segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Olavo Bilac (Alma Inquieta:poesias) 1


A AVENIDA DAS LÁGRIMAS

A um Poeta morto

Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
- Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.

E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe à boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.

E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.

Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órgãos do carinho e da felicidade.

Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
- Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.

Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto...
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.

Mas tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente sonhando, às delícias da lua:
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando na corola uma lembrança tua...

O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se imortalizará, pelas almas disperso:
- Porque purificou a torpeza da terra
Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.

Inania verba

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
- Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

Midsummer’s night’s dream

Quem o encanto dirá destas noites de estio?
Corre de estrela a estrela um leve calefrio,
Há queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,
Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pó,
Para purificar o coração manchado,
Cheio de ódio, de fel, de angústia e de pecado...

Que esquisita saudade! - Uma lembrança estranha
De ter vivido já no alto de uma montanha,
Tão alta, que tocava o céu... Belo país,
Onde, em perpétuo sonho, eu vivia feliz,
Livre da ingratidão, livre da indiferença,
No seio maternal da Ilusão e da Crença!

Que inexorável mão, sem piedade, cativo,
Estrelas, me encerrou no cárcere em que vivo?
Louco, em vão, do profundo horror deste atascal,
Bracejo, e peno em vão, para fugir do mal!
Por que, para uma ignota e longínqua paragem,
Astros, não me levais nessa eterna viagem?

Ah! quem pode saber de que outras vida veio?...
Quantas vezes, fitando a Via-Láctea, creio
Todo o mistério ver aberto ao meu olhar!
Tremo... e cuido sentir dentro de mim pesar
Uma alma alheia, uma alma em minha alma escondida,
- O cadáver de alguém de quem carrego a vida...

Mater

Tu, grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava,
Para teus filhos és, no caminho da vida,
Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava
À longe Terra Prometida.

Jorra de teu olhar um rio luminoso.
Pois, para batizar essas almas em flor,
Deixas cascatear desse olhar carinhoso
Todo o Jordão do teu amor.

e espalham tanto brilho as as asas infinitas
Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas,
Que o seu grande clarão sobe, quando as agitas,
E vai perder-se entre as estrelas.

E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,
Fogem da humana dor, fogem do humano pó,
E, à procura de Deus, vão subindo essa escada,
Que é como a escada de Jacó.

Incontentado

Paixão sem grita, amor sem agonia,
Que não oprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possui queria,
E com tão pouco vive satisfeito...

Amor, que os exageros repudia,
Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das mágoas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito...

Viva sempre a paixão que me consome,
Sem uma queixa, sem um só lamento!
Arda sempre este amor que desanimas!

Eu, eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O coração, malgrado o sofrimento,
Como um rosal desabrochado em rimas.

Sonho

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, aparecer à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...

Primavera

Ah! quem nos dera que isto, como outrora,
Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora.
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
“Beijemo-nos! amemo-nos! espera!”

E esse corpo de rosa recendia,
E aos meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço!

Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor).

França Junior (Organizações Ministeriais)


A política é uma das mais sérias preocupações do Brasil, e especialmente desta mui leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, onde a vida pública e privada dos homens de Estado é discutida em altas vozes nos botequins, confeitarias, lojas de charutos, armarinhos, praças e pontos de bondes.

A julgar pela parte afetiva que cada cidadão toma nos negócios oficiais, este país deveria ser uma - república de anjos.

Infelizmente, assim não é.

Os tais anjos brigam por dá cá aquela palha, e os negócios conservam-se sempre no mesmo estado.

Por que brigam? Pelas idéias, pelos princípios.

E quereis saber como, entre nós, se briga pelos princípios?

É assim:

- O Machado Pereira é conservador.

- Está enganado; é liberal.

- Nunca foi liberal; votou sempre com os vermelhos.

- Na última eleição votou conosco.

- Ele é tão conservador, como o Arruda.

- Quem? O Arruda da Guaratiba?

- Sim, senhor.

- Este era liberal, foi demitido por prevaricador...

- É verdade.

- Eu conheço-o como as palmas de minhas mãos. Depois passou-se para os conservadores, quando subiu o gabinete Quintanilha...

- Não foi no gabinete Quintanilha que ele virou casaca, mas sim no ministério do Luís Pereira.

- Ora, meu caro amigo, outro ofício. No ministério do Luís Pereira ele já era republicano, e escrevia na Espada de Dâmocles, um jornal democrata que aqui houve, aquelas célebres cartas contra o chefe do estado assinadas A sentinela.

- Por sinal que o governo, para calar a boca do tal marreco, nomeou-o cônsul para a Suíça.

- E fez mais ainda: deu-lhe o título de conselho.

- Foi uma grande bandalheira!

- Mas era preciso.

- Esses conservadores foram sempre assim.

- E os liberais são ainda piores.

- Sabe o que mais, meu amigo, fique com as suas idéias que eu ficarei com as minhas.

E eis aí o que são as idéias e os princípios, de que falam quase todos.

E pelas idéias e pelos princípios cometem-se injustiças, torce-se a lógica, abocanham-se reputações e quebram-se cabeças às portas das igrejas.

Este exórdio, com tiradas cheirando a artigo de fundo de jornal de oposição, foi-me sugerido pelo papel importante que representa a política em todos os altos da nossa vida.

Quem quiser ver o Rio de Janeiro com febre e perder a cabeça, basta dizer-lhe ao ouvido:

- Caiu o ministério!

A notícia circula de boca em boca, sai do Castelões, entra no Bernardo, pára na Gazeta de Notícias, volta para o Farani, estaca nos pontos dos bondes, embarca nos ditos e percorre um por um todos os arrabaldes.

No dia seguinte não fica ninguém em casa.

A rua do Ouvidor é pequena para conter os curiosos.

Formam-se grupos às portas das lojas, pelas esquinas, e em cada semblante lê-se o seguinte ponto de interrogação:

- Quem foi chamado?

Começam as versões:

- Já sei quem é o organizador.

- Quem é?

- O Soares da Silva.

- Ora, ora!

- Acabo de estar agora mesmo com ele.

- Se não estás caçoando conosco, estás mentindo.

- Quanto apostam?

- Mas como é isto possível, se o Soares partiu ontem com a família para Teresópolis?

- É verdade; porém ontem mesmo recebeu o telegrama e desce hoje.

- Aí vem o Goulart.

- Homem, o Goulart deve estar bem informado.

- Ô Goulart, quem foi o chamado?

- O Silveira de Assunção.

- O que estás dizendo?

- A pura verdade.

- Com os diabos, por esta não esperava eu!

- Estou aqui, estou demitido.

- E dois.

- Mas isto é certo?

- E até aqui já está organizado o ministério.

- Quem ficou na Fazenda?

- O Alberto da Rocha.

- E na Justiça?

- O Brandão. Para a guerra entrou o Felício; para a Agricultura o barão de Pitanga Vermelha...

- O barão de Pitanga Vermelha?!

- Sim. Pois não o conheces?! É o Ladislau de Medeiros.

- Ah! já sei.

- Para Estrangeiros o visconde de Pedregulho; para a pasta do Império o Serzedello e para a da Marinha o Lucas Viriato.

- Quem é o Lucas Viriato?

- Não o conheço.

- Nem eu.

- O que é ele?

- Não sei, mas dizem-me que é rapaz muito inteligente e muito honesto.

- Bom-dia, meus senhores.

- Ora viva, sr. comendador.

- Então, já sabem?

- Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o Silveira de Assunção.

- Não há tal; foi chamado, é verdade, mas não aceitou.

- Mas sr. comendador, eu sei de fonte limpa...

- Também eu sei que o homem esteve no Paço cinco horas a conversar com o Rei, e que de lá saiu à meia-noite, sem se haver decidido coisa alguma.

- Ora aí está quem nos vai dar boas notícias frescas.

- Quem é?

- O conselheiro Anastácio, que ali vem.

- Chama-o.

- Senhor conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade; quem é o homem que vai nos governar?

- Pois ainda não sabem?

- São tantas as versões...

- Pensei que estivessem mais adiantados. Ora, ouçam lá: presidente do Conselho, visconde da Pedra Funda; ministro do Império, André Gonzaga; da Marinha, Bento Antônio de Campos...

- Muito bem, muito bem! Ora, graças a Deus que já se fez alguma coisa que valha a pena.

- Ministro da Fazenda, barão do Bico do Papagaio.

- Para a Fazenda?

- Sim, senhor.

- Porém este homem nunca deu provas de si..., é pouco conhecido..., as circunstâncias em que se acha o país...

- Não diga isto. E aquele aparte que ele deu ao Ramiro na questão bancária?

- Não me lembro.

- Pudera não! O senhor não acompanha os debates parlamentares, não está enfronhado nos negócios do país!

- Vamos adiante.

- Ministro da Guerra, Antônio Horta...

- Magnífico!

- Da Agricultura, João Cesário; e fica na pasta de Estrangeiros o presidente do Conselho.

- Antes ele ficasse na da Fazenda.

- Assim se tinha combinado a princípio; porém depois reconheceu-se que ele andaria melhor como ministro de Estrangeiros: porque já esteve na Europa e fala muito bem diversas línguas.

Após o conselheiro aparece um barão, sucede a este um jornalista, vêm depois diversos empregados públicos, e cada qual traz o seu ministério em um pedacinho de papel, dizendo: - Este é o verdadeiro.

Os políticos da rua do Ouvidor são tipos dignos de sérios estudos.

Em primeiro lugar figura o político bem informado.

É aquele que sabe de tudo.

Exemplo:

- Este ministério devia infalivelmente cair.

- Está visto; ele não podia ficar governando o país eternamente.

- Há muito tempo que os sujeitos andavam brigados! Eu já fui oficial de gabinete e sei o que são essas coisas. Além disso pessoa fidedigna asseverou-me que o Pereira nunca mais pôde tragar o Almeida, desde o dia em que este não quis nomear-lhe o sobrinho para a alfândega da Bahia. O Ernesto Pessoa também não olhava com bons olhos para o Miguel Faria desde a questão do Matadouro, que, a meu ver, foi o que deu com o ministério em terra. O organizador do novo gabinete não é o Matias de Araújo, ou o Siqueira, como dizem por aí. Deixe-os falar; a coisa já está assentada.

- Quem é então?

- É segredo; não posso dizer por hora

Esses políticos bem informados são, em geral, grandes jogadores de voltarete.

