terça-feira, 5 de março de 2013

Marta Barcellos (Para Viver de Literatura)

Libreria Fogola Pisa
 Minha amiga tem um sonho. Nova ainda, ela é cheia de sonhos. No entanto, já passou da idade de revelá-los - teme parecer ingênua. Pois minha amiga me faz perguntas sobre o mestrado em literatura que estou cursando, o que pretendo com ele, se minha carreira no jornalismo ajudou... Ajudou a quê? Ah, ela acha bacana hoje eu viver de escrever. Respondo que não é bem assim, que continuo sendo jornalista, e devo muito desse "ganhar a vida" ao jornalismo econômico. Minha amiga, claro, é poeta, e acha economia uma chatice.

 O que ela quer saber, depois de ter começado e largado a faculdade errada, é como se faz para viver de literatura. No fundo, este é o maior de seus sonhos. Também tem o da pousada na praia - e quem não passou por este...

 Achei que talvez pudesse ajudá-la. Nos últimos anos venho formando uma imagem do tal sistema literário: fiz algumas matérias, conheci escritores e pessoas ligadas ao mercado, passei a frequentar (poucos) eventos literários e ando pesquisando questões para o mestrado. Às vezes encontro alguém e penso: veja só, este vive de literatura. Como sonha minha amiga. Depois descubro que não é bem assim. O sustento vem de outra fonte.

 Minha amiga, é verdade, tem algum apoio da família (em troca do quê?). Mas não é rica, do tipo herdeira. Em outros tempos, nos tempos em que eu tinha a idade dela, eu diria que deixasse de besteira e escolhesse uma profissão/trabalho para garantir sua independência financeira (e existe outra?).

 Ah, a independência. Este sim, o meu sonho da juventude. Que os interesses culturais e artísticos se tornassem hobby, e somente quando houvesse tempo e condições para tal - era o que eu pensava. Importante mesmo era sair da casa dos pais (para quê, agora?), ter um salário, pagar as contas. Sobrando, compravam-se livros e discos. Um dia, quem sabe, uma casa de campo. Nela habitaria o sonho de escrever um livro, ou uma peça teatral - na aposentadoria...

 Este Brasil onde não eram permitidos sonhos, vale ressaltar, era outro. Não tinha dado certo, jamais daria. Éramos todos sobreviventes da Ditadura e da inflação, e se estabilidade e futuro existissem, eles estariam num bom emprego no Banco do Brasil, como ainda pensa Felipão. Aliás, o técnico da seleção brasileira nem estava tão desatualizado assim em sua gafe - basta olhar em volta quanta gente ainda estuda para concurso público sem pensar em prazer ou vocação.

 Mas minha amiga, como eu ia dizendo, é sonhadora, e nasceu neste Brasil em transição (para onde?), portanto não cogita desperdiçar sua criatividade e sua força de trabalho olhando o relógio de uma repartição. Observo a realidade à minha volta, as últimas notícias e indicadores econômicos, e acredito que ela tenha motivos para pensar assim. Se algo chamado Vale Cultura foi aprovado pelo governo federal e a economia criativa floresce no Rio de Janeiro, por que não daria para viver de arte hoje? Ou isso ainda seria exceção?

 Foi assim que me flagrei pesquisando e pensando em conselhos para minha amiga, e para pessoas com o perfil e a idade dela. Observei e conversei com escritores, professores, gente que vive, se não da literatura, em torno dela. Gente, porém, que, quando indagada, prefere desaconselhar o seu caminho. Ah, um caminho difícil, dizem. Para persistentes. Para sofredores. Mas eu já ouvi esse papo no jornalismo, e dou um desconto. Há uma necessidade de valorizar o que se conquistou - no fundo, uma vaidade.

 Mesmo assim, algumas respostas foram surgindo. Com doses esparsas de cinismo e amargura, é verdade, mas caminhos foram apontados. Vamos a eles:

 1) Além de escrever, assuma como bandeira a promoção da literatura nacional, crie programas de leitura ou outras formas de incentivo capazes de atrair patrocínios e, principalmente, verbas públicas.

 2) Depois de publicar alguns livros, ministre oficinas para aspirantes a escritores que sonham viver de literatura.

 3) Migre para a literatura infanto-juvenil.

 4) Seja experimental, ganhe prêmios, aprimore sua performance em público e passe a ser remunerado para participar de eventos literários.

 5) Deixe a implicância e a preguiça de lado, invista numa carreira acadêmica na área de letras e concilie escrever literatura com a tarefa de preencher o currículo Lattes.

 6) Seja flexível em relação a gêneros. Deixar os contos e os poemas de lado para escrever para televisão não significa que você se vendeu.

 7) Deixe a implicância e a preguiça de lado, estude contabilidade e encare um concurso público. Não é de hoje que bons escritores são também funcionários com estabilidade e salário garantidos pelo estado.

 8) Tenha uma editora, voltada para o mercado ou para a autopublicação de escritores que sonham um dia viver de literatura.

 9) Além de escritor, seja crítico literário, depois de desenvolver uma boa argumentação sobre como é possível conciliar as duas funções eticamente.

 10) Tenha outra profissão, uma "pra valer". Moacyr Scliar, 80 livros publicados, na hora de preencher o formulário do hotel, declarava como profissão: médico. Era verdade.

Rio de Janeiro, 7/2/2013

Fonte:
Digestivo Cultural

Trova 252 - Antonio Juraci Siqueira (PA)

Formatação: Dáguima Veronica

Efigênia Coutinho (O Rigor Literário Sobre a Poesia de Efigênia Coutinho por Ela Mesmo)

 A poesia será sempre um meio de comunicação de sentimentos na escrita. Eu tenho um ritmo pessoal, operando desvios de ângulos, mas sem perder de vista a tradição, procurando atingir o núcleo da idéia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as passagens intermediárias. Certa da extraordinária riqueza da metáfora - tratei de instala-lá nos meus poemas, com toda a sua carga e força emocional! Atraída pelos sentimentos, entendi que a linguagem poderia manifestar essa tendência, sob a forma de um encontro de palavras extraídas da Alma. Ao inicio, as palavras vinham num conjunto, informes, desarticuladas e, pouco a pouco, as fui compondo, sentindo silaba por silaba, e aplicando-as dentro dos versos. Há tantos momentos misteriosos dentro da alma poeta, que vivemos uma alquimia , a bem dizer, a essência mesma da vida em vida. Procurei sempre mais a musicalidade que a sonoridade; evitei o mais possível a ordem inversa, procurei muitas vezes obter o ritmo sincopado, a quebra violenta do metro, porque isso se acha de acordo com a nossa atual predisposição emocional; certos versos meus são os de alguém que leu muito Baudelaire, Shakespeare, Paulo Mantegazza, e muita musica clássica. Empreguei freqüentemente a forma elíptica, visto ser uma tendência acentuada da poesia moderna que ajuda a terminologia final; de resto não crio uma ruptura entre o poeta e o leitor, antes impõe este a uma disciplina mental, ensinando-lhe a imaginar nos intervalos, encobrindo analogias e paralelismos. Sendo de natureza impulsiva e romântica, julgo ter feito um trabalho verdadeiro , pois se os relacionar à minha contínua necessidade de expulsão de sentimentos, meus textos são até construídos e ordenados. “É a expressão da subjetividade, da harmonia e do amor universal. Em minha poesia, ora demonstro um tom bastante emotivo, ora amplo interesse pelas coisas simples da vida, revelando alteridade, amizade e solidariedade.

