quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 45

CAPÍTULO XXIV

Teobaldo, durante o pouco tempo em que esteve no ministério, granjeou as simpatias de toda a nação. Parecia ser querido e apreciado desde pelo seu monarca, até pelos últimos serventes de secretaria; os empregados das repartições sujeitas ao seu mando
adoravam-no.

A todos conquistara ele com aquela proverbial afabilidade e com aquela sua irresistível sedução de maneiras; os velhos chamavam-lhe colega na prudência e na reflexão; os moços no entusiasmo e no modernismo das ideias; a uns e outros cegara o seu inestimável talento de adoção, que era toda a sua força e a sua principal arma de conquista. Sem fazer nada, parecia fazer tudo, porque nas câmaras a sua palavra era sempre a mais destacável entre os colegas.

Além de que, afetava uma grande atividade espetaculosa; não havia inauguração de estrada de ferro, ou de qualquer fábrica industrial ou coisa deste gênero, que ele não acompanhasse de corpo presente, fingindo ligar a isso grande atenção e derramando-se em longos discursos talhados ao sabor do auditório que encontrava.

E ainda uma circunstância, independente de sua vontade, veio completar o prestígio dele e solidificar a simpatia que o público lhe dedicava, acrescentando-lhe à fama, já não pequena, uma glória que lhe faltava ainda e que, pela raridade, seria talvez a melhor e mais desejada — A glória de ser um ministro notoriamente honrado. Até aí era aclamado como bom patriota, ministro de talento progressista e ativo; de então em diante ficou tendo, além de tudo isso, o prestígio de homem de bem.

Foi o caso que um inglês, representante de certa companhia, desejava obter do governo concessão para uma empresa, da qual Teobaldo fruiria lucros de sócio, ou quando não, uma recompensa de trezentos contos de réis.  Depois de várias negadas de parte a parte, o ministro convidou o inglês e mais outros interessados no negócio para um pequeno jantar em sua casa.

Antes da sobremesa quase ou nada se conversou a respeito do único assunto que os reuniu ali; apenas alguma frase destacada fazia desconfiar que entre eles havia qualquer intenção escondida; mas, quando Branca, que presidia ao jantar, erguera-se da sua cadeira, pedindo licença para deixá-los em liberdade, o inglês entrou abertamente na questão e declarou que estava disposto a não se separar de Teobaldo sem levar consigo uma resposta definitiva.

— O Sr. ministro, concluiu ele na sua meia língua, se proteger o negócio só pode com isso fazer bem, tanto a si como aos outros.

Teobaldo lembrou que ia expor o seu nome; talvez desmoralizar-se para sempre.

— Sim, talvez, volveu o inglês, mas com certeza V. Exa. fica com a vida segura e garantida. Além de que, semelhante particularidade jamais cairá no domínio público! Oh! A política do Brasil está cheia de exemplos muito mais escandalosos, e não me consta que nenhum dos seus autores ficasse desmoralizado; ao contrário criam novo e maior prestígio quando enriquecem!

Afinal, Teobaldo prometeu dar no dia seguinte uma decisão. O inglês que o procurasse na secretaria à hora da audiência.

E, ao despedir-se, acrescentou no ouvido do pretendente:

— Vá descansado, que tudo se há de arranjar pelo modo mais conveniente a todos nós.

Logo, porém que as visitas saíram, Branca apareceu na porta do seu quarto.

— Ouvi, disse ela, toda a conversa que tiveram depois que eu me levantei da mesa.

— Ah! Ouviu?

— Ou, melhor, escutei; escutei por detrás daquela cortina.

— E então?

— Então, é que amanhã o senhor dirá a esse especulador que não se acha disposto a mercadejar com a sua posição. Dir-lhe-á que não é ministro para proteger velhacadas, mediante uma gratificação de dinheiro, e que, se ele insistir nos seus planos, o senhor o denunciará perante a nação...

Teobaldo posto estivesse já habituado ao gênio seco e orgulhoso da mulher, estranhou-a mais ainda desta vez e tentou justificar-se aos olhos dela.

— Convença-se, disse-lhe ele, de que a senhora ouviu mal ou não compreendeu o que ouviu.

— Mal ou bem ouvido, juro que, se o senhor não fizer o que acabo de ordenar, terá em mim o mais terrível de seus inimigos.

— Mas não posso compreender esta solicitude por mim, à última hora...

— Engana-se: não é de sua pessoa que se trata, mas de seu nome, que desgraçadamente também é o meu. Não quero ser a esposa de um traficante!

— Faz muito bem.

— Isto quanto ao lado moral, porque pelo lado prático acho que o senhor faz um mau negócio. Que poderá aproveitar uma soma tão desonestamente adquirida? Do que lhe servirão esses miseráveis contos de réis senão para fazer a mortalha com que o senhor cairá na vala comum dos patoleiros? O senhor, que já é ministro nulo, quer ser agora um político desmoralizado? Ou quem sabe se o senhor teve a pretensão de acreditar um instante que com o seu suposto talento havia de escapar ao anátema dos homens de bem?... Se o senhor não arranjar prestígio pelo lado do caráter, por quê lado então conta arranjá-lo? Acaso fez o senhor alguma coisa tão grande, tão útil, tão genial, que com ela possa esconder as falhas da sua honra? Esquece-se porventura, de que neste fato casual da sua entrada para o ministério foi o senhor o único afortunado? Esquece-se de que o chamaram, não porque o senhor fora singularmente necessário, mas sim porque era o mais à mão entre todos aqueles de quem podiam dispor?

— Pois bem! E daí? Perguntou Teobaldo, ardendo de impaciência.

— Daí, continuou Branca, sem se alterar, é que o senhor faria mau negócio cedendo a troco de dinheiro esta boa ocasião, boa e única, que a fortuna lhe proporciona para se distinguir de qualquer modo entre seus colegas.

— Distinguir-me?

— Sim, na qualidade de homem verdadeiramente honrado. Acho que o senhor, mesmo por interesse prático, não deve inutilizar os meios de que dispõe agora como ministro para por em relevo as suas qualidades morais; qualidades que ficariam eternamente ignoradas, se o senhor não estivesse no poder.

Teobaldo pôs-se a meditar.

A esposa disse ainda:

— E é semelhante homem, que se julga ambicioso; um homem capaz de vender-se a um especulador vulgar! Um homem que não percebe que seu nome amanhã seria muito maior e respeitado, quando dissessem que um ministro preferiu continuar pobre a ter de transigir com os princípios da sua honra!

Teobaldo ergueu a cabeça, olhou por algum tempo a esposa e, estendendo-lhe a mão, disse:

— Obrigado.

— Não tem que me agradecer, respondeu ela; já lhe expliquei que não é pelo senhor que levanto esta luta, é por mim mesma; não quero, ser esposa de um traficante! E, agora, é despachar o cavalheiro de indústria, e ter de hoje em diante um pouco mais de escrúpulos nos seus atos e em suas palavras!

Teobaldo não se contentou com repelir energicamente a proposta do inglês, mas explorou o fato quanto pode, metendo-o logo em circulação pela imprensa e transformando-o no melhor ornamento das suas glórias políticas.

Daí há poucos meses, não tinha já a seu cargo a pasta da Agricultura, mas seu nome era apontado na lista tríplice para a primeira eleição de senador.

CAPÍTULO XXV

Que mais podia desejar?

Aos quarenta e tantos anos havia já percorrido a enorme gama das classes sociais e experimentado, uma por urna, toda a impressão capaz de fazer vibrar o coração humano. Desde os seus primeiros tempos de colégio até aquela elevada posição a que chegara, sua vida fora uma série de conquistas fáceis, uma interminável cadeia de bons acasos.

Mas agora justamente que mais nada lhe faltava a conquistar; agora que ele, dispondo ainda de uns restos de mocidade para ser amado como homem, era já celebrizado como medalhão; agora que ele possuía tudo; agora que todas as classes do seu país haviam já lhe tributado a melhor parte do seu entusiasmo; agora é que ele se sentia menos satisfeito, porque, à medida que se alargavam os horizontes da sua ambição tanto mais a consciência da sua mediocridade o estreitava em um terrível círculo de inconsoláveis desgostos.

