terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – V – Valentias

Pedrinho fora dar uma volta com o capitão dos couraceiros vindos para a guarda do príncipe. Esses valentes soldados tiveram ordem de ficar fora da casa, para que tia Nastácia não se assustasse. Pedrinho fez logo boa camaradagem com o capitão, que era grande contador de proezas.

Contou duma terrível luta entre dois espadartes e duas baleias, a que ele assistiu de pertinho. Sua valentia consistira nisso — assistir de pertinho. Contou depois as suas próprias façanhas, lutas com lagostas, ataque a um filhote de peixe-espada.

Pedrinho tinha paixão por histórias de caçadas, guerras, lutas de boxe — aventuras de terra e mar, como dizia dona Benta. Ouvia com interesse as histórias do couraceiro e contava outras. Contou histórias de onças, tigres-de-bengala, leões do Uganda, jacarés do Amazonas.

— E qual o bicho da terra que acha mais perigoso — perguntou o couraceiro, que ignorava completamente tudo que não se referia ao mar. Dizem que é o leão.

— É e não é — respondeu Pedrinho para mostrar que entendia do assunto. — É porque é, e não é porque com uma boa bala na cabeça qualquer caçador dá cabo dum leão. Para mim o bicho mais perigoso é uma tal vespa que quando morde incha o lugar e arde que nem fogo.

O couraceiro não fazia a menor idéia do que fosse uma vespa.

— Mas com uma bala na cabeça qualquer caçador não dá cabo duma vespa? — perguntou.

— Se acertar, sim — respondeu o menino. Mas ainda está para existir um caçador que acerte uma bala na cabeça de vespa.

O couraceiro arregalou os olhos.

— Só se são encantadas...

— Pior que isso. São deste tamanhinho, e voam como umas danadas. Certa vez uma ferrou na ponta da língua de Narizinho. A coitada viu fogo! Vespa, sim, é um bicho danado. Eu, por exemplo, que não tenho medo de coisa nenhuma, confesso que respeito as vespas — e não sinto vergonha nenhuma de dizer isso.

O couraceiro, um dos caranguejos mais gabolas do mar, deu uma risada de desafio.

— Pois eu só queria encontrar-me com uma! Tenho tirado a prosa de muito bichinho valente e tirava a das vespas também.

Pedrinho riu-se.

— Sua valentia vem da couraça, capitão. Tire a casca e venha lutar com uma vespa, se é capaz!

Ofendido com o juízo que o menino fazia dele, o couraceiro replicou:

— Saiba que já me bati com uma grande lagosta e a venci em poucos minutos.

— Grande coisa! Pois eu já dei no Chiquinho Pé-de-Pato, que é o moleque mais temido lá da cidade, e no entanto corro de vespa. Corro e hei de correr, e nunca terei vergonha de contar isso, porque medo de vespa é o único medo que não desmoraliza ninguém.

Estavam nesse ponto quando Emília passou, muito requebrada no seu vestido de teia cor-de-rosa. Ia tão absorvida em altos pensamentos que nem os percebeu.

— Quem é esta senhora?

— Pois é a marquesa de Rabicó, não sabe? Uma das damas mais ilustres dos tempos modernos.

— Hum! — fez o couraceiro lembrando-se. — Se não me engano esteve lá no reino há muito tempo, em companhia de Narizinho. Mas naquela época usava camisola e tinha os cabelos pretos.

— Emília muda muito, não é como vocês que são sempre os mesmos. Cada vez que Narizinho se enjoa da cara dela, muda. Muda tudo. Muda a boca mais para baixo ou mais para cima. Muda as sobrancelhas, muda os olhos. Houve até uma vez em que Emília passou sem olhos cinco dias.

— Como assim?

— Narizinho estava mudando os olhos dela, que são de retrós, e já tinha arrancado os velhos para pôr novos, quando viu que não havia mais retrós no carretel. Até que alguém fosse à cidade e trouxesse mais retrós, a coitada ficou sem olhos, ceguinha num canto, sem enxergar coisa nenhuma...

Apesar de ser um guerreiro de coração duro, o caranguejo murmurou apiedado:

— Coitada! Como não havia de ter sofrido...

— Mas também — continuou Pedrinho — quando a linha veio e Narizinho botou-lhe olhos novos, bem arregalados, Emília tirou a forra. Passou o dia inteiro sem fazer outra coisa senão olhar, olhar, olhar.

— Tem filhos? — perguntou ainda o curioso capitão.

— Não. Narizinho não quer. Emília é sua companheira de passeios e viagens. Se tivesse filhos, teria de ficar em casa, a dar de mamar às crianças, a lavar fraldinhas — e adeus passeios...
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – VI – Os espantos do príncipe

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Trova 213 - Edmar Japiassu Maia (RJ)

Poemas: Bilhete


Mifori
BILHETE

No bilhete dizia, estou aqui no cerrado,
vivendo numa terra que garante,
muitas e muitas contradições.
O dia amanhece radiante,
e há alegria no azul do céu!
À tarde a brisa lenta
vem amenizar o calor sufocante...
E as noites?!... Cada um, a sua inventa!
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Ilze Soares
BILHETE

As palavras dançavam à minha frente,
não conseguia entender o real significado!
Era um curto bilhete do namorado...
Nãodeu explicações,
nem adoçou o seu ato...
Dizia apenas Adeus, vou embora.
O papela ficou encharcado
das lágrimas fartas de emoções!
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Sandra Galante.
BILHETE

Escrevo-te aqui algumas palavras
Para que em ti fiquem bem gravadas
Desde o dia que te conheci,
Nada mais belo e fascinante vivi
Conheci o que é o verdadeiro amor...
Digo-te, que viver sem ti é conviver com a dor
Portanto, não me deixe nunca por favor
Prometo-te para sempre te dar o meu melhor...
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Giovânia Correia
BILHETE

Nessa vereda aqui estou.
Perdida, e em aflição.
Pois nada mais restou.
Dessa insana e doce ilusão.
Já nem sei se devo caminhar.
Pois perdi também meus anseios.
Finalizo sozinha a chorar.
Pois perdi todos os meios.
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Humberto - Poeta
BILHETE

Meu coração se agitou
ao ler teu lindo bilhete,
mas inda não sei se vou
te amar em teu palacete;
só em pensar fico rendido
a um medo covarde e afoito
de ali surgir teu marido
me apontando um trinta e oito!
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Dilma Suero
BILHETE

Encontrei, na cama amassado,
um curto bilhete, de papel rabiscado.
Peguei-o ansiosa... coração acelerado,
o que diria tal bilhete, seria do meu namorado?
Cheguei junto à janela com mais claridade,
um vento uivante arrancou-me das mãos
e levou-o embora para a eternidade.
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Gilson Faustino Maia
Petrópolis-RJ
FUGA

Sumir, foi o meu desejo,
algo que concretizei.
Aproveitei um ensejo
e nem bilhete eu deixei.
Mas hoje eu vivo tristonho,
parece ser tudo um sonho,
que ainda não acordei.
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Maria Zélia Gomes
O BILHETE QUE ESCREVI

Eu já te escrevi um dia
Um bilhete de amor
Ia nele nostalgia
Pedacinhos de magia
E restos de algum fulgor
Eram palavras sentidas
Ditadas pelo coração
Relatos … frases perdidas
Novas tristes … doloridas
Misto de dor e paixão
E o bilhete que escrevi
Que não leste e que eu li
Carregado de ansiedade
Ficou amarelecido
Era um relato sentido
Só restou dele … saudade!
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Marcial Salaverry
UM BILHETE DE AMOR

Minha amada querida,
amor de minha vida...
Peço-te não desapareça,
veja, por ti, perdi a cabeça...
Dominastes meus pensamentos,
tortura-me ficar só com meus lamentos...
E assim, enquanto tua ausência me desespera,
ouço-te quando simplesmente, diz...espera...
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Clara da Costa
BILHETE

Escrevi um bilhete quando a saudade doeu
no vazio daquelas noites solitárias,
na saudade que invadia me corpo
O bilhete que escrevi,
falava do meu amor,
desse inesquecível,
e insubstituível amor.

O bilhete que escrevi, resposta não teve...

Morro aos poucos,
sentindo teu cheiro
impregnado dentro de mim...
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Arianne Evans
BILHETE

Ele nem me conhecia e eu o amava...
Um dia decidi escrever num bilhete
os meus sentimentos e emoções, quando
o via, quando pensava nele; num papel
bem perfumado contei - lhe pormim ser
amado, masó decepção, o endereço que
eu tinha estava errado, o bilhete voltou
sem por ele ter sido tocado e ainda fechado...
E eu fiquei com aquele amor sufocado...
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Aliosha Cigana
Bragança Paulista
BILHETE

O amor passou por aqui
Voando feito anjo estabanado
Mal deu tempo de dizer
Tenho pressa, preciso ir
Deixo-lhe um bilhete
Sem endereço, remetente ou adereço
Possivelmente de alguém
acenando que é por ti apaixonado
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Beki Bassan
BILHETE

Deixo este bilhete para você,
porque percebi que você não me ama,
e como não sei se vou conseguir dizer,
o que penso sobre esta mentira que me tortura,
prefiro então nunca mais olhar no seu rosto.
Penso que você poderia ter sido honesto,
no amor não se manda e eu entenderia,
mas ao lhe ver aos beijos com outra,
você partiu meu coração.
Só te peço uma coisa não me procure mais.
ADEUS.
==========

Luiz Gonzaga Bezerra
BILHETE.

O bilhete expressava
Meus sentimentos e amores
Meu desejo imensurável
De tê-la nas loucas noites
Deitadinha ao meu lado
Amando-me e sendo amada.
=================

Marcos Toledo
BILHETE

Tentei escrever-lhe um bilhete de chegada,
mas, como sempre, virou uma carta de amor.
Escrever bilhete para você é dificil,
meu coração se intromete e desanda a falar.
Fala do amor que sinto por você.
De um simples bilhete, vira uma carta
recheada com amor/carinho/paixão/tesão.
Culpa do coração escritor que tenho.
amém
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Cibele Carvalho
BILHETE

Escrevi-lhe um bilhete
- que coisa mais antiquada,
nestes tempos de internet -
devo estar ultrapassada...
Dizia do bem que me faz
sua presença em minha cama,
e nada se compara à paz
que sinto quando a gente se ama.
================

Maria Conceição de Paula (São José dos Campos/SP)
BILHETE

Há bem mais de meio século,
não havia, na zona rural,
caneta bonita e moderna.

Mas havia poesia no coração
de um aluno apaixonado.
Assim que aprendeu o b+a=ba
fez essa trova para quem admirava:

A tinta tirei dos olhos,
A pena do coração,
Pra escrever esta cartinha
Pra quem amo de paixão!
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Lora Saliba
BILHETE

Nesse bilhete transmito
Todo meu sentimento!
Digo-lhe, não minto
Não há nenhum impedimento,
Podemos conversar agora,
Aguardo, pode vir, por hora
Com sinceridade lhe transmito
Todo o amor que sinto!
====================

Nilza Stringhetta Rossi (Botucatu/SP)
BILHETE

Um livro iluminado na estante bem guardado
Há algum tempo eu não percebia
Tudo estava empoeirado
O livro cai num repente quase em cima de mim
Salta dele um bilhete dizendo assim
Meu amor és minha vida, por favor,
Encontra-me na avenida
Pego o celular, meu amado, hei de encontrar
==================

Nicola Araujo
BILHETE

Um bilhete timbrado
Recebi perfumado
Dobrado em quatro
No meio um laço

Marcado por lágrimas
Derribadas da alma
Que clama por um amor
Sem travas
==============

Enviar participação para:
ilzesoares@terra.com.br OU ilzesoares@gmail.com
Obrigada
CURTINHO= poema com NO MÁXIMO 8 versos

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 416)


Uma Trova Nacional

Sou tão triste e tão sozinha,
que o eco do meu lamento,
desta saudade tão minha,
escuto na voz do vento!
–GISLAINE CANALES/SC–

Uma Trova Potiguar

Janela do meu encanto,
de alcance manso e profundo...
À noite, levas meu pranto;
de manhã, trazes meu mundo!
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - Ribeirão Preto/SP
Tema: MADURO - M/H

Na caminhada, maduro,
ponho fogo na fornalha,
quero deixar ao futuro,
as lições de quem trabalha.
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova de Ademar

Quem pratica a caridade
ajudando aos irmãos seus,
tem um crédito...Na verdade,
no banco do amor de Deus!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Se na estrada em que transponho,
só tem pesares daninhos,
eu peço carona ao sonho
e nem piso nos espinhos.
–LILA RICCIARDI FONTES/SP–

Simplesmente Poesia

Meu Tear...
–SUZETE TORRES/SP–

Aproveito os girassóis e os cravos
Nascidos da lama, as violetas coloridas,
entrecortadas de desejo, as rendas da lua,
As nuvens em forma de bolas desfiadas de algodão,
O vento apressado lá fora, a música que ouço
Em meu canto...para o desencantar de meus poemas,
Tecendo-os com o tear de sentimentos, numa mistura
De cores e formas...ora tristèsse, ora alegrèsse!!
Assim também, a vida a gente tece!

Estrofe do Dia

Foi à época de ouro em minha vida,
Vem de lá todo o meu aprendizado.
Convivendo com o meu pai amado
E mamãe que foi digna e tão querida.
Mas a vida pra ser evoluída
Tem que ter os estágios, eu bem sei...
Eles desencarnaram e eu fiquei
Na missão do planeta dos mortais.
As saudades que sinto dos meus pais,
São eternas, jamais esquecerei!
–DAMIÃO METAMORFOSE/RN–

Soneto do Dia

Ladrão de Almas.
(Contra o plágio)
–CARMO VASCONCELOS/PRT–

Se és mulher... podes, sem qualquer pudor, plagiar:
as minhas vestes, meus adornos, a pintura;
meu requebrar e jeitos próprios; a postura;
podes, até, sem medo, inteira me imitar!