Fonte:
http://www.veropoema.net/publicacao.asp?codtxt=292

Efigênia Coutinho (Entrega)

Que bom que foi
poder escrever estes versos,
imaginá-los do princípio ao fim,
senti-los sair de mim,
sem neles dizer o que sinto,
ou cuidar, sequer,
se falo verdade ou minto,

Gerar o poema
com afeição natural,
desprendido do tema
e do conceito,
sem temer de outros o juízo,
ou se o meu próprio é perfeito.

Cometer o ato insano,
depois de conhecer
o bem e o mal,
comendo de novo,
em pecado original,
o fruto da árvore do Paraíso.

Sentir o poema
como um ser nado
misteriosamente, andrógino,
irrompido do útero do caos,
e dá-lo à luz,
tornando-o em ato,
puramente maternal.

Palavra feita poema,
como terra a mudar-se em vida,
pela vontade do fiat criador.
A suprema ambição da poetisa,
seja ele qual for,
é ver o caos transformar-se em verso,
e a ele entregar-se, por Amor

Fonte:
http://www.veropoema.net/publicacao.asp?codtxt=292

Machado de Assis (Críticas Literárias: Castro Alves)

[RJ, 29 fev. 1868.]

EXMO. SR. - É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exª, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre.

Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempoum motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fora dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Ex.ª, mais do que uma animação generosa. A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido.

Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Ex.ª, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal. Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V.Exª. que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade; chama-se antipatia o que é consciência.

Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também.

Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias?

Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas; tal é, porem, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel; contudo, entendia e entendo - adotando a bela definição do poeta que V. Ex.ª. dá em sua carta - que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras.

Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre. apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.ª?

Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever. cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Ex.ª não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. Não tive, como V. Ex.ª, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Ex.ª. chama de um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.

No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão.

Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.

V. Ex.ª. já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista - no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.

Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.

O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra. que me demorava os olhos em cada página do volume.

O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Pindaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.

Esta exuberância, que V. Ex.ª. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje. Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz. o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece e do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espartanos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washington. Condenouos a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.

Condensar estas idéias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade , que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Ex.a, conhecem esta aliança. hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.

A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendário amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a Pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o nome ligado ao da tentativa de Minas.

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horário corneiliano; entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.

O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta.

Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a idéia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdades? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o Padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento.

Concordo que a ação parece as vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça. O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação; ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento Juvenil, mas que é com certeza uma invejável estréia. Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Ex.ª que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luís representa o elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tomar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois.

Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem. Cumpre mencionar outras situações igualmente belas.

Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Ex.ª aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnância para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.

As cenas amorosas são escritas com paixão; as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes! Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais duas ou três imagens que me não parecem felizes; e uma ou outra locução susceptível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las; mas como não aceitar esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã?

Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.

Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; e um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a não na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas.

O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Ex.ª. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e V. Ex.ª o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim. Quanto a V. Ex.ª, respirando nos degraus da
nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Ex.ª um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Eduardo Quive (A Relação Entre o Tempo e o Espaço em “O Sol Nas Feridas” de Ronaldo Cagiano)

Apenas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece.

Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes metrópoles enfrentam que sob caiem directamente ao cidadão.

“O Sol nas Feridas” em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige.

Lembrar Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a escrita e a vida caminham juntas “tem que viver para se ser escritor” – diz ela.

Em Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional “O Regresso do Morto”, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste “velho poeta”, pois disse uma vez que “é preciso ter vivido para escrever”.

É o escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que “o ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras”. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese e o fim.

Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta “conta” na sua poesia convulsiva em “O Sol nas Feridas” que “entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga”, mas mais do que esse olhar atento em “Gênese”, o encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós, atentamente o poema “Escamas”:

(…) A vida, em suas estranhas latitudes,
território lisérgico onde dormiam meus fantasmas
já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões

hoje, planeta do qual não me escondo,
             catapulta-me sobre os abismos.

A poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como esconder as feridas do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem.  A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido.
Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de leitura no livro ao dizer que “ o sentimento de impermanência e de precariedade ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrentamento das verdades provisórias.” É essa a posição que Ronaldo Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:

Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos automáticos
das mãos que cerravam as portas

            Outros continuavam a vida
            imunes à que passava,
despojada de sua última chamada.

A cidade não seria diferente
porque amanhã
outras notícias viriam

É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas “geografias do acaso/ no arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/ habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.

É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.

Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista “Onde está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos nunca vêm?” pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos. Quem o responde?

Fonte:
http://www.quivismo.blogspot.com/

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIII)

Primeiro Fausto
Terceiro Tema
A Falência do Prazer e do Amor

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.

II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n'alma essa alegria!
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.

III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.

IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser...
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto... Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.

VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII
Tua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas...
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]

VIII
Triste horror d'alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co'a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!

IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa ...
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.

X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!

XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.

XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém...
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a idéia
De gastar e gastar inutilmente —
Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.
Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.
Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino. —
De raivas contra a essência do viver.

XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo [...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.
Do mais. Pensar em dizer "amo-te"
E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.

XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]

XX
É isto o amor? Só isto? [...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.
Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva [...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.
Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos...

XXI
— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...]
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.

XXIII
Reza por mim! A mais não me enterneço.
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
A minha tentativa [em] querer amar.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Ditados Populares do Brasil (Letra A)