Pouco a pouco foi-se tornando invejoso. Afinal já não podia ouvir falar dos homens verdadeiramente grandes, sem ficar com o coração apertado por um punho de ferro que o estrangulava. As grandes e legitimas reputações, os nomes universais, fossem de artistas, de poetas, de descobridores, de filósofos ou de guerreiros, o irritavam acerbamente e enchiam-no de um ódio surdo, inconfessável e assassino.

Principalmente ao voltar dos seus relativos triunfos, quando no círculo mesquinho das suas glórias ouvia o próprio nome aclamado e coberto de ovações, é que mais desabrida lhe roncavam por dentro a dor da inveja e a consciência da sua incapacidade.

— Oh antes nunca chegasse a ser nada, nem tivesse pensado em ser alguma coisa!

Ser tão pouco, quando tanto se ambiciona; ambicionar tanto e ter certeza de nunca ir além da própria pequenez, é muito mais doloroso, é muito mais cruel do que ficar eternamente sucumbido ao peso da primeira desilusão! Era isto que agora o fazia mau de todo; era isto o que agora o tornava infeliz, desconsolado e triste.

Nunca houvera penetrado dentro de si mesmo e, quando, graças à franqueza da esposa, o fizera pela primeira vez, achou-se tão vazio e tão ridículo aos próprios olhos, achou-se tão de gesso, que sentiu ímpetos de reduzir-se a pó. E, com o correr de mais algum tempo e com a percepção da sua inferioridade, veio-lhe o tédio, o desprezo próprio, a grande moléstia dos que sobem na convicção e sem causa; veio-lhe o desfalecimento dos que vencem sem ter lutado, dos que olham para trás e não encontram no passado sequer uma boa recordação, à sombra da qual repousem o espírito fatigado e o coração desiludido; veio-lhe o fastio e o cansaço dos que nunca amaram, dos que nunca sofreram nem se sacrificaram por ninguém; veio-lhe enfim o desespero dos egoístas, o desespero dos que se vêem isolados no meio do público que os aclama vitoriosos, mas que, está pronto a virar-lhes as costas logo que o menor interesse particular chama a sua atenção para outro lado.

E, da mesma forma que o Coruja sentia-se cansado de ser tão bom, tão dos outros e precisava cometer uma ação má para repousar; assim Teobaldo, reconhecendo o seu egoísmo e a sua indiferença pelos que o amaram, desejou pela primeira vez em sua vida praticar o bem.

Mas, se àquele era impossível cometer uma ação má, a este não seria mais fácil praticar um rasgo de abnegação e de heroísmo.

Os extremos encontraram-se de novo; as duas criaturas, que o isolamento unira no colégio, fugiam agora dos homens, homens tão caprichosos, tão ruins e tão pequenos como os seus condiscípulos de outrora. E, ainda como o Coruja, Teobaldo pensou na morte, não como ele por não conseguir abominar seus semelhantes, mas por não conseguir amá-los. E fez-se cada vez mais sombrio, mais concentrado e mais doente.

Agora passava horas e horas esquecidas no seu gabinete, sozinho, fechado por dentro, a cismar; ou enterrado sombriamente no fundo de uma poltrona, ou passeando de um lado para outro, com as mãos nas algibeiras e os olhos postos no chão. E a sua figura, ainda elegante e altiva, mas prematuramente envelhecida e gasta, havia de impressionar a quem o surpreendera pelas horas silenciosas da madrugada nessas profundas meditações.

— Afinal que fiz eu?... Interrogava ele a si mesmo em um desses momentos; sim, qual foi a minha obra?... Qualquer homem, por mais pequeno, por mais obscuro, tem sempre um ideal na sua vida: uns dedicam-se à família, e cada filho é um poema, bom ou mau que eles deixam à pátria; outros trabalham para enriquecer, e depois da morte, ainda são lembrados pelos seus herdeiros; outros nos legam um livro de suas memórias, ou uma casa comercial, ou uma empresa que criaram, ou uma idéia a que se sacrificaram por toda a vida! Todos deixam alguma coisa atrás de si: um nome ou uma recordação, só eu não deixarei nada, por que todo o meu ideal durante a minha vida inteira fui eu próprio! Nunca fiz nada aos outros; nunca amei pessoa alguma que não fosse eu mesmo. E, de tudo que apresentei durante a vida como produto do meu esforço, e de tudo que me engendrou este nome transitório que possuo, nada foi obra minha Eu nada fiz!

Depois pensou nos entes que mais o estremeceram e, defronte da memória de cada um, seu coração sentiu-se envergonhado e arrependido. E, dai em diante, quem o visse, apesar de tão profundamente abatido pelos seus padecimentos morais, ainda assim não podia calcular os desgostos que iam por aquela pobre alma.

A sua larga fronte, já despojada de cabelos até ao meio do crânio, raiara-se de longas rugas paralelas, como um horizonte no crepúsculo que se enfaixa de nuvens sombrias; seus grandes olhos, dantes tão insinuativos e lisonjeiros, amorteciam agora em uma profunda expressão de mágoa sem esperanças de consolo; seus lábios pareciam cansados de tanto sorrir vara todo o mundo e como já não tinham forças para fingir, quedavam-se em uma imobilidade cheio de tédio e desdém; e todo o seu aspecto, ao contrário do que fora, servia agora muito mais para fazer pena do que para seduzir.

E daí principiaram todos a notar a sua ausência nos lugares em que ele era dantes mais freqüente; afinal já nunca o encontravam em parte alguma onde houvesse um pouco de alegria ou um pouco de prazer; agora o riso lhe fazia mal, ao passo que ao cair da tarde viam no sempre nos arrabaldes mais solitários, passeando a pé, vagarosamente; as mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, o ar todo preocupado como de um mísero pai de família que vai sentindo faltar-lhe a vida e treme defronte da morte, não por si, mas pelos entes que lhe são caros e que aí ficam no mundo abandonados.

Todavia era justamente o inverso o que se dava com Teobaldo; sucumbia à falta da família; sucumbia à falta de afeições sinceras e à falta de carinhos legítimos. E quanto mais, com o correr do tempo, a falta de tudo isto lhe apertava o coração e lhe ensombrava os dias, tanto mais insuportáveis se lhe faziam as tredas amizades da rua, as falsas relações políticas, os frívolos protestos dos seus admiradores e o palavreado venal daqueles que mendigavam a sua proteção.
–––––––––––––
continua…

´Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) A e B

ABISCOITAR — Receber dinheiro, herdar, apropriar-se de…

ACAUÃ — Ave inimiga das cobras, tida como agourenta.

ACEIRO — Terreno debastado ao redor dos postes de cerca a fim de evitar que o fogo os queime.

ACERAR — Vedar o pasto com a capina em torno.

ACERO — Capina ao redor do pasto, ou da roça, para vedar a passagem do fogo.

ADJITÓRIO (corruptela) — Adjutório, auxílio.

AFOGADO — Refogado (expressão culinária).

AGACHAR-SE — Rebaixar–se, humilhar-se. Viver agachado: hábito de servilismo.

AGRAVAR — Ofender, desagradar. "Não gosto de agravar ninguém".

ÁGUAS — Tempo das águas: tempo das chuvas.

ANEIXAR, ANEIXO (popular) — Anexar, anexo.

ANIMAL — Equino ou muar.

APÁ — Pá. Dizem: "o apá".

ARAPUÁ — Abelha mansa, de cor preta, que faz colmeia no oco das árvores.

AROEIRA — Madeira de construção, muito usada no Brasil antigo, pesada e incorruptível. As casas antigas não usavam cantos de tijolos ou adobes e sim esteios de aroeira.
Diz-se que a casa começa pelos alicerces, mas antigamente e ainda hoje no sertão, faz-se a armação da casa toda de aroeira, cobre-se-a, depois é que se fazem as paredes. Em Mineiros, cidade do sudoeste goiano, a primeira casa construída sem esteios e de cantos de tijolos, fêz muita gente ficar com receio de entrar.

ARREADO — Incivil, grosseiro, ignorante. "Indivíduo arreado".