E se homem és... meu corpo podes decalcar;
as minhas mãos no teu, em cópias de fartura;
sem relutância te prometo, sem censura,
deixar teus dedos minhas linhas desenhar!

Do vão corpóreo vos concedo a mais-valia!
- Que pouco vale, como vós, que em cobardia,
ousam roubar do nobre poeta a inspiração...

Mas o que brota da minh’alma vos recuso!
E sem piedade, ladrões de almas, vos acuso!
Que plagiador merece pena sem perdão!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Contos de Sempre: Jacob e Wilhelm Grimm (A Lua)


Em tempos que já lá vão havia uma terra onde a noite era sempre escura e o céu estendia-se sobre ela como um lenço negro, pois ali a Lua nunca subia e nenhuma estrela piscava na escuridão. Na altura da criação do mundo, a luz da noite era suficiente. Uma vez, saíram desta terra em peregrinação quatro rapazes e chegaram a um outro reino onde, quando à noite o Sol desaparecia atrás dos montes, havia uma esfera brilhante pendurada num carvalho, que deitava uma luz suave em todas as direcções. Devido a ela, era possível ver e distinguir tudo muito bem, embora não fosse uma luz tão forte como a do Sol. Os rapazes pararam e perguntaram a um lavrador, que passava por ali com o seu carro, que luz era aquela. "Aquilo é a Lua", respondeu ele, "o nosso prefeito comprou-a por três moedas e pendurou-a no carvalho. Tem de lhe deitar óleo todos os dias e mantê-la limpa, para que ela não deixe de brilhar. Por isso, pagamos-lhe umamoeda por semana."

Assim que o lavrador partiu, disse um deles: "Esta lanterna fazia-nos jeito, também lá temos um carvalho, tão alto como este, onde a podemos pendurar. Que grande alegria deixar de tropeçar na escuridão!"

"Sabem que mais?", disse o segundo, "precisamos de arranjar um carro e um cavalo e levar a Lua embora. As pessoas daqui bem podem comprar uma outra."

"Eu trepo com muita facilidade", disse o terceiro, "trago-a já para baixo!" O quarto trouxe um carro e um cavalo e o terceiro trepou pela árvore acima, fez um buraco na Lua, passou-lhe um fio e fê-la descer. Assim que a Lua brilhante ficou dentro do carro, deitaram-lhe um lenço por cima, para que ninguém se apercebesse do roubo. Levaram-na sem problemas para a sua terra e penduraram-na num alto carvalho. Velhos e novos alegraram-se, quando a nova lanterna começou a estender a sua luz sobre os campos e os quartos e salas se encheram dela. Os anões saíram dos seus buracos nas rochas e os pequenos elfos, com os seus casacos vermelhos, faziam rodas nos prados.

Os quatro rapazes tratavam da Lua com óleo, limpavam a mecha e recebiam a sua moeda semanal. No entanto, envelheceram e quando um deles adoeceu e se apercebeu de que a morte estava próxima, ordenou que o quarto da Lua que lhe pertencia fosse levado com ele para a sepultura. Quando morreu, o prefeito trepou à árvore e, com a tesoura da poda, cortou um quarto da Lua que meteu no caixão. A luz da Lua diminuiu, mas não muito. Quando morreu o segundo, foi-lhe dado o segundo quarto e a luz mingou. Mais fraca ficou ainda quando morreu o terceiro, que também levou o seu quarto e, quando o quarto homem foi sepultado, instalou-se de novo a velha escuridão. Sempre que as pessoas saíam à noite sem lanterna, batiam com as cabeças umas nas outras.

Porém, assim que os quartos da Lua se juntaram no inferno, os mortos, habituados à escuridão, agitaram-se e acordaram do seu sono. Ficaram espantados por poderem ver de novo: a luz da Lua chegava-lhes bem, pois os seus olhos estavam tão fracos que não teriam podido suportar a luz do Sol. Ergueram-se, alegraram-se e retomaram os seus hábitos de vida. Alguns deles dedicaram-se ao jogo e à dança, outros foram para as tabernas onde pediram vinho, embriagaram-se, vociferaram e lutaram e, por fim, pegaram em cacetes e bateram uns nos outros. O barulho era cada vez maior até que, por fim, chegou ao céu.

São Pedro, que guarda as portas do céu, calculou que o inferno se tinha revoltado e chamou as hostes celestes, que lutavam contra o maligno, porque este e os seus associados pretendiam assolar a morada dos abençoados. Como, porém, elas não vinham, São Pedro montou no seu cavalo, atravessou as portas do céu e foi ao inferno. Aí sossegou os mortos, fê-los voltar de novo à sepultura e levou com ele a Lua, pendurando-a no céu.

Fonte:
José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.

Paraná em Trovas Collection - 21 - Roza de Oliveira (Curitiba/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 20


PARA OS QUE SE AMAM

Ao Américo Facó

Sobre esse lago azul, que um sussurro de brisa
Aquebranta de amor e encrespa de desejo,
Curvo e leve um batel docemente desliza,
Velas a palpitar radiantes como um beijo...

Dentro, amoroso, vê, um casal se entrelaça,
E enquanto sobre o azul dessas águas quietas
Voga o batel, os dois, com o mesmo ardor e graça,
Beijam-se, como faz um par de borboletas.

Amam-se. E em derredor do lago, que se ondeia,
Como uma flauta, que soluçasse em surdina,
Pelos ramos em flor um pássaro gorjeia,
E ansioso sobre os dois o próprio céu se inclina.

Ah! que doce frescor ideal de mocidade!
Para vê-los assim foi que se fez o mundo,
A alegria, o prazer, o ruído, a cidade,
A poesia, o luxo, aquele céu profundo...

Para gozar o amor dessas crianças, vê-las
Os lábios confundir no mesmo sorvedouro,
A noite se enfeitou de arrecadas de estrelas,
E pôs sobre a cabeça um diadema de ouro...

Primaveras em flor brotaram de repente,
Como romãs ideais, bocas luxuriosas,
E floriram canções madrigalescamente,
E encheram-se os jardins de lírios e de rosas...

Ó que frêmito bom, que beijo, e que alvoroço,
E que sonho ideal, e que róseos matizes!
Não há nada melhor do que ser belo e moço...

Senhor, vamos rezar pelos que são felizes!

A BOA ESTRELA

Ao Aluízio França

Em criança, um dia, consciência pura,
Mostraram-me a estrela da minha ventura.

Ansiado e doido, corri para vê-la...
E vi-a. Que linda, que dourada estrela!

Lembra-me: mais tarde, consciência langue,
Olhei-a. Ela estava coberta de sangue...

Afinal perdido de todo, quis eu
Inda olhar e vê-la. Desapareceu....

PARA QUE TODOS QUE EU AMO SEJAM FELIZES

Eu sei que o meu destino é como aquela espada
De Breno a reluzir sobre minha cabeça,
E por isso também, porque nada mereça,
Ó deuses, para mim, eu não vos peço nada.

Tudo que vier é bom: esta melancolia,
Esta tristeza atroz, esta invasão de mágoa,
A tortura que faz tremer os olhos d’água;
Tudo que vier é bom: é porque eu merecia.

Bendita seja, pois, a mão que me assassina,
Bendito o que me fere e o que me apunhala,
E encheu-me de pavor os caminhos de opala,
E fez cair os meus castelos em ruína...

Mas ao menos, ouvi, e eu por isso me inflamo,
Que do fundo do meu recolhimento eu possa
Pálidas mãos erguer e suplicar a vossa
Magnificência real para aqueles que eu amo.

Que não sendo feliz, ao menos possa vê-los
Felizes, a gozar o prazer que não pude:
O aroma dessa flor-de-lis da juventude,
A alegria de ser sempre moços e belos.

Sim, permiti que o mal que tenha porventura
De um dia os abater, como vítima imbele,
Caia por sobre mim, que eu sei que tenho a pele
Sobre os ossos, porém, insensível e dura.

E unidos, como se fosse num longo beijo,
Doce, espiritual, ansiosamente mudo,
Não compreendam jamais dentro desse veludo,
Dentro desse prazer, dentro desse desejo,

Que há serpentes cruéis e babas de serpente,
E monstros, e reptis, e charcos, e venenos;
Mas simplesmente, olhai, mulheres como Vênus,
Belezas ideais, beijos unicamente!

Que sobre eles, assim como uma auréola em brasas
Possa resplandecer o sonho de tal modo
Que nem toquem sequer com os pés sobre o lodo,
Por isso que sonhar é o mesmo que ter asas...

E que bem como faz à tarde uma andorinha,
De um para outro país, em vindo a primavera,
Emigrem: que isso foi minha melhor quimera,
E eram essas também as ambições que eu tinha.

E transpondo esse mar, que brame e ruge e espelha,
Julguem, sempre a sorrir, que tudo é um sonho vago,
E que esse mar não é senão um doce lago,
De ondulações azuis e bom como uma ovelha.

E sobretudo que, mais verde que uma palma,
Tragam o coração em flores de giesta
Sempre aberto, a florir para uma grande festa
Dentro desses salões ariádnicos d’alma.

E possam sempre ouvir o amor quando segreda,
Mas assim como se fosse um suspiro apenas,
Essas canções em flor, lânguidas açucenas,
Entre os álamos nus de sombria alameda...

E não vejam senão a doçura da vida,
E não ouçam senão o fresco idílio eterno:
Primavera, verão, outono, e o próprio inverno,
Como quem vive ao pé de uma mulher querida.

E sabendo que são puramente bondade,
Alegria, e canção, e luz, e alvoroço,
Não queiram ser jamais esse monstro e esse poço
Que sou, e sempre fui, de orgulho e de vaidade.

E tudo seja pois tão saboroso e rubro
Pomo, que de maduro em favos se derrete,
Tão azulado o céu, mas d’um azul-ferrete,
Cálido a enfebrecer de raiva o mês d’Outubro.

Que eles possam achar quase aos oitenta anos,
Envelhecidos, mas com o lábio risonho,
Que a existência lhes foi mais breve do que um sonho,
Tais as venturas e tão grandes os enganos...

E um dia, quando enfim, de longínquos países,
Chegar a morte, bem como uma dura algema,
Que eles possam dizer nessa hora suprema:
Glória aos céus imortais, que fomos tão felizes!

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte VII


ÊNFASE.

Chame a atenção para o assunto com palavras fortes, cheias de significado, principalmente no início da narrativa.
Use o mesmo recurso para destacar trechos importantes.
Uma boa conclusão é essencial para mostrar a importância do assunto escolhido.
Remeter o leitor à idéia inicial é uma boa maneira de fechar o texto.

ENTREVISTA.

É o encontro de duas pessoas em que uma interroga (entrevistador) a outra (entrevistado) sobre suas ações ou idéias. Um conjunto, portanto, de declarações de uma determinada pessoa, que autoriza, implícita ou formalmente, sua publicação.

ENUMERAÇÃO.

Use a enumeração quando quiser reforçar determinada sugestão ou quando quiser sugerir variedade, multiplicidade, coisas intermináveis. Em frases separadas, os membros da enumeração ficam mais realçados ainda.

Muitas virtudes deve ter o político: honestidade, iniciativa, inteligência, ponderação.

A história ia longe: era um festival de exageros, um esmiuçamento de detalhes fúteis, um conjunto longo de fofocas, mais as ofensas e a grosseria de falar de quem não estava presente para defender-se. O homem desatinava. Pensava um verbo, corrigia-se ou pedia a alguém para lembrar-lhe a palavra injuriosa que queria dizer. Soltava mais uns três impropérios. Desandava a emendar e emendar. No final, a platéia estava atônita, angustiada de aflição e agradecendo a despedida do sujeito.

ERROS.

Anote os erros mais freqüentes para servir-lhe de apoio para no futuro não cometê-los mais. Já ouviu aquela máxima que diz: Errar é humano, mas permanecer no erro é diabólico?

ERUDIÇÃO. PEDANTISMO.

É escrever usando palavras difíceis e desconhecidas, para tentar impressionar os outros. Não seja pretensioso nem erudito.

Lembre-se de que escrever bem é redigir com simplicidade, clareza, concisão, correção e elegância.

Adianta alguma coisa escrever um monte de palavras difíceis, complicadas, que ninguém vai entender? Comunicar-se é fundamental.

TEXTOS ERUDITOS
Inobstante o exposto, deve-se buscar o contraditório.
A nível de personalidade, os brasileiros são muito cordiais.

TEXTO EXTREMAMENTE PEDANTE
Os homens se contendem pelas protuberâncias conexas das excentricidades congêneres da apologética, silontrando a insipidez patológica das homogeneidades mórbidas, farpantes em que o ostracismo melancólico de um traumatismo espontaneamente uniforme e retilíneo, engavela os insignes caracóides mentores das obrividências, nos epídotos escalenos de filisteus e trogloditas, enviperando genetrises macropétalas de um púlcaro desnalgado e exaurível, bacorejando páramos tripétalos de lucidez sem nexo.

ESCREVER.

Não existem fórmulas mágicas para se redigir bem. O exercício contínuo, aliado à constante leitura de bons autores e à reflexão, é indispensável para a criação de bons textos.

Enganam-se aqueles que pensam que é fácil escrever. Todos os grandes escritores desmentem o mito da inspiração. Uma das frases mais famosas sobre o assunto afirma o seguinte: "O ato de redigir requer 1% de inspiração e 99% de transpiração".

Se você se limitar a repetir o que todo mundo escreve, com medo de errar, provavelmente cairá no lugar-comum e na mediocridade. Inove sempre, sem medo. Seja atrevido! A segurança virá aos poucos e com a satisfação de perceber que fez algo seu, com seu próprio padrão de qualidade.