Ora, os leitores não ignoram a influência que o voltarete exerce sobre a nossa política.

Segundo rezam as crônicas, até alguns ministérios têm sido organizados em partidas de voltarete, e muitos indivíduos devem ao codilho as posições que ocupam.

Os políticos bem informados, apenas sob um ministério, indicam logo os nomes dos presidentes de províncias, dos chefes de polícia, dos delegados, subdelegados, de todos aqueles, enfim, que vão erguer-se ufanos sobre os destroços da derrubada.

Tipo oposto é o do político que não sabe de coisa alguma, que nada lê, que no fundo é completamente indiferente aos negócios públicos; mas que afeta acompanhar a marcha dos acontecimentos, franzindo o sobrolho e dizendo sempre:

- Isto é uma grande bandalheira!

Quando se encontra com algum amigo, assume um ar misterioso e pergunta-lhe:

- O que há de novo?

- Não sei; fala-se que o ministério caiu e que já está organizado outro.

Então chama-o para um lado, encosta-lhe a boca ao ouvido, e exclama:

- Isto é uma grande bandalheira!

Na primeira esquina encontra-se com outro amigo, e repete-lhe a mesma frase.

Há ainda o tipo do político esperto, que é aquele que tem em cada partido um compadre - probabilidade de subir ao poder.

Os tipos dessa ordem estão sempre com o governo em casa.

É por ocasião das organizações ministeriais que eles sobem à tona d’água, para a pesca.

E no fim de contas não sabem ainda os leitores quais são os novos ministros.

- Nem eu!

Quem é aquele sujeito que ali vem, suando por todos os poros, esbarrando-se nos grupos, e que procura desvencilhar-se dos indivíduos que o perseguem, dizendo-lhes:

- Não sei o que há, senhores; deixem-me, deixem-me pelo amor de Deus!

É um repórter. Já embarcou em dez tilburis e em outros tantos bondes, não dormiu toda a noite, e daria, certamente, um ano de vida para saber aquilo que nem os leitores nem eu sabemos.

O belo sexo também toma parte ativa nesse movimento.

- Tomara já ver este ministério organizado.

- Eu estou pelos cabelos!

- E eu então?! Há dois anos que meu marido está desempregado, e que nós vivemos no...no...Como se chama aquilo, menina, que teu pai fala todos os dias lá em casa?

- No ostracismo, mamãe.

- É isto mesmo. Quando penso que aquele malvado demitiu o Luís por causa das eleições de Santa Rita...

- Meu marido também foi demitido por causa das tais malditas eleições. Eu, se fosse homem acabava com câmaras, com governo, com liberais, conservadores e republicanos, e reformava este país.

Ai! ai! É o que eu digo, muitas vezes. A minha desgraça é vestir saias.

Os sujeitos que alugam carros, e que são os únicos que não têm política, andam também de um lado para o outro à cata dos sete fregueses que são bons, e pagam à boca do cofre.

Os pretendentes roem as unhas, andam às tontas, e são os que mais perguntam.

Dias depois os jornais publicam a organização do gabinete.

O novo ministério é recebido com hosanas pelos correligionários, e a ferro e fogo pelos adversários.

A cidade volta ao seu estado habitual, e eis aí o que é a política.

Tinha razão um amigo meu, sujeito de vistas largas, quando dizia:

- Eu pertenço ao partido que tem por partido tirar partido de todos os partidos.

(Folhetins, 1878.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras.

Florbela Espanca (Mensageira das Violetas) III


VELHINHA

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim: "Já ela é velha!
Como o tempo passa!..."

Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de ouro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...

E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...

IMPOSSÍVEL

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
"Parece Sexta-feira da Paixão.
Sempre a cismar, cismar, d´olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por ´star contente! Pois então?!..."
Quando se sofre, o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado ouviste...

Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...

Os males d´Anto toda a gente os sabe!
Os meus...ninguém... A minha dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...

QUEM?...

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

SEM PALAVRAS

Brancas, suaves mãos de irmã
Que são mais doces que as das rainhas,
Hão de pousar em tuas mãos, as minhas
Numa carícia transcendente e vã.

E a tua boca a divinal manhã
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de pousar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sã.

Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;
Só eles te dirão que tu existes
Dentro de mim num riso d’alvorada!

E nunca se amará ninguém melhor;
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!...

QUE IMPORTA?...

Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção,
Enquanto as asas louras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte,
Toda ela é riso, e é frescura e graça!

Nela refresca a boca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passa?...

O MEU ORGULHO

Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não lembrar! Em tardes dolorosas
Lembro-me que fui a primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!

As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Por que tudo passou e foi quimera,
E por que os muros velhos não dão rosas!

São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: "Não me merecem..."
E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha
E também é nobreza não ter nada!

INCONSTÂNCIA


Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

O NOSSO MUNDO

Eu bebo a vida, a vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Pousando em ti o meu olhar eterno
Como pousam as folhas sobre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!

A vida, meu amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas, hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, amor! ... As nossas bocas juntas!...

ANOITECER

A luz desmaia num fulgor d’aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bênçãos de amor pra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora!

Horas tristes que vão ao meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

CREPÚSCULO

Teus olhos, borboletas de ouro, ardentes
Borboletas de sol, de asas magoadas,
Pousam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu amor não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E a minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...

O silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha.
Um coração ardente palpitando...

EXALTAÇÃO

Viver!... Beber o vento e o sol!...
Erguer Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!...
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrelas desprender!...
A glória!... A fama!... O orgulho de criar!...

Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!...

Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas:
- Como eu sou vossa irmã, ó meus irmãos!...

Fonte:
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket).

França Júnior (Meia Hora de Cinismo)


Comédia em um Ato

(Representada sempre com extraordinário sucesso em todos os teatros do Rio de Janeiro e Estados do Brasil.)

Nota do Autor:
A Quem Ler

Duas palavras sobre aquelles que, na noite de 17 de Julho de 1861, tanto contribuíram para o bom acolhimento, e feliz successo de minha primeira composição.

Apresentando-me pela primeira vez perante uma platéa intelligente e ilustrada, dependia todo o meu futuro de artistas poderosos e eminentes, que podessem com o seu talento supprir o que a penna me negára.

Era assim que, depositando todas as minhas esperanças no Sr. Furtado Coelho e na Sr.a D. Eugênia Câmara, e nos Sr.s. Leal, Peregrino, Henrique e Joaquim Câmara, não fui iludido; e os applausos que obteve a “Meia Hora de Cynismo” vierão confirmar mais uma vez o talento brilhante dos dous primeiros artistas, e o merecimento dos outros.

Exceptuando o Sr. Furtado Coelho e a Sra. D. Eugênia Câmara, artistas superiores à todos os elogios, sem offender o merecimento dos outros, eu destacarei do grupo o Sr. Leal, que na parte de Frederico fez quanto pode fazer um actor de talento e dedicação pela arte. Oxalá receba sempre o Sr. Leal as lições d’aquelle que tanto tem contribuído para melhorar o theatro de S. Paulo, e o seu nome será em breve uma glória para o nosso palco.

O Sr. Peregrino, posto que lhe tocasse um papel de pequena importância, deixou comtudo entrever a habilidade de que é dotado.

Os Srs. Henrique e Joaquim Câmara identificarão-se perfeitamente com os typos que concebi.

Com taes soldados a victoria é certa.

Personagens Atores

Nogueira, estudante do segundo ano F. Coelho
Frederico, estudante de preparatórios Leal
Neves, estudante do terceiro ano Henrique
Macedo, dito do quarto ano Peregrino
Jacó, negociante J. Camara
Trindade, calouro Eugênia Camara
Um Oficial de Justiça não há registro

A cena passa-se em São Paulo – Atualidade.

Ato Único

O teatro representa o quarto de Trindade; ao fundo uma porta aberta e uma janela; duas portas laterais. Junto à janela um cabide com alguma roupa em desordem, uma estante com livros encostada à parede do fundo. À direita um piano, uma mesa no centro como livros espalhados, e a à esquerda uma cama com os lençóis e um cobertor encarnado em desalinho. Cadeiras, etc, etc.

Cena I
(Ao subir o pano ouve-se dentro uma gritaria infernal, na qual devem sobressair as palavras: ó calouro, ó burro, ó ladrão de galinha, ó desfrutável, etc.)

Trindade, só

Trindade (Entrando furioso pela porta do fundo.) – Berra, canalha!...Miseráveis!...Infames que assentam e desmoralizar um homem, qualquer que seja o lugar em que se ache. (Pausa: mudando de tom.) São gaiatices do Senhor Nogueira. (Voltando-se para a platéia.) Os senhores acham isto bonito? Quase todos os senhores são veteranos, pois bem; coloquem-se na minha posição, e façam idéia com que cara passa um homem pela rua sacudido por uma vaia com esta que acabo de tomar! Todas as janelas se abriram, milhares de caras às gargalhadas gritavam na minha passagem, ó burro, ó desfrutável, ó ladrão de galinhas!...Ora, senhores, chamarem burro a mim que fiz há dias uma sabatina brilhante em Direito Natural, sim, senhores, (Com expressão.) uma sabatina brilhante, brilhantíssima. Ao apelo de meu nome marcharei majestoso para o banco augusto dos eleitos, e então pela primeira vez elevei minha voz eloqüente no sagrado recinto do templo da ciência. Os senhores não foram à feijoada? Pois não sabem o que perderam. Mas ah! Qual não foi a minha desesperação, quando, depois dos parabéns e abraços dos meus colegas, vejo-me cercado nos gerais da Academia por um grupo de segundanistas que, atochando-me um barrete vermelho na cabeça, obrigaram-me a correr pelo Largo à guise de uma vítima do Santo-Ofício! Julguei-me no meio de uma horda de selvagens, de Cafres, de Hotetontes, de Antropófagos, sim, de Antropófagos, porque estava vendo a hora em que me comiam, em que me devoravam! Quis resistir; porém quatro valentes piúvas, e milhares de punhos fechados que surdiram como por encanto do grupo negro que e cercava, embargaram-me a voz na garganta, e então pela primeira vez em minha vida tremi; tremi, não o nego, mas foi de raiva. (Indo à porta do fundo, e falando para fora.) Hão de me pagar, miseráveis; hei de lhes mostrar que não se desmoraliza um homem impunemente.