ARREPARAR (corrupt.) — Reparar.

ARRIBABA — Desgarrada do rebanho; desguaritada.

ARTIFÍCIO — O conjunto do aparelho de tirar fogo: binga, pedra e fuzil.

ASSUCEDER — Acontecer, acontecido.

ASSUNGAR — O mesmo que sungar, levantar. "Sungar os braços…"

ASSUNTAR — Pôr sentido em uma conversa; refletir.

AULA — Escola.

AVEXAR — Apertar. Estou avexado pra ir embora.

AZAGAIA — Arma de caçar onça, como uma forca. O caçador entra na grota com um facho aceso de canela-de-ema que, além de clarear, protege-o, pois onça não gosta de fogo: perturba-a e mete-lhe a azagaia no pescoço, espetando-a.

AZANGAR — Estragar-se; deteriorar-se.

B

BACURI — Palmeira de fruto oval de mais de dez centímetros; produz fibras que servem para a calafetação; o caule produz boa madeira e com as folhas cobrem-se os ranchos.

BADULACOS — Utensílios pobres de casa.

BAFUME — Abafamento, aflição, opressão do peito.

BAGERÊ — Parte superior e estéril do cascalho aurífero ou diamantífero.

BAGUÁ — Baguá é pessoa arredia, de pouco trato; potro ou outro animal recém-domado, meio arisco ainda.

BAIXEIRO — Saco de aniagem que vai no lombo do animal, ao arreá-lo.

BALANGAR — Balançar.

BAMBURRAR — Quando o garimpeiro encontra o que procura: uma gema compensadora.

BANDA — Lado; de banda; de lado.

BANDEIRA — Monte de milho na roça.

BANGÜÊ — Defunto enrolado em um cobertor e amarrado num pau roliço, conduzido em ombros dos companheiros.

BARBEIRAR, BARBEIRO — Inexperiente; agir sem o necessário conhecimento.

BARRADÃO, BARRADO — Bulcão; grossas nuvens de chuva, no horizonte.

BERÊM — Mingau sólido de maizena com leite e açúcar.

BESTUNTO — Burrice; cabeça oca; falta de reflexão.

BEBA — Pequena lagartixa de cor acastanhada, pele lisa e brilhante, mui vivaz, que se aninha em fendas de esteios.

BILRO — Peça para fiar renda; consta de um coco macaúba ou tucum espetado num palito, que vem a ser a agulha. As mulheres rendeiras manejam vários bilros, ao mesmo tempo.

BINGA — Isqueiro, "cornim-boque", parte do "artifício" em que se coloca a isca.

BISCOITO DE GOMA — É o biscoito de polvilho paulista ou a pipoca mineira.

BITELO — Grande; enorme.

BOCAINA — Passagem estreita e funda entre duas serras.

BOIOTA (ó) — Tolo, imbecil.

BOQUEIRÃO — Passagem entre barrancos altos, ou em corte na mata.

BOTINA TESTA-DE-TOURO — Botina ringideira, mateira; de elástico e sempre amarela.

BRAÇA — Medida de 2,20 m..

BRIQUITAR — Labutar; teimar em um labor. "Estou briquitando para ver se acerto".

BROCHA — Tira de couro cru que une as pontas dos caízis, por baixo da barbela do boi.

BUCHA PAULISTA — Pelota de bucha que serve para separar a pólvora do chumbo no carregamento das armas de fogo

BUGRADA — Ação própria de bugre; selvageria.

BUGRE — índio, tapuia, selvagem.

BURITI — O buriti é uma palmeira linda, abundantíssima nos altiplanos do Brasil Central.

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. . Ed. Literat. 1962

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Pablo Neruda)

nascimento do poeta em 12.7.1904

Li seus Poemas e a Canção Desesperada,
há quantos anos, quando enfrentei a paixão
que invadiu minh´alma e não fiz quase nada,
porque não contrariei a voz do coração...

E fui andando... andando e a vida abandonada,
às vezes me deixou na dor da solidão,
pensando na mulher que fora minha amada
e que só me causou uma desilusão...

Quem pôde cantar, ainda sendo moço,
em plena juventude os cânticos de amor
que senti produzir o maior alvoroço

no peito varonil onde o sonho não muda?!
O Poeta Genial, de saudades e dor
produzindo poesia... O irmão Pablo Neruda !

Fonte:
O Autor

Pedro Bial (Morrer é ridículo)

A morte, por si só, é uma piada pronta.

Você combinou de jantar com a namorada, está em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no meio da tarde morre.

Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente?

Não sei de onde tiraram esta ideia: MORRER!!!

A troco?

Você passou mais de 10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que não serviriam pra nada, mas se manteve lá, fez as provas, foi em frente. Praticou muita educação física, quase perdeu o fôlego, mas não desistiu. Passou madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida, cheio de dúvidas quanto à profissão escolhida, mas era hora de decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente...

De uma hora pra outra, tudo isso termina numa colisão na freeway, numa artéria entupida, num disparo feito por um delinquente que gostou do seu tênis.

Qual é?

Morrer é um chiste.

Obriga você a sair no melhor da festa sem se despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida.

Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha úmida no varal, e penduradas também algumas contas.

Os outros vão ser obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as pistas que você deixou durante uma vida inteira.

Logo você, que sempre dizia: das minhas coisas cuido eu.

Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer.

Não faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres magras e morre num sábado de manhã!

Isso é para ser levado a sério? Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não acompanha a mente, e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada guardado nas gavetas.

Ok, hora de descansar em paz.

Mas antes de viver tudo? Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas. Morrer é um exagero.

E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas. Só que esta não tem graça.

Por isso viva tudo que há para viver.

Não se apegue as coisas pequenas e inúteis da Vida... Perdoe... Sempre!!!

Adiar... Adiar... Adiar... será sempre o melhor dos caminhos?

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : O Nariz Perante os Poetas)

Cantem outros os olhos, os cabelos
E mil cousas gentis
Das belas suas: eu de minha amada
Cantar quero o nariz.

Não sei que fado mísero e mesquinho
É este do nariz,
Que poeta nenhum em prosa ou verso
Cantá-lo jamais quis.

Os dentes são pérolas,
Os lábios rubis,
As tranças lustrosas
São laços sutis
Que prendem, que enleiam
Amante feliz;
É colo de garça
A nívea cerviz;
Porém ninguém diz
O que é o nariz.

(As faces são tintas
De rosa e de liz,
Ou já têm de jambo
Mimoso matiz;
São cor de safira
Os olhos gentis
E a cor do nariz
Ninguém vo-la diz.)ii

Beija-se os cabelos,
E os olhos belos,
E a boca mimosa,
E a face de rosa
De fresco matiz;
E nem um só beijo
Fica de sobejo
P’ro pobre nariz;
Ai! pobre nariz,
És bem infeliz!

Entretanto, — notai a sem-razão
Do mundo, injusto e vão: —
Entretanto o nariz é do semblante
O ponto culminante;
No meio das demais feições do rosto
Erguido é o seu posto,
Bem como um trono, e acima dessa gente
Eleva-se eminente.

Trabalham sempre os olhos; mais ainda
A boca, o queixo, os dentes;
E — míseros plebeus — vão exercendo
Ofícios diferentes.

Mas o nariz, fidalgo de bom gosto,
Desliza brandamente
Vida voluptuosa entre as delícias
De um doce far-niente.

Sultão feliz, em seu divã sentado
A respirar perfumes,
De bem-aventurado ócio gozando,
Não tem inveja aos numes.

Para ele produz o rico Oriente
O cedro, a mirra, o incenso;
Para ele meiga Flora de seus cofres
Verte o tesouro imenso.

Amante fiel sua, a mansa aragem
As asas meneando
Anda p’ra ele nos vergéis vizinhos
Aromas apanhando.

E tu, pobre nariz, sofres o injusto
Silêncio dos poetas?
Sofres calado? não tocaste ainda
Da paciência as metas?

