é o futuro. Um futuro previsível...

— "Vinte e dois!" gritou uma voz da pagadoria.

Era o meu numero.

— Dois mais dois tambem podem ser vinte e dois, gracejei eu, despedindo-me do filosofo. Adeus, meu caro. Na próxima oportunidade você continuará com a demonstração.

Recebi o dinheiro e saí para o torvelinho das ruas, onde breve se me apagou do cerebro a impressão do professor Benson e das palavras do meu amigo. Mas dá a vida misteriosas voltas e um belo dia, ao despertar de um sono letárgico, quem vi eu diante dos meus olhos, qual um espectro?

O professor Benson!...

Não antecipemos, porém; e antes de mais nada permitam-me que fale um bocado da minha pessoa. Era eu um pobre diabo para toda gente, exceto para mim mesmo. Para mim tinha-me na conta de centro do universo. Penso e sou, dizia comigo, repetindo certo filosofo francês. Tudo gira em redor do meu ser. No dia em que eu deixar de pensar, o mundo acaba-se. Mas isto parece que não tinha grande originalidade, pois todos os meus conhecidos se julgavam da mesma forma.

Eu vivia do meu trabalho, recebendo dele, não o produto, mas uma pequena quota, o necessário para pagar o quarto onde morava, a pensão onde comia e a roupa que vestia. Quem propriamente se gozava do meu trabalho era a dupla Sá, Pato & Cia., gordos e sólidos negociantes que me enterneciam a alma nas épocas de balanço ao concederem-me a pequena gratificação constituidora do meu lucro. Com eles trabalhei vários anos, conseguindo reunir o modesto pecúlio que transformei em marcos e, com grande dor d'alma, vi se reduzirem a zero absoluto, apesar da teoria de que tudo é relativo.

Continuei no trabalho por mais quatro anos, daí por diante já curado de jogatinas e megalomanias. Mas todos nós possuímos um ideal na vida. Meu amigo corretor sonha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquele pobre que ali passa, tocando o realejo que herdou do pai e ao qual faltam três notas, sonha com um realejo novo em que não falte nota nenhuma.

Eu sonhava... com um automóvel. Meu Deus! As noites que passei pensando nisso, vendo-me no volante, de olhar firme para a frente, fazendo, a berros de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e assustadiços pedestres! Como tal sonho me enchia a imaginação!

Meu serviço na casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, comissões de toda espécie. De modo que posso dizer que morava na rua, e o mundo para mim não passava de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes, como os batizei aos homens comuns e aos que circulavam sobre quatro pneus. O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 anos, era um ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar prodígios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassível rodante, o homem superior que não anda, mas desliza veloz. Quantas vezes não parei nas calçadas para gozar o espetáculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante que por eles se metia, a reluzir esmaltes e metais! O ronco de porco do klaxon parecia-me dizer — "Arreda canalha!"

Sonhei, portanto, mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena de esmagamento. E o novo pecúlio, com tanto esforço acumulado depois do desastre germânico, não visava outra coisa. Foi, pois, com o maior enlevo d'alma que entrei certa manhã numa agência e comprei a maquina que me mudaria a situação social. Um Ford.

Os efeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao verem-me chegar ao escritório fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda lhes vi e vacilaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem--me o ordenado. Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes aumentaria o renome da firma o terem um auxiliar possuidor de automóvel próprio. E tudo correria pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis, se eu me não excedesse na fúria de fordizar a todo o transe com o fito de embasbacar pedestres. A paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mês, já não contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro, pus-me a sonhar a aquisição de outro, que chispasse cem quilometros por hora. O aumento de ordenado permitiu-me varias excursões de maluco, nas quais me embriagava aos domingos da delicia de devorar quilometros.

Paguei diversas multas, matei meia dúzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não atendera ao meu insolente "Arreda!" Tornou-se-me o pedestre uma criatura odiosa, embaraçadora do meu direito á rapidez e á linha reta. Pensei até em representar ao governo, sugerindo uma lei que proibisse a semelhantes trambolhos semoventes o transito pelas vias asfaltadas. Adquiri, em suma, a mentalidade dos rodantes, passando a desprezar o pedestre como coisa vil e de somenos importancia na vida.

Por essa época um dos meus patrões encarregou-me de liquidar pessoalmente certo negocio com um freguês morador perto de Friburgo. Muito fácil me seria lá ir de trem, mas um rodante da minha marca sorria dos trens. Fui no meu auto, apesar das ruins informações que me deram do caminho. Meti boa reserva de gasolina e atirei-me qual um doido por estradas de tropa em que, suponho, nenhum automóvel ainda se arriscara a passar. Numerosos contratempos sofri nessa minha "viagem a Damasco", mas mesmo assim tudo acabaria sem novidade se a estrada infame não desembocasse de improviso numa ótima, recém-feita e tão bem conservada como a melhor das pistas de corrida. Mal me vi naquele sétimo céu de macadame, dei toda a força á maquina e desforrei-me da lentidão de até ali com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordinho permitia.