Berra, canalha, que eu hei de a cacete
Rachar a cabeça de algum valentão,
Pregarem uma vaia, domingo, na rua
Num homem como eu que já tem posição!

Infames! Eu juro que a minha vingança
Cruel e terrível tremenda há de ser,
Quão pode um calouro ferido em seus brios
Eu juro, canalha, que em breve hão de ver.

Berra, canalha, que eu hei de a cacete
Rachar a cabeça de algum valentão,
Pregarem uma vaia, domingo, na rua
Num homem como eu que já tem posição!

Do sangue beber-lhes, de acre vingança.

Mas ah! Agora é que me lembro que ainda não almocei...(Puxando o relógio e vendo as horas.) Bem; ainda falta um quarto para as onze: hoje é domingo, e meus companheiros não almoçam senão lá para o meio-dia; provavelmente ainda estão dormindo, vou acordá-los. (Vai sair pela porta do lado direito na mesma ocasião em que entra Nogueira pela porta do fundo, olha meio atrapalhado para Nogueira, que ri às gargalhadas na ocasião em que ele sai.)

Cena II
Nogueira, só

Nogueira (Fumando um cigarro.) – Que impagável calouro! É pior do que uma barrica de pólvora inglesa. Não se me dá de apostar que se ele pilhasse uma pistola fazia-me alguma gracinha. Mas, coitado! Prescindindo do desfrute e de todas essas suceptibilidades próprias da posição que ocupa, é uma bela alma; fornece-me todos os dias cigarros, e ontem levou a bondade ao ponto de pagar-me um bilhete de platéia. Mas onde está essa gente? (Virando-se para a porta do lado direito.) Ó Macedo! (Voltando-se para o lado esquerdo.) Ó Frederico!

Cena III
O Mesmo, Frederico e Macedo

Macedo (De dentro.) – O que queres?

Nogueira – Vamos à prosa. (Macedo e Frederico entram pela porta do lado direito.)

Frederico (Palitando os dentes.) – Desconheci agora a tua voz: pensei que fosse o Araújo.

Macedo (Deitando-se na cama, também palitando os dentes.) – O que há de novo por aí, Nogueira?

Nogueira – O que há de novo? Pois vocês não sabem?

Macedo – Se soubéssemos não te perguntaríamos.

Nogueira (Sentando-se.) – Pois bem; vou contar-lhes. Há pouco estava eu na janela do meu quarto com o Albuquerque, o Inácio, o Martins, e mais uns quatro ou cinco colegas do Neves, que vão todas as manhãs filar-lhe o café de máquina, quando vejo sair do Largo do pelourinho, e dobrar a Rua da Glória a impagabilíssima figura do Trindade. O homem, apenas avistou-nos, veio cambaleando e tropeçando em quanta pedra encontrava pelo caminho. Descrever então o que se passou é impossível! Insensivelmente seguro em uma lata de folha que tinha debaixo de minha mesa...(Mudando de tom.) Mas entre parêntesis, vocês já almoçaram?

Frederico – Não nos vês de palito?

Nogueira (Rindo às gargalhadas.) – Que pagode: faço idéia como não estará o Trindade furioso.

Frederico e Macedo (Admirados.) – Pelo quê?

Nogueira – Pela tremendíssima hipótese de almoço que vocês lhe pregaram. O homem hoje faz um assassinato.

Frederico – O almoço estava marcado para as dez e meia horas; ele chegou depois da hora, a culpa não é nossa: queixe-se de si.

Macedo – Ora, o que é uma hipótese de almoço? Console-se comigo que já tenho tomado muitas de almoço, jantar e chá.

Frederico (Sentando-se em uma extremidade da cama em que se acha Macedo.) – Se eu contar a vocês o que se passou comigo há quatro anos, talvez não me acreditem. Estava eu nesse tempo no colégio do João Carlos, e estudava alguns preparatórios que me restavam para largar a maldita casca de bicho, casca que até hoje ainda possuo, e julgo possuirei per omnia saecula saeculorum, se Deus me der vida e saúde, quando em um belo sábado, saindo do colégio, deliberei lá não voltar senão daí a uma semana; por outra, resolvi ficar na pândega para entregar-me aos doces prazeres de uma tacada de bilhar no Lefebre, e respirar o ar puro e livre das ruas que eu só via aos domingos e dias santos. Mas desgraçadamente meus cálculos falharam, pois meti-me na noite em que saí do colégio em um malfadado lansquenet, e perdi, ainda me lembro com grande dor, uns magros dez mil réis com que procurava satisfazer todos os meus sonhos e ambições de cascabulho. Saí da tal casa leve como uma pena, sem um real no bolso, disposto já a vagar pelas ruas até que rompesse a aurora, quando encontrei-me com o Martins.

Nogueira – Quem? O Martins que é hoje meu colega?

Frederico – Mas, como ia dizendo, encontrei-me com o Martins, e conto-lhe imediatamente o ocorrido; ele solta uma risada, e diz-me que se achava nas mesmas condições, isto é, sem dinheiro, mas que entretanto morava já há dois dias (note-se que o Martins também estava fugido do colégio.) em uma casa que um estudante do 4º ano tinha deixado alugada nas férias. Introduzimo-nos na tal casa, e aí (Ah! Nem sei como o conte) passamos quatro dias a pêssegos verdes, que e ceroulas colhíamos com as nossas próprias mãos de um rafado pessegueiro que havia no quintal, como outrora a boa mãe Eva no estado primitivo colhia os frutos da árvore proibida. No quarto dia eu estava mais magro que um canivete do Capitão, e o Martins foi transportado para o colégio, por ordem do correspondente, com uma tremenda inflamação de intestinos. (Riem-se todos às gargalhadas.)

Nogueira – A poesia da nossa vida consiste nesses belos episódios. (Para Macedo.) Ó Macedo, dá-me um cigarro.

Macedo (Tirando um cigarro do bolso, e atirando para Nogueira.) – Tome, e sem exemplo. Na Rua de São Gonçalo há muito bons: mande comprar.

Nogueira (Prepara o cigarro, e tirando uma caixa de fósforos de cima da mesa, acende-o) Não duvido: porém eu prefiro os teus. (Mudando de tom.) Silêncio, que se não me engano aí vem o Trindade.

Cena IV
Os Mesmos e Trindade

(À entrada de Trindade todos olham para o teto, palitando os dentes. Trindade fica por algum tempo mudo, e para disfarçar a sua perturbação, segura em um livro que se acha em cima da mesa. Frederico, Nogueira e Macedo procuram abafar o riso.)

Nogueira (Dirigindo-se a Trindade.) – Bom dia, doutor.

Trindade – O senhor é bem ordinário, tão ordinário que não me abaixo a responder-lhe; e se não fosse atender à consideração de achar-se o senhor em meu quarto, já há muito lhe teria quebrado uma cadeira nas costas.

Nogueira – O doutor está realmente queimado! Quer que lhe vá buscar um copo com água? Sans façon, sem cerimônia.

Trindade – Senhor Nogueira, Senhor Nogueira, não me insulte que eu hoje perco-me.

Nogueira – Que mal lhe fiz eu, doutorzinho? Dar-se-á caso que, sem o saber, lhe tenha invadido a esfera jurídica?

Trindade – O senhor ainda se atreve a perguntar-me que mal me tem feito? Quando em plena rua se insulta um homem e o desmoralizam só pelo simples fato de se achar ele ainda no princípio de sua carreira; quando chama-se a um homem de burro e ladrão de galinhas, sem que ele tenha ainda revelado estupidez, nem atacado galinheiro de casa alguma, é preciso ter sangue de barata, Senhor Nogueira, para não calcar um miserável deste a pés, e encher-lhe a cara de bofetadas. (Avançando para Nogueira.)

Nogueira (Pondo uma cadeira de permeio.) – Não quer sentar-se, doutor?

Trindade – Miserável!

Frederico – Deixa-te de queimações estúpidas, Trindade, o Nogueira não tem culpa da hipótese que tomaste.

Trindade – Também você, sô gaiatão, quer divertir-se á minha custa? Vamos lá, não tem mais nada para dizer? Ora, que eu seja nesta casa debicado até por um bicho! Olhem por favor para aquela cara.

Frederico – Não é lá das piores, não é das mais feias.

Trindade – O senhor acha que eu sou o palito cá da casa?

Nogueira (Para os dois.) – Psica, psica: segura Minerva, (Para Trindade.) Pega Turbante. (Para Frederico.) Psica, psica.

Trindade – Psica, sô miserável, diz-se aos cães e cão é você que vem aqui todos os dias filar cigarros e mendigar muitas vezes objeções de Eclesiástico ao Macedo, para fazer, além de tudo, um papel ridículo na sabatina. Eu sou calouro, é verdade, porém a primeira vez que falei em público, não desonrei o meu nome nem salpiquei de lama a ilustre classe a que pertenço. Vá perguntar aos colegas que figura fez o Trindade na sabatina outro dia? E eles todos responderão – É a primeira que tem aparecido até o presente.

Frederico e Nogueira (Tocam o bitu e gritam.) – Viva o Trindade! Viva! Viva!

Macedo (Segurando no braço de Trindade, procura levá-lo para fora do quarto.) – Vai-te embora, Trindade, que tu estás te prestando à vista aqui destes senhores. (Apontando para a platéia.)

Nogueira – Deixa o calouro, Macedo, agora é que ele está começando a ficar impagável.

Trindade – Eu vou, Senhor Macedo, e acredite que se não quebro as ventas deste patife (Apontando para Nogueira.) é em consideração ao senhor. (Indo à direita.) Ó moleque, quando estes senhores saírem fecha a porta do meu quarto. (À parte.) Hei de acabar com o tal pagode.

Frederico (A Nogueira.) – Vamos para o meu quarto, antes que o Trindade quebre-nos as ventas. Além disso eu tenho que te falar.(Frederico e Nogueira saem pela porta da esquerda.)

Trindade (À parte.) – Já tenho minha resolução formada, hoje mesmo ponho-me no olho da rua, e ficarei livre dessas amolações contínuas. (Sai pela porta do fundo.)