Nariz, nariz, já é tempo
De ecoar o teu queixume;
Pois, se não há poesia
Que não tenha o seu perfume,
Em que o poeta às mãos cheias
Os aromas não arrume,
Por que razão os poetas,
Por que do nariz não falam,
Do nariz, p’ra quem somente
Esses perfumes se exalam?

Onde, pois, ingratos vates,
Acharíeis as fragrâncias,
Os balsâmicos odores,
De que encheis vossas estâncias,
Os eflúvios, os aromas
Que nos versos espargis;
Onde acharíeis perfume,
Se não houvesse nariz?
Ó vós, que ao nariz negais
Os foros de fidalguia,
Sabei, que se por um erro
Não há nariz na poesia,
É por seu fado infeliz,
Mas não é porque não haja
Poesia no nariz.

Atenção pois aos sons de minha lira,
Vós todos, que me ouvis,
De minha bem-amada em versos d’ouro
Cantar quero o nariz.

O nariz de meu bem é como... oh! céus!...
É como o quê? por mais que lide e sue,
Nem uma só asneira!...
Que esta musa está hoje uma toupeira.

Nem uma idéia
Me sai do casco!...
Ó miserando,
Triste fiasco!!

Se bem me lembra, a Bíblia em qualquer parte
Certo nariz ao Líbano compara;iii
Se tal era o nariz,
De que tamanho não seria a cara?!...

E ai de mim! desgraçado,
Se o meu doce bem-amado
Vê seu nariz comparado
A uma erguida montanha:
Com razão e sem tardança,
Com rigores e esquivança,
Tomará cruel vingança
Por essa injúria tamanha.

Pois bem!... Vou arrojar-me pelo vago
Dessas comparações que a trouxe-mouxe
Do romantismo o gênio cá nos trouxe,
Que p’ra todas as cousas vão servindo;
E à fantasia as rédeas sacudindo,
Irei, bem como um cego,
Nas ondas me atirar do vasto pego,
Que as românticas musas desenvoltas
Costumam navegar a velas soltas.

E assim como o coração,
Sem ter corda, nem cravelha,
Na linguagem dos poetas
A uma harpa se assemelha;

Como as mãos de alva donzela
Parecem cestos de rosas,
E as roupas as mais espessas
São em verso vaporosas;

E o corpo de esbelta virgem
Tem feitio de coqueiro,
E só com um beijo se quebra
De tão franzino e ligeiro;

E como os olhos são flechas,
Que os corações vão varando;
E outras vezes são flautas
Que de noite vão cantando;

P’ra rematar tanta peta
O nariz será trombeta...

Trombeta o meu nariz?!! (ouço-a bradando)
Pois meu nariz é trombeta?...
Oh! não mais, Sr. poeta,
Com meu nariz s’intrometa.

Perdão por esta vez, perdão, senhora!
Eis nova inspiração me assalta agora,
E em honra ao teu nariz
Dos lábios me arrebenta em chafariz:

O teu nariz, doce amada,
É um castelo de amor,
Pelas mãos das próprias graças
Fabricado com primor.

As suas ventas estreitas
São como duas seteiras,
Donde ele oculto dispara
Agudas flechas certeiras.

Em que sítios te pus, amor, coitado!
Meu Deus, em que perigo?
Se a ninfa espirra, pelos ares saltas,
E em terra dás contigo.

Estou já cansado, desisto da empresa,
Em versos mimosos cantar-te bem quis;
Mas não o consente destino perverso,
Que fez-te infeliz;
Está decidido, — não cabes em verso,
Rebelde nariz.

E hoje tu deves
Te dar por feliz
Se estes versinhos
Brincando te fiz.

Giselda Laporta (Livro: Pássaro contra a Vidraça)

Igor era um jovem que tinha quase tudo exceto o amor. Seus pais eram ricos e davam a ele tudo do mais caro mais que não preenchia o vazio no seu coração, sua mãe muito vaidosa mal olhava  para cara do seu filho, o seu pai  só trabalha e mal ficava em casa..

    Em um certo dia quando seus pais estavam viajando desesperado ele discou um número qualquer de sua imaginação, em busca de alguém que se dispusesse a ouví-lo. Pois ele estava na busca por algo ou alguém que lhe preenchesse o enorme vazio de sua alma, ele havia escolhido o caminho para as  drogas que era um caminho prazeroso no começo mais não no final. Essa Foi uma trágica e perigosa escolha da qual Igor já não poderia se livrar sozinho. Estava praticamente á mercê das drogas, chegando ao fundo do poço, de onde talvez não pudesse mais sair sozinho. Depois da alegria vinha o desespero e tudo poderia ser como um passo para a morte.

   Encontrou na moça que atendeu o telefone chamada  Juliana um conforto como se ela fosse sua segunda mãe e amiga que lhe ouvia sem  fazer criticas alguma ela simplesmente lhe abria os olhos pra que ele não se perdesse de uma vez, com jeito talvez ela tenha conseguido apenas acalmar o pobre jovem que lhe pedirá ajuda, mas é certo de que daquele dia em diante Igor seria ou tentaria ser uma nova pessoa, certamente uma pessoa bem melhor. Bastava-lhe apenas acreditar em si mesmo. Afinal, ainda tinha uma vida toda pela frente e depois de ter conversado com Juliana ao telefone, sentia-se mais confiante. Juliana também sentiu-se muito mais leve e calma por ter lhe aconselhado a um recomeço de vida. Juliana ficou muito feliz pois ela tinha um filho da idade de Igor, que poderia estar passando pela mesma situação, sem uma mãe para lhe aconselhar. Ela se sente muito bem por ajudar um jovem que tanto precisa de alguém para lhe ajudar a viver de novo.

Fonte:
http://clickdoscolegas.blogspot.com.br/2012/11/livropassaro-contra-vidraca.html

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 44

CAPÍTULO XXII

Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regurgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.

Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: "Organização do novo gabinete conservador". E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque. O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Estava ministro.

O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.

— Teobaldo ministro! Oh! Que belo! Que belo! Ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!

E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.

André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.

— Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! Dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.

— Ora qual! Opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.

— Como por acaso?

— Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.

Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.

— Hão de ver o que vai sair dai!

— É um portento, não há dúvida!

Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.

— Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.

— É um farofa! Dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!

Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.

— Hipócrita só como ele! Segredava-se aqui.

— Homem sincero! Considerava-se ali.

— Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.

Mas a opinião geral e mais corrente a respeito do marido de Branca era-lhe de todo o ponto favorável. Davam-lhe grande talento, vasta erudição, caráter firme e sentimentos patrióticos; quer dizer: quase todos atribuíam-lhe justamente aquilo que lhe faltava, e ninguém, menos a esposa, as duas únicas qualidades intelectuais que ele tinha deveras desenvolvidas — Habilidade e bom gosto. E foi só com a sua habilidade e com o seu bom gosto que o pândego chegava àquela altura.

Todavia, o Coruja, meio atordoado pela confusão do povo e pelo desacordo das opiniões que ouvira a respeito do amigo, atravessou a chácara e subiu a escada que ia dar à sala.

— Ainda não pode entrar! Gritou-lhe asperamente um ordenança que aí se achava.

— Oh, senhor! Mas não era preciso dizer isso deste modo.

O ordenança mediu-o de alto a baixo com um gesto de superioridade e virou-lhe as costas desdenhosamente.

— Olha que impostor! Disse consigo o Coruja, e perguntou quando seria possível falar a Teobaldo.

— A quem?!

— Ao ministro.

— Ah! Logo mais! Daqui a pouco franqueia-se a casa ao povo.

— Está bom; eu espero.

— Lá embaixo! Espere lá embaixo!

Ouvia-se vir de dentro da casa um rumor alegre e quente de vozes de homens e risos de senhoras; alguma coisa que dava logo a idéia de uma existência aristocraticamente feliz. Pelo rumor daquelas vozes, pelo tilintar daquela alegria bem educada, pelo aspecto exterior da casa, com as suas cortinas muito claras, com a sua chácara e as suas escadas de pedra branca imaginava-se logo uma boa mesa servida com porcelanas e cristais de primeira ordem; imaginava-se a confortável mobília, as largas cadeiras estofadas, a voluptuosa cama de molas de aço, o banho perfumado, as roupas de linho puro.