Quer escrever bem? Leia, então, muito e sempre. É atividade que requer treino, perseverança e até uma boa dose de teimosia. Ninguém nasce sabendo redigir bem.

Escreva na ordem direta, dispense os detalhes irrelevantes e vá diretamente ao que interessa, sem rodeios.

Redigir bem é uma questão de prática, como qualquer outra atividade. Ninguém vai ensiná-lo a pintar segurando os pincéis para você.

Se quiser escrever bem, leia muito e sempre.

Uma redação bem escrita é vaga garantida para o ingresso à universidade.

Escreva diários, cartas, e-mails, crônicas, poesias, redações, qualquer texto. Só se aprende a escrever, escrevendo.

Escrever é falar no papel, e sem rascunho é impossível. Escreva sem medo e sem preguiça, fazendo vários rascunhos, lendo em voz alta o texto escrito para descobrir as falhas.

Muitas vezes a impropriedade vocabular se transforma claramente em erro, às vezes grosseiro. O relâmpago atingiu o ônibus. O que atingiu o ônibus foi o raio. Havia cem pessoas no féretro. O féretro é o caixão, e não o enterro.

Redigir bem depende de bastante leitura (jornais, livros, revistas), que lhe fornecem informações novas e atuais, e de muita prática. Todos os dias, antes de dormir, sente-se num local adequado e confortável em seu quarto e escreva em uma folha de papel como foi o seu dia. Eis um bom começo.

Adquira o hábito de escrever, exercitando-se, principalmente, com os temas que têm caído nos vestibulares mais recentes. Meça bem as palavras, usando as mais simples, não se esquecendo de acentuá-las e pontuá-las com precisão. Jamais se desvie do tema. Seja o mais claro possível. Mostre raciocínio lógico, agudeza mental, inteligência e conhecimentos. Texto bom e legível é aquele no qual as palavras estão adequadamente dispostas na frase, com elegância, precisão, clareza e objetividade.

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – IV – Os Segredos da Aranha


Dona Aranha, apesar de manca, jamais deixara de acompanhar o príncipe nas suas viagens — nem ela, nem o doutor Caramujo. Médico tem sempre serviço numa viagem e costureira também — um botão que cai, um pé de meia que fura. Por isso dona Aranha também viera.

Trabalhadeira como ninguém, assim que chegou foi logo para o quarto de costuras examinar os apetrechos de dona Benta — a cestinha, a almofadinha de alfinetes, os agulheiros, os carretéis. Só não gostou da máquina.

— Muito pesada e complicada — disse para Emília, que era a mostradeira de tudo.

Vendo-se só com a Aranha, a boneca regalou-se de fazer quantas perguntinhas quis.

— Acho muito bonito esse seu sistema de trazer o carretel dentro da barriga — disse ela. — Só não compreendo como a senhora faz para engolir um carretel...

— Eu não engulo carretéis, menina — explicou a Aranha. – Nós nascemos com o carretel dentro.

— E quando acaba?

— Não acaba nunca.

— Hum! Já sei! A senhora tem fábrica de linha na barriga, não é?

— Deve ser. Nunca entrei dentro de mim para saber.

— Pois eu sei o que há dentro de mim. É só macela. Quando fiquei com a perna seca, tia Nastácia me consertou e eu vi. Ela pôs só macela da bem amarelinha e cheirosa.

— E seu marido, o marquês? — perguntou dona Aranha.

— Também é cheio de macela?

— Creio que não, porque Rabicó é diferente de mim em tudo. Por exemplo: ele come e eu não como. Só como de mentira, por brincadeira.

— Não come? — exclamou dona Aranha muito admirada. — É a primeira pessoa que ouço dizer isso...

— Nunca comi coisa alguma — e sinto bastante, porque comer parece uma coisa muito gostosa. Rabicó quando come arregala os olhos de gosto, e grunhe se alguém se aproxima. A vaca mocha, essa até baba quando come um sabugo de milho.

— Pois lá no mar não existe uma só criatura que não coma. E um come o outro. A gente precisa andar com as maiores cautelas, espiando de todos os lados e escondendo-se quando vê algum peixe. Minha mãe foi comida por uma garoupa.

— Coitada! — exclamou Emília deveras compungida. — E era também costureira?

— Era sim. Todas as aranhas são costureiras.

— E tinha também carretel na barriga? — Está claro. Basta ser aranha para ter carretel na barriga. — E de que cor era a linha?

— A cor não varia. É sempre a mesma para todas as aranhas.

— Que pena! — exclamou Emília triste. — Gosto muito da cor vermelha e se soubesse duma aranha de linha vermelha, iria morar com ela.

— Para quê?

— Para ver. Para sentar debaixo da jabuticabeira e ver aquela linha tão linda que sai, sai, sai e não se acaba mais...

Enquanto Emília ia dizendo suas asneirinhas, dona Aranha, para não perder tempo, cerzia meias. Cerzia tão bem que não havia quem fosse capaz de perceber o cerzido.

Admirada da perfeição do trabalho, Emília disse:

— Se a senhora se mudasse para a cidade havia de ganhar um dinheirão.

— E que faria do dinheiro?

— Oh, muitas coisas! Podia comprar uma casa, podia comprar um guarda-chuva. Pedrinho diz que é muito bom ter dinheiro.

— E ele tem muito?

— Muito! Pedrinho é bastante rico. Tem um cofre com mais de cinco reais dentro.

— E para que quer tantos reais?

— Diz que vai comprar um revólver. Eu, se tivesse dinheiro, sabe o que comprava? Um trem de ferro! Não há nada de que eu goste tanto como o trem de ferro...

— Por quê?

— Porque apita. A senhora já ouviu apito de trem?

Nesse ponto a conversa foi interrompida por um recado de Narizinho, ordenando que Emília se vestisse para sair a passeio.

— Adeus, dona Aranha. Narizinho está precisando de mim. Vai passear conosco ou fica?

— Fico. Estou com fome. Quero ver se apanho umas três moscas.

— Não use vinagre — aconselhou Emília retirando-se. – Tia Nastácia diz sempre que não é com vinagre que se apanham moscas.
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – V – Valentias

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 4 de dezembro de 2011

Francisco José Pessoa (Décima de Natal)

Máximo Gorki (Sonho de Uma Noite de Natal)


Eu havia terminado um conto sombrio como os breves e tristes dias de inverno, que então pesava sobre meu país. Deixei cair a pena e comecei a passear pela casa.

Era noite. Lá fora prenunciava-se uma tormenta. A neve caía em flocos espessos. A rua estava deserta, e, encostando-me à vidraça, eu via apenas uma lanterna pendurada a uma porta, do outro lado da rua, e agitada pelo vento. Aquele espetáculo era tão profundamente desolador que, afastando-me da janela, apaguei a lâmpada e fui deitar-me.

Então, na escuridão que invadia todo o meu quarto, os sons da noite se fizeram mais nítidos. O relógio contava os segundos, mas por vezes o zumbir da neve, lá fora, afogava seu rumor. Em vão. O tique-taque apressado, incansável, voltava a dominar os murmúrios do inverno; e aquele tique-taque seco, monótono e teimoso, em sua marcha para a eternidade, impunha-se ao meu cérebro, ressoava dentro dele.

Não podendo dormir, pensava nas páginas que acabara de escrever. Era uma narração muito simples: a história de dois velhos tímidos e meigos, dois abandonados pelo destino. Ele, cego; ela, sua esposa, humilde e fiel.

Uma madrugada, na véspera de Natal, saíram de seu sórdido abrigo e foram mendigar pelo casario da vizinhança, para ver se obtinham algo com que comprar um pouco de alegria e conforto para o dia mais santo de todos.

Movidos por essa esperança, percorreram os arredores, crentes de que poderiam voltar, à hora da missa do galo, com os bolsos cheios de dádivas feitas em nome do Senhor. Mas foram tão escassas as esmolas que nem sequer compensaram a caminhada, e já era muito tarde quando o triste casal compreendeu que tinha de voltar ao seu casebre sem fogo para se aquecer e apenas com o indispensável para não passar fome.

Retomaram, pois, o caminho de seu abrigo, ela adiante, ele com a mão apoiada à sua cintura. Vinham lentamente, na escuridão da noite. As nuvens encapotavam o céu; o vento dançava com a neve, e o caminho parecia cada vez mais longo. É que a velha se deixava iludir pela alvura sempre igual do solo e, em vez de tomar o atalho que continha, seguira ao longo do vale.

O velho irritava-se.

- Ainda não chegamos? Estou vendo que não chegaremos antes da meia-noite.

Ela respondia que estavam perto. Sabia que tinham se perdido e queria ocultar-lhe o fato. Mas tanto andou em vão que teve de confessar com um tom melancólico na voz:

- Em nome de Cristo, perdoe-me. Eu me enganei, tomei outro caminho... E o pior é que agora não sei onde estamos. Vamos parar um pouco para repousar.

- Mas vamos ficar gelados...

- Que importa!... Nossa vida não é tão doce que dê pena de perdê-la. Preciso descansar um pouco.

O velho cedeu, suspirando.

Sentaram-se na neve, encostados um contra o outro, e ficaram imóveis, como duas trouxas de farrapos. A neve, que caía incansável, começou a cobri-los, e a mulher, menos agasalhada que o marido, não tardou a se sentir tomada por um sono irresistível.

Sentindo que ela se apoiava mais fortemente sobre seus ombros, o homem assustou-se:

- Minha velha, não durma: olhe que vai ficar gelada.

Porém, ela já adormecera, e balbuciava coisas incompreensíveis, sem despertar.

O velho voltou-se e tentou erguê-la, repetindo seus alarmados conselhos. Como não o conseguisse, ergueu os braços e bradou por socorro. Ninguém o ouviu, mas os sinos, ao longe, começaram a repicar.

- Minha velha - insistiu o cego, sacudindo os ombros de sua pobre companheira -, os sinos já estão tocando para a missa. Levante-se... Olhe que vamos chegar tarde...

Mas a mulher mantinha-se imóvel.

Então, resignado, sentindo-se também invadido pela sonolência mortal, o cego sentou-se de novo ao lado de "sua velha", e uma última súplica passou por seus lábios:

- Senhor! Acolhe a alma de teus servos. Ambos somos pecadores, mas confiamos em tua misericórdia.

Recordando essa história, sorri, contente comigo mesmo, certo de que ela enterneceria meus leitores. E, embalado pelo tique-taque do relógio, comecei a cochilar.

E então, sem saber ao certo se estava dormindo ou acordado, vi a claridade vaga da janela aumentar, tomar um tom azul e fosforescente, ampliar-se, formando um quadro imenso, e aí surgirem pouco a pouco alguns vultos, a princípio confusos, inconsistentes. Mas logo seus contornos foram se acentuando e desenhando formas familiares aos meus olhos.

Eram crianças, mulheres, velhos... todos miseráveis e tristes.

- De onde vêm essas sombras e que representam? - perguntei a mim mesmo, tentando em vão emergir dos abismos do sono.

Uma voz perguntou por sua vez:

- Não nos reconhece?

Procurei distinguir no meio daquela multidão lamentável. Vi então um grupo que, com passo vacilante, tomava a dianteira de todas as sombras. Era um velho cego, apoiado à cintura de uma mulher também já idosa, que me fitava com ar de censura.

- Não nos reconhece? - repetiu ela com voz severa. - Nós somos os heróis dos contos, você, que passa a vida escrevendo; somos os tristes e desgraçados filhos da sua imaginação... Ali estão os dois meninos que você fez morrer de frio, diante das janelas de uma casa onde fulgia, magnífica e opulenta, uma árvore de Natal. Aquela mulher ali é a desgraçada que você fez morrer sob as rodas de um trem, quando corria pela rua, ansiosa por levar aos filhos um presente de Natal. Aquele ancião...

Eu ouvia, contemplando, pálido de horror, as sombras lúgubres e silenciosas que desfilavam sem cessar ante meus olhos.

Por que vinham todas elas me alucinar nessa noite? Que queriam de mim? Que pretendiam?

- Responda você mesmo a essas perguntas - bradou a velha, lendo o meu pensamento. - Por que escreveu essas coisas? Para que vive inventando essas desgraças, essas tristezas? Que pretende com isso? Desfazer o que resta de fé e esperança no coração dos homens? Tirar-lhes a confiança na redenção, mostrando-lhes somente o mal? Aniquilar o desejo de viver, apresentando a existência como um suplício sem fim e sem remédio?

Eu estava consternado... Seria mesmo assim tão culpado? O que faço não é o que fazem todos os escritores? Especialmente nos contos de Natal, procuramos todos imaginar cenas bem tristes, bem tocantes, para despertar em nossos leitores sentimentos compassivos, abrir os corações à piedade...

- É mentira! - bradou a velha. - Mentira ingênua e ridícula. Então pretende, com dores e misérias, despertar bons sentimentos nos corações acostumados a desgraças reais? Idiota! Pensa enternecer, com suas pobres fantasias, os homens que não se comovem ante a realidade miserável de todos os dias?...

O resto do sonho foi uma confusão que não consigo recompor; mas pela manhã, quando despertei, meu primeiro movimento foi correr à mesa onde deixara as tiras de papel escritas na véspera.

Rasguei-as sem tornar a lê-Ias; atirei os pedaços pela janela, e eles esvoaçaram no ar claro como mariposas.

Gabriel Nascente (Caldeirão Poético: Goiás)


A NINFA DA AMÉRICA
À cidade de Goiânia, meu berço.

Aqui
é a terra de costas para o mar,
das alvas e vermelhas casuarinas
debruçadas sobre os muros.

Aqui é Goiânia:
levante dos Ludovico
& dos Caiado.
Flor-menina
da América,
noiva do porvir.

Aqui é Goiânia:
cidade-brinco dos postais,
poema-sonho dos gerais.