A BOA notícia tem pernas curtas.
A CARA de um é o focinho do outro.
A CARA do pai, escarrada e cuspida. Com certeza deturpação do antigo adágio: A cara do pai, em carrara esculpida.
A COISA é mansa mas atropela.
A MÃO que alça o copo não deve segurar o volante.
AS MULHERES perdidas são as mais procuradas.
ADEUS, cinco letras que me faz sofrer.
ADORO as rosas, mas prefiro as trepadeiras.
ALGUM dia a terra cobrirá o teu orgulho.
A LUZ dos teus olhos ilumina o meu caminho.
A MAIOR riqueza do homem é a sinceridade da mulher.
A MAIOR vingança é o desprezo.
ANTES sonhava. Hoje, não durmo…
AMAR sem ser amado é ser castigado sem ter pecado.
AMAR-TE sempre; implorar-te nunca.
A MEDICINA não cura a dor da separação.
AMOR e dinheiro não querem parceiro.
AMOR é fumaça, sufoca e passa.
AMOR só de mãe.
A MORTE é um bem quando a vida se torna um mal.
A MULHER é como rosa: formosa, mas tem espinho.
A MULHER ri quando pode e chora quando quer.
ANTES causar inveja do que dó.
ANDO todo arranhado, mas não largo minha gata.
ANTES de apontar os defeitos do outro, conte até dez… dos seus.
ANTES de falar de mim, pensa no teu passado.
ARTIGO nacional, a mulher é o melhor.
A SAUDADE é companheira de quem não tem companhia.
A SAUDADE não mata, mas sepulta o coração em vida.
A SAUDADE torna presente o passado.
A SUSPEITA é o veneno da amizade.
AS GRANDES almas sofrem em silêncio.
A TERRA cobrirá o teu orgulho.
A VIDA começa aos 40 anos, e a morte aos 80 kms.
A VIDA é uma ilusão, passo por ela e não a vejo.
A VIDA só tem uma porta de entrada, mas várias de saída.
A VIDA é um barato, o povo é que acha caro.
A VIDA é dura pra quem é mole.
A TUA inveja é a minha felicidade.
A CALÚNIA é como fogo, destrói em horas a construção de anos.
A CÓLERA não aceita a presença da razão.
A CÓLERA principia pela loucura e acaba pelo arrependimento.
A ESTRADA é o meu lar.
A FÉ é quem vence sempre.
AJUDE a acabar com os letreiros de caminhão.
AMOR de mãe é imortal.
A MULHER é Maria, o carro é Ford e o homem sou eu.
A DÚVIDA é o travesseiro do sábio.
A EMENDA saiu pior que o soneto.
A GENTE nunca se esquece de quem se esquece da gente.
A GENTE pensa que se benze e quebra as ventas.
A IGNORÂNCIA e a candeia a si queimam, e aos outros “alumeiam”.
A MEDIDA de encher nunca transborda.
A NATUREZA não vai aos saltos.
A OCASIÃO faz o ladrão.
A PALAVRA é de prata, o silêncio é de ouro.
A PALAVRA própria e sensata, pomo de ouro é marchetado a prata.
A PREGUIÇA é a chave da pobreza.
A QUEM tem dinheiro, não lhe falta companheiro.
A VOZ do povo é a voz de Deus.
ABRAÇAR o mundo com as pernas.
ACENDER uma vela a Deus, outra ao diabo.
ÁGUA mole em pedra dura tanto bate até que fura.
ÁGUAS passadas não movem engenho.
AÍ é que a porca torce o rabo.
ALEGRIA de palhaço é ver o circo pegar fogo.
AMARRAR o burro onde o burro do dono manda.
AMIGOS, amigos, negócios à parte.
AMOR com amor se paga.
ANTES calar que com doidos altercar.
ANTES só que mal acompanhado.
ANTES tarde do que nunca.
AO INSENSATO, dá-lhe logo a fúria, quem é prudente dissimula a injúria.
AO RICO, mil amigos lhe aparecem, ao pobre, seus irmãos o desconhecem.
APÓS a tempestade vem a bonança,
AQUI se faz, aqui se paga.
ARARUTA tem seu dia de mingau.
ARRASTAR a mala.
AS APARÊNCIAS enganam.
AS GRANDES essências estão nos pequenos frascos.
ÀS VEZES pequena nuvem esconde o sol.
ATIROU no que viu, matou o que não viu.

Soares de Passos(O Mosteiro da Batalha)

Pulsemos a lira, que além se levanta
Padrão de vitória que imenso reluz!
Um templo e altares à Mãe sacrossanta;
Um templo, um poema que altivo descanta
Grandezas da pátria nos átrios da cruz.

Grandezas da pátria quem traz à memória
Que o peito não sinta d'orgulho bater?
Pulsemos a lira! do livro da história
Volvamos as folhas, que a musa da glória
Em nuvens etéreas sentimos descer!

Eis já d'Aljubarrota nas campinas
Se encontram as hostes contendoras.
Daqui tremulam portuguesas quinas:
Dalém as castelhanas invasoras.
Daqui é João primeiro, cuja lança
A coroa defende e a pátria cara:
Dalém o estranho rei, pedindo a herança
Da princesa Beatriz que desposara.

Refulge o sol nas armas, os cavalos
Rincham fogosos, escarvando a terra;
Dum lado e doutro os chefes a intervalos
Correm as alas animando à guerra.
Pouco avultam as hostes portuguesas;
Tremendo é de Castela o poderio;
Mas quem à pátria negará proezas
D'alto valor, e generoso brio!

A véspera é do dia consagrado
À Assunção gloriosa de Maria;
Os olhos levantando, o rei soldado:
«Senhora, exclama, nosso esforço guia!
«Se vencermos, um templo majestoso
«Te erguerei sobre o campo de batalha!»
Diz, e esporeando seu corcel fogoso
Brios em todos com sua voz espalha.

Soam trombetas; o sinal é dado;
Flutuam soltos os pendões na frente:
– São Tiago! – brada o castelhano ousado;
– São Jorge e avante! – a portuguesa gente.
Rédeas soltando, os esquadrões galopam,
E dão em cheio com furor insano,
Como torrentes que no vale se topam,
Ou como as ondas no revolto oceano.

Retine o ferro, a multidão se agita;
As achas d'armas, os broquéis lampejam;
Peões, ginetes, com medonha grita,
Num mar de sangue em turbilhão pelejam.
O sol já desce a mergulhar no oceano,
E inda referve a encarniçada lida;
Eis redobra d'esforço o lusitano,
E o estrangeiro leva de vencida.

Foge o rei castelhano espavorido;
Fogem os seus em debandada solta;
Persegue-os João primeiro, e destemido
A gozar do triunfo ao campo volta.
Já se erigem troféus, já resplandece
O céu da pátria co fulgor da glória;
Faltava o monumento que dissesse:
– Foi aqui! eis o campo da vitória!
*

E ei-lo aí que se levanta
Com majestosa grandeza,
Daquela gentil proeza
Sublime recordação:
Fi-lo aí aos céus erguido,
Como um colosso gigante
Apontando ao caminhante
O sítio da grande acção.

Altos pórticos, lavores
D'ostentosa arquitectura,
Coruchéus d'imensa altura
Roçando a fronte nos céus;
Dentro, a nobre majestade
Do santuário profundo,
Onde, extinta a voz do mundo,
Só lembra o passado, e Deus.

Sobre os góticos pilares
Brilham trémulos fulgores,
Que das vidraças de cores
Entorna a mística luz.
Tudo cala, mas, se o órgão
Por entre as naves ressoa,
Tudo se anima, e apregoa
O santo Verbo da cruz.

Então a mente se enleva
Nas torrentes da harmonia
Que da abóbada vazia
Retumbam pela multidão;
E, abrasada nos fulgores
Dos vivos, sagrados lumes,
Sobre as asas dos perfumes
Revoa à etérea mansão.

Se tudo cai em silêncio,
Cai em si mesma, e medita,
Recordando a data escrita
Nesses góticos umbrais.
Pensa então nos heroísmos,
E crenças de meia idade,
Combatendo a escuridade
Daqueles tempos feudais;

Pensa nos vultos heróicos
Dos antigos cavaleiros,
E em nossos feitos guerreiros
Pela pátria e pela cruz;
Pensa na grande vitória
Que nos fez independentes,
E que aos olhos dos presentes
Nesse moimento reluz;

Pensa num povo pequeno
Mas esforçado e guerreiro,
Triunfando do estrangeiro
À voz do rei popular;
Pensa no mestre valente;
E sua sombra gigante
Parece às vezes distante
Entre as colunas vagar.