Cena V
Macedo, só

Macedo – É hoje o dia em que tem de vencer-se essa maldita letra, e até o presente não sei o que fazer, não tenho um real, e nem sei mesmo onde buscar dinheiro para satisfazer esse compromisso de honra. Concordo que deixei-me arrastar por alguns momentos nesse turbilhão de loucuras que se me apresentou, sem pensar, nem refletir; porém quando a minha honra e o meu crédito podiam prejudicar-se, a razão falou mais alto, e então fugi. Não querendo comprometer a minha dignidade, assinei essa letra e não posso pagá-la. Oh! Malditos sejam todos esses credores! (Sai pela direita.)

Cena VI
Neves, só

Neves (Entrando pela porta do fundo, fumando um cigarro, com as mãos no bolso do chambre, passei por algum tempo distraído pela cena, senta-se em uma cadeira, e diz pausadamente.) – Que cinismo! (Sai lentamente pela porta da direita.)

Cena VII
Nogueira e Frederico (Entrando pela esquerda.)

Frederico – É o que te digo, Nogueira, hoje vence-se uma letra que o Jacó obrigou o Macedo a assinar – está portanto realmente encalacrado. Aquele maldito verdugo é capaz de fazer-lhe alguma, e eu antevejo um resultado bem funesto em tudo isso.

Nogueira – Deixa o negócio por minha conta, e verás como se trata um credor de estudante. Acredita, Frederico; um credor de estudante é o animal mais covarde que pisa o solo de São Paulo: com quatro gritos e meio abranda-se e humilha-se como o mais inocente cordeirinho. E então este que foge de um estudante atrevido, como o diabo da cruz! Além disso o Macedo é filho-família, e em face da nossa legislação não é responsável pelas dívidas que contrai; se quiser pagar é somente para salvar a sua dignidade.

Frederico – E tu sabes qual é a Ordenação que trata disso para lermos ao Jacó, quando ele vier?

Nogueira – Não, porém é o mesmo: improvisa-se qualquer Ordenação, e ele engolirá a pílula com a mesma facilidade com que qualquer de nós engole uma das do Etchecoin. Deixa o negócio por minha conta e verás.

Frederico – Não faças alguma das tuas costumadas pagodeiras, que podes comprometer o Macedo. Eu falo-te com experiência; estou aqui há mais tempo que tu, e em uma ocasião quase fui fazer companhia ao Taborda por uma brincadeira desse gênero.

Nogueira – Por falar em Taborda: lembras-te daquela noite em que o Vilares foi encontrado pela patrulha nos degraus da Igreja da Sé mais bêbado do que um marinheiro inglês em terra, e que daí foi levado em braços para a cadeia?

Frederico – Se me lembro! Nessa noite tomei eu uma carraspana de conhaque que deu-me para quebrar quantos lampiões encontrava pelas ruas. É que a claridade me fazia mal.

Nogueira – O pagode não termina aí: o melhor foi sair o Vilares no dia seguinte pelo Largo da Cadeia de chambre e gorro bordado. Com que cara amarrotada vinha o pobre coitado; isso, porém não o impedia de marchar avante e pretensioso como um sultão. Está hoje formado, casado, e dizem que é um excelente pai de família.

Frederico – Ó tempora! Ó mores! Que belos tempos! (Suspirando.) Tens aí...

Nogueira – Um cigarro? Ia te fazer o mesmo pedido.

Frederico – Pois deixa de ser filante, que é coisa muito ridícula.

Nogueira – Qual, isto é boato espalhado pelos vinagres. Mas, mudando de assunto, já sabes por quem o Trindade está solenemente apaixonado?

Frederico (Sentando-se na cadeira.) – É moléstia de cabeça, não faças caso.

Nogueira – Não, é real: é pela filha do Juca do Braz. Passa por lá todas as tardes, e é raro o dia que não venha para casa meio triste e meio alegre.

Frederico – Explica-te.

Nogueira – Alegre, porque vê a bela, e triste, porque lhe dão vaias. A vaia parte da casa do Martins, e amanhã convido-te para apreciarmos de lá o pagode. É uma paixão de Otelo!

Frederico – Qual, isto é um gracejo teu, porque realmente a Desdemonda é uma lambisgóia.

Nogueira – É uma paixão diabólica que o levou à loucura de empenhar um fraque! Isto deu lugar a que o Martins parodiasse esta poesia do Furtado Coelho – Quero fugir-te, mas não posso, ó virgem.

Frederico – E sabes a paródia?

Nogueira - Lá vai (Sentando-se ao piano.) – Quando pretendem vocês mandar levar este piano lá para a casa? Vocês souberam mandar buscá-lo para o pagode, mas...

Frederico – Recita a poesia, e deixa-te de maçadas.

Nogueira (Acompanhando o recitativo.)

Quero fugir-te, mas não posso, ó fraque,
Ah! Sou levad pela onça ingrata!
Quero fugir-te, mas fatal ataque
Me lança em terra, me desgraça e mata!

Lançado ao prego és meu vedado pomo,
Ninguém no mundo minha dor compreende,
Quero fugir-te, quero, sim, mas como?

Para enganar-me digo muitas vezes,
Que és velho, infame que é loucura amar-te:
Então me lembro que não há dois meses,
Que eu fui à casa do Fresneau buscar-te.

Oh! Quantas vezes eu passava as horas,
Mirando as graças de teu talhe airoso,
Hoje perdido para mim tu choras,
Pendido ao prego, ferrugento, idoso.

Fraque querido...

(Representando.) – Ó diabo, não me lembro do resto.

Frederico – Bravo, bonito, sim senhor.

Cena VIII
Os Mesmos e Neves

Neves (Entrando pela direita.) – Que cinismo! Meus senhores, estou-os cumprimentando. (Tira do bolso um canivete e, deitando-se na cama, começa a aparar as unhas.)

Frederico – Que furioso cínico! É capaz de levar todo o dia ali naquela cama, aparando unhas,e contando as tábuas do teto. Em São Paulo há duas classes de vadios: uns que, parecendo ter o do da ubiqüidade,s e apresentam em toda a parte, em bailes, teatros, festas de igreja, leilões do Joly, novenas, etc, menos na Academia; outros que, inimigos do progresso e da atividade, passam onde deixam à vontade crescer o abdômen. Tu pertences à primeira seita, e cá o senhor, que está deitado, à última.

Nogueira – Fechaste a porta do meu quarto quando saíste, Neves?

Neves (Pausadamente) – Sim, fechei. (Muda de posição na cama.)

Frederico – Tens um companheiro de casa assaz divertido!

Nogueira – Há dias que não diz uma palavra; no entretanto é o homem que mais aprecia uma prosa, deitado em uma boa cama, já se sabe, sem nada dizer, mas pronto para tudo ouvir. E sabes qual é a especialidade de prosa que ele mais aprecia?

Frederico – Sem dúvida caçada de veados ou cruzamento de raças de cavalo?

Nogueira – Nada, coisa mais séria; é a tese das teses – a vida alheia. Respeita-o como uma das primeiras rabecas de São Paulo: toca admiravelmente variações sobre motivos de qualquer tema; tem arcadas de Paganini. Também não respeita ninguém: é um verdadeiro pagão!

Frederico – E qual é o sistema da rabequeação que ele mais aprecia? Sim, porque há diversos sistemas de rabequear.

Neves – Falem mais alto que eu também vim para a prosa.

Nogueira – Falamos dos diversos sistemas de rabequeação, e o Frederico tem a palavra.

Frederico (Em atitude magistral.) – Pois, meus amigos, pela experiência que tenho, atrevo-me a oferecer-lhes uma brilhante preleção sobre este assunto. Querem?

Nogueira – Sim, venha lá isso.

Neves – Topo.

Frederico (Com dignidade cômica.) – Há sujeitos que rabequeiam de uma maneira insinuativa: eu me explico melhor – há sujeitos, por exemplo, que nas suas arcadas dizem: “O Nogueira é um tratante, um canalha, um miserável, um caloteiro, mas no entretanto é bom moço, cumpre as suas obrigações, tem boa alma, toma regularmente a sua carraspana, por divertimento, já se vê, desmoraliza-se em lugares públicos, mas não é mau rapaz, tem bons sentimentos”. Este é o sistema aristocrático, rabeca de salão, e que tem grande número de sectários. O segundo é o sistema dos ronhas. O ronha é o homem que exerce a ronha. A ronha pode-se estender a todos os atos humanos: assim é, por exemplo, ronha o beato ou o hipócrita que, acabando de bater nos peitos na igreja, vem cá fora entregar-se religiosamente às delícias de Cápua. Parece-me que não há estudantes dessa natureza; no entretanto, se é que há, sou de opinião que andem de mantilha para se distinguir dos outros. Mas a ronha, aplicada especialmente à hipótese vertente, é um certo desprezo e mesmo rancor que alguns sujeitos parecem afetar em uma prosa de vida alheia, mas que entretanto extasiam-se às mais pequenas notas de instrumento divino, como o poeta se expande diante do belo. Estes entram somente de ouvido, e são tantos os sectários como os admiradores do Padre Pereira.

Nogueira – A comparação é mesmo de bicho.

Frederico – Não me interrompa. O terceiro sistema é o dos que falam mal de tudo e de todos e não encontram nos homens senão defeitos: é o exclusivismo, e peca como todos os sistemas exclusivistas.

Nogueira – É o sistema do Neves.

Frederico – Justamente.

Neves – Não tanto.

Frederico – O quarto sistema é o dos que rabequeiam por mero passatempo, para suavizar as horas de cinismo. É este o sistema que quase todos nós seguimos, é o menos nocivo, e o que produz menos males, porque não é o ódio nem o rancor que preside a prosa, mas apenas um desejo de pagode. Tais são, senhores, as observações que tenho colhido de minha longa vida de bicho, e que procurarei ir aperfeiçoando com o correr dos tempos.

Nogueira – Bravo! Falas com a experiência de um velho: és um alcorão; entretanto esqueces o sistema dos mitras, que tecem os maiores panegíricos a um sujeito pela frente e por detrás não são rabecas, são rabecões.

Frederico – Cada dia aparecem novos sistemas, e eu ultimamente não estou muito a par do progresso da ciência, porque os credores não me deixam pôr o nariz na rua.

Neves – Vocês estão muito cínicos.

Nogueira (Rindo-se.) – Este desgraçado ainda acaba tocando realejo para se distrair.

Frederico – Ó Neves! Diz alguma coisa para animar a prosa: estás mesmo de neve.

Neves – Vocês estão estupidamente cínicos: eu me retiro. (Levanta-se da cama e sai pela porta do fundo.)