E o Coruja, sem que aliás a menor sombra de inveja lhe entrasse no coração com a idéia de tudo isso, nunca se sentiu tão desamparado, tão só no mundo, como naquele momento.

Uma agonia surda e duvidosa apoderou-se dele. E foi com a garganta cerrada por um punho de ferro que o mísero desceu lentamente a escada, arrastando de degrau em degrau o seu pé aleijado pelo tiro.

Ao chegar embaixo reparou que um grito de aclamação partia de todos os lados; voltou-se e notou que Teobaldo acabava de assomar ao balcão da janela seguido pela esposa. E o Coruja notou igualmente que o amigo não parecia um simples ministro, mas um príncipe. Estava belo com o seu porte altivo e dominador; com o seu grande ar de fidalgo que exerce a delicadeza, não em honra da pessoa a quem se dirige, mas em sua própria honra. Iam-lhe muito bem os fios de cabelo branco que agora lhe prateavam a cabeça e a barba, dando-lhe à fisionomia uma expressão ainda mais distinta e mais nobre.

Abriram-se as portas da casa ao povo que ia cumprimentá-lo, e as salas foram invadidas, enquanto a banda de música continuava a tocar. Havia um grande número de senhoras lá dentro e, Branca, ao lado de D. Geminiana e mais do velho Hipólito, que se tinham apresentado de véspera, fazia as honras da festa, sem alterar, no meio daquela tempestade de louvor e adulação que cercava o marido, o seu frio riso de estátua. Só ela parecia não tomar parte moral no grande entusiasmo de toda aquela gente.

Coruja ouviu de fora os hurras dos brindes e os vivas levantados a Teobaldo, ao partido conservador e ao monarca; não se sentiu, porém, com ânimo de entrar e resolveu ir-se embora.

Saiu triste, profundamente triste, sem contudo saber a razão dessa tristeza. Um vago desgosto pela vida o acabrunhava e consumia; um tédio enorme, uma espécie de cansaço de ser bom, levava-o sombriamente a pensar na morte.

É que em torno de seus passos havia encontrado sempre e sempre a mesma ingratidão ou a mesma antipatia por parte de todos, ou a mesma maldade por parte de cada um. Agora daria tudo para poder cometer uma ação má, como se por essa forma o seu coração pretendesse repousar um instante. E, por todo o caminho, notou pela primeira vez os encontrões que lhe davam, as caras más que lhe faziam os transeuntes, a falta de consideração que todos lhe patenteavam.

Observou que ninguém lhe cedia a passagem na escada. Um homem em mangas de camisa dera-lhe um empurrão e, ainda por cima, lhe gritara: — "Que diabo Está bêbado?!" Um padre, querendo passar ao mesmo tempo que ele, dissera-lhe: "Arrede-se!" E um menino de jaquetinha e calça curta chegara a obrigá-lo a ceder-lhe o passo. Ao atravessar a rua, quando ia chegar à casa, uma carruagem que passava a todo trote, levantou com as rodas um jato de lama, que se foi estampar na cara dele.

Era o Afonso de Aguiar quem ia dentro desse carro. Voltara, afinal, ao Brasil. E, só aquele fato de ver o Aguiar, sempre feliz, rico, rejuvenescido com o passeio à Europa, ainda mais o fez entristecer.

Coruja recolheu-se, finalmente, foi para o seu quarto, que era o pior da casa de D. Margarida, fechou-se por dentro e deixou-se cair em uma cadeira, a soluçar como uma criança que não tem pai nem mãe.

CAPÍTULO XXIII

E de então em diante ia ficando cada vez mais triste, mais concentrado e mais esquivo de tudo e de todos. Não tinha afinal um canto seguro, no qual, fugindo aos desgostos da rua, pudesse refugiar-se com o seu tédio, porque na própria casa onde morava é que a má vontade mais se assanhava contra ele; o infeliz em troca de toda a sua dedicação pelas duas desgraçadas senhoras que tomara à sua conta, só recebia constantes e inequívocas provas de ressentimentos e até de ódio.

Ah! O Coruja estava bem convencido de que aquela gente, se não precisasse dele para não morrer de fome, também o enxotaria de junto de si, como se enxota um cão impertinente. E, pois, sem carinhos de espécie alguma, sem o menor consolo, lá ia vegetando entre aquela família, que não era sua senão no peso, e entre aquela mesquinha e perversa humanidade, que o apupava, que o insultava e que nunca lhe estendera a mão com outro fim que não fora pedir uma esmola ou dar uma bofetada.

Isto, além de o tornar mais sóbrio, afrouxava-lhe a coragem, enfraquecia-lhe o caráter, a ponto de lhe trazer um mal, que ele até ai não conhecia: a revolta contra a própria sorte e o desamor à vida. Dera para resmungão: falava só, gesticulando zangado; afetava contra seus semelhantes uma grande raiva toda de palavras, desesperando-se ainda mais por não poder deixar de ser bom, por não poder dominar o seu irresistível vício de socorrer os desgraçados e despir-se de tudo para suavizar as necessidades alheias; sofrendo por não conseguir ser mau como qualquer homem e procurando esconder da vista de todos as boas ações que praticava, como se procurasse esconder uma falta vergonhosa e humilhante.

E tal era agora o seu empenho em disfarçar a bondade que, um dia, depois de muito discutir com um taverneiro, a quem ele não pagara no prazo marcado uma velha conta de vinho, feita pelo marido de Inês, viram-no por-se a rir, estranhamente satisfeito, porque o credor lhe gritara em tom de descompostura:

— Mas eu não devia esperar outra coisa de quem aproveita a moléstia de um desgraçado para se meter com a mulher dele!

Este modo de explicar a residência de André na casa da velha Margarida não pertencia exclusivamente ao taverneiro, mas à rua inteira, e ninguém perdoava àquele a suposta concubinagem. Mas também se ele, em vez de defender-se de tais acusações, rejubilava-se com elas, mostrando-se pelos homens e seus juízos de uma indiferença de cínico!...

Agora, só um nome tinha o poder de o despertar ainda: o nome de Teobaldo. Era, porém, tão difícil chegar até Sua Excelência!... Havia sempre durante o dia na antecâmara do Sr. ministro tanta gente à espera de chegar a sua ocasião de falar com este!... E durante a noite a casa de Teobaldo tinha um tal aspecto de festa, um tal movimento de casacas e vestidos de seda, que o Coruja muito poucas vezes se animou a procurar o amigo depois da mudança.

— Mas para que iludir-se? Teobaldo não podia gostar de semelhantes visitas! E, com efeito, a presença de André o constrangia bastante.

Não que já não o estimasse de todo; ao contrário sentia prazer em vê-lo, de vez em quando, apertar-lhe a mão e trocar com ele idéias que não trocaria com ninguém; gostava ainda de arrepiar os arminhos do seu espírito roçando a lixa daquele caráter de ferro; gostava de ouvir-lhe aquelas meias palavras, sinceras e ásperas; preferia ainda um gesto de aprovação feito pelo Coruja a quantos elogios lhe fizessem os outros; gostava muito de tudo isso, mas não ali, em presença de tantas testemunhas e exposto ao ridículo.

Estimava-o, não havia dúvida que o estimava, porém sentia-se mal à vontade e aborrecido, quando o pressentia chegar pelo barulho da sua grossa bengala de coxo.

Tanto que uma ocasião, vencendo todos os escrúpulos, disse-lhe abertamente:

— Queres saber de uma coisa, André? Desconfio que estas visitas que me fazes são para ti um verdadeiro sacrifício! Acho que o melhor é procurar-te eu em tua casa, de vez em quando, hein? Que achas?!

— É! Resmungou o Coruja, abaixando a cabeça.

— Não te parece melhor?... Bem sabes que sou o mesmo; sou teu amigo e no meu conceito estás acima de todos, mas é que aqui não conseguimos nunca ficar à vontade; não podemos. conversar livremente, e deves concordar que isto para mim é nada menos que um martírio! Que diabo! Prefiro não te ver senão quando estivermos a sós, completamente a nosso gosto! Não és da mesma opinião?