E pensa também no artista,
Nesse arquitecto inspirado,
Que um poema sublimado
Ali traçou a cinzel;
Que cego da luz dos olhos
Acendeu a luz do engenho,
E consumou seu empenho,
Ao grande assunto fiel.

E Afonso Domingues surge
Nesse padrão sobranceiro
Ao lado de João primeiro,
Seu imortal fundador;
Reis ambos: um pelo berço,
Que lhe deu sua nobreza:
Outro, rei pela grandeza
Do seu génio criador.

Lá dormem! um rodeado
Dos brasões da sua glória,
Como depois da vitória,
Sob a tenda a descansar;
Outro à sombra desses tectos
Em campa singela e nua,
Como querendo a obra sua
Dalém da tumba guardar.
*

E lá dormem também outros que a morte
Juntou à sombra do lugar sagrado,
D'infantes e de reis alta corte,
Servindo de cortejo ao rei soldado.

Reunidos enfim no chão funéreo,
Fernando, Pedro, e Henrique, os três infantes;
Henrique, o sábio audaz que outro hemisfério
Primeiro abriu aos lusos navegantes.

Duarte e João segundo descansando
D'altas vitórias na mansão tranquila;
Afonso quinto cos lauréis sonhando
D'Alcácer, Tânger, e da forte Arzila.

E no sopro do vento que perpassa,
E lhes roça nas frias sepulturas,
Parecem murmurar em voz escassa,
E agitar suas ferozes armaduras.

E lá quando o luar pelas janelas
Lhes escoa nas lápides marmóreas,
Talvez erguidos se recostam nelas
A falar entre si de nossas glórias.

Dormi em paz, ó chefes do passado,
Heróico fundador, prole valente;
Dormi em paz no túmulo calado,
Recordando os lauréis da vossa gente.

Enchei em roda os penetrais divinos
De vossos gloriosos esplendores;
E se tendes poder sobre os destinos,
Defendei-os do tempo e seus furores.

Que as gerações passando reverentes
Possam, volvendo as páginas da história,
Largas eras saudar, curvando as frentes,
Esse padrão d'imorredoira glória!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Gregório de Matos (“Discreta e Formosíssima Maria” : Análise estilística do poema)

Gregório de Matos
    Gregório de Matos Guerra nasceu em 20 de dezembro de 1636 cidade de salvador. Por conta das dificuldades que a cidade vinha passando, Gregório de Matos foi obrigado a continuar seus estudos em Lisboa aos 14 anos. Dois anos depois ingressou na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1661 aos 25 anos no curso de Direito. O autor mais expressivo do barroco faleceu aos 59 anos de idade no Recife.

    Graças a linguagem maliciosa e ferina com que criticava pessoas e instituições da época (não dispensava palavras de baixo calão), recebeu o apelido de Boca de Inferno, tendo que se exilar-se por algum tempo em Angola, perseguido  pelo filho do governador Antônio da Câmara Coutinho o qual era vítima constante das sátiras. Suas Obras geralmente dividem-se em poesia lírico-amoroso, poesia religiosa e poesia satírica.

    Com exceção de Gregório de Matos, nenhum outro escritor se destacou no Barroco brasileiro. O padre Antônio Vieira, embora tenha escrito boa parte de sua obra no Brasil, pertence mais  à literatura portuguesa do que à nossa.

    Gregório de Matos constrói seus poemas baseados nas principais idéias barrocas. As principais características barrocas são: culto do contraste, consciência da transitoriedade da vida, gosto pela grandiosidade frases interrogativas, cultismo e conceptismo.

Agora nos detendo a análise do Poema “Discreta e formosíssima Maria”:

Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.
(Gregório de Matos)

    O poema está estruturado em soneto composto por 14 versos distribuídos em 4 estrofes , sendo os dois primeiros quartetos e os dois últimos são tercetos. As rimas estão distribuídas da seguinte forma 1º quarteto ABBA, 2º quarteto ABCA, 1º terceto DEF e o ultimo terceto DEF, é rico em metrificação.

    Neste soneto dedicado a sua esposa Maria percebemos o dualismo (característica do Barroco) entre a juventude e a velhice, observe o verso 3 da 1º estrofe verso que exprime a beleza da juventude, enquanto que no verso 1ao 3 da última estrofe o autor fala que a madura idade ou velhice leva a formosura da juventude. Observemos ainda o 2 verso da 2 quarteto na qual Gregório de Matos coloca Adônis, o deus grego da agricultura e vegetação para expressar e realçar a juventude de sua esposa. Com isso o autor reforça que enquanto possui juventude a mulher pode despertar paixões até nos deuses, mas quando chega a madura idade tudo se perde, tudo se torna em nada.

    O soneto também ressalta muito a questão da brevidade da juventude, que esta passa rapidamente e por isso deve ser aproveitada antes que se vá, pois o autor tem consciência que o tempo tudo consome tudo leva consigo, conduzindo inevitavelmente à morte, todo poema á marcado pela idéia da efemeridade da vida, mas tomaremos como base o 1º terceto para exemplificar a transitoriedade da vida.

“Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.”

    Observa que o autor utiliza os verbos no modo imperativo como forma de advertência, “aproveita a mocidade porque ela passa o tempo não espera e ainda deixa marcas profundas.”

     Vejamos um trecho de outro poema de Gregório de Matos no qual é latente a questão da transitoriedade da vida:

“Nasce o sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz, se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em continuas tristezas a alegria.”
   
É evidente o dualismo o contraste enfim traços característicos do barroco assim como no poema “ Discreta e formosíssima Maria”.

    Podemos incluir este soneto de Gregório de Matos na tendência conceptista e cultista do barroco. Ou seja, Gregório de Matos exagera no uso de raciocínio engenhosos fazendo um jogo intelectual de paradoxos e sutilezas lógicas, essa é a tendência conceptista, vejamos um exemplo deste artifício no soneto.

“Enquanto com gentil descortesia”

    Observe neste verso que Gregório de Matos utiliza o oxímoro fazendo uma combinação de palavras incoerentes com objetivo de promover a ambigüidade. Já no que concerne ao cultismo, ou seja, no exagero da dimensão sensorial o autor utiliza-se de vários tipos de figuras de linguagem tornando o texto mais estilístico.

    No 1º quarteto a partir dos 2 verso por exemplo temos um exemplo de assonância, a repetição de vogais no inicio de cada verso. No 2º quarteto a partir do 1º verso há oximoro o qual já foi citado anteriormente. Ainda no segundo quarteto verso dois temos o uso da personificação atribuição de características, sentimentos e atitudes a animais, vegetais ou seres inanimados, no caso do verso “O ar que fresco Adônis te namora”, Gregório de Matos personifica o ar na figura do deus grego da agricultura e vegetação, do mesmo modo que Adônis expressa também a juventude de Maria.

    Ainda no 1º quarteto temos o exemplo de sinestesia ( fusão dos sentimentos humanos numa só impressão) “Em tuas faces a rosa Aurora em teus olhos e boca, o sol e o dia”.