O verde é o seu tesouro.
O crepúsculo, o seu ouro.

O sol se despetala
o ano inteiro.

A primavera é o glamour
de suas auroras.

Terremoto de exóticas belezas
nas esquinas e nos shoppings
Em cada praça, um rastro de perfume
enlouquece os ares.

A paisagem é bêbada de verão.
(Chuva é valsa de lumes
nas pálpebras da terra).

Goiânia, meu chapéu de bronze
dos cerrados,
odisséia das enxadas,
filha das carabinas
e do boi.

Galante estrela do Oeste,
eu te saúdo
das fraldas do meu leito:
aboios da minha terra.

MAR: A MAGIA DO ABISMO

I

Voragem de vagas
nos olhos: o mar
batendo.
Frêmito de ondas,
bátega de águas.
Chicote de salinas
no casco dos veleiros.
(Do tumulto dessas águas
já fui velho passageiro!)

II
Pela montanha (escarpa acima),
espíritos ruminam, indigestos.
Cheiro de formol nas narinas,
o mar batendo: tanque de monstros,
fantasmas de alumínio!

III
Sacudi as ancas na areia,
fui ao cinema com uns versos de
Petrarca na língua.
e a musa Nereida
dos arrecifes,
legislava (inobre e
sonora)
a fuga
das gaivotas.

AS FUGAS DO FUGAZ

É breve a pomba no bico da torre.
é breve a nuvem - o breve choro da
guitarra.

A paz
do conchoso rio,
de orlas cor de estanho.

É breve este sol nos juncos.
É breve a sombra atrás da casa,
no dorso das formigas.
a pálida flor,
carcomida.

A hora (de tão lenta),
também despenca.

Aqui
coloco minha pedra: sou breve.
E venho das turbas periféricas,
cheio de vascas e de mágoas,
à flor dos logos.

Reticência...
eu grifo os fados do mal fado. Oro,
e não me orno.

As donzelas eram breves.
Eram breves as goiabas.
Os dedos da natureza, a tarde,
nos fugines do breve - fúlmen

NO BEIRAL DE UM ADEUS ANÔNIMO

Do outro lado do meu nariz
está o morto. E o nariz do morto
engolindo bálsamo, tem cheiro
de velas danificadas.

O pávido pavio
derretia a luz:
o torso era
de cera.

E dançava, triste,
o lume da fumaça /
no cenho dos entes/
velando
a hora partida,
da vida ida?

O Sol ia chegando, com suas barbas
de prata,
na garupa de um bicicleteiro.

Pu, que lembrança mostodôntica.

Era o dia das mães.
—Ei moço, me dá essa rosa aí,
vestida de sangue!

A voz do bêbado
vibrava gongos.

E o morto,
encerrado na escuridão
de sua claridade,
ali, não (ou-via?) as pombas
no amanhecer,

nem a peleja dos garis
agarrados à varrição,

enquanto
lutuosos olhos
eram esfregados
pelos dedos da insônia,
fedendo a nicotina.

O VÔO DAS METÁFORAS

Havia um sol espatifado
entre as dores da ferragem.

Havia um picolezeiro
fabricando
vitrines de gelo.

Havia um strip-tease
de lua
na cabeça dos pára-raios.

E um tremor de caminhões
no bolo de aniversário

Havia um zumbir de abelhas
no cabo dos punhais.

E um navio encalhado
no coração das fragas.

Havia uma chuva
escondendo nuvens
dentro dos sapatos

Havia um rio que nunca
nadou entre as escamas.
E um adejo de pombos
na taça de Dionísio.

E um canivete de prata
no olho de Édipo.

E o haver do não-existir
havia.

Uma procissão de mortos
no ventre dos espelhos.

Um choro de piano
nas águas do
infinito.

AMARGO CANTO DA PRESENÇA

Estou sozinho, Drummond,
num país de oitenta
milhões de frustrados.

Nesta tarde de sexta,
23 de janeiro, dia tão vulgar,
confiro minhas rugas:
são vinte estigmas de sapo,
são vinte concílios de astros?
Não sei. Apenas permaneço fiel
à lucidez do compromisso:
o cão mais solitário
no final de cada rua
tem o rosto metafísico
assombrado deste mundo.

Estou sozinho, Drummond,
num planeta desonrado.

Nesta tarde de sexta
vejo a vida como um cágado:
prudente, sem desespero, ruga
agüentando quatrocentos anos de solidão
num casco espesso como chumbo.

O mundo está solto na rua,
vagabundo como demônio:
girando, girando,
crianças mofinas,
cartazes hediondos.

Estou sozinho, Drummond,
numa golada de uísque.

Uma palavra, um gesto:
a bomba está enxertada.

Nosso brinde na taverna
vale o troco-submundo:
pecados, beberrões,
putas & diplomatas.

Marilurde,
"quarenta horas de ternura"
na ação célere de um beijo.

Estou sozinho, Drummond,
à espera de um desastre.

TRÊS INDAGAÇÕES DOÍDAS DO VIVER

1.

Pai,
o quanto vale viver?
- Viver, meu filho,
tem sabor de azar
quando no tempo
a boca não come.
Tem gosto amargo
quando na véspera
apodrece o fruto.

- Viver, meu filho,
implica humildade
de um boi caminhando,
implica peso de sol
como ferramenta nos ombros,
implica alegria, gosto de menino,
pipoca rebentando, chuva.
Implica tudo, até solidariedade
de uma sombra no caminho.

- Viver, meu filho,
é a conjugação de um verbo
nos vários tempos de uma dor.

2.

Pai,
o quanto vale a vida?
- A vida, meu filho,
é como um rio querendo dormir
na retina de teus olhos:
um rio sexual, um rio imenso,

um rio com seus seios de barranco,
mais o sonho carnal de suas águas.
A vida como um rio.
A vida como um boi,
uma canoa, um remorso,
um remo quebrado,
um rio cheio de solidão,
um rio correndo para a noite
como se lá na frente
uma força puxasse
o silêncio de suas águas.

- A vida, meu filho,
é nada menos que a faísca desses sonhos.

3.

Pai,
o quanto vale a liberdade?
- A liberdade, meu filho,
é coisa difícil
que não se abraça,
é luz ardendo no peito,
é brasa queimando na mão.

A liberdade, meu filho,
é coisa só do vento.

MARCENEIRO

Irmão, que ofício é este
que o faz marceneiro,
se o serro te que ocupa
não faz mobília
pro mundo inteiro?

Peroba-rosa, angico
são matérias
de seu ofício?

Carne parida no chão, madeira:
enxó na mão. Que ofício, irmão,
de móveis e caixão?

O RIO É UMA FLAUTA

Ali é onde o rio
vai à forca.
O parto de suas águas
vem do oco das pedras.
E o rio, como um pulmão,
arma seus abismos
de vidas sem retorno.
O rio é estrela rolando
como o viver
é pesado e fundo e leve
na carne dos cardumes.

Manso como a sandália
ou a casca de uma fruta
o rio é ermo, espremido.
E suspira longo
num corredor de terra.
O mistério de suas águas
é tão leve como a cinza:
o rio é levado pelas asas
de outro rio.

Ninguém sabe
onde começa a história
desse rio:

se do barro ou do sangue,
se do anzol ou da pluma.

O rio é terra.
Logo é diamante
luzindo como a faca
e a morte.

Feito a fatia de uma maçã,
o rio cresce e lembra
a raiz do mar.

Suas águas eram verdes
como a laranja era verde.

Suas águas eram brandas
como a paina.
E doce como os lábios
de uma menina.
O rio já transbordou
pelos barrancos do sonho.
O rio outrora era lento
e viajava luas inteiras.

Já sem fôlego
o rio é pranto.
Já sem peixe
o rio é morte.

O rio vai jogar sua lama
no quintal do oceano.
Não é preciso medo.
O rio tem músculos:

a lua e o remo
o levam ao cortejo
das aves mortas.

O rio é um galo de escamas
na garganta de mil auroras.
Máquina movida
pelo óleo das chuvas.
A primavera abre o lençol das flores
no manso abismo de suas águas:
águas que dormem na panela
das assadas e do mundo.

Água no tanque
e no coração do homem.

Um brinquedo
que naufraga
entre as veias
do planeta,
o rio.

o rio se encalha
num oco de pedras: é turvo como a batalha
dos espermas.

A brisa sopra
a cabeleira do rio.
E no seio das águas
há um gesto de núpcias.

o rio tem jardins
subterrâneos
e sua voz
é um menino
bonito
como o coração
de uma flauta.

MOVIMENTOS DE UMA TARDE

A tarde se debruça sobre os ombros da cadeira.
Andorinha faz xixi no muro, ninguém aplaude.

o céu empurra seu quinhão de nuvens
para o sossego das varandas.

É caseiro esse fim de domingo
no olhar do povo, no perfil das árvores.

Maçã-de-amor, picolés, perfumes vagabundos:
o povo passeia livre dos onívoros da pátria.

E na varanda a folhagem (suprema lembrança
do verde) está suspensa:
será que o céu
lhe dá socorro?

Barão, o querençoso cão de casa,
entrevou-se na velhice e chora
como alguém de costas para a vida.

Fontes:
– http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/gabriel_nascente.html
– http://www.palavrarte.com/equipe/equipe_gnascente_poemas.htm

Gabriel Nascente (1950)


1950
23 de janeiro, nasce em Goiânia, Goiás, Gabriel José Nascente, quarto filho de Antônio Estrela Nascente e de Antônia Barbosa Nascente.

A infância do menino Bié foi literalmente vivida em contato com a rudeza operária da marcenaria do seu pai Tunico Nascente (Seu Tunico), erguida sobre rijos troncos de aroeira, à rua 75, nº 3, defronte à Escola Técnica Federal de Goiás, no antigo Bairro Popular, de Goiânia, onde funcionou ao longo dos anos 50. Ambiente propiciado ao fluxo de operários e estudantes, principalmente, onde o pequeno vate desenvolveu sua infância ao lado dos seus sete irmãos. Antônio Estrela Nascente pertenceu à saga de pioneiros da construção da nova capital goiana.

1956
Matriculado no Instituto Araguaia de Goiânia, aos seis anos de idade, onde fez o jardim da infância e o primário.

1958
Morre, prematuramente, aos 36 anos, seu pai Antônio Estrela Nascente, a 28 de dezembro, vítima da doença de Chagas, deixando numerosa prole (de oito filhos) e esposa na orfandade. A partir daí, com a morte do pai, o cérebro do então garoto se transforma numa caixa de tumulto, buscando aventuras arrojadas à sua tenra idade. Passa a dividir o tempo entre serviços braçais na marcenaria do seu tio José de Paula Nascente, e peraltices esdrúxulas, na infância.

1962
Aos doze anos fabricou, em estrutura de madeira revestida com lâminas de duratex, um submarino, o qual conduziu em carrinho de rolimã até às turvas águas do rio Meia Ponte — cachoeirinha da Usina do Jaó — local onde atirou o submersível às águas, com um colega a bordo: Joãozinho, que anos mais tarde se suicidara com fortes doses de formicida, às margens do córrego João Leite, em pleno matagal. Experiência essa que, por um fio, acabaria em tragédia, caso não aparecesse um pescador, no preciso momento em que o “aparelho” ganhava profundidade, levando ao afogamento seu piloto. O que, felizmente, ele voltou à tona, a salvo. Por causa disso, e também por outras travessuras de rebeldia na adolescência, o Bié da 75, foi alcunhado de cientista louco.

1963
Arquiteta (e lidera) uma fuga para a África, aos 13 anos de idade, comprando uma cartucheira de dois canos, calibre 22; arma que foi experimentada, à plena luz do dia, no brejo do bosque do Botafogo, coberto de folhagens, regos d’água e lama. Projeto que culminou com a prisão de alguns de seus integrantes (todos menores), e a fuga do seu líder, o poeta, para a vizinha cidade de Anápolis, escondido na carroceria de um caminhão, munido apenas de alguns livros escolares, um canivete, uma lanterna e alguns centavos em dinheiro.

1964
Aprovado nos exames de Admissão ao Ginásio Industrial da Escola Técnica Federal de Goiás - ETFG.

1965
Escreve seus primeiros poemas e torna-se companheiro de classe do poeta Aidenor Aires. Um ano mais tarde, o etefegeano reúne material suficiente para sua estréia literária, e publica o livro de poesias Os gatos, em 1966. Por paixão a tão louco projeto, o departamento pedagógico da ETFG o encaminhou ao consultório psiquiátrico do dr. Walter Massi. Diagnóstico: a doença era mesmo a poesia. Inscreve-se numa corrida de bicicleta (categoria adulto) e chega vitorioso ao pódium, aplaudido pela multidão de populares, no dia 24 de outubro, data consagrada ao aniversário de Goiânia. Não percebendo os acenos do fim da competição ciclística, o arrebatado atleta continuou correndo, sem se dar conta de que já era campeão.

1966
Sobe, pela primeira vez, ao palco da Escola Técnica Federal de Goiás e interpreta o poema Nordeste, de sua autoria. Apresentação que lhe rendeu calorosos aplausos. Naquele mesmo ano, vive o papel de vice-bruxo na peça teatral “A bruxinha que era boa”, de Maria Clara Machado, e mergulha na ficção de Franz Kafka, lendo-o apaixonadamente.