A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azuis ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um céu de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desafeito aos formosos quadros da natureza, distrai-me com a novidade do espetáculo e... cataprus!
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Dormi um longo sono. Quando acordei achava-me num quarto desconhecido, tendo na minha frente... o velho jogador de cambio que eu vira no banco — o professor Benson! Grande foi a minha surpresa, e ainda maior seria se uma forte dor no meu braço direito me permitisse pensar em alguma coisa além da lesão sofrida nesse apêndice do eixo central do universo.

— Onde estou? murmurei, olhando muito espantado para o professor Benson.

— Em minha casa, respondeu ele. Um dos meus homens o encontrou sem sentidos no fundo de um despenhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos.

— O meu Ford em pandarecos! Desgraçado que sou... gemi.

A dor do braço ofendido era grande, mas a minha dor moral muito maior. Creio até que entre perder o carro e perder um braço eu não vacilaria na escolha. Custara-me tanto consegui-lo... E, além do mais, dada a psicologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o ordenado, já que eu voltaria a servi-los a pé como outrora...

Tão negra noticia me sombreou de crepes a alma. Não podia conformar-me com o desastre. Delirei. Soube mais tarde, pelo professor, que nesse delírio uma obsessão única transparecia: o desespero ante o meu retorno á miserável casta dos pedestres...

Mas tudo passa. A dor do braço foi atenuando e a dor moral acompanhou-a nesse amortecimento, de modo que pude erguer-me da cama ao cabo de quinze ou vinte dias.

Vi então desenhar-se na minha frente um problema terrível. Davam-me alta em breve e, não havendo mais razão para permanecer naquela casa estranha, forçoso me seria regressar á cidade. E teria de me apresentar diante dos senhores Sá, Pato & Cia. a pé, murcho, resignado ás suas pilhérias e á lógica redução de salário. Revoltado, deliberei mudar de vida. Quando na manhã seguinte o professor Benson me apareceu no quarto, abri-me com ele.

— Professor, não sei como agradecer o bem que me fez!...

— Fiz o meu dever apenas, declarou com simplicidade o velho.

— Salvou-me a vida, professor. Não fosse a sua preciosa assistencia e o provável era estar eu agora esvoaçando pelo outro mundo, como floco de plaina psíquica. Minha gratidão é imensa. Mas seria infinita se o professor me ajudasse a resolver o problema muito sério que vejo armar-se diante de mim.

— Diga qual é. Já resolvi diversos, tidos como insolúveis, e ser-me-ia grato resolver mais um...

Animado pela bonomia do velho, abri meu coração. Contei-lhe a mediocridade da minha vida, os meus esforços para juntar o pecúlio empatado no automóvel, a transformação que as quatro rodas me operaram na mentalidade e o horror com que via agora o forçado regresso ao pedestrianismo.

— O professor é opulento e pelo que vejo possui uma grande e linda propriedade. Precisará, portanto, de homens que trabalhem nela. Eu não queria sair daqui. Arranje-me uma ocupação qualquer, seja lá qual for. Tenho algumas aptidões e, como a boa vontade é grande, para isto ou aquilo sempre hei de servir. O que não desejo é voltar á cidade e ter de apresentar-me, assim decaído, ante os meus truculentos patrões...

O professor Benson pareceu meditar. Tirou do nariz os óculos de ouro, limpou-lhes os vidros num lenço de linho e depois disse:

—Não necessito aqui de ninguém. Possuo o numero de criados estritamente precisos para conservação desta propriedade e nela não vejo função que o amigo possa desempenhar. E não o admitiria em hipótese alguma, se de dias a esta parte não sentisse cá no coração prenúncios de que minha vida está no fim. Isto me faz sair da política que tenho levado até hoje e aceita-lo em minha companhia como... confidente.

—Confidente?... repeti, sem compreender o alcance da expressão.

—Sim, confidente. Aproveito-me do acaso te-lo trazido ao meu encontro para confiar-lhe a história da minha vida. Mas desde já dou um conselho: guarde segredo de tudo, depois que eu morrer. Não que seja caso de segredo, mas vai o amigo ouvir e ver coisas tão extraordinárias que, se o for contar lá fora, o agarram e o metem no hospício como doido varrido. Digo que guarde segredo para seu bem apenas. Agora saia. Dê pelos campos o seu primeiro passeio de convalescente e antes do almoço procure-me no gabinete.

Findo o discurso o professor premiu o botão duma campainha. Sem demora vi surgir um criado.

— Acompanhe este moço num passeio pelos arredores e Se volta conduza-mo ao gabinete.
––––––-
continua… Capitulo II – À minha Aurora

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.