Frederico – Ó Neves! Amanhã aparece mais cedo para prosearmos. (Nogueira e Frederico riem-se às gargalhadas.)

Cena IX
Frederico, Nogueira e Trindade

Trindade (Entrando com dois negros, aponta para as canastras.) – Rapaz , segura ali. (Virando-se para o outro negro.) – Rapaz, ajuda ali teu parceiro. Irra! Hoje acaba-se o pagode, mudo-me, e está tudo decidido.

Nogueira (Para Frederico.) – É preciso abrandarmos o homem. O Macedo, quando souber que fui eu a causa da mudança do calouro, queima-se comigo, e eu não estou para indispor-me com ele. Não quero ser o ponto de discórdia desta casa. Vou fazer as pazes com o calouro. (Para Trindade, batendo-lhe no ombro.) Não sejas criança, Trindade, foi uma brincadeira própria de rapazes.

Trindade – Vá-se embora, senhor, não me aborreça.

Frederico – Você também cavaqueia com qualquer coisa, encordoa por uma bagatela.

Trindade – Pois é qualquer coisa, é bagatela ser um homem constantemente amolado, não poder dizer uma palavra que não lhe respondam com quatro gargalhadas não poder sair à rua sob pena de lhe gritarem: ó burro, ó sandeu, ó calouro? Isto é bonito? É próprio de moços decentes e civilizados que freqüentam os bancos de uma Academia?

Nogueira – Concordo com tudo que quiseres; mas dá-me um abraço e façamos as pazes. (Trindade deixa-se abraçar um pouco friamente.) Manda os pretos embora, e continua a viver com os teus companheiros que te estimam como um bom menino que és. Deixa-te de criançadas, e viva a pândega!

Trindade – Pois bem, se juram doravante tratar-me como um companheiro de casa, e não como um cão, fico.

Nogueira e Frederico – Juramos.

Trindade (Virando-se para os negros.) – Ponham-se fora. (Os negros saem.)

Nogueira (Abraçando a Trindade.) – Viva a conciliação! Se tivéssemos uma boa garrafa de vinho, poderíamos tornar mais solene este tratado de paz.

Trindade – Se prometem cumprir o juramento, isso é o que menos custa. Tenho ali na canastra duas garrafas de vinho que me restaram do pagode que dei no dia de minha sabatina...

Nogueira (À parte.) – Sempre desfrutável.

Frederico (À parte.) – Lá vem a sabatina.

Trindade (Continuando.) – E podemos esvaziá-las.

Frederico e Nogueira – Prometemos.

Nogueira – Eu ainda levo a minha promessa mais longe: prometo que de hoje em diante serei o teu mais fiel e dedicado amigo.(À parte.) Ó mágico poder do vinho.

Trindade – Pois bem, viva a rapaziada e vamos à pândega. (Enquanto Trindade tiras as garrafas da canastra, Frederico e Nogueira fazem-lhe gaifonas pelas costas.) Aqui estão, rapaziada. (Dá uma garrafa a Nogueira e fica com a outra.)

Cena X
Os mesmos e Macedo

Macedo (À parte.) – Aproxima-se o momento fatal: é quase meio-dia, e o verdugo não tarda a aparecer. (Reparando para o grupo.) Pois quê, já fizeram as pazes?

Nogueira – Não há copos nem saca-rolha.

Frederico – Saca-rolha há um aqui em cima da mesa. (Tira o saca-rolha e dá a Nogueira.) Quanto a copos dispensa-se perfeitamente, podemos beber pela garrafa – é mais clássico.

Trindade – Está dito, vai-se ao gargalo. (Recebe o saca-rolha e abre a garrafa.)

Nogueira – Viva o Trindade. (Bebe.)

Frederico (Tirando-lhe a garrafa.) – Alto frente: ainda não bebi. À saúde de sua brilhante sabatina, Senhor Trindade. (Vira a garrafa.)

Trindade – Meus senhores, um brinde: à saúde da emancipação do primeiranista, e à morte de todos esses prejuízos acadêmicos que herdamos da velha Coimbra. À saúde de todas aquelas por quem nossos corações palpitam.

Nogueira (Para Frederico.) – Percebo. A filha do Juca do Braz.

Trindade – Viva a mocidade inteligente e briosa que abandonando, que abandonando, que...

Frederico (À parte.) – Temos cabeleira.

Nogueira – Não se engasgue, dê-me o caroço.

Trindade - ...as afeições mais caras, o lar doméstico e a terra que lhe deu o ser, vêm, longe de tudo isso, conquistar os louros que engrinaldaram a fronte de Homero, Tasso, Petrarca, Dante e Camões que, cantando as ações heróicas dos Lusitanos, enxergava um horizonte de glórias no futuro.

Frederico – E assim mesmo não via pouco; olhe que tinha só um olho.

Nogueira – Pelo menos assim o diz a história.

Trindade (Pulando em cima da cadeira com entusiasmo.) – Vou arrematar este brinde, senhores, bebendo à saúde daquelas idéias que mais se harmonizam com o estado de perfectibilidade e civilização dos povos: à saúde das idéias republicanas. (Vira a garrafa toda.)

Viva o Porto,
Viva o Madeira,
Não é tolice
Uma cabeleira.

(Todos, menos Macedo.)

Viva o Porto,
Viva o Madeira,
Não é tolice
Uma cabeleira.

Nogueira (À parte.) – O vinho já começa a fazer efeito antes de tempo. (Para Trindade.) Passa-me a garrafa.

Trindade (Descendo da cadeira.) – Já não há mais nada. (Vira a garrafa de boca para baixo.)

Macedo (Que durante esse tempo passeia pensativo.) – Entretanto esqueceram-se de mim.

Nogueira – Pois também estás hoje tão cínico! Não sei o que tens.

Trindade (Mal podendo suster-se em pé.) – Que diabo, anda-me tudo à roda...o tal vinho é forte. Ó Nogueira, tu estás meio fardado, fala franco. Está-me tudo a andar à roda... Ó Nogueira anda cá, dá-me ali aquela vela para acender um cigarro. (Mete a mão no bolso, e tira da algibeira um lápis que põe na boca, julgando ser um cigarro.) que diabo tem este fumo? (Olhando para o lápis.) Está furado. (Atira o lápis no chão.)

Frederico (Encostando-se à mesa.) – Furada está a tua cabeça.

Nogueira – De que cor é esta linha, Trindade?

Trindade – Que pagode, minha comadre. Vem cá, Mariquinha, não fujas; olha que é teu benzinho quem fala.

Nogueira (Segurando em Macedo, e puxando Frederico.) – Não sejam cínicos, vamos formar aqui uma pândega, e apreciar o Trindade enquanto está impagável. Dance-se o cancan, e viva o pagode.(A orquestra toca a última quadrilha da – Corda Sensível -; Frederico e Nogueira dançam em cancan desesperado, e Trindade sempre cambaleando embrulha-se no cobertor encarnado, trepa em cima da cama, e aí dança um cancan infernal, no meio do qual Jacó aparece no fundo, e o cancan continua.)

Cena XI
Os mesmos e Jacó

Jacó (Entrando.) – Com licença, meus senhores. (Macedo e Frederico escondem-se na porta da esquerda. Nogueira pára espantado, olhando para Jacó, obriga-o a valsar pelo meio da cena, e largando-o de repente, atira-o de costas.) É desta maneira (Levantando-se e sacudindo a roupa.) que os senhores recebem as pessoas? (À parte.) Se não viesse buscar dinheiro...é preciso humilhar-me para ver se o pilho. (Alto.) Não sabem dizer se o Senhor Doutor Macedo está em casa?

Nogueira – Julgo que não. O senhor deseja alguma coisa? É sem dúvida dinheiro que vem buscar?

Jacó (Risonho.) – Como o senhor doutor adivinha; é isso mesmo. Vossa Senhoria é muito pitoresco. Vence-se hoje uma letra que o Senhor Doutor Macedo assinou, e eu vim buscar os 300$000 por que ele se obrigou.

Nogueira – Queira sentar-se. (Na ocasião em que Jacó vai sentar-se, Trindade puxa-lhe a cadeira, e atira-o de costas.)

Jacó (Furioso.) – O senhor não me deixará! (À parte.) Este sujeito está bêbado.

Trindade (Batendo-lhe no ombro.) – Excelso vinagrão, eu te saúdo.

Jacó (Risonho.) – Isso é lisonja, senhor doutor.

Nogueira (Vai buscar o violão, e vem sentar-se em cima da mesa ao pé de Jacó.) – Tenha a bondade de explicar-se pausadamente para que eu o entenda.

Jacó – Eu já disse ao que vim. (Nogueira acompanha-lhe a frase a violão.)

Nogueira – Pode continuar.

Jacó – O Senhor Doutor Macedo deve-me já há dois anos 300$000 (Nogueira acompanha-o a violão.) e para garantia dessa dívida pedi-lhe que me assinasse uma letra...(Acompanhamento de violão.) Senhor Doutor, olhe que falo sério: deixe-se de caçoadas. (Acompanhamento de violão.)

Nogueira – Senhor Jacó, tenha a bondade de falar outra vez e repetir o recitativo, para ver como é sonoro este acompanhamento. (Fere o violão.)

Jacó (Levantando-se.) – Eu não vi, aqui para ouvir música, senhor doutor; quando quero vou às retretas.

Nogueira – Está incomodado, Senhor Jacó? A retrete é no fundo do corredor à esquerda. (Indicando a porta da direita.)

Jacó – S ó o que desejo é falar com o Senhor Doutor Macedo. (Acompanhamento.)

Frederico (Para Macedo.) – O Nogueira com aquele debique é capaz de comprometer-te.

Macedo – Haja o que houver eu não apareço.

Nogueira (Continuando a tocar.) – Ora, Senhor Jacó, esqueça-se disso: o Macedo está sem dinheiro, e ainda mesmo que tivesse é filho-família, e não é responsável pelas obrigações que contrai.

Jacó (Furioso.) – Não é responsável, senhor doutor! Não me diga isso: a letra está assinada por ele, e em nome de sua dignidade deve pagá-la.

Trindade (Dando uma encapelação em Jacó.) – Está queimado! Viva o rei dos Vinagres!

Jacó – Olhe que o senhor está me fazendo chegar a mostarda ao nariz. (Faz menção de avançar para Trindade.)

Nogueira (Empurrando-o) – Ponha-se fora.