1967
11 de janeiro, lançamento do seu primeiro livro de poemas Os gatos, na antiga livraria Bazar Oió, de Goiânia, quando reuniu numerosas autoridades, intelectuais e amigos, autografando mais de uma centena de exemplares. Primeiras leituras da poesia de Augusto dos Anjos, Guerra Junqueira, Antero de Quintal e Edgar Alan Poe. Conhece o professor, poeta e crítico literário Domingos Félix de Souza, o qual, a partir daquele ano, lhe orienta no caminho das letras, ajudando-o pessoalmente a publicar seus livros. Também é deste ano a viagem que o jovem poeta empreendeu sozinho, ao Rio de Janeiro, onde se fez hóspede do renomado poeta brasileiro Moacyr Félix — outro guia intelectual de sua obra poética ao longo dos anos futuros. Com ambos os Félix, sedimentou fidedigna amizade, que perdura. Em dezembro, recebe o diploma de formando do Ginásio Industrial da ETFG.

1968
Entra pela primeira vez na redação de um jornal, o semanário Cinco de Março, onde conhece e trava amizade com o jornalista Batista Custódio e tantos outros da linha de combate às atrocidades militares deflagradas contra a liberdade de imprensa em todo o país, durante o período da recessão imposto pelo Golpe de 64. Naquele ambiente de jornal impresso à base de linotipo, o poeta estreante aprende, na prática, suas primeiras noções de jornalismo. Tenta adaptar para o teatro o texto da novela A metamorfose, de Franz Kafka. Já enturmado à equipe de redatores daquele jornal, ensaia seus primeiros passos de repórter, escrevendo textos e matérias.

1970
Conhece os editores Irmãos Oriente (Taylor e José Modesto, o Zezinho, ambos falecidos) e publica pela Ed. Oriente o livro Reflexões do conflito, poemas em parceria com o poeta Aidenor Aires. Nesse mesmo ano, sai pela Imprensa da Universidade Federal de Goiás, o livro, também de poesias, Menino de rua — composto nas oficinas do jornal Cinco de Março, e impresso com papel cedido pela Ed. Oriente. Em novembro, o poeta Carlos Drummond de Andrade aplaude retumbante, por carta, o aparecimento do livro Reflexões do conflito, onde, segundo ele, encontrou “a marca de uma personalidade poética intensamente mergulhada no drama do mundo contemporâneo”.

1971
Deixa Goiás, numa espécie de auto-exílio, na busca de novas perspectivas para os seus planos de vida transferindo-se para a grande São Paulo em companhia do poeta e jornalista Brasigóis Felício. Ali, após meses de penúria e desempregado, é recebido pelo poeta Menotti Del Picchia, da Academia Brasileira de Letras, que lhe arranja emprego na hoje extinta Livraria Martins Editora; tornando-se amigos. Escreve os poemas de Colméia de anônimos. Nos meses em que viveu (sobreviveu) na paulicéia desvairada, partiu para o corpo a corpo, vendendo pessoalmente seus livros na Feira Hippie da Praça da República bem como em restaurantes, choperias e boates, da populosa capital. Retorna à Goiânia, em caráter de visita, durante os festejos dezembrinos, e decide não mais voltar para São Paulo. Novamente desempregado, refugia-se numa fazenda às margens do rio Claro, no sudoeste goiano, onde se entrega desesperadamente à leitura das obras de Albert Camus.

1972
É publicado pela Editora Oriente, Viola do povo (Cadernos de Poesia I), com patrocínio do Centro dos Professores de Goiás. Obra, inclusive, lançada no Bar do Mercado Central de Goiânia, com pastel e chope para o povo. Meses depois, veio à tona, pela mesma editora, o livro A Escalada Poética de Gabriel Nascente - seleção de estudos sobre a poesia de GN, organizada pelo professor Manuel Jesus de Oliveira. A revista Hispano-Americana, em sua edição de nº 15, publica o poema Reminiscências da terra, de sua autoria, na seção Un Minuto para la Poesia.

1973
Sai, pela Livraria Martins Editora, de SP, capital, o livro Colméia de anônimos, com prefácio de Menotti Del Picchia. É eleito Patrono do Clube de Leitura do Centro de Formação de Professores Primários de Morrinhos-CFPP, pelos bolsistas daquele Centro. Indicado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado para representar Goiás no Primeiro Concurso Nacional de Poesia Falada, em Salvador-BA. E ali, no Teatro Castro Alves, interpreta o poema O dia do julgamento.

1974
Aparece a 1ª edição de Um balde cheio de flores pra Manuela não chorar, pela Editora Oriente. É homenageado pela Prefeitura de Goiânia, com o título de “Personalidade do Ano 74”. O jornal Rio Negro, o diário mais antigo e de maior circulação da Patagônia, General Roca, Argentina, de novembro de 1974, dedica meia página à poesia de Gabriel Nascente, com notas e traduções de Natalio Kisnerman. Conhece o poeta Vinícius de Moraes, em Goiânia, e o acompanha durante três dias, em sua digressão etílico-teatral. Entrevista o romancista Jorge Amado durante as filmagens de um documentário sobre sua obra, no Mercado Modelo de Salvador, cidade baixa. A convite do Cerimonial do Governo do Estado de Pernambuco, visita Recife, e tem como anfitrião o poeta Marcus Accioly. Foi chamado a integrar a comitiva que acompanhou um cônsul japonês, numa caçada de baleias pelos mares do nordeste. “Ora vejam: — noticiou o jornalista José Elias, em sua coluna Comunicações de O Popular, edição de 1º de dezembro de 1974 - nosso menino de rua, às voltas com os problemas existenciais, convocado a participar de aventura tão fantástica como a caça à baleia, em suntuosos barcos japoneses”.

1975
Sai, pela Pd. Araújo - Livaria e Editora Cultura Goiana, o livro Os passageiros, poemas. Atravessa o Mar del Plata em direção a Argentina, onde cumpre missão cultural no Centro de Estudos Brasileiros de Buenos Aires e vê uma seleção de poemas de sua autoria vertidos para o castelhano pelo professor e poeta Dilermando Rocha. Trabalho este que resultou na publicação do livro El llanto de la tierra, 24 anos depois, na cidade de Concepción, no Chile. Em Buenos Aires, o poeta frequenta a sede da Agrupación Gremial de Escritores Argentinos. Sua passagem pela capital portenha foi saudada em versos pelo autor de El agua mansa, Dilermando Rocha. De volta ao Brasil, é recebido pelo poeta Carlos Nejar, em Porto Alegre-RS, e tornam-se amigos. Visita o escritor Érico Veríssimo, em sua casa, para entrevista jornalística. Participa, à convite do professor e poeta Gilberto Mendonça Teles, em agosto, no Rio de Janeiro, da tradicional reunião sabática, do sorvete com bolachas, na biblioteca do escritor Plínio Doyle, onde conhece Carlos Drummond de Andrade, Juscelino Kubitschek, Mário da Silva Brito, Homero Homem, Alfonsus de Guimaraens Filho, dentre outros.

1976
Nasce a 17 de janeiro sua filha Vanessa Rodrigues de Almeida Nascente. Candidata-se à cadeira de número 14 da Academia Goiana de Letras, aos 26 anos, e provoca polêmica entre os intelectuais goianos, na imprensa. Apesar de obter apenas um único voto, tumultuou a candidatura do seu concorrente. É publicado nas páginas 21 e 22 da Antologia, das ediciones Figaro, ano IV, nº 5, de Buenos Aires, como único figurante da poesia brasileira.

1977
Inicia correspondências com o poeta Ronald Cláver, de Belo Horizonte, MG; e com ele publica Exilados do sol — um livreto, em duplex, artesanalmente confeccionado. O jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em sua edição de 10 de junho, o chama de “um fenômeno literário”. Também o jornal O Aspep - Órgão da Associação dos Servidores Públicos do Estado da Paraíba, em sua edição de agosto, o trata como “um dos maiores fenômenos poéticos de Goiás”.

1978
Lança, em meio a móveis e eletrodomésticos, o livro A nova poesia em Goiás, antologia dos poetas goianos, editada pela Oriente. Nasce o seu filho Thiago Estrela Nascente. Viaja, em companhia do seu editor José Modesto Oriente, para João Pessoa, na PA, onde recebe da Academia Paraibana de Poesia o título de “Embaixador da Poesia Brasileira”.

1979
A revista Encontros com a Civilização Brasileira, número 13, da Editora Civilização Brasileira S/A, RJ, publica vários poemas seus. Lança a antologia dos poetas bissextos: Colheita (A Voz dos Inéditos), em edição da Unigraf.

1980
Publica, pela Editora Oriente, Pastoral, poemas, com prefácio de Moacyr Félix. É citado por Assis Brasil em O Livro de Ouro da Literatura Brasileira (400 Anos de História Literária), pág. 223, Grupo Ediouro / Editora Tecnoprint S.A., RJ.

1981
Sai, pela Civilização Brasileira - Massao Ohno / Editores, do Rio de Janeiro, Águas da meia ponte, também prefaciado por Moacyr Félix. Volume 48 da Coleção Poesia Hoje. Recebe o Troféu Tiokô, da União Brasileira de Escritores, Secção Goiás, como o autor que mais se destacou na área de literatura no ano de 1980. Entrevista, no Rio de Janeiro, os escritores Pedro Nava, José J. Veiga, Edilberto Coutinho e Moacyr Félix.

1982
Sai, pela Editora Civilização Brasileira S/A, RJ, Chão de espera, (segunda edição do livro Menino de rua, revisto e ampliado), volume 64 da Coleção Poesia Hoje, daquela editora. Conhece Maria D’Lourdes Silveira, com quem celebra união conjugal.

1984
Obtém premiação no I Concurso Nacional de Poesia Vinícius de Moraes para servidor público, e é publicado em antologia do referido certame, pela Editora Nova Fronteira. Recebe, ainda, o Troféu Júri Popular Vinícius de Moraes. Vence o Concurso Literário Cinquentenário de Goiânia, patrocinado pela Prefeitura. Concorre à presidência da União Brasileira de Escritores, liderando a chapa Combate; é derrotado.

1985
Crônica da manhã, poemas, é publicado pela Universidade Católica de Goiás.

1986
Aparece o seu primeiro livro de prosa, Um dia antes de mim, novela, publicado pela Universidade Católica de Goiás.

1987
Lança, pela Editora Líder, Madrugada nos muros, poemas. E ganha, pela segunda vez, o concurso de poesias promovido pela Prefeitura de Goiânia, no transcurso do aniversário da capital goiana. Conhece pessoalmente o líder do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes.

1988
Publica Janelas da insônia, poemas, pela Editora O Popular. É eleito por aclamação o primeiro presidente-fundador do Conselho Municipal de Cultura, do qual ainda é membro. À convite do professor Ático Vilas Boas da Mota, empreende viagem à Macaúbas, no sertão da Bahia, onde é homenageado pela Fundação Cultural Professor Mota, ao lado do médico e artista plástico Getúlio P. Araújo. É selecionado pelo VII Prêmio Scortecci de Poesia e publicado na antologia Lauréis, volume IV, da João Scortecci Editora, São Paulo, 1989.

1989
A Editora Líder publica Trono de areia, poemas.

1990
Entrevista o poeta Ferreira Gullar.

1992
A Ediouro S/A, do Rio de Janeiro, publica Sentinelas do efêmero (Entrevistas Literárias). Participa da Antologia da Nova Poesia Brasileira, organizada por Olga Savary, Fundação Rio/Rio Arte, Editora Hipocampo. Distribui cerca de dez mil exemplares do livreto A valsa dos ratos, durante as eleições de 92, quando então disputou uma cadeira de vereador por Goiânia, e perdeu.

1993
A ponta do punhal, poemas, é publicado pelo Cerne/GO.

1994
Candidata-se à presidência da Associação Goiana de Imprensa-AGI, mas não chega a duelar o voto porque sua chapa não obteve registro.

1995
Sai, pela Fundação Cultural Pedro Ludovico / Cerne, Ventania, poemas. É antologiado, simultaneamente, por duas publicações de âmbito nacional: Poesia Sempre, revista semestral de poesia, ano 3, número 5, da Fundação Biblioteca Nacional / Departamento Nacional do Livro; e Sincretismo - A Poesia da Geração 60, com introdução e organização de Pedro Lyra. Fundação Cultural de Fortaleza / Fundação Rio Arte / Editora Topbooks, RJ. Lança, em caráter pioneiro em todo o país, a idéia de se publicar fragmentos de poesia, nas contracapas (parte interna) dos talões de cheques. O Banco do Estado de Goiás S/A aprovou e executou o projeto.

1996
É o primeiro goiano a ganhar o maior prêmio literário de poesia, de todo o país: o Prêmio Cruz e Souza de Literatura, da Fundação Catarinense de Cultura, Santa Catarina, com o livro de poemas A Lira da lida. Por esta premiação o poeta recebeu dez mil reais, mais a publicação da obra. E lança, pela Editora Kelps de Goiânia, Sandálias de pedra, uma incursão poética ao minimalismo.

1997
É premiado pelo concurso literário da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, com o livro de poemas Os aventais da púrpura. Recebe 20 salários mínimos, mais a publicação da obra. E lança, pela Editora Kelps, Goiás, meio século de poesia, antologia de poetas goianos. Participa, com substanciosa colaboração, da antologia A poesia goiana no século XX, organizada por Assis Brasil, publicada pela Imago Editora, do Rio de Janeiro.

1998
Pela Editora Kelps, publica mais dois novos títulos: A cova dos leões, romance e O anjo em chamas, poema dramático sobre a vida e a obra de Arthur Rimbaud.

1999
Lança, pela Editora Kelps, A taça derramada, poemas. É publicado, em Concepción, no Chile, o livro El llanto de la tierra (Prantos da Terra), seleção de poemas traduzidos para o castelhano pelo também poeta Dilermando Rocha, do Centro de Estudos Brasileiros de Buenos Aires, na década de 1970. Em edição de Sérgio Ramón Fuentealba e Cecília Zuñiga Sanhuesa. Por iniciativa do ministro Elias Bufaiçal, a Federação do Comércio em Goiás o homenageia, lavrando em monumento de aço escovado um poema de sua autoria. E a Assembléia Legislativa do Estado de Goiás lhe outorga a Comenda Prof. Colemar Natal e Silva, e o Troféu Cora Coralina, pelo seu conjunto de obras.