Coruja mastigou algumas palavras em resposta, sem levantar os olhos, muito vermelho, e depois retirou-se, todo atrapalhado à procura do chapéu que ele aliás conservara debaixo do braço durante a visita.

E foi quase a correr que atravessou a chácara e ganhou a rua, como um criminoso que foge do lugar do delito.

Notaram em casa que ele esse dia falou e gesticulou sozinho mais do que era de costume, com a diferença que desta vez os seus solilóquios acabavam sempre em lágrimas.

Dois meses depois, em um domingo, Teobaldo fora surpreendê-lo em casa às nove horas da manhã. Ia de chapéu baixo, fato leve e bengalinha de junco. Em vez do cupê, que costumava usar com duas ordenanças, vinha de tílburi.

Entrou gritando desde a porta da rua pelo Coruja:

— Onde estava aquele malandro! Talvez ainda metido na cama!? Pois que não fosse tão epicurista e viesse cá para fora receber os amigos!

André, que trabalhava fechado no quarto, largou de mão do serviço e correu ao encontro dele; ao passo que Inês fugia para junto da mãe, muito sobressaltada por aquela voz argentina e cheia de vida, que espantava a miserável tristeza da casa com a sua risonha expressão de estroinice fidalga.

— Ora venha de lá esse abraço, mestre Coruja!

E assentando-se com desembaraço em uma cadeira da sala de jantar:

— Sabes! Vim disposto a almoçar contigo. Hoje estou perfeitamente livre; minha própria mulher supõe-me fora da cidade. Ninguém desconfia de que eu estou aqui. Ah! Eu precisava passar algumas horas completamente despreocupado, precisava descansar e então lembrei-me de fazer-te esta surpresa; cá estou!

Ergueu-se, foi até ao parapeito do quintal; esteve a olhar por algum tempo para um tanque cheio de roupa que lhe ficava defronte dos olhos e disse depois suspirando:

— Como tudo isto é bom e consolador! É como se eu voltasse ao meu passado; estou vendo o momento em que entra por aquela porta, com a sua lata na cabeça, aquele velho que nos levava todos os dias o almoço e o jantar. Como se chamava, lembras-te?

— Sebastião.

— Era isso mesmo. Sebastião. Muito fiz eu sofrer o pobre diabo! Recordar-te de uma vez em que o obriguei a improvisar um bestialógico encarapitado sobre a mesa e com uma garrafa equilibrada na cabeça? Bom tempo!

Coruja erguera-se para ir à cozinha ver o que havia para almoçar, mas o outro, percebendo-lhe a intenção, gritara:

— Olha! Vão chegar aí umas coisas que mandei vir do hotel.

— Bom, disse André, risonho como havia muito tempo não o viam, porque o nosso almoço, força é confessar, não vale dois caracóis!

— Com certeza já tivemos outros piores! Replicou Teobaldo, encaminhando-se  também para a cozinha. Deixa estar que ainda havemos de fazer aqui um jantar. Nós dois!

— Quando quiseres!

— Nós dois é um modo de dizer! Tu não entendes patavina a respeito de cozinha!

— Mas posso servir de teu ajudante.

Pouco depois chegou a encomenda do hotel. Teobaldo foi por suas próprias mãos abrir a caixa da comida e, para cada prato que tirava de dentro dela, tinha uma exclamação de afetado entusiasmo:

— Bravo! Bravo! Bolinhos de bacalhau! Costeletas de porco! Maionese de camarões! Peixe recheado! Pato assado!

E, tão à vontade se mostrava na pobre casa de D. Margarida, que ninguém diria estar ali o ministro mais amigo da etiqueta, mais apaixonado pela sua farda e pelas suas bordaduras de ouro, como por tudo aquilo que fosse brilhante, luxuoso e ofuscador.

— Como vai a velha? perguntou ele.

— Assim, respondeu Coruja. Pouco melhor.

— Ah! Está doente?...

-— Ora! Pois então não sabes? Eu já te falei nisso por mais de uma vez.

— É exato, agora me lembro.

— E a filha?

— Essa esta boa. Vou chamá-la.

— Não, deixa-a lá por ora. Virá depois. Olha. Recomenda-lhe que nos arranje o almoço, enquanto conversamos no teu quarto. Onde é?

— Aqui. Entra.

No quarto, o ministro, sem se mostrar nem de leve impressionado pelo aspecto de miséria que o cercava, tirou fora o paletó e pôs-se a examinar o que havia sobre a mesa do Coruja. O grande maço de anotações históricas, já suas conhecidas, era a coisa mais saliente entre todo aquele oceano de papéis e alfarrábios.

— Está muito adiantado? perguntou, batendo com o dedo sobre as notas.

— Pouco mais. Ultimamente não tenho podido fazer quase nada. Ainda me falta muito para concluir a obra.

— Pois é tratares de concluir, que eu te arranjarei a publicação dela à custa do governo.

— Prometes!

— Ora!

— Ah! Só assim tenho esperanças de não perder o meu trabalho, porque juro-te que já ia-me fugindo o gosto...

— Podes ficar certo que a tua história será impressa.

— Não calculas o alegrão que me dás com essas palavras!

— E então digo-te mais: a obra será adotada na Instrução Pública e transformar-se-á para ti em uma mina de ouro!

— Que felicidade!

— Hás de ver!

E na sua febre de fazer promessas agradáveis, Teobaldo perguntou a razão por que o amigo não se metia aí em qualquer repartição do Estado.

— Ora, que pergunta! Bem sabes que não é por falta de esforços da minha parte...

— Pois digo-te que agora também serás empregado. É verdade que a época não é das melhores para isso: os bons lugares estão todos preenchidos, mas.

— Não! Qualquer coisa me serve... Declarou André. Tu bem me conheces; desde que não haja necessidade de concurso...

— Que diabo! Se eu pensasse nisto há mais tempo, já podias até estar com o teu emprego.
— Olha! Vê se me arranjas alguma coisa na Biblioteca. Isso é que seria magnífico!

— Homem! E é bem lembrado. Havemos de ver.

Assim conversaram até a ocasião de irem para a mesa.

O almoço foi alegre e comido com bastante apetite. Inezinha preparou-se antes de aparecer ao senhor ministro, mas, apesar das insistências deste, não tomou lugar à mesa, para ficar servindo.

Dona Margarida, lá mesmo da cama onde continuava amarrada pelo reumatismo, dirigia o serviço, lembrando de quando em quando à filha tudo aquilo que podia ser esquecido.

— Areaste o paliteiro? Perguntava ela do quarto. Se não areaste é melhor por o outro de louça, que está na gaveta do armário.

— Já pus, sim senhora.

— Não te esqueças dos guardanapos. Os melhores são os de debrum encarnados.

— Eu sei, mamãe.

— Olha que o café esteja pronto quando eles acabarem! Mas o Sr. Teobaldo talvez prefira o chá. Pergunta-lhe.

— Café! Café! Respondeu o próprio Teobaldo, de modos a ser ouvido pela velha.

E então uma conversa de gritos se entabulou entre os dois.

—S. Exa. nos desculpe, pedia a dona da casa, bem sabe quais são as nossas circunstâncias!

— Ora, por amor de Deus, D. Margarida! Acredite que há muito tempo que eu não almoço tão bem ou pelo menos com tamanho prazer.

— Que diria se eu não estivesse presa a esta cama! Não acredito que Inês tenha dado conta do recado!

— É uma injustiça que faz á sua filha. Está tudo muito bom.

E dirigindo-se a Inês:

— Tenha a bondade de levar este cálice de vinho à senhora sua mãe que eu vou beber à saúde dela.

— Não sei se não me fará mal! Gritou logo a velha.

— Este só lhe pode fazer bem, respondeu Teobaldo, é uva pura!

Depois do café, Teobaldo esteve alguns instantes no quarto da velha, pediu-lhe licença para lhe deixar sobre a cômoda uma nota de cinqüenta mil réis, dinheiro que ele depositou ao pé de um velho oratório, dizendo:

— É para a cera dos seus santos.