Frederico (Entrando em cena.) – Fora! Fora! (Trindade dá uma porção de encapelações em Jacó, Nogueira dá-lhe com o violão nas costas, e Frederico ri-se às gargalhadas.)

Macedo (Entrando.) – O homem queima-se e é capaz de fazer alguma.

Jacó (Sai pela porta do fundo aos empurrões, e voltando, pára na porta.) – Isto é um estorpício, é um vandalismo. Por terem força julgam-se uns Rockchilles. Hei de mostrar o que é um negociante ofendido em sua dignidade! Eu já volto acompanhado. (Sai.)

Cena XII
Frederico, Nogueira, Macedo, Trindade e depois Neves

Trindade (Ainda envolvido no cobertor encarnado, deita-se de barriga para baixo em cima da cama.) – Que pagodeira!

Neves (Entrando com toda a fleuma.) – Que algazarra foi esta que vocês fizeram?

Nogueira – Foi uma pequena correção doméstica em um credor.

Macedo – Vocês com o seu pagode acabam de comprometer-me. O homem saiu desesperado.

Frederico – Ele é incapaz de queimar-se: aquilo foi fogo de cavaco.

Nogueira – Eu responsabilizo-me pelo resultado.

Trindade (Levantando-se da cama.) – Esteve riquíssima a pagodeira. Ó Nogueira! Tu viste a cara com que saiu o Jacó? O homem saiu vraiment indignado! Ó Frederico! Passa a garrafa, e vamos beber à saúde do Jacó. Ora esta, homem, quem me vir é capaz de apostar que estou bêbado.

Frederico – Qual, não tens nada: estás somente com um fardão de grande gala.

Macedo (Passeando.) – Vejamos qual é o desfecho desta tragédia.

Nogueira – Eu já te disse que não te maces; deixa correr o negócio por minha conta.

Neves – Mas que diabo de cinismo: eu não os entendo.

Trindade – Nem eu tão pouco, meu amigo.

Nogueira – Pois eu lhes explico, meus amigos. O Macedo deve 300$000 ao Jacó, ele veio cobrá-los, e nós tocâmo-lo a cachações pela porta fora. É uma coisa muito natural, e que nada tem de extraordinário: seria extraordinário se o Macedo pagasse a dívida e o deixasse sair impunemente.

Trindade – Lá isso é; tem toda a razão. Mas que diabo tenho eu que está tudo a andar-me à roda? E esta? Parece-me que tenho tanta gente na minha frente; dar-se-á o caso que e esteja em aula? Ó Araújo! Dá-me o compêndio, e passa-me uma lição que eu estou in albis.

Frederico (Segurando em Trindade e procurando levá-lo para a cama.) – Vai-te deitar, Trindade, que tu estás meio incomodado.

Trindade – Quem? Eu incomodado? Ó Frederico! Não me insultes; olha, eu vou aqui à república vizinha, e vê só a certeza com que ando. (Vai cambaleando para o fundo da cena, e encontrando-se com Jacó, que entra com um oficial de justiça, atira-o ao chão.)

Cena XIII
Os mesmos, Jacó e um Oficial de Justiça

Jacó- Não há dúvida – este sujeito está tocado.

Trindade – Levante-se, que eu não brigo com homem deitado.

Jacó (Levantando-se.) – Pois, meus senhores agora espero obter um melhor resultado, porque trouxe uma boa carta de recomendação de pessoa influente, a quem os senhores não podem deixar de servir. (Tira do bolso uma citação, e entrega a Macedo.)

Macedo (Lendo.) – É uma citação; eis o desfecho terrível que eu esperava de tudo isso.

Nogueira – Uma citação!

Jacó – Quando vim pela primeira vez já a tinha comigo; pois sabia perfeitamente que o Senhor Macedo havia de esquivar-se ao pagamento da dívida; porém o acolhimento benévolo que aquele senhor (Apontando para Trindade.) prodigalizou-me e obrigou-me a ir pedir o auxílio da justiça para fazer valer o meu direito: é a razão por que volto agora com este senhor.

Macedo – E julga o senhor que vem fazer valer o seu direito quando usa de uma infâmia?

Frederico (Batendo o pé.) – Sim, é uma infâmia.

Trindade (Cambaleando para ele, e dando-lhe um arroto na cara.) É um desaforo; é uma vinagreira.

Jacó – Será tudo o que os senhores quiserem.

Nogueira – Pois bem, se eram os seus desígnios comprometer a reputação sem mancha de um moço, fazendo-o comparecer perante uma autoridade por um motivo que o difama e extorquir depois, abrigado à sombra da lei, o dinheiro que lhe roubou, se eram estes os seus desígnios, Senhor Jacó, fique convencido que nunca os realizaria. Eu já volto. (Sai precipitadamente.)

Cena XIV
Trindade, Jacó, Frederico, Macedo, Neves, depois Nogueira

Jacó (À parte.) – Eles todos falam em dignidade, em vinagreira e dizem tudo o que lhes vem à boca, mas quando têm de bater o cobre, vêm com desculpas, quando não dão para atrevidos.

Macedo – Então com que o senhor esperava que eu havia de esquivar-me ao pagamento da dívida? (Com furor.) O senhor é bem ordinário.

Jacó – Ora, senhor doutor, isto não vai a zangar.

Frederico( À parte.) – O que iria fazer o Nogueira em casa?

Trindade – Estes credores são temíveis!

Macedo – É bem triste a minha posição, porém a sua ainda é mais, é degradante. Diga-me, finalmente, Senhor Jacó, o que pretende fazer?

Nogueira (Entrando apressado.) – Coisa nenhuma. (Para Macedo.) Aqui tens o dinheiro que te devo.

Macedo – Dinheiro que me deves?

Nogueira (Em voz baixa.) – Cala-te e aceita. Senhor Jacó, a sua dívida vai ser satisfeita, mas antes de tudo há de ouvir-me. Há ladrões que, embrenhando-se pelas matas, assaltam os viandantes de pistola e faca; há outros que roubam de luva de pelica nos salões da nossa aristocracia, estes têm por campo de batalha uma mesa de jogo; há outros, finalmente, os mais corruptos, que são aqueles que, arrimados a um balcão, roubam com papel, pena e tinta. O senhor faz honra a esta última espécie: é um ladrão e um ladrão muito mais perigoso do que os outros. Dê-me essa letra, documento autêntico de sua infâmia e tome o seu dinheiro. (Tira o dinheiro da mão de Macedo, e esfrega-lhe na cara.)

Jacó – Ora, senhor doutor, não se zangue; deixe-se de brincadeiras.

Macedo (Abraçando Nogueira.) – Obrigado, meu amigo, obrigado. Acabas de provar que tens uma alma grande e generosa, que, no meio dos risos e folguedos próprios da nossa idade, não olvidas esses sentimentos sagrados, que tanto enobrecem o coração do bom amigo. Obrigado, obrigado.

Jacó (Que durante esse tempo está contando o dinheiro.) – Está exato. Agora vamos fazer outra visita. O dia está feliz.

Nogueira – Ponha-se fora. (Todos tocam Jacó pela porta fora.)

Trindade – Viva a pândega! (Cai na cama.)

Neves (Olhando ao redor da cena.) – Que cinismo!

(Toca a orquestra a última quadrilha da Corda Sensível; dançam todos o cancan.)

(Cai o pano.)

Fonte:
FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José da. Teatro de França Júnior. Rio de Janeiro : Funarte, 1980. p. 51-73 : Meia hora de cinismo. (Clássicos do Teatro Brasileiro). Texto-base digitalizado por Claudia de Moura Leite Ribeiro – São Paulo/SP

França Júnior (1838 – 1890)


França Júnior (Joaquim José da F. J.), jornalista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 18 de março de 1838, e faleceu em Poços de Caldas, MG, em 27 de setembro de 1890. É o patrono da Cadeira n. 12 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Urbano Duarte.

Filho de Joaquim José da França e de Mariana Inácia Vitovi Garção da França.

Cursou humanidades no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e formou-se em direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1862.

Como estudante deu os primeiros passos como autor teatral. De volta ao Rio, estreou no jornalismo no periódico de caricaturas Bazar Volante (1863-67) e como colaborador eventual do Correio Mercantil.

Após exercer a advocacia, reside por um período na Bahia, onde é nomeado secretário de governo do presidente daquela província.

Por volta de 1880 retorna ao Rio de Janeiro e aprende a desenhar com o aquarelista Benno Treidler. Entusiasmado com a descoberta da nova arte, frequenta como assistente a Academia Imperial, onde lecionava Georg Grimm. Desligando-se este da academia, acompanha o mestre que acabara de formar o Grupo Grimm para pintar ao ar livre e ao natural. Mas pouco durou esta ligação com o grupo do paisagista alemão. Concentra-se mais na sua vocação jornalística e literária.

Começou a carreira de dramaturgo em 1861 com duas "comédias de costumes acadêmicos", A república modelo e Meia hora de cinismo, sobre as relações entre um calouro e um grupo de estudantes veteranos. Revelou-se um continuador de Martins Pena. Em 1862, estreou no Ginásio Dramático (RJ) Tipos da atualidade, comédia mais conhecida como O barão de Cutia, graças à extrema popularidade do personagem do mesmo nome, um fazendeiro rico que uma viúva interesseira deseja ardentemente ter por genro. Dando à peça o título "Tipos da atualidade", o comediógrafo faz da mediocridade e do interesse as molas-mestras das relações interpessoais na sociedade fluminense de então. Utilizando-se de enredos aparentemente anedóticos, França Júnior fez de suas comédias pequenas caricaturas de aspectos variados do cotidiano e da família fluminense. Outro alvo de suas comédias é o "estrangeiro", sobretudo o "inglês", e os privilégios que obtém do governo brasileiro, como em O tipo brasileiro e Caiu o ministério, comédias representadas em 1882.

Importante como painel crítico do Rio de Janeiro no fim do século, a obra de França Júnior reforça a tradição cômica do teatro brasileiro e se caracteriza pela agilidade das falas curtas, das peças em um ato, com linguagem coloquial, jogo cênico rápido, ambigüidades e grande noção de ritmo teatral.