2000
É aprovado pelo Conselho Editorial do Centro Editorial e Gráfico da Universidade Federal de Goiás-Cegraf, com o livro inédito de poemas Boa-noite, crepúsculo, o qual será publicado pela Coleção Vertentes daquela editora.

Vence o concurso literário da Bolsa de Publicações Cora Coralina, com o livro de poemas O pão selvagem (inédito), promovido anualmente pela Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira. Também, neste mesmo ano, vence o concurso literário da Bolsa de Publicações Wilson Cavalcanti Nogueira, da prefeitura municipal de Pires do Rio, GO., com o livro inédito, A Dança do Relâmpago, poemas. "... os poemas de Gabriel Nascente, imprevistos e lucinantes, explodem como brados de protesto e irreverência. Uma espécie de Fernando Pessoa da quadra atômica, não raro pedestrenante demagogo, mas original, ingênuo, espontâneo e sempre artista". Menotti del Picchia, 1973

"Sua poesia continua viva e atuante, e testemunho disto é Pastora, que recebi há pouco, e onde encontro muitas confirmações do seu engenho criador, sempre alerta diante da vida." Carlos Drummond de Andrade, 1980

"Não se trata de um poeta de iniciação tribal. Neste sentido, aliás, é o poeta mais solitário de Goiás ("Eu sou/uma solidão/que anda"). Daí também a sua força produtiva: escreve para si, para a Poesia e para esse além de si que é o povo, na sua mais alta concepção antropológica da poesia". Gilberto Mendonça Teles.

Fontes:
- www.palavrarte.com/equipe/equipe_gnascente.htm
- http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/gabriel_nascente.html

Marcial Salaverry (Regresso à Casa do Lago)

Fotografia por Diana Pereira (Casa do Lago)
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Marcial Salaverry é de Santos/SP. Poeta, viveu três anos na África, o que originou a publicação de seu livro "Um Brasileiro Na África" , uma narrativa de 3 anos que passou, viajando a serviço pelo interior do Congo, entre 1969 a 1972. São lembranças de episódios realmente vividos nesses 3 anos de Congo.
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As recordações da infância sempre nos assaltam a memória.

Buscamos as origens, procurando explicações para os fatos que nos levaram a tomar determinados rumos em nossa vida.

Depois de longos anos afastado de minhas origens, ao saber que meu pai havia falecido, resolvi voltar ao passado, rever os fantasmas que me haviam afastado do convívio familiar.

Ao entrar no trem que me levaria àquela pequena cidade onde vivera na minha infância,

as imagens começaram a chegar à minha memória... aquela casa enorme, imponente, às margens do lago era o ponto marcante de tudo.

A obsessão com que meu pai fazia questão de marcar as origens de nossa família, sempre entrava em choque com minha maneira de pensar.

A mansão familiar ocupava um amplo terreno, dominando o lago. Considerava o ponto ideal para um hotel de luxo, aproveitando o visual, a topografia do terreno. Seria realmente um grande sucesso. Poderia fazer fortuna com esse empreendimento. Já havia uma incorporadora que desejava executar a obra.

Tentei convencer meu pai a fazê-lo. Negou-se peremptoriamente. Disse que jamais macularia as tradições familiares por causa de dinheiro.

Jamais me esquecerei da última discussão... Trocamos palavras amargas demais. Chamei-o de velho teimoso e retrógrado e coisas mais pesadas. Terminei dizendo que iria viver minha vida, e que não queria mais vê-lo... Mal sabia que não o veria mesmo.

Consegui relativo êxito em minhas tentativas, sempre tropeçando no que meu pai sempre me dizia... minha precipitação, minha urgência em querer conseguir tudo.

Muitas vezes me vi tentado a voltar, e reconhecer que ele estava certo. Mas a teimosia era hereditária. Recusava-me a admitir minha incapacidade para o enriquecimento que prometera a ele. Dissera que só voltaria após fazer fortuna. Rira quando ele disse que a fortuna estava ali, nas origens da família.

Ao desembarcar na estação, e pegar o táxi que me levaria à mansão, que agora poderia vender e fazer o hotel de meus sonhos, era só nisso que pensava.

Mas agora... sentado onde costumava ficar com meu pai... em um outeiro um pouco afastado da mansão, local que propicia uma visão fantástica da mansão, refletindo-a inteiramente nas mansas águas do lago.

Fiquei absorto contemplando aquela imagem que me levava à infância, às conversas que sempre tivera com ele... e que tanta falta me fizeram depois, nos tropeços que dei pela vida afora.

O casarão, imponente, lembrava as tradições que meu pai tão ferrenhamente defendera. Acontece que sua imagem, curiosamente refletia-se nas mansas águas do lago, como se estivesse de cabeça para baixo, ou seja, ao contrário.

Naquele instante, as águas como que pararam, ficaram totalmente imóveis... Vi então, o que fizera de minha vida... a deixara de pernas para o ar, tentando provar alguma coisa, que agora me parecia totalmente irrelevante.

Por causa disso, dessas minhas idéias, tinha perdido anos de convivência com minha família.

Essa imagem da mansão refletida no lago, fez-me ver o que fizera de minha vida, movido por uma ambição sem limites.

Tomei então a decisão. Iria voltar àquele vetusto casarão, trazer minha família e ensinar aos meus filhos toda a história familiar, procurando fazer com eles possam sentir o orgulho que eu sentia quando era criança, e que depois desprezei.

Espero que não tenham que sentir sua vida, como senti a minha, vendo a imagem da mansão refletida nas plácidas águas do lago…

Fontes:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=696
http://marcialsalaverryemversoseprosas.blogspot.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 415)


Uma Trova Nacional

Sempre que na noite calma
ouvires passos na rua,
não tenhas medo, é minha alma
andando em busca da tua.
–ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA/PA–

Uma Trova Potiguar

Eu não sei bem se é loucura,
porém me sinto feliz;
imaginando a ternura
dos versos que nunca fiz!...
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema: JORNAL - M/H

Sou, na tua vida, agora,
o artigo já sem valia
de um jornal jogado fora
por falta de serventia...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Vi à luz de lamparina,
em inspirações imerso
que a musa se faz menina
para brincar no meu verso.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Em sofrer minha alma insiste,
mesmo sabendo, também,
que a dor da espera é mais triste
se não se espera ninguém...
–ALONSO ROCHA/PA–

Simplesmente Poesia

M O T E : José Lucas de Barros/RN

Sei que deste mundo lindo,
vou sair, só não sei quando;
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando!

G L O S A : Prof. Garcia/RN


Sei que deste mundo lindo,
Vou levar muita saudade;
Mas quero partir sorrindo,
Feliz para a eternidade!

Outro mundo me convida,
vou sair, só não sei quando;
Escondo a dor da partida,
Deixo a saudade chorando!

Não será justo e bem vindo,
O dia em que eu for embora...
mas quero morrer dormindo
Sem ver a dor de quem chora!

Eu vou partir sem querer,
e quando eu for, vou cantando;
antes, quero adormecer,
para entrar no céu sonhando!

Estrofe do Dia

Quando a gente envelhece a vida ensina
que o cansaço é um monstro a ser vencido,
o pesadelo faz parte da rotina
e a esperança é um sonho adormecido;
sem o ar os pulmões perdem o impulso,
coalha o sangue nas veias falta o pulso
por não ter mais saúde de reserva;
um dos lados do corpo fica manco
e todo rosto é um quadro em preto e branco
que o museu da velhice não conserva.
NONATO COSTA/CE–

Soneto do Dia

Súplica.
–CAROLINA RAMOS/SP–

Dá-me, Senhor, a benção que resume
a certeza de que, crescendo aos poucos,
hei de chegar a ver o excelso lume
- privilégio dos bons, quiçá bem poucos!

Dá-me a graça de olhar, sem ter ciúme,
namorados aos pares, de amor loucos,
da saudade a esquecer o frio gume
e o coração no peito a dar-me socos!

Dá-me ver rosas, mesmo em vaso alheio,
a enfeitar este mundo, às vezes feio
- feio porque o egoísmo assim o quis!

Dá-me um punhado tenro de esperanças...
Dá-me o riso espontâneo das crianças...
- Mais nada eu peço, para ser feliz!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Olivaldo Junior (Eu Não Canto)


Sim, eu não canto. Apesar dos pesares serem leves a quem já levou mais de mil quilos de miséria sobre os ombros, eu não canto. Cantando, o mal espantaria. Como eu não canto, me espanto com o mal quando o encontro. Encontros são encantos que a gente inventa. Invento um canto, mas, sem ter quem me levante, nunca fico a mais de um palmo sobre o chão. Hoje eu vi dois cantadores no meio do povo, e fiquei assim, um pouco acima de mim. Minha vida é cantável, sei que é. Mas eu não canto. Em vez disso, fico só, num canto, à espera de quem vai me acompanhar. Meu canto tem asa quebrada, é pardal sem voo, volátil canto, que se esvai no azul. Azul, sinto muito, mas eu não canto. Vermelho, eu sinto mais, mas eu não canto. Amarelo, ainda bem mais, mas eu não canto. Estou à caça de quem trace as linhas da harmonia para mim. Eu só canto. Na verdade, eu só canto e crio melódicas notas para ninguém. Não, eu canto. Mas cantaria melhor com alguém ao lado. Ao lado de mim, minha sombra se assombra. E não canto.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Cesário Verde (O Sentimento Dum Ocidental)


Análise realizada por Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal

Ao fazer a leitura de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, vemos em destaque as manifestações da consciência nele presentes, seguimos a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história.

Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando-se, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal-estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta se depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

As motivações para a escrita do poema

O sentimento dum ocidental insere-se em O Livro de Cesário Verde (1887). Este livro, o único (e póstumo) do autor, foi dedicado a Guerra Junqueiro e teve colaboração de Silva Pinto, cuja participação levantou (continua a levantar) fortes dúvidas sobre o que é verdadeiramente de Cesário e o que será porventura seu.

O sempre renovado "complexo edipiano" cultural, sentido ao longo dos tempos: tal como com Sócrates e Platão, Tycho Brahe e Johannes Kepler, Mozart e Salieri, Kafka e Max Brod, Husserl e Heidegger…, a trabalhar por dentro, e o incêndio que destruiu a casa de Cesário (1919), em Linda-a-Pastora, onde ficara depositado o seu espólio literário, a trabalhar por fora, vieram complicar ainda mais as coisas, tornando o problema talvez irresolúvel para sempre.

O sentimento dum ocidental pretendeu homenagear Camões na passagem do terceiro aniversário do seu falecimento. Tendo sido originalmente publicado no Porto (1880), o texto passou despercebido à crítica, tendo-se o poeta lamentado disso, numa das suas cartas (Carta de 29.08.1880, a Antônio de Macedo Papança, Conde de Monsaraz), onde escreve que "uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal." (C. Verde, 1999, pp.210).

Cesário diz que o poema foi escrito com essa intenção de celebrar Camões, a que os republicanos (Cesário era-o, de fato, se não, ao que sabemos, por qualquer adesão política formal, pelo menos por opção ideológica profunda, que revela nos seus textos), nesse tempo, deram um relevo especial.

Se é ele quem diz que foi essa a sua intenção, não temos o direito de duvidar. Mas, sendo-o, foi-o de modo original, desconcertado em relação às posições oficiais do tempo, e talvez tenha vindo daí, a par do desinteresse que suscitava o trabalho literário empenhado e a originalidade de Cesário, outra das razões do "esquecimento" da crítica.

É que o poeta, nessa mesma carta, também acrescenta que "apenas um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas – pérolas – e afirmava… que os meus versos "hacen malisima figura en aquellas páginas impregnadas de noble espíritu nacional." (C. Verde, 1999, p.210).

Na verdade, o modo como Cesário Verde celebra o 3º centenário da morte de Camões exprime "uma representação objetivada da… decadência histórica" em que tinham encalhado Portugal e os portugueses. À exaltação formal a que oficialmente se aderiu, Cesário Verde contrapõe a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava. O ambiente que se desenvolve no poema, acerca da "triste cidade", é simbolicamente depreciativo (a realidade é triste, Lisboa é triste, o país é triste, os portugueses são tristes…). A referência às "crônicas navais" e às "soberbas naus" é uma evocação da pureza dos Descobrimentos, o que não corresponde à realidade vivida, de um couraçado inglês ancorado junto a Lisboa, com toda a humilhação nacional que isso exprimia. Camões salva "outra vez", a nado, o seu livro, mas agora não luta apenas contra a voracidade das águas. A vida relacionada com o mar está transformada em comércio e em desgraça. A figura de Camões, o "épico de outrora", aparece transmutada em "estátua" fria, entre banais bancos de namoro e pimenteiras. Os militares perderam o orgulho de outrora e servem a mediocridade instituída. As frotas desejadas não são localizadas no presente, mas pertencem… aos avós, os "nômades ardentes", que não se sabe de onde virão, porque são sonhados apenas.

É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende que a realidade seja e o que ele sente que ela é, e não consegue disfarçar, por mais que quisesse celebrar corretamente a efeméride do épico. O tempo em que Portugal não passava de "um obscuro desembarcadouro de cruzadores britânicos", sem vontade nem sonho, com todo o abandono e desordem em que se encontrava tudo, não o deixa indiferente. E a isso também não foi "indiferente" a elite cultural alinhada, do seu tempo, que em parte não o compreendeu, mas que também o ignorou propositadamente. O poder instituído sempre teve disto, em Portugal.