A velha agradeceu muito comovida e teria contado pelo miúdo da sua história, se a visita não arranjasse meios de afastar-se, declarando que ia para o quarto do Coruja encostar um pouco a cabeça.

E Teobaldo, tendo ainda conversado com o amigo enquanto dava cabo de um charuto, estirou-se melhor no trôpego capanê em que estava e adormeceu profundamente.

Coruja veio na ponta dos pés até à sala de jantar e, concheando a mão contra a boca, disse em voz baixa:

— Agora, nada de barulho, que Teobaldo está dormindo!
–––––––––––-
continua…

sábado, 21 de setembro de 2013

Trova 263 - Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)


Folclore dos Estados Unidos (Lenda Wyandot: A Criação do Mundo)

Haviam pessoas que viviam além do céu.  Eles eram os Wyandots. Um dia, o pajé disse para o povo a cavar em volta das raízes da macieira selvagem perto da cabana do chefe e os índios começaram a cavar. A filha do chefe estava deitada próximo.  Assim que os homens cavaram,  um barulho repentino os assustou.  Eles pularam para trás.  Eles haviam quebrado o piso do País dos Céus, e a árvore e a filha do chefe caíram através do buraco.

Nessa época o mundo não era nada mais do que um grande lençol de água. Não havia nenhuma terra em lugar nenhum.  Alguns cisnes nadando sobre a água no ouvido um estrondo de trovão. Foi a primeira vez que se ouviu um trovão no mundo.  Quando olharam para cima, eles viram a árvore e uma mulher estranha caindo da a mulher estranha cair do País dos Céus. Um deles disse: “Que coisa estranha está caindo?”  Então, ele acrescentou, “a água não vai sustentá-la. Vamos nadar em conjunto para que ela possa cair sobre nossas costas. “Então, a filha do chefe caiu sobre suas costas, e se deitou.

Depois de algum um tempo um cisne disse: “Que faremos com ela? Não podemos nadar desse jeito por muito tempo. Os outros disseram: ” Vamos para perguntar à Grande Tartaruga.  Ele provavelmente vai convocar um Conselho.  Então saberemos o que fazer.

Eles nadaram em torno da Grande Tartaruga e perguntaram-lhe o que fazer com a mulher em suas costas. Grande Tartaruga rapidamente enviou um mensageiro com um mocassim para os animais, então eles vieram de uma só vez para um grande Conselho. O Conselho se reuniu por um bom tempo. Então alguém se levantou e perguntou sobre a árvore. Ele disse que talvez os mergulhadores pudessem descer e ficar um pouco de terra de suas raízes, se eles descobrissem onde a árvore havia afundado. Grande Tartaruga disse: “Sim.  Se conseguirmos pegar terra, talvez possamos fazer um ilha para esta mulher. Então, os cisnes levaram todos para o local onde a árvore havia caído no fundo das águas.

Grande Tartaruga convocou mergulhadores. Primeiro foi a lontra, o melhor de todos eles.  Ele afundou de uma só vez para longe da visão.  Ele passou um longo, longo tempo.  Finalmente ele apareceu, mas ele engasgou e estava morto.  Então o rato almiscarado foi enviado. Ele também passou um longo, longo tempo. Muskrat também morreu.  Em seguida o castor foi mandado para baixo para obter a terra das raízes da árvore.  O castor também se afogou. Muitos animais morreram afogados.

Grande Tartaruga bradou:  “Quem vai se oferecer para ir para baixo para buscar a terra?” Ninguém quis se oferecer, até que no último minuto uma velha rã disse que iria tentar.  Todos os animais riram. A velho rã era muito pequena e feia.  Grande Tartaruga observou ela atentamente, mas enfim ele disse: “Bem, você tenta então.”

Para baixo nadou a velha rã.  Enfim ninguém podia mais vê-la, apesar dela descer muito lentamente. Então eles esperaram que ela voltasse. Eles esperaram e esperaram e esperaram.  Eles começaram a dizer: “Ela nunca vai voltar.”  Então eles viram uma pequena bolha na água. Grande Tartaruga disse: “Vamos nadar até lá. Lá é onde a velha rã está vindo. Assim foi feito. Então a velha rã veio lentamente à superfície, perto de Grande Tartaruga. Ela abriu a boca e cuspiu alguns grãos de terra que caíram no casco de Grande Tartaruga. A velha rã morreu também.

Pequena Tartaruga logo começou a esfregar a terra ao redor das bordas do casco de Grande Tartaruga.  A terra começou a crescer e virou uma ilha. Os animais olhavam à medida que crescia.  Em seguida, a ilha se tornou grande o suficiente para a mulher para viver, assim ela pisou na terra.  A ilha cresceu mais e mais,  até que se tornou tão grande quanto o mundo é hoje.

Quando um terremoto acontece, é porque grande tartaruga moveu seu pé. Às vezes ele fica cansado de carregar o mundo.(1)
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Nota:

(1)
Nos mitos cosmológicos de muitas culturas uma tartaruga sustenta o muno nas costas ou até mesmo sustenta os céus.


Fonte:
UDSON, Katherine B. Myths and Legends of British America. 1917.

Ignácio de Loyola Brandão (Sem ? é impossível perguntar)

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.

Em seguida, digitou o shift e apertou 2.

Apareceu o símbolo @ .O que será isso?

Depois,ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.

Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + apareceria o sinal =.

O que será que queria dizer?

Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?

Se quisesse o 5,bastava apertar a tecla 5.

No entanto, ao apertar o shift junto com o 5,o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado,%.

Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.

– O que quer dizer porcentagem?

O pai ficou calado uns minutos.

– Veja! Você tem o número 100 .Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.

– Por que vou querer 10% de 100?

Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho.

Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo. Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?

Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.

Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim:#.

O que seria? Para que serve? para fazer uma jaula? Para prender mosquito? A questão era : para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?

Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática *.

Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira

******************************************

Já o 6 com shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. ‘’Vou ter uma chapelaria” pensou.

^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.

Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual a máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.

Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal!.

Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.

- Isso é uma exclamação.

- E o que é uma exclamação?

Como explicar uma exclamação?

-Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.

Então, disse, bem alto:

– Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga! Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
– entendeu?

– Não!

O pai aproveitou:

– Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
 
– Ah, uma exclamação é um não bem forte?

– A exclamação é o contrário da interrogação.

– E o que é interrogação?

– É uma pergunta.

– Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?

O pai disse que precisava ir trabalhar.

Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um?.

O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!

O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.

– Sabe o que é isso, Ciro?

– Sei, uma interrogação!

Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz. Ia saber o que é uma interrogação.

– O que é interrogação ?

– Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.

– E a exclamação?

– É quando você exclama.

– E quando exclamo?

– Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!

– Puuuuuuuuuuuuxxxxxxxxaaaaaaaa, tão fácil!

Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada. Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.

    O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8),podia criar um mundo de estrelas *,de +,de chapéus ^.,

Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria. Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.

O que é vida?

Por que não se vê o ar ?

Quando nasceram as letras?

Por que a água molha?

Por que o número 7 é o 7 e não o 8,e o 9 é não o 2?

Como a voz vem pelo telefone?

Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.

Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas: Caps Lock, return, shift, tab, clear, help, home, Page up, Page down, control, option.

Estranhas palavras.     Quem fala assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.

E ai viu uma tecla delete.

Apertou. Tudo sumiu, ficou branco.

O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.

Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.
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Nota:
CIRO=relativo aos ciros, antigo povo germânico que combateu juntamente com os hunos.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

Rachel de Queiroz (Seca)

Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:

- Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.

Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.

- O quê? Que é que você quer?

O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede:

- Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.

- E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?

O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

- Ninguém perguntou a ela o nome do dono...

Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:

- Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?

Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar:

- Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.

O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros:

– Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal... 

O Augusto veio olhar também e ficou danado:

- Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!

Mas o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão . Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:

- Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!

Depois, retornando ao homem:

- Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!

O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro.

Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.

MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.

Fonte:
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.

Ezequiel Theodoro da Silva (A Formação do Leitor no Brasil: o novo/velho desafio)

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se a formação de leitores maduros, com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita.

No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal, vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo. Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas, não vêm sendo enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o "tempo perdido". Sabe-se, por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor; entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica
para depois, fazendo com que o "provisório" ou, pior, o "inexistente" seja reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história.