    No 1º terceto temos a metáfora(substituição do significado de uma palavra) “que o tempo trata a toda ligeireza e imprime em toda flor sua pisada...”

    O tempo cuida de que as coisas mudem repentinamente e deixa marcas com sua passagem (verso três do 2º terceto). O poeta ainda singulariza a flor comparando -a com Maria.

    As metáforas utilizadas no 1º terceto traz o ideal do “Carpe Diem” horaciano tão comum aos poetas barrocos “goza, goza da flor da mocidade”. Ainda neste terceto temos o uso da aliteração na repetição da consoante “t” tempo trata, toda. No último terceto temos três tipos de figuras de linguagem no 1º verso, por exemplo, temos o uso da apóstrofe, ou seja, exclamação que interrompe o fluxo poético ou narrativo, dirigida a uma pessoa, coisa real ou fictícia. “o não aguardes...” A metáfora mais uma vez é utilizada no 2º verso do ultimo terceto, o autor faz menção da juventude metaforizando com o vocábulo flor. E no último verso temos um exemplo de amplificação (o desdobramento de uma palavra ou de uma idéia, desenvolvendo todos os seus aspectos. As técnicas utilizadas para a amplificação são a enumeração e a gradação). No caso do poema temos o exemplo de gradação no ultimo verso do último terceto veja “Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada”. Perceba que os elementos estão organizados numa ordem decrescente que é a característica da gradação.

    Dessa forma Gregório de Matos constituiu o mais importante poeta brasileiro do Barroco e um dos exemplos mais expressivos do comportamento da época. Ele contrapõe assim a idéia de que o barroco não pode ser considerado arte, mas expressão de uma sociedade retrógada como afirmou Diogo Mairnadi no texto Santos Ridículos.

GREGÓRIO DE MATOS E O SUJEITO LÍRICO E INFLUÊNCIAS NA SUA OBRA.

    No soneto “À sua mulher antes de casar”o sujeito lírico se coloca como alguém consciente da efemeridade da vida, que tudo passa tudo se transforma em nada com o tempo.

    O eu-liríco apresentado no texto se vê diante de uma situação inevitável o fim da juventude o fim da beleza. Entretanto não demonstra tristeza nem melancolia diante de tal fato, muito pelo contrário o sujeito lírico ciente da condição humana, fragilidade e mortalidade, incita que a mulher a quem se dirige o poema aproveite os primeiros anos e não despreze a mocidade que é breve e efêmera. Para tanto o autor utiliza-se das figuras de linguagem, do dualismo barroco juventude-velhice, dos ideais conceptista e cultista.

    No que diz respeito à influência sofrida na composição de suas obras temos os escritores espanhóis D. Luiz Góngora o maior representante do cultismo e D. Francisco de Quevedo o mais representativo e influente autor do estilo conceptista, graças as influências desses autores espanhóis que Gregório de Matos se tornou o poeta barroco de maior destaque na literatura brasileira. Entretanto há autores como Emília Carrila e Sílvio Júlio que criticam as obras de Gregório, entre os mais contundentes críticos da obra de Gregório de Matos temos Silvio Júlio que teve a facilitar- lhe a tarefa a familiaridade na convivência com autores espanhóis e latinos americanos em geral, cujas literaturas pesquisaram e ensinou, busca eliminar, de saída, o argumento-muito freqüente entre os admiradores de Gregório de Matos segundo o qual a autoria controversa beneficia a imagem do poeta baiano.

    Sílvio Júlio apresenta “como claramente plagiado por Luís de Gôngora três sonetos deste último, dois dos quais teriam sido astuciosamente fundidos para disfarçar o processo de apropriação: aos quartetos do soneto “Ilustre e Hermosíssima”, Gregório teria acrescentado os tercetos do soneto gongórico” Mientras por competer com tu cabello”. Veja em seguida os dois quartetos do soneto de Gôngora “ Ilustre e Hermosíssima Maria”, verso, aliás, que o autor das soledades que de acordo com Silvio Júlio copio por completo da Ecloga III de Gracilaso de la veja”:

Ilustre e hermosíssima Maria
Mientras se dejan ver a cualquer hora
En tus mejellas la rosada aurora
Febo en tus ojos, y en tu frente el dia

Mientras con gentil descortesia
Mireve ele viento la hebra voladora
Que la Arabia en sus venas atesora
Y el rico tajo en sus arenas cria (...)

    Agora veja a transcrição dos tercetos do outro soneto “Mientras por competer com tu cabello com o qual Gregório realizou a fusão:

(...) Goza Cuello, cabelo, lábio y frente antes que lo que fué en tu donda oro, lírico, clave, cristal, luciente,
No solo em plata o viola troncada se vuelva, mas tu y ello juntamente
En tierra, en humo, en polvo, em sombra, em nada.

    Digamos, de passagem, que o último verso dos tercetos acima dos mais famosos de toda a literatura espanhola foi largamente definido e imitado nos séculos XVIII não só na Espanha como em Portugal e Brasil, Júlio afirma que Gregório de Matos, “após a aplicação das duas quadras do primeiro, tomou para os dois tercetos” do segundo soneto do que resultou este outro igualmente tocado pelo tema do “carpe diem” que já citamos anteriormente. Segundo Silvio Júlio poema de nossa análise é uma cópia dos poemas de Gongora.

    Quantos aos supostos plágios relativos a acusação é bem mais ampla e detalhada: Sílvio Júlio recenseou treze procedimentos imitativos na poesia de Gregório de Matos sobre os textos.Divulga, ainda, uma versão castelhana do famoso soneto “Pequei, senhor, mas não porque hei pecado”, tradicionalmente atribuído ao poeta baiano e encontrado em seus apógrafos, como sendo da autoria de Sá de Miranda, segundo informação colhida em Teófilo Braga, sem comprovação da veracidade . Vejamos o exemplo: A verdade é que Gregório de Matos não publicou em vida nenhuma edição de sua obra, o que deixa dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos a ele atribuídos. De fato Gregório de Matos com sua poesia ora satírica, ora religiosa, ora amorosa deixou sua marca na literatura brasileira.

Referência Bibliográfica

Português, volume único: Livro do professor ( João Domingues Maia_ São Paulo, Editora Ática 2002).
Novas Palavras: Português, volume único livro do professor (Emília Amaral. Etal_ 2 edição_ São Paulo: FTD,2003).
Outros autores: Mauro Ferreira, Ricardo Leite, Severino Antônio.
Gregório de Matos “O Boca de Brasa, Gomes, João Carlos Teixeira- Petrópolis, 1985.

Fonte:
Carla Valéria de Souza Sales. Evanilda Jesus Pereira. (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia _ UESB. – Departamento de Ciências Humanas e Letras_ DCHL). Campus de Jequié, 25 de novembro de 2008.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte V – Le Roi S'Amuse

D. Pedro tinha razão. Para o seu caráter independente, era afinal uma verdadeira humilhação aquela constante necessidade de recorrer aos serviços do Satanás. O que ele mais desejava, havia muito, era um amor que pudesse satisfazer o seu orgulho de homem. Aquilo rebaixava-o diante de si mesmo; parecia-lhe, ao receber um beijo, que não era o homem, forte e apaixonado, que o recebia, vencedor pela força e pela paixão, mas o príncipe, vencedor pelo nome e pelo prestígio da posição.