A grande motivação para a escrita do poema foi a necessidade de denúncia sentida pelo autor, perante a realidade da Lisboa do seu tempo, povoada de uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar com uma minoria abastada e "feliz", com quem ele se diz "aborrecido" e com "raiva como a um marreco" (Carta a Mariano Pina, de 16.07.1879 – C. Verde, 1988, pp.225-228). Uma Lisboa marcada pelas transformações e contradições do fontismo, ainda hoje visíveis, que ele apresenta "refratada nas percepções e sentimentos" que experimenta, e o despertam, enjoam, inspiram, incomodam…, aos mais diversos níveis: físico, social, moral… humano. Uma Lisboa que representava, desgraçadamente, e para o pior, a realidade amorfa, decadente, aviltada, do país.

Os dualismos

Os dualismos presentes na obra de Cesário Verde, em geral, não têm (não merecem, no nosso entender), a relevância que se lhes tem querido atribuir, em termos didácticos, prestando-se até, com tal sobrevaloração, um mau serviço ao estudo da obra do poeta (um estudo formal, dirigido à memória), pela passividade que isso provoca nos alunos, desviando-os da inovação, do despertar da consciência e do desempenho crítico.

Estudar Cesário, como estudar literatura, deve ser um ato pessoal e criativo, que se não coaduna com emolduramentos definitivos de quaisquer partes de uma obra.

Mas com isto não se pretende negar as dicotomias, que estão realmente presentes na poesia de Cesário Verde. Eis algumas dessas dicotomias, que importa levar os alunos a descobrirem: oposição entre cidade e campo, favorecidos e desfavorecidos, pobres e ricos, altruístas e orgulhosos, produção industrial e atividade comercial e vida do campo, consumismo e miséria, proprietários e operários, trabalhadores e ociosos, quotidiano urbano e rural, crescimento urbano e abandono rural, saúde e doença (tuberculose, epidemias), meios de transporte tradicionais e modernos (linha férrea, transportes colectivos), isolamento e falta de informação e meios de comunicação social (jornal, telégrafo), domínio do conhecimento e poder e vigência da ignorância e subordinação, operariado (indústria naval, construção civil, transportes, minas, pescas, tabaco…) e poder econômico, real histórico representado e real poético produzido, restos do real e visões do real, sinceridade poética e artificialidade, sentimento e objetividade, imaginário e realidade, emoção e racionalidade, vida e morte, amor e morte, revolução e tradição, espírito burguês e espírito inovador.

Mais especificamente, em O sentimento dum ocidental, repartidos pelas quatro partes que constituem o poema, fazem-se notar os seguintes dualismos:

Parte I - A realidade do mundo exterior e da consciência do poeta. A infelicidade dos que ficam e a felicidade dos que vão. Os trabalhadores e os ociosos. Os pobres e os ricos. Os favorecidos e os desgraçados. A realidade e a evasão. Os inocentes e os orgulhosos. A felicidade da inconsciência e a infelicidade da consciência.

Parte II - Os tristes e os afortunados. A inocência e a crueldade. A realidade abominada da cidade e a cidade idealizada. Clericalismo e laicidade. Os seres murados e os seres livres. O tempo vulgar de hoje (recinto público, bancos de namoro, exíguas pimenteiras) e o tempo simbólico e grandioso de Camões (brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, levantado num pilar). A paz e a guerra (os soldados). Os palácios e os casebres. Tempo de hoje e Idade Média. As elegantes e os desfavorecidos. A verdade e a falsidade.

Parte III - O exterior (a rua) e o interiores. O dia e a noite (pesa, esmaga). As mulheres de bem e as impuras. As lojas para os que têm posses e a miséria para os desgraçados.

Parte IV - Finitude e eternidade. O presente negativo e o futuro promissor. Hipocrisia e sinceridade.

Uma dicotomia, das mais valorizadas, em O sentimento dum ocidental, é o dualismo cidade-campo. A cidade exprime a mundividência dos bons (os fracos e abandonados) e dos maus (as personagens negativas habitando os seus espaços, o mundo burguês, a que Cesário pertencia, mas que repudiava). O campo representa a vida ligada à natureza (expressão da afetividade), à liberdade, aos valores tradicionais, ao equilíbrio, à memória, a tudo aquilo que se coaduna com os ideais e os sonhos de futuro, de Cesário. O campo representa, sobretudo, a evasão, a compensação do mal-estar provocado pela cidade – que representa a fixidez, a passividade, o palco onde todos os males se representam.

As frustrações de vida do poeta

Cesário concluiu a instrução primária, aos dez anos, recebendo, após isso, formação, na própria loja do pai, para a atividade do comércio. Foi preparado, pela família, para dar continuidade ao negócio de ferragens, na loja que tinha em Lisboa e que geria com determinação.

Igualmente, a família tomou por herança, em 1869, uma quinta, em Linda-a-Pastora. E assim Cesário se tornou comerciante de ferragens e gestor agrícola da propriedade familiar. A sua educação foi toda ela orientada nesse sentido.

Apesar de ter o sustento e a posição social garantidos, Cesário dedica-se intensamente aos negócios, mas considerando as funções que exercia um "peso", sobretudo pelo tempo que lhe tiraram, contrapondo a isso o sonho de ser escritor.

Em cartas a João de Sousa Araújo, ele queixa-se da vacuidade da vida que leva, dos "muitos afazeres" que tem (carta de 20.07.1871 – C. Verde, 1999, p.177), da sua "vida muito estúpida" (carta de 14.11.1871 – C. Verde, 1999, p.178), sem razão de ser (carta de ??.11.1871 – C. Verde, 1999, p.179).

Em cartas ao "irmão" Silva Pinto, denuncia que vive "cheio de trabalho comercial" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.182) e considera não se conformar por ter de se dedicar ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.185). Reconhece que, mesmo "ao serviço da casa" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.189), anda sempre ocupado com a escrita, a sua e a dos outros.

Diz não se sentir bem "em parte nenhuma", "cheio de ansiedades de coisas" que não pode nem sabe realizar (carta de 1877 – C. Verde, 1999, p.191). Denuncia que está preso à loja, preso ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.192), perdido "no meio dos pomares burgueses e produtivos", afastado da literatura mas "amando-a ainda muitíssimo" (carta de 1879 – C. Verde, 1999, p.194). Essa foi uma das suas frustrações.

Aos 18 anos, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras, a que não deu conclusão. Essa foi outra das suas frustrações. Mesmo assim, a frequência do curso serviu-lhe para estabelecer contatos (sobretudo com Silva Pinto) que lhe viriam a ser essenciais.

Uma outra frustração que marcou Cesário teve a ver com os conflitos mantidos em jornais e com autores consagrados do tempo, tendo sido mal compreendido por quase todos. Isso levou-o a lamentar, numa carta (C. Verde, 1988, pp.219-221), que, "literariamente, parece que Cesário Verde não existe". Foi grande a dificuldade que teve em encontrar espaços onde publicar a sua poesia, e de algumas vezes que o fez foi criticado por escritores como Ramalho Ortigão, Fialho
de Almeida, Teófilo Braga, Gomes Leal, Eduardo Coelho, Guimarães Fonseca… e em meios de comunicação social como o Diário Ilustrado, passando, após isso, a publicar em jornais e revistas de circulação mais restrita.

As contrariedades por que Cesário se viu envolvido fizeram dele um isolado e um inconformista. Isso notou-se a nível das ideias (o projeto de vida que desenvolveu), mas também no seu modo de escrita, na sua criatividade e expressão estética.

Doença e morte

A doença e a morte afetaram, continuamente, a vida e a obra de Cesário Verde. Na sua vida pessoal, marcou-o a morte da irmã, em 1872, com 19 anos. A referência que Cesário faz a "uma paixão defunta", em O sentimento dum ocidental, aplica-se à sua pessoa. O mesmo aconteceu com a morte do irmão, Joaquim Tomás, em 1882, com 24 anos.

Cesário faz várias referências à morte, uma vicissitude que sentia iminente, nas cartas que escreve. Na poesia, várias das suas personagens são doentes. Outras estão à espera de morrer. Frustra-o a impotência perante a dor, a doença, as epidemias, o egoísmo, a falta de desenvolvimento da ciência que não permitia responder aos anseios mais elementares do homem.

O próprio Cesário, sobretudo a partir de 1887, começa a queixar-se de falta de saúde, falando de "escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa", não sabendo se era "resultado sifilítico", ou "outra coisa qualquer". Sabemos que era tuberculose, a mesma doença que lhe havia roubado os irmãos e que, de cura projetada no futuro, por que ele ansiava, não tinha ainda cura no seu tempo, acabando por vitimá-lo também.

A literatura a serviço de um projeto ideológico-social

O sentimento dum ocidental encerra o projeto ideológico-social assumido por Cesário, que não surge completamente formado no poema, mas se vai formando, ao seu decorrer, através de um processo de construção.

O ponto de partida é a realidade focalizada por um poeta/narrador de ambulante, que destaca a realidade do povo, encarado globalmente ou através de manifestações personalizadas, emoldurado na cidade onde existe e a que dá existência. De umas primeiras manifestações imprecisas acerca da realidade, são a pouco e pouco postos em destaque, e de modo cada vez mais visível, as desigualdades, as injustiças e as misérias que afetam as pessoas, as contradições que as marcam, as vicissitudes do sistema que as diminui. Todas as outras manifestações, nomeadamente da realidade burguesa, se destinam a fazer sobressair o seu modo de consciência.

Para formar consciência acerca dessa realidade, o poeta desenvolve um esforço de seleção (pensar é selecionar) e de síntese (a consciência é escolha), através das cogitações contínuas que vai fazendo. Desse modo, e porque a personalidade resulta da síntese dos fenômenos psíquicos selecionados pela consciência, numa sequência de fenômenos a serem continuamente ligados a outros fenômenos anteriores, a personalidade do poeta vai-se enriquecendo, revelando-se cada vez mais nítida a representação que ele faz do mundo.

Mas a formação da sua nova consciência não surge por acaso e a seleção e a síntese verificadas não se operam de modo inocente. Houve fatores na vida do poeta que as marcaram – as vivências do que o rodeia, feitas de misérias e desgraças materiais e espirituais, a formação recebida no ambiente familiar, a conturbação ideológica do seu tempo. Numa lógica de determinismo naturalista, a nada disto o poeta ficou indiferente e tudo isto contribuiu para o desenvolvimento da preocupação social que ele mostra.

No ponto de chegada, a parte final do poema (embora já com algumas marcas anteriores), o poeta/narrador mostra-se possuído, se não de uma nova consciência, pelo menos de uma consciência mais organizada, através da qual toma posição crítica perante a realidade.

Dessa posição, a que adere, faz parte um profundo compromisso social, mostrando-se solidário com os desfavorecidos, os frágeis e os desgraçados, assumindo a sua defesa, valorizando as situações de força popular e destacando as manifestações da dor humana que encontra omnipresentes no ambiente da cidade.

Deste modo, Cesário apresenta uma clara posição política. Fazendo assentar o seu texto na ideologia que perfilha (a que não são estranhos os ideais republicanos e socialistas fortemente divulgados no seu tempo), ele mostra-se um escritor comprometido, para quem a atividade poética é entendida como meio de realizar um projeto de vida. Cesário focaliza a ideologia e a mundividência burguesas para as denunciar, mostrando-se "ressentido" com elas e com todas as suas manifestações e consequências.

Um uso especial da linguagem

Apesar de a linguagem de Cesário Verde ser destituída de marcas eruditas, que escasseiam na sua obra, cuja cultura é sobretudo tributária de informação jornalística ou de tertúlias, ele não deixou de merecer o apodo de "engenheiro da poesia", pelo modo meticuloso e geométrico como se exprime.

O estilo digressivo e impressionista de Cesário merece uma referência à parte. Ele está relacionado com o modo como ele exprime a mobilidade da consciência, assente no número diverso das realidades existentes, cada uma com o seu estilo específico (os sub-universos, para James: o mundo dos sentidos ou das coisas físicas, tal como são experimentadas pelo senso comum, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, o mundo dos ídolos da tribo, os mundos sobrenaturais como o céu e o inferno cristãos, os mundos da opinião individual, os mundos da alegre loucura).

Perante a multiplicidade dos fenômenos com que depara e o modo polifônico a que recorre para os apreender, e com o que vai enriquecendo a sua personalidade (a consciência da realidade, revelada no final de O sentimento dum ocidental, apresenta uma segurança que não existe no seu início, e que foi sendo construída através das vivências essenciais que se foram acrescentando), Cesário privilegia os estados substantivos, os pontos fortes da consciência, em detrimento dos estados transitivos (em que o pensamento pouco se detém). O estilo digressivo que usa deve-se a ele valorizar, sobretudo, os primeiros em relação aos segundos.

Importante destacar o vocabulário inovador, usado em sentido ativo, a expressividade da adjetivação e dos verbos, as imagens inusitadas (ligadas às suas vivências, sonhos, convições sobre a vida, determinações de ação, energias obscuras), o aproveitamento do prosaico para produzir efeitos poéticos, a atenção ao pormenor, a liberdade imagística reveladora de uma nova consciência estética, o recurso a símbolos capazes de traduzir todo um amplo, e ao mesmo tempo concreto, universo lírico, os elementos retórico-estilísticos (comparações e metáforas, sinédoques e metonímias, sinestesias…), a variedade e rigor de estrofes e métrica, o contínuo jogo musical, envolvendo formas e cores, alternando estrofes ou versos de silêncio e quietude com outros de movimento e estridência.