Além de comediógrafo, França Júnior foi promotor público e curador da Vara de Órfãos no Rio de Janeiro, secretário do Governo da Província da Bahia e, como jornalista, autor de folhetins bastante populares à época, publicados em O País, O Globo Ilustrado e Correio Mercantil (reunidos em Folhetins, em 1878, com prefácio e coordenação de Alfredo Mariano de Oliveira).

Foi considerado pelos historiadores o principal seguidor de Martins Pena, o que o tornou, cronologicamente, o segundo mais importante autor do teatro brasileiro. Como seu mestre, escreveu para o palco comédias de costumes e sátiras políticas de grande sucesso, algumas hoje infelizmente desaparecidas.

Obras

A República Modelo (1861)
Meia Hora de Cinismo (1862)
Tipos da Atualidade (ou O barão de Cutia) (1862)
Amor com Amor se Paga (1870)
Direito por Linhas Tortas (1870)
O Defeito da Família (1870)
O Tipo Brasileiro (1882)
Como se Fazia um Deputado (1882)
Caiu o Ministério! (1883)
Dois Proveitos em um Saco (1883)
Entrei para o Clube Jácome (1887)
Maldita Parentela (1887)
As Doutoras (1889)
Ingleses na Costa (1889)
Os Candidatos (1889)
A Lotação dos Bondes
Bendito Chapéu
O Carnaval do Rio

As peças de França Júnior foram reunidas em 1980 em O teatro de França Júnior, em dois volumes.

Fontes:
Wikipedia
Academia Brasileira de Letras
Fundação Biblioteca Nacional

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 346)


Uma Trova Nacional

É nos instantes de dor,
ante o teu porte sereno,
que um homem "grande", senhor,
se torna um homem pequeno!...
–ERCY MARIA MARQUES/SP–

Uma Trova Potiguar

Na fauna de estimação
tem bicho como tu és.
Com plumas feito pavão
mas sem olhar para os pés!
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - CTS-Caicó/RN
Tema: OCASO - 4º Lugar

Já na idade das fadigas,
pressentindo o ocaso perto,
só as lembranças amigas
vêm povoar meu deserto!
–JOSÉ TAVARES DE LIMA/MG–

Uma Trova de Ademar

Ela é quem me faz chorar
desde a minha mocidade.
Sei que vou me aposentar
sendo escravo da saudade.
–Ademar Macedo/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Foi nos passos e compassos
de um tango dançado a dois,
que eu me encontrei em teus braços
para perder-me depois!
–NÁDIA HUGUENIN/RJ–

Simplesmente Poesia


Um Sonho de Vida
–ESTER FIGUEIREDO/RJ–

Lua que me olha à distância
sabe bem da inconstância
deste enamorado coração:
incauto...ansioso...vivendo de ilusão

Busca e não encontra lenitivo...
para esta dor tem motivo
e que só ELE sabe o segredo.

Vou caminhando pela vida
a passos lentos, sem guarida...
Até quando?-Não sei!

Sei apenas que a sorte
não pode driblar a morte
nem o sonho que eu sonhei!

Estrofe do Dia

Não precisa tijolo nem madeira
o alicerce não tem escavação
Jesus cristo segura com a mão
que o poder do eterno é sem canseira
eu viajo pra lá segunda – feira
deus querendo eu já vou pra terminar
se esse prédio chegar a desabar
o nordeste se tora em três pedaço
vou fazer uma casa no espaço
sem de nada da terra precisar.
–CHICO QUELÉ/RN–

Soneto do Dia


Montes Pequeninos
–GILMAR LEITE/PE–
(À poetisa/companheira Rachel Rabelo)

Como as pérolas das ostras delicadas
que residem nas águas cristalinas,
os teus seios são conchas pequeninas
enfeitando tuas formas encantadas.

As auréolas são luzes rodeadas
clareando expressões puras, divinas,
onde os seios são flores campesinas
com orvalhos de cores enfeitadas.

Resplandece nas curvas dos teus seios
o fulgor dos jardins quando estão cheios
dos sutis beija-flores campesinos.

O teu corpo, de formas divinais,
tem cravado dois plácidos cristais,
que são dúlcidos montes pequeninos.

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) IV – Miss Jane; V – Tudo Eter que Vibra


CAPITULO IV
Miss Jane

Na sala de almoço tive uma nova surpresa. Estava lá, e recebeu-nos com gentil sorriso, a mais encantadora criatura que meus olhos ainda viram.

— Minha filha Jane, apresentou-ma o velho.

Como eu esperava tudo, menos encontrar ali uma figura feminina, atrapalhei-me e gaguejei, visto que sou tímido diante das mulheres formosas. Já com as feias, ou velhas, sinto-me desembaraçadíssimo. Mas cabelos louros como aqueles, olhos azuis como aqueles, esbelteza e elegância de porte como as de miss Jane, eram ingredientes fortes demais para que não produzissem a ruptura do meu equilíbrio nervoso. Gaguejei, já disse, e fui logo tropeçando num pé de cadeira, o que muito me vexou, embora não fizesse rir á moça. Esta contenção de sua parte provou-me que eu estava diante de uma criatura finamente educada e generosa.

Correu sem incidentes o almoço, e nada vi nele de misterioso. Pratos simples, servidos em baixela fina, tudo despido dos excessos que caracterizam a mesa dos ricaços amigos de nas menores coisas exibirem o seu dinheiro.

Miss Jane falou ao pai de três filhotes de pintassilgos que encontrara no pomar, num ninho feito de raízes de capim.

— Gosta de pássaros, senhor Ayrton? perguntou-me num gracioso sorriso.

Confesso que eu até ignorava a existência de pássaros no mundo. A minha vida de cidade, no corre-corre das ruas desde menino, sem nunca umas férias passadas no campo, impedia-me de prestar atenção a essas vidinhas aladas, que constituem um dos enlevos dos contemplativos.

— Gosto, sim, senhora, respondi eu, se bem que em matéria de pássaros só me lembre dum periquito vitima duma menina filha lá da firma.

— Pois aprenderá aqui a adora-los. O sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar, com certeza já lhe atraiu a atenção. Temos tambem vários outros amiguinhos que de lá não saem, pintassilgos, sanhaços, rolinhas, saíras...

— O senhor Ayrton, interveio o professor, vai ficar aqui conosco. Tem muito que ouvir e aprender. Vou revelar-lhe os segredos da natureza, e tu, Jane, lhe revelarás a poesia. Estes homens da cidade têm a visão muito restrita; o mundo para eles se resume na rua, nas
casas marginais e no torvelinho humano.

— Realmente, professor. A impressão que tive hoje durante o meu passeio pelo campo abriu-me a alma. Verifiquei que o mundo não é só a cidade, e que o centro do universo não é a firma Sá, Pato & Cia., como toda vida supus.

— O mundo, meu caro, é um imenso livro de maravilhas. A parte que o homem já leu chama-se passado; o presente é a página em que está aberto o livro; o futuro são as páginas ainda por cortar. E a uma criatura que nem conhece a página aberta ante os olhos, como o senhor, vou eu revelar o que a ninguém ainda foi revelado: algumas futuras!

Olhei para o professor Benson com ar palerma, porque sempre me apalermava o que ele dizia. Tinha o sábio uma linguagem nova para mim, da qual eu apreendia apenas o sentimento formal, não o sentido intimo. Animei-me, entretanto, a uma frase:

— Miss Jane com certeza conhece também essas páginas futuras.

— Sim, eu e ela, respondeu o professor. Só nós dois, no mundo inteiro e desde que o mundo é mundo, gozamos deste privilegio maravilhoso. Enviuvei muito cedo e minha família está hoje reduzida a Jane. É a minha companheira de analises dos cortes anatômicos do futuro.

"Cortes anatômicos do futuro"... A expressão soou-me como outrora a do senhor Sá quando pela primeira vez me falou em 'lançamento por partidas dobradas", coisa que hoje não ignoro mas que na época me valeu por um "corte anatômico".

Nesse ponto do almoço fez-se notar certa zoada distante vinda não sabia eu de onde.

— Deixaste o cronizador aberto, Jane?

— Sim, meu pai. Deixei-o em marcha para 410 anos de hoje, focalizado para 80.° de latitude N. e 40 de longitude. Experiência ao acaso, pois nem verifiquei onde fica esse ponto.

—Groenlândia. O corte não revelará coisa nenhuma, suponho. Não creio que em 410 anos as condições do mundo se alterem a ponto de haver lá outra vida alem da dos esquimós, ursos e focas.

—Em todo o caso vejamos, disse a moça. Temos tido tantas surpresas...

—Minha filha, senhor Ayrton, possui mais frieza de sábio do que eu. Não perde tempo em formular hipóteses quando tem ao alcance meios de verificar experimentalmente.

Ri-me. Acho que a melhor maneira de figurar numa roda onde se falam coisas acima da nossa compreensão é sorrir para o interlocutor que nos dirige a palavra. Se o riso não engana a ele, engana-nos a nós e livra-nos de uma replica verbal, que sai asneira infalivelmente. De todo o dialogo da filha com o pai só me evocou uma imagem já classificada em meu cérebro a palavra Groenlândia.

Lembrei-me dos meus tempos de geografia e da impressão que me causara a descrição da Terra Verde, ou Groenlândia, feita pelo meu barbudo professor Maneco Lopes. E por associação me vieram à mente ursos brancos, focas, leões marinhos, pinguins, esquimós. Querendo contribuir com uma nota para a conversa, e fingindo entender o que eles haviam dito, arrisquei:

— Não há duvida, a Groenlândia é um caso sério. Uma piririca!

Foi a vez do professor Benson franzir os sobrolhos no gesto clássico da incompreensão. Vi que aquele homem, que sabia tudo e lia o futuro, ignorava alguma coisa do presente — a gíria da cidade, e firmei-me na resolução de dar com a giria em cima dele para vê-lo refranzir a testa muitas vezes.

— Que? indagou o velho sábio.

— Sim, expliquei eu sem erguer os olhos para miss Jane com medo de desnortear. A Groenlândia é um caso, um numero. Quanto o pinguim cisma p'ra cima do peixe e o urso gréla a foca...

Mas o professor Benson cortou-me as vazas.

— Não refletiu nunca, meu caro senhor Ayrton, na oportunidade do silencio? O silencio é sábio, é uma das mais altas formas da sabedoria. Foi silenciando que Jesus deu ao "Que é a verdade?" de Pilatos a única resposta acertada...