A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros.' De fato, a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes, substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo, destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização.

No que se refere ao condutor do processo de ensino, o professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional, revelada principalmente por salários vergonhosos, vem acontecendo no país desde o início da década de 70. A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma, ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor - esse espectro do "espelho quebrado" - raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma significação para os estudantes.

Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A "crise da leitura" no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo.

As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas, revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas, configurando um círculo vicioso de dificil combate. O provisório se eterniza; o inexistente se cristaliza ao longo dos anos.

No quadro das velhas - e perniciosas - tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as manobras exercidas em direção ao livro didático "descartável", a "disneylândia pedagógica", etc... - tudo isso revela uma ação vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo. Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado!

Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se toma dificil, neste momento, saber por onde começar os projetos e programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra escrita. Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o abastecimento de livros, etc...) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.

A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal... e a sociedade está pior ainda: desemprego, dependência, criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário.

O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por exemplo, de que "Pensar a leitura como formação implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor: não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos (...) como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos." ?
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NOTAS

(1) A expressão "O livro é livresco, mas sem livros" é de João Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes, 1988, p.IX-XIII). Ele assim a caracteriza: "Sem livros, pratica-se no Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário, mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura, obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis; nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar, mastigar, degustar - a papa está pronta ".


(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi, através de vários estudos, também revela as nossas carências de infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade, incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura. Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora Laertes, 1996, p. 16.


Fonte:
Jason Prado e Paulo Condini. A Formação do Leitor: pontos de vista. RJ: Argus, 1999.

Vera Carvalho Assumpção (A Dama Imortal)

Como já disse diversas vezes nas minhas crônicas, sempre fui apaixonada pelas damas do crime, especialmente as inglesas. Também minha primeira crônica sobre o gênero policial fala sobre o final feliz das histórias. As pessoas gostam e se viciam nas histórias policiais porque sabem que, no final, o assassino será apontado e, diferentemente da realidade, de alguma forma a paz e a ordem serão restabelecidas e a justiça será feita. O que significa um final feliz.

São muitas as escritoras que se sobressaíram no gênero policial. No entanto, Agatha Christie continua sendo sucesso no mundo todo e, aqui no Brasil, as reedições se sucedem. Quem investiga o fenômeno começa sempre com a matemática de suas conquistas: só a Bíblia e Shakespeare venderam mais do que ela. Claro que a Bíblia é comprada e nem sempre lida! Shakespeare, não sei.

A questão permanece: como essa mulher conseguiu tanto sucesso e por tanto tempo? Talvez sua força tenha sido usar o próprio talento para fazer bem feito o que sabia fazer. Durante mais de cinquenta anos, Agatha produziu assassinatos e seus misteriosos desfechos, que continuam a surpreender e encantar seus leitores.

Com certeza o apelo universal de Agatha Christie não repousa em sangue ou violência, não nos corpos crivados de balas nas ruas perigosas dos “hard-boiled” americanos, não na selva de pedra do detetive sardônico, rápido no gatilho e gozador, nem na cuidadosa análise psicológica da depravação humana. Embora seus dois detetives, Poirot e Miss Marple, de vez em quando, investiguem assassinatos no exterior (Morte no Rio Nilo etc.), seu mundo é, na maioria das vezes, uma aconchegante e romantizada cidadezinha inglesa, enraizada em nostalgia, com sua hierarquia bem ordenada: o elegante cavalheiro rico (muitas vezes com uma jovem esposa de antecedentes misteriosos), o coronel poderoso e irascível, o médico da aldeia e sua enfermeira, o farmacêutico (útil para a compra e fabricação de venenos), as solteironas fofoqueiras atrás das cortinas de renda, o pároco local. Todos se movimentando previsivelmente em sua hierarquia social como num tabuleiro de xadrez. No entanto, nessa mítica cidadezinha cujos habitantes aparentemente são inofensivos e familiares, há sempre um que vai nos surpreender.

Ela não usa grande sutileza psicológica em suas caracterizações. Seus vilões e suspeitos são desenhados em traços amplos e claros e, talvez por causa disto, têm uma universalidade que leitores do mundo inteiro reconhecem instantaneamente. A base moral dos livros é simples e sem ambiguidades, resumida na declaração de Poirot: “Tenho uma atitude burguesa em relação ao assassinato: não o aprovo”.

Apesar do assassinato, a última coisa que se obtém num romance de Agatha é a presença perturbadora do mal. Não há emoções perturbadoras, estas ficam para o mundo real do qual buscamos na leitura uma tentativa de escapar. Enquanto lemos, todos os problemas e incertezas da vida são agrupados em um foco central: a identidade do assassino. E sabemos que, no final, isto será satisfatoriamente solucionado e a paz e a ordem serão recuperadas.

Seus leitores podem encontrar, livro após livro, a confortável garantia de rever velhos amigos. Ela nos induz, com delicada esperteza, a enganarmos a nós mesmos. Tomamos cuidado ao entrar naquela que é a mais letal das salas: a biblioteca. Suspeitamos do desocupado e insinuante retornado de terras estrangeiras e atentamos cuidadosamente aos espelhos, às portas entreabertas. Além da atenção redobrada ao mordomo.

Tantos truques são invariavelmente mais engenhosos do que críveis. As histórias são brandos enigmas intelectuais, não esquemas verossímeis do verdadeiro assassinato.

Quando a vítima é assassinada, há pouca informação quanto ao suspeito principal. Só no fim do livro reconhecemos que as pistas estavam todas ali e não percebemos, ou a autora as colocou de forma tão sutil que conseguiu nos enganar. Mas aí o leitor já está satisfeitíssimo, pois acabou de encontrar a paz e a ordem que procurava. Descobriu-se o assassino e alguma forma de punição vai ocorrer. Pelo menos na ficção!

Fonte:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/category/vera-carvalho-assumpcao/

Vera Carvalho Assumpção (Livro: Paisagens Noturnas)

Primeira Aventura do Detetive Alyrio Cobra

Um rico executivo tem a irmã assassinada próximo à escola de periferia em que lecionava. Dois alunos confessaram o crime e o motivo: a professora os perseguia e impedia a atividade de venda de drogas nas salas de aula. Existiam assassinos confessos e um bom motivo. No entanto, algumas dúvidas pairam na mente do irmão da vítima que contrata o detetive Alyrio Cobra.

Num crime aparentemente solucionado, Alyrio Cobra se embrenha num mundo onde uma série de quadros que retratam paisagens escurecidas pela noite e assombradas pela lua guia seus passos. O que a princípio parecia um caso resolvido vai se mostrar um desafio para o detetive.

Vera Carvalho Assumpção é pioneira na publicação de livros virtuais e criadora do detetive Alyrio Cobra, sobre o qual publicou "Caldeirão de Raças" e "Paisagens Noturnas". Recebeu vários prêmios por contos publicados, como o “Gralha Azul” e o “Guimarães Rosa”. Participou de várias antologias, como a “Contemporary Brazilian Literature”, da Universidade de Colorado, e teve contos publicados na revista “Semente”, da Universidade de Évora.

Fontes:
Sobre o livro = a autora
Sobre a autora =http://www.kbrdigital.com.br/vera-carvalho-assumpcao.html

Dalton Trevisan (O Leão)


  A menina me leva diante do leão ,esquecido por um circo de passagem. Velho e doente, não está preso em grades de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: pernas reumáticas ,juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, fossem lágrimas.

   Observei em volta: todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o antigo prestígio  as crianças ao redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se de pé.

   Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe  um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: estremece a grama a seus pés. Simula ignorara a provocação e mastiga com dificuldade, no canto da boca, um pedaço de carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

 - Ele não tem dente?

 - Tem sim, não vê? Não tem a força de morder.

   Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso de derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora ,leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

   O leão abriu a bocarra de poucos dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor elevou-se aos tracos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé.Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.

   Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão trovejou seis ou setes urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 43

CAPÍTULO XX

Se em casa de Teobaldo corriam as coisas deste modo, em casa de D. Margarida elas