E esse amor, que ele sonhava no íntimo, essa esperada paixão desinteressada e nobre, apareceu-lhe (nem o podia imaginar o Satanás!) no mesmo dia em que Branca deixara que o seu coração se dependurasse cativo dos belos bigodes negros de Paulo de Andrade.

Quando a procissão passara, um ano antes, pelo lugar em que estavam Branca e d. Emerenciana, naquela tarde radiante em que a moça pela primeira vez sentira o coração bater sob o domínio de um olhar de homem, o príncipe, que empunhava uma das varas do pálio, viu de relance a filha do seu alter ego.

Dessa tarde em diante, houve para ele a ansiedade indizível de rever e de possuir aquela criatura loura, cujos olhos refletiam a mais pura inocência e toda a ingenuidade de uma criança... Ah! o príncipe já andava farto de mastigar frutos maduros: o que ele agora queria, era o sabor excitante dos pêssegos verdes, ainda não cobertos de penugem.

Viu-a de novo na festa de S. Sebastião, viu-a nos Te-Deuns solenes dos dias de gala, viu-a a passeio, viu-a no largo do Paço, onde naquele tempo as famílias iam tomar fresco, pelas tardes abrasadas do verão. E privado até então de uma ocasião própria para lhe falar, o príncipe ardia em impaciência e em febre: entre duas conquistas fáceis das que lhe arranjava o Satanás, aparecia-lhe sempre a loura imagem de Branca, dominando tudo, apagando tudo com o seu brilho e a sua pureza de estrela inacessível.

Na ocasião em que, por basófia, d. Pedro atirou ao Satanás aquela frase orgulhosa em que vinha explodir, despeitada, a sua altivez, estavam as cousas nesse pé...

O príncipe, sem que uma só palavra pudesse trair as suas ocultas intenções, não falou mais, ao Satanás na aventura em que se tinha empenhado.

Não que esse escrúpulo natural de cavalheiro o retivesse, não querendo magoar na parte mais sensível da alma o seu fiel servidor; ele não sabia que Branca era filha de Pallingrini. O que lhe retinha a indiscrição, era o desejo de poder um dia, mostrando-lhe e provando-lhe que os seus serviços não eram indispensáveis, dizer-lhe:

- Vês? Possuo esta, que é melhor do que todas as outras; e não foste tu que ma deste. Não me foi dada pela tua dedicação, nem pelo meu nome, nem pelo meu prestígio. Amou-me, porque me achou belo, porque me achou forte e valente, porque satisfiz o seu ideal, porque encontrou em mim o homem que lhe devia rasgar diante dos olhos o horizonte ilimitado da vida e do amor! Já vês que os teus serviços não são indispensáveis...

E redobrou de vigilância e de esforços. Afinal, conseguiu saber onde morava a sua desconhecida: seguiu-a de uma vez que a encontrou, embuçado, à saída de uma novena do Parto.

E começou todas as noites a rondar a casa da rua do Conde, na esperança de ver sair alguém cuja conivência pudesse comprar a peso de ouro, na esperança de que um acaso providencial viesse inesperadamente em seu auxílio.

Uma noite, acreditou ter conseguido O que queria. Estava à espreita, num terreno que havia em frente à casa, e onde se estavam fazendo obras, quando viu um embuçado chegar, olhar demoradamente a varanda verde, por cujas janelas passava a luz do interior, bater três vezes com os copos da espada e entrar, depois de longamente ter escrutado todo o arredor com um olhar cuidadoso.

Que poderia dizer aquilo? Um homem...

Mas não esperou muito. Viu o homem sair pouco depois, com as mesmas precauções com que entrara. Deixou-o seguir um pouco, e acompanhou-o depois, até que o viu entrar na tasca do Trancoso. Foi aí que se convenceu de que o homem que gozava a felicidade, até então inacessível para ele, de entrar naquela casa, que se lhe afigurava uma fortaleza inespugnável, era o Satanás.

Procurou a princípio descobrir que relações podia haver entre ele e a sua desconhecida. Mas, desistiu:

- Se é amante dela, melhor! Mais completa será a lição.

Empregou pessoas dedicadas para auxiliá-lo a espionar a casa. E ao cabo de alguns dias soube que a menina chamava-se Branca e vivia em companhia de uma velha espanhola. A obra de sedução prosseguiu. D. Emerenciana, a todas as ofertas de dinheiro, opôs uma resistência inabalável; só obteve como resultado excitar a impaciência e o desejo do príncipe, que se resolveu a empregar os meios violentos.

Organizou-se o plano de ataque. Uma noite, o príncipe escondeu-se nas obras que se faziam na rua do Conde, com dous homens dispostos a tudo. Todos armados, todos cautelosamente embrulhados em compridos capotes.

Das dobras do capote de um dos homens que acompanhavam o príncipe o mais alto e mais magro, o que parecia um grande ponto negro de admiração - via-se emergir uma durindana formidável. Era d. Bias. O momento não se fez esperar; por volta da meia noite viram chegar à casa o vulto do Satanás.

- Por São Tiago de Compostela! - ganiu d. Bias - temos mouro, senhor, temos mouro! Vou a ele?

O príncipe impôs-lhe silêncio. Como de costume, a demora do Satanás foi curta. Pouco depois saiu e desapareceu no alto da rua, para o lado da rua do Piolho. Os três homens saíram então do esconderijo, e d. Pedro bateu à porta as mesmas três pancadas do Satanás.

A porta abriu-se. Naturalmente d. Emerenciana pensara que era o Satanás que voltava a fazer-lhe qualquer recomendação, de que se esquecera. Mas, em menos de um minuto, agarrada de surpresa mal teve tempo de dar um grito, a velha viu-se solidamente amarrada e amordaçada, e entregue à guarda de d. Bias. O outro homem ficou de guarda à porta, e o príncipe subiu, levando o lampião que d. Emerenciana trouxera.

D. Bias sentou-se filosoficamente a um degrau, pousou a durindana nos joelhos e sacou da profundidade de uma das algibeiras do gibão uma naca de presunto.

- Sinto muito, sinto muito, respeitável dama, não lhe poder oferecer um pouco desta parca refeição. Desculpe...

E continuou esmoendo o presunto com um grande barulho de queixos, que soava na treva da escada como uma tempestade.

Mas, de cima, começou a chegar um barulho de passos e de vozes. Ah! bem que a boa Emerenciana distinguia a voz aflita de Branca. E desesperava-se a velha espanhola, sem poder acudir à sua querida filha, ali amarrada, diante daquele fantasma que comia. Por fim, ouviu-se um grito: e nenhum outro rumor chegou de cima.

Mas o homem que estava à porta, bradou:

- Quem vem lá?

E d. Bias engasgou-se com um pedaço de presunto, compreendendo que o companheiro batia-se lá fora com alguém, ouviu tinir de ferros, ouviu passos de quem fugia, viu a porta abrir-se e um homem entrar, tropeçando no corpo da velha.