— Papai, interveio a moça evidentemente apiedada da minha situação, está aí uma experiência que ainda não fizemos! Involuir a corrente e operar um corte no ano 33, a ver se apanhamos essa cena histórica...

— Realmente é uma ideia, minha filha, e mais curiosa do que o exame da Groenlândia, onde, como diz cá o amigo, o urso gréla a foca...

CAPITULO V
Tudo Éter que Vibra


Saí daquele almoço com as ideias mais desnorteadas do que nunca. Um elemento novo contribuía para isso; miss Jane, criatura singularmente perturbadora, pois, além de agir sobre meus fragílimos nervos como todas as moças bonitas, ainda me tonteava com a sua mentalidade de sábio. De tudo quanto a jovem disse só me ficou claro no espirito a história dos passarinhos do pomar. Até ali pareceu-me uma criatura tal as outras, mas depois do "corte anatômico" tudo se complicou e passei a ve-la qual um misterioso ídolo de divindade dupla, mixto de Afrodite e Minerva.

Depois do almoço levou-me o professor a ver os laboratórios. Atravessei numerosas salas e pavilhões cuja composição entendi menos que a do gabinete. Quanta maquina esquisita, tubos de cristal, ampolas, pilhas elétricas, bobinas, dínamos — extravagâncias de sábio! Eu conhecia varias oficinas mecânicas, mas nelas nunca me tonteava. Tornos, maquinas de cortar e furar, bigornas, martelos automáticos, laminadores, fresas, tudo isso eu via e compreendia, pois apesar de complicados na aparência evidenciavam logo uma função esclarecedora. Mas ali, santo Deus! Que caos! Não consegui entender coisa nenhuma e mesmo depois que o velho sábio mas explicou manda a verdade confessar que fiquei na mesma.

Isto aqui, disse ele na primeira sala, são aparelhos eletro-radioquimicos, na maioria criados ou adaptados por mim e que constituíram o ponto de partida da minha descoberta. Se o amigo Ayrton fosse técnico, eu os explicaria um por um, mas será difícil fazer-me entender por quem não possui uma solida base de ideias científicas. Resumirei dizendo que neste velho laboratório consumi os trinta anos da minha mocidade em pesquisas pacientíssimas, culminantes na construção daquela antena que o amigo lá vê no alto da torre.

Olhei e vi uns fios entrecruzados formando um desenho geométrico.

— Parece uma teia de aranha! murmurei.

— E é de fato uma teia de aranha. A aranha sou eu. Com essa teia apanho a vibração atômica do momento.

— "Vibração atômica do momento"... repeti, fazendo um furioso esforço mental para compreender a novidade.

— Sim. A vida na terra é um movimento de vibração do éter, do átomo, do que quer que seja uno e primário, entende?

— Estou quasi entendendo. Já li um artigo no jornal onde um sábio provava que só há força e matéria, mas que a matéria é força, de modo que os dois elementos são um, como os três da Santíssima Trindade tambem são um, não é isso?

— Mais ou menos. Nomes não vêm ao caso. Força, éter, átomo: denominações arbitrarias de uma coisa una que é o principio, o meio e o fim de tudo. Por comodidade chamarei éter a esse elemento primário. Esse éter vibra e, conforme o grau ou intensidade da vibração, apresenta-se-nos sob formas. A vida, a pedra, a luz, o ar, as árvores, os peixes, a sua pessoa, a firma Sá, Pato & Cia.: modalidades da vibração do éter. Tudo isso foi, é e será apenas éter.

Não pude deixar de sorrir lembrando-me da cara que fariam os senhores Sá, Pato & Cia. se ouvissem as palavras do sábio. Éter, eles...

— Mas não há somente éter no mundo, continuou o mestre. Se só houvesse éter e fosse de sua essência vibrar, a vibração seria uniforme e tornaria impossível a manifestação de formas de vida. Seria o estatismo eterno.

— Sei, um zum-zum, uma zoada de não acabar mais.

— Muito bem, está compreendendo. A vibração do éter, pois, sofreu a interferência... Sabe o que é interferência?

— Uma coisa que se insinua pelo meio; intrometer a colher torta na conversa dos mais velhos deve ser, cientificamente, uma interferência.

— Perfeitamente. Sofreu a interferência do que cá no vocabulário que criei com minha filha chamo — o Interferente. Isto de palavras não tem importancia, como já disse. Só vale a ideia. O Interferente poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou de Vontade. Os filósofos que filosofam com palavras passam a vida a debater qual a melhor palavra a aplicar ao meu Interferente, como se palavras jamais esclarecessem alguma coisa.

— Vai indo muito bem, professor. Há o éter que vibra e há o Interferente que se mete no meio...

— Isso. Interfere e provoca a variação vibratória. Essa variação cria correntes que se chocam umas com as outras, modificam-e se dão origem a todas as formas de vida existentes. A vida, pois, não passa da vibração do éter modificada pela ação do...

— Interferente! concluí, glorioso.

Parece que o professor Benson mudou a ideia que formava de mim. Viu que o discípulo aprendia depressa e, voltando atrás, como se valesse a pena instruí-lo mais a fundo, passou a explicar-me dezenas de coisas do seu laboratório, na intenção de confirmar-me nos princípios que o levaram á dedução da formula: Éter + Interferência = Vida.

Depois que me viu já bem seguro das suas teorias, continuou:

— Preste atenção agora, que este ponto é capital. O interferente não interfere sempre. O Interferente interferiu uma só vez!

Parei um pouco atordoado.

— Espere, doutor. Dê-me tempo de assentar as ideias. O Interferente veio, interferiu e parou de interferir. É isso?

— Perfeitamente. Quebrou a uniformidade da vibração, perturbou o unissonismo...

— O zum-zum!

— ...e desde então o fenômeno vida, que tambem podemos denominar universo, desenvolve-se por si, automaticamente, por determinismo. As coisas vão-se determinando...

— Uma puxa a outra.

— Isso. Uma determina a outra. Daí vem falarem os velhos filósofos em lei da causalidade, "todo efeito tem uma causa", "toda causa produz efeitos", etc.

—Aristóteles. . . ia eu arriscando.

—Deixe Aristóteles em paz. Estamos na determinação universal, e a vida, ou o universo, é para nós o momento consciente desta determinação.

—"Momento consciente"... repeti forçando o cérebro.

—O senhor Ayrton, por exemplo, é um momento consciente da determinação universal ás 13 horas e 14 minutos do dia 3 de janeiro do ano de 1926, aos 22.° e 35' de latitude S. e 35.° e 3' de longitude ocidental do meridiano do Rio de Janeiro.

—Admirável! exclamei com entusiasmo e cheio de orgulho, compreendendo afinal a minha verdadeira significação na vida. Mas o futuro, doutor? Muito mais que a definição científica do que sou, interessam-me as suas visões do futuro.

—Para lá chegar temos que ir por este caminho. Começamos do éter inicial, admitimos a Interferência e estamos na Determinação, que é o que os filósofos chamam presente... O futuro é a Predeterminação.

Franzi os sobrolhos. A palavra era nova para mim e a ideia muito mais. O professor Benson expô-la com luminosa clareza e mostrou-me o maravilhoso do determinismo. Em certo ponto da sua exposição lembrei-me do amigo corretor e da sua comparação do 2 + 2 = 4. Fingi que era minha a imagem e arrisquei:

— Dois mais dois igual a quatro.

O professor Benson entreparou, com a fisionomia radiante. Em seguida estendeu-me a mão.

— Meus parabéns! Vejo que o senhor Ayrton é muito mais inteligente do que a principio supus. Nessa imagem está toda a minha filosofia; 2 + 2 significa o presente; 4 significa o futuro. Mas, assim que escrevemos o presente 2 + 2, o futuro 4 já está predeterminado antes que a mão o transforme em presente lançando-o no papel. Aqui, porém, são tão simples os elementos que o cérebro humano, por si mesmo, ao escrever o 2 + 2, vê imediatamente o futuro 4. Já tudo muda num caso mais complexo, onde em vez de 2 + 2 tenhamos, por exemplo, a Bastilha, Luis 16, Danton, Robespierre, Marat, o clima de França, o ódio da Inglaterra além Mancha, a herança gaulesa combinada com a herança romana, o bilhão de fatores, em suma, que faziam a França de 89. Embora tudo isso predeterminasse o "quatro" Napoleão, esse futuro não poderia ser previsto por nenhum cérebro em virtude da fraqueza do cérebro humano. Pois bem: eu descobri o meio de predeterminar esse futuro — e ve-lo!

— Mas é assombroso, professor! É a mais espantosa descoberta de todos os tempos! exclamei de olhos arregalados. Entretanto, permita-me uma duvida. Se esse futuro ainda não existe, como o pode ver?

— O 4 antes de ser escrito tambem não existe; no entanto o amigo o vê tão claro no presente 2 + 2 que o escreve incontinente.

O argumento calou fundo. Pisquei sete vezes, com a testa fortemente refranzida.

— O futuro não existe, continuou o sábio, mas eu possuo o meio de produzir o momento futuro que desejo.

Tonteando pelo tom categórico daquela afirmativa não ousei duvidar, e estava ainda apalermado com a maravilhosa revelação quando miss Jane apareceu, esplêndida de formosura. Esqueci toda aquela altíssima ciência que já me dava dor de cabeça e regalei os olhos na sua imagem perturbadora. Saudou-me com um gesto amável e disse, dirigindo-se ao
professor:

— Tinha razão, meu pai. Já fiz o corte e lá só vi as eternas brancuras da neve.

E voltando-se para mim:

—Tem aprendido muita coisa, senhor Ayrton?

—Mais que em toda a minha vida, miss Jane, e começo a bendizer o acaso que me fez vitima de um desastre.

—E está tão no começo ainda! Quando entrar no segredo de tudo e puder ver diretamente uns cortes, o seu assombro vai ser ilimitado.

—Já prevejo isso, senhorita, e...

E engasguei-me. Miss Jane olhara-me nos olhos e eu não era criatura que suportasse de frente um olhar assim. Cheguei a corar, creio, o que inda mais aumentou a minha perturbação. Felizmente a boa criatura, vendo que eu me calava, voltou-se para o professor Benson e disse:

— Mas agora, meu pai, tréguas ás revelações. O café está na mesa e com uns bolinhos tentadores que eu mesma fiz. Senhor Ayrton, vamos...
––––––––
continua… VI – O Tempo Artificial

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.