É na parte final do poema que Cesário Verde coloca os principais ingredientes da sua mensagem. Ele considera ser possível construir uma realidade diferente com os meios que define e, a partir daí, contribuir para a transformação do mundo – a ser procurada por ele e por quantos, com ele, quiserem encetar o esforço da construção da nova casa humana: de uma sociedade organizada e desenvolvida, sem exploradores nem explorados, sem opressores nem oprimidos, sem injustiças nem excluídos. A sociedade da utopia, da possibilidade, da vontade, do empenhamento, mas também da dúvida e do muito limitado otimismo.
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Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

Na obra está o retrato de Cesário Verde, e é como que uma súmula da substância poética de sua obra, somente transfigurada transitoriamente no bucolismo da última fase, o que lhe arrefeceu o tédio, amenizou-lhe o estro, sem, todavia, anular as qualidades que fizeram dele um renovador da poesia portuguesa do século XIX. Na verdade, situa-se no Realismo e antecipa mesmo de muitos anos e em muitos aspectos Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, pela temática da inspiração e dos processos poéticos. É, por isso, o precursor do Modernismo em Portugal.

Na leitura que se faz de O sentimento dum ocidental, destacando as manifestações da consciência nele presentes, segue-se a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história. Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade
que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respectivamente, o Cair da Tarde, o Acender das Luzes, a Fixação da Noite, a Noite Segura.

Em síntese, podemos constatar que:

A) O tempo

Relativamente ao tempo, revela-se:

- Consciência da sua passagem, entre as Ave-Marias (ao cair da tarde), a Noite Fechada (o acender das luzes), o Ao Gás (fixação da noite) e as Horas Mortas (noite segura).

- Consciência de um tempo real, progressivamente negativo: o anoitecer, as sombras, a preparação da noite, o cair das badaladas, o fim da tarde, a hora de jantar, a hora de acender as luzes, a temperatura baixa, a noite que esmaga, a palidez romântica e lunar, a ocasião de fechar as lojas, a noite de céu limpo em que os astros libertam lágrimas de luz, a cidade às escuras, o tempo de silêncio.

- Consciência de que ao tempo real, negativo, se contrapõe um tempo de evasão (o tempo dos Descobrimentos) e um tempo imaginado de treva (folhas das navalhas e gritos de socorro estrangulados, na escuridão da noite real em que o poeta se move).

- Consciência de que o tempo real negativo diz respeito, simbolicamente, a um tempo, primeiro de decadência nacional, e depois de decadência civilizacional, correspondendo a evasão a uma necessidade de compensação da situação (ao mesmo tempo se aponta uma chave para a solução dos problemas), mas não se deixando antever grande margem para otimismo.

- Consciência da progressão e do adensar da noite: à medida que o tempo passa e o bulício diminui, aumenta o sentimento de dor, angústia e frustração.

- Consciência de que o pessimismo instalado não dá mostras de recuar.

B) O espaço

Predomina o ambiente físico real, revelando-se a consciência do poeta/narrador acerca de: ruas, Tejo e maresia, céu baixo e de neblina, gás extravasado, edifícios com chaminés, cor monótona e londrina, carros de aluguer, casas que parecem gaiolas, boqueirões, becos, cais a que se atracam botes, escaleres de um couraçado inglês, hotéis da moda, um trem de praça, as varandas das casas, as lojas, os arsenais e as oficinas, o rio que reluz viscoso, as cadeias, o aljube, as prisões, a velha Sé, as Cruzes, os andares iluminados, as tascas, os cafés, as tendas, os estancos iluminados, a lua, duas igrejas, um largo, as construções retas, as íngremes subidas, o toque dos sinos, o Largo com a estátua de Camões, o espaço da rua, o Quartel Militar, um palácio diante de um casebre, os Quartéis de Cavalaria, a cidade a esvaziar-se, os lampiões, as montras das ourivesarias, os magazines, a brasserie, os passeios de lajedo, os hospitais, as embocaduras, as lojas, sons de pianos, candelabros que se apagam, frontarias dos prédios, esquinas, ruas estreitas, prédios com trapeiras, astros que libertam lágrimas de luz, portões e arruamentos particulares, lajes onde se ouve cair um parafuso, taipais, uma caleche de luzes acesas, fachadas das casas, ruas como nebulosos corredores, tabernas, escadas dos prédios, o andar superior dos prédios, as sacadas de pedra.

Segue-se o ambiente humano real, com: bulício de gente, gente que parte de comboio, pessoas em viveiros (em casa), dois dentistas que arengam, os guardas das prisões, velhinhas e crianças recolhidos no aljube, os ourives, os emigrados às mesas da brasserie, os pobres mal vestidos e os doentes, um cutileiro, a fábrica de cutelaria a funcionar, a padaria a fabricar pão, as casas de confecções e moda, a loja de luxo com balcões de mogno, as lojas da moda, as plantas ornamentais nos mostradores das lojas, um velho professor de latim que pede esmola, os trabalhadores da noite, o som de uma flauta triste, a vida interior das tabernas, os guardas que revistam os prédios, as imorais em roupão que tossem e fumam.

Há ainda particularidades acerca do espaço físico de evasão (positiva: Descobrimentos, Idade Média; negativa: espaço da cidade, com práticas repressivas da Igreja da Inquisição), espaço físico imaginado (a catedral de comprimento imenso, círios, capelas com santos, andores, ramos, velas; o chão da cidade minado pelos canos); espaço humano imaginado (os fiéis na catedral de comprimento imenso).

A consciência revelada, tanto sobre o ambiente físico real, como sobre o ambiente humano real, não tem toda ela o mesmo valor. A sensibilidade do poeta/narrador vai estabelecendo diferenciações, revelando-se positiva, negativa ou neutra, consoante as circunstâncias. A sensibilidade neutra é simplesmente caracterizadora, a sensibilidade positiva vai para os desfavorecidos pela sorte, e a sensibilidade negativa para os favorecidos por ela.

O ambiente humano real vai ter continuidade nas personagens apresentadas.

C) As personagens

As personagens (os "outros") de O sentimento dum ocidental vão desde a tipificação (gente nas ruas, a turba, o povo em geral) até à individualização (cada uma delas caracterizada com traços rápidos e fortes.

Deparamos com cinco grupos de personagens:

- Personagens do Povo Positivas (gente desprotegida, frágil, vítima da má sorte, com os seus pontos fracos e as suas misérias, que representa a dor humana): os mestres carpinteiros, os calafates, um trôpego arlequim, os querubins do lar, o operariado, as operárias, as varinas, os filhos das varinas, as velhinhas e as crianças do aljube, os presos nas prisões, as pessoas que chegam a casa, os frequentadores das tascas, dos cafés, das tendas, dos estancos, as pessoas que vivem nos "viveiros" (inferidas), os padeiros no fabrico do pão (inferidas), um tocador de flauta (inferido), o Cólera e a Febre, as pessoas de corpos enfezados, os emigrados, as impuras, os pobres, as costureiras e as floristas, as imorais, um forjador, o ratoneiro imberbe, o cauteleiro solitário, o professor de latim, os tristes bebedores, os dúbios caminhantes, os cães.

- Personagens Burguesas Negativas (gente favorecida pela sorte, ou andando na sua roda e vivendo à sua custa): dois dentistas, os comerciantes, os frequentadores dos hotéis da moda, a mulher de "dom", as modistas das casas de confecções e moda (inferidas), os ourives (inferidas), as elegantes, as burguesinhas do catolicismo, a pessoa lúbrica, a velha de bandos, os mecklemburgueses, os clientes e os caixeiros.

- Personagens de Regulação Social (representantes da manutenção da situação vigente, não sendo apresentados em si mesmos, na sua realidade humana, mas na função que desempenham, do lado dos favorecidos da sorte e da vida): os soldados (sombrios e espectrais, recolhem ao Quartel), as patrulhas a cavalo e a pé (saem dos Quartéis, espalham-se por toda a capital), os guardas (revistam as escadas, caminham de lanterna, carregados de chaves), os padres e a sua influência ancestral na sociedade.

- Personagens Conscientes e Sensíveis (conhecedores da realidade vigente, o poeta e quantos se solidarizam com ele, que vivem a realidade do vale escuro das muralhas, sem árvores, entre folhas de navalhas e gritos de socorro estrangulados, na treva, mas nada podem fazer): os emparedados.

- Personagens de Compensação (servem de escape à tensão desencadeada pelo grau crescente de consciência que afeta o poeta: personagens de evasão (mouros, heróis ressuscitados, Camões a salvar Os Lusíadas a nado), personagens visionadas (as vítimas da repressão da Igreja, os frequentadores da catedral visionada, as freiras de antigamente, as esposas, filhos, mães e irmãs estremecidas, a raça ruiva do porvir, os avós com as suas frotas, os nômades ardentes), personagens imaginadas (os astros personificados, solidários com os homens conscientes, chorando lágrimas de luz), personagem da memória (uma paixão defunta).

Numa antevisão de como virão a proceder, nos ainda distantes anos 30 e 40 do século seguinte, o neo-realismo, e, um pouco mais tarde, o existencialismo, o poeta/narrador apresenta as personagens da sua história de um modo perfeitamente organizado, em termos de consciência.

Ele configura a dialética social entre desfavorecidos e favorecidos, cada um sofrendo de inconsciência à sua maneira, com os poderes político e religioso a garantirem a continuidade da situação vigente, e os emparedados nada podendo fazer contra isso, a não ser contrapor consciência à inconsciência e sonhar vitórias futuras, de certa maneira preparando o terreno para que, quando o tempo chegar, a transformação desejada se torne possível. Essa consciência, por parte do poeta/narrador, reflecte-se através de estados de alma diversificados.

D) Os estados de alma do poeta

Perante a realidade, a consciência do poeta manifesta-se através dos mais variados estados de alma, reflexo interior das variações exteriores vivenciadas, refletidas no tempo, espaço e personagens.

O poeta deseja-se alguém que não morresse nunca, qual Sísifo que, de existência eterna, estivesse condenado a renovar continuamente o trabalho-sonho que tem em mãos, nunca suscetível de ser concluído, dada a finalidade de renovação do mundo, a que se propõe, e o jogo constante entre o pessimismo e a esperança que caracterizam as realizações humanas.

São sentimentos direta ou indiretamente verificados:
Soturnidade e melancolia.
Desejo absurdo de sofrer.
Enjoo pelo gás extravasado.
Tristeza provocada pela cor monótona e londrina.
Felicidade pelos que partem e infelicidade pelos que ficam.
Desejo de viajar entre capitais europeias.
Sentimento de que a felicidade só está onde não se está.
Ensimesmamento, na deambulação a esmo pelos espaços da cidade.
Ânsia de evasão.
Inspiração e incômodo pelo cair da tarde.
Simpatia pelos desfavorecidos e hostilidade pelos bafejados da sorte.
Comiseração com a vida das varinas, cujo naufrágio futuro dos filhos se antevê.
Mortificação e loucura pelo tocar às grades, nas cadeias.
Pena pelas velhinhas e crianças que se recolhem ao aljube.
Morbidez (a pontos de desconfiar de um aneurisma).
Tristeza, pela vida na velha Sé, junto às Cruzes.
Antipatia por igrejas e clero, devido às suas práticas opressoras, passadas e presentes.
Consideração pela História (evasão da realidade que dói, embora nem sempre para motivos felizes).
Sentimento de estar "murado".
Desejo de dar resposta a problemas do presente com soluções do passado.
Sensibilidade pelo sofrimento das pessoas que sofrem de cólera e febre.
Sentimento de pouca simpatia pelos soldados.
Sensibilidade pelas contradições e afrontas sociais.
Nostalgia pela Idade Média (evasão).
Comiseração pela tristeza da cidade.
Repulsa perante favorecidos e sobressalto perante aqueles que a vida não favoreceu.
Reprovação das modas estrangeiras.
Sensibilidade para com os quadros revoltados da cidade.
Desconforto perante o ambiente de riso e jogo da brasserie.
Peso e esmagamento provocado pela noite.
Solidariedade com o sofrimento no interior dos hospitais, com os pobres mal trajados e os doentes.
Comiseração pela sorte (submissão) das burguesinhas do catolicismo.
Apreciação das coisas autênticas e salutares da vida.
Aspereza perante os que, favorecidos pela sorte, se deixam atrair pelo luxo.
Compaixão pelos mais fracos e desfavorecidos.
Desejo de evasão perante a realidade crua.
Crítica à propriedade privada opulenta.
Susto e espanto (por exemplo, pelos "olhos sangrentos", as luzes de uma caleche).
Consciência dos ínfimos pormenores da cidade.
Anseio e saudade pelo ambiente pastoril.
Sonho com um mundo perfeito.
Idealização de uma sociedade purificada (família, filhos, esposas e irmãs).
Náuseas, provocadas pelo interior das tabernas.
Compaixão pelos tristes bebedores, de regresso a casa.
Irmanação com os revoltados e os tristes.
Solidariedade com a dor humana e desejo de a superar.

Como se repara, não estamos perante apenas "uma" história, no sentido de uma unidade narrativa, de que poderíamos estar à espera, mas de muitas histórias dentro (a propósito) dessa história.

O sujeito poético / narrador conta a história de cada personagem recriada (que traz à "vida"), conta a sua própria história, histórias da história (do passado, do presente e… do futuro), de entes reais e recriados, da realidade e dos sonhos, da vida (da má vida), histórias de Lisboa e de espaços específicos de Lisboa, histórias do país e do mundo… E nenhuma destas histórias é linear, antes todas elas são complexas, sugeridas pelo poeta, no seu estilo digressivo/impressionista, não dispensando a cumplicidade do leitor para que se tornem consistentes. Todos estes elementos poético-narrativos, com reflexo nas manifestações de consciência, presentes em O Sentimento dum Ocidental, oferecem-se, com a maior vantagem, para serem "descobertos" pelos alunos.

Afigura-se, por essa via, perante eles, uma oportunidade única de desenvolverem espírito crítico e competência de leitura, aproveitando, ao mesmo tempo, linhas de pensamento do melhor e do mais criativo que a literatura portuguesa produziu até hoje, respondendo às finalidades formativas em que a escola não poderá deixar de se mostrar empenhada.

Fonte:
Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal. Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_sentimento_dum_ocidental