Era Paulo de Andrade, que ouvira o grito e a quem a presença do homem armado à porta causara suspeitas. Ao esbarrar no corpo, abaixou-se e reconheceu-o.

D. Bias esgueirou-se como uma sombra pela parede, saltou à rua, disparou, tropeçou na espada, caiu, levantou-se, e foi cair extenuado à porta do Trancoso, de onde o Satanás vinha saindo.

Paulo de Andrade, preocupado em desamarrar a velha, nem dera por ele. Subiu a escada a quatro e quatro, de espada em punho, viu deserta a sala da frente, entrou como um cego no quarto de Branca.

Todo o quarto estava em revolução, cadeiras caídas, roto o cortinado do leito, onde Branca jazia estendida, sem dar acordo de si. O príncipe, vendo entrar o capitão, teve apenas tempo de apanhar a espada e pôr-se em guarda. Paulo arremeteu contra ele:

- Miserável!

Mas estacou de repente, e veio recuando até a parede, com um grande espanto na fisionomia alterada... Reconhecera o príncipe.

Lia-se então na face do moço capitão a luta que dentro dele se travava. Por duas vezes, pareceu atirar-se contra o seu rival. Mas d. Pedro esperava-o, sereno, com o olhar fito no dele. E Paulo, deixando cair a espada, cravou no peito o punhal, indo bater com a fronte na borda do leito, onde Branca continuava sem sentidos.

Quando d. Bias, à porta do Trancoso, conseguiu recuperar o uso da fala, começou a contar o caso ao Satanás, preparando-se para mentir à vontade.

- Ai! imagina, ó Satanás! eu amava, ele amava, elas nos amavam. Tudo pronto já, quando de repente vemos a casa invadida por duzentos homens armados... Duzentos? espera... não! não eram duzentos, mas eram cem. Caem sobre nós. Bati-me, como sabes que me bato sempre! mas...

Mas, onde isso? onde isso?

- Na casa, homem...

- Em que casa?

- Na casa da rua do Conde; ora ouve... Mas o Satanás não quis ouvir mais nada.

Aquele nome de rua do Conde encheu-o de um pressentimento terrível. D. Bias nada dissera mas o escultor ouvia uma voz secreta a gritar-lhe que era a filha quem corria perigo.

Não ouviu mais e correu, deixando em meio da narração o bravo fidalgo de Espanha, que entrou para a taverna, a afogar no seio de um pichel a sua sede de sangue.

O Satanás encontrou a porta aberta. Ah! era verdade! era verdade! Um rugido surdo lhe saiu da garganta, voou pela escada acima, louco de raiva e de terror. E parou à porta, sem movimento e sem voz, diante daquele quadro terrível.

Branca desmaiada ainda. Paulo, estendido no chão, sobre uma poça de sangue, e a velha rezando, ajoelhada diante do oratório.

O Satanás sentiu que a razão lhe ia fugir. Mas compreendeu. Sim! a sua filha fora desonrada por aquele miserável que ali estava estendido. Desonrada! desonrada a sua vida, manchado o seu único amor, calcada aos pés toda a sua felicidade!

Uma nuvem de sangue lhe cresceu diante dos olhos. Ah! era a velha a culpada. E, louco, trôpego, alucinado, embebeu a sua espada até aos copos entre as duas espáduas da espanhola.

O sangue jorrou de repente e borrifou de gotas vermelhas o manto de Nossa Senhora.

Nesse momento, uma gargalhada longa, sinistra, angustiosa, repercutiu no quarto. Branca assistira ao assassinato.

E de pé, cercada pelo véu de ouro dos cabelos, torcia as mãos, e ria, e ria, e ria. Enlouquecera.
–––––
continua…

Joyce Cavalcante (Lançamento de "A Literatura das Mulheres da Floresta")

Alexandra Magalhães Zeiner
Ana Cristina Costa Siqueira
Ana Heloisa Rodrigues Maux
Angela Ramalho
Beatriz Alcântara
Betty Silberstein
Camila Mossi de Quadros
Cássia Vicente
Célia Lamounier de Araújo
Christina Hernandes
Claudia Carvalho
Clevane Pessoa de Araújo Lopes
Cristina Ramos
Cybele Valente Pontes
Dalva Agne Lynch
Denise Parma
Diva Pavesi
Dora Dimolitsas
Dulce Auriemo
Dyandreia Valverde Portugal
Eliana Wissmann Alyanak
Eliane Accioly
Eliane Rocha
Fatima Diógenes
Flávia Assaife
Gilma Limongi Batista
Gisela Morais
Graça Neves
Graça Roriz Fonteles
Grecianny Carvalho Cordeiro
Hebe C. Boa-Viagem A. Costa
Helena Arruda
Isa Magalhães
J. T. Lourens
Jacilene Brataas
Jacqueline Aisenman
Janete Santos
Jô Mendonça Alcoforad
Josane Mary Barcelos Amorim
Joyce Cavalccante
Kacianni de Sousa Ferreira
Karin Massaro
Kátia Bobbio
Kaz Martinelli
Leda Edna de Souza Aragão
Lêda Maria Feitosa Souto
Lina Vianna
Lúcia Amélia Brüllhardt
Lucy Nakamura
M. J. Nóbrega
Mara de Freitas Herrmann
Mara Gabrilli
Márcia Meira Basto
Maria (Nilza) de Campos Lepre
Maria Lúcia Pinheiro Sampaio
Maria Neuma Pereira
Mariana Brasil
Marilu F. Queiroz
Marluce Alves Ferreira Portugaels
Miranda May
Mirian Menezes de Oliveira
Mônicka Christi
Neide Galli
Neide Maia
Neta Mello
Norália de Mello Castro
Odyla Paiva
Onã Silva
Renata Normanha
Rita de Cássia
Rosa Peres
Rosemari Boccardo
Rosilane do Carmo Rocha
Rosy Feros
Rozelene Furtado de Lima
Sandra Mara Bettonte
Sandra Mello
Simone Athayde
Telma Brilhante
Terezinha Guimarães
Thereza Kolbe
Val Beauchamp
Valdice Neves Pólvora
Vania de Castro Moreira
Vânia Ribeiro de Andrade
Vera Lucia Fávero Margutti
Vera Márcia Milanesi
Verônica Maria Cavalcanti-Esaki
Waldete Di Alves
Walnélia Corrêa Pederneiras
Wilma Lima
Yara Regina Franco


Fonte:
REBRA

domingo, 3 de março de 2013

Jacinta Passos (Caldeirão Poético da Bahia)

CANÇÃO DA ALEGRIA

 Urupemba
 urupemba
 mandioca aipim!
 peneirar
 peneirou
 que restou no fim?

 Peneira massa peneira,
 peneira peneiradinha,
 (Ai! vida tão peneirada)
 peneira nossa farinha.

 Olhe o rombo
 olhe o rombo
 olhe o rombo arrombou!
 olhe o cisco
 olhe o cisco
 urupemba furou!

 Eh! Sai espantalho
 da ponta do galho!

 Escorra! Escorra!
 Tirai essa bôrra!

 Urupemba
 urupemba
 mandioca aipim”
 peneirar
 peneirou
 que restou no fim?

 Farinha fininha
 peneiradinha!

 Ai! vida, que vida
 nuinha! Nuinha!

 ESTRELA DO ORIENTE

           (para Bem Ami)

I
Levantai-vos, párias de todo o mundo!
 Não vedes? Ela vem vindo, a Estrela do Oriente,
 alta, bela, imponente, os pés plantados no chão,
 traz o fogo no olhar e uma foice na mão.

 II
 Canta, Jacinta, teu hino,
 louva a Estrela do Oriente,
 Mariana, Guiomar,
 venham, venham me ajudar.

 Não sei a cor de seus cabelos,
 não posso saber,
 não as linhas do seu corpo,
 não posso saber.

 Não posso vê-la à distância
 como vejo o meu vizinho,
 serei o seu sexo ou seu dedo mindinho?

 Mariana! Guiomar!
 Só na voz da própria Estrela,
 podemos cantar.

METAMORFOSE

    (a Dias, João, Divaldo, Miranda, Luiz Rogério, Almir Matos, Osvaldo Pereira)

Fui moleque,
 jornaleiro,
 nunca tive opinião,
 ajudante de pedreiro,
 fui chofer de caminhão,
 trabalhei na Plataforma,
 operário de sabão,
 já morei
 oi!
 já morei no Taboão.

 Carneirinho! Carneirão!
 Olha pro céu! Olha pro chão!

 Céu é Barra, é Avenida,
 outra vida!
 nunca a gente foi lá não.

Nem eu sei como foi isso,
 foi feitiço,
 arte do Cão,
 mas um dia fiquei rico
 que nem o rei Salomão.

 Chave do mundo,
 tenho na mão.
 Desceu o céu!
 Subiu o chão!

 Minha gente venha ver
 coisa que nunca se viu,
 um mulato virou branco,
 subiu! Subiu!
 A formiga criou asas,
 o pato passou a ganso,
 lagarta virou besouro,
 de repente virei tudo,
 virei até um rei mouro,
 virei sábio, virei gentleman,
 meu cabelo virou louro,
 virei genro, industrial,
 tabu, ministro, escritor,
 quase viro ditador. 

 Agora cheguei em cima,
 agora vi que eu sou dois.

 Quem sois?

 Minhas senhoras:
 Meus senhores:

 O meu drama começou.

 Serei moleque e rei mouro,
 serei dentro e serei fora,
 serei ontem e serei hoje,
 serei noite e luz da aurora?
 Quem sois?
 Serei eu e serei tu,
 serei Sancho e D. Quixote,
 serei Deus e Belzebu?
 Não posso viver assim!
 Serei Pierrot e Arlequim,
 serei anjo e homem carnal,
 serei o ser e o não-ser,
 serei o bem e o mal?
 Serei foice e serei sigma?
 Enigma!
 Que serei eu afinal?
 Ai de mim!
 Serei o princípio e o fim?

DIÁLOGO NA SOMBRA

— Que dissestes,  meu bem?

Esse gosto,
 Donde será que ele vem?

 Corpo mortal.
 Águas marinhas.

 Virá da morte ou do sal?
 Esses dois que moram no fundo e no fim.

 — De quem falas amor, do mar ou de mim?
                             
 CANÇÃO DA LIBERDADE

Eu só tenho a vida minha.
 Eu sou pobre, pobrezinha,
 tão pobre como nasci,
 não tenho nada no mundo,
 tudo o que tive, perdi.
 Que vontade de cantar:
 a vida vale por si.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

 Eu sou planta sem raiz
 que o vento arrancou do chão,
 já não quero o que já quis,
 livre, livre o coração,
 vou partir para outras terras,
 nada mais eu quero ter,
 só o gosto de viver.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

 Sem amor e sem saúde,
 sem casa, nenhum limite,
 sem tradição, sem dinheiro,
 sou livre como a andorinha,
 sua pátria é o mundo inteiro,
 pelos céus cantando voa,
 cantando que a vida é boa.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

CANÇÃO DO AMOR LIVRE

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.

CANTIGA DAS MÃES
(Para minha mãe)

"Fruto quando amadurece
cai. das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou,
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
Foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
multiplicaram por cinco
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!
foi a vida que roubou.

 Foram viver seus destinos,
 sempre, sempre foi assim.
 Filhos juntinho de mim,
 berço, riso, coisas puras,
 briga, estudos, travessuras,
 tudo isso já passou.

Não foi a morte, não foi,
 oi!
 foi a vida que roubou.

O INIMIGO

A Coluna descansou
da marcha, na noite fria.

Ficaram olhos acesos
e a fogueira, de vigia.

 Su su su

 menino mandu
dorme na lagoa
sapo-cururu

Soldados dormem quietos
Debaixo deste telheiro

em cima pia a coruja
com seu piado agoureiro.

Su su su
menino mandu

Soldados dormem quietos
no bivaque de improviso

até as armas descansam
que este descanso é preciso.

Dorme na lagoa
sapo-cururu

Soldados dormem quietos
na barraca e na varanda,

eis de repente o inimigo
- Depressa, levanta e anda!

Depressa, são feras,
depressa ou quiseras
nas mãos do inimigo
cair, que o perigo
de perto ameaça
de morte ou mordaça
cadeia ou degredo.

 Galopa sem medo!

Legalista do Inferno! .
donde o Governo -
tais feras tirou?

Ah! raiva que eu sou.

Depressa e a trote
esporas, chicote,
as crinas revoltas,
de rédeas bem soltas
e bridas também
(Que medo não tem!)
depressa e a trote
mão no cabeçote
o pé na estribeira
encilha e carreira!
esquipa montado
depressa, soldado
que medo não tem.

Legalista do inferno
não vale um vintém!

A Coluna descansou
da marcha na noite fria.

Picaram olhos acesos.
E de repente partia.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/jacinta_passos.html

Jacinta Passos (1914-1973)

Escritora nascida em Cruz das Almas, Bahia, em 1914, Jacinta Passos foi autora de quatro livros de poemas — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958) —, elogiados por críticos do porte de Antonio Candido, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Roger Bastide, entre outros. Seu livro mais importante, Canção da partida, foi ilustrado pelo artista Lasar Segall.

Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto.

Foi casada com o escritor e jornalista James Amado, com quem teve uma filha, Janaína. A partir de 1951, sofreu crises nervosas periódicas, com delírios persecutórios, tendo recebido o diagnóstico de esquizofrenia paranóide, doença considerada progressiva e incurável. Apesar de internada em diversos sanatórios, jamais deixou de escrever, tanto poesia quanto prosa. Sua obra poética, fundada nas tradições populares da Bahia, contém fortes componentes líricos e apelo ao público contemporâneo, mas permanece pouco conhecida, pois seus livros, publicados por editoras de pequeno porte, tiveram tiragens muito reduzidas, sendo que apenas um deles, Canção da partida, foi reeditado, isso em 1990. 

Fonte:
http://www.jacintapassos.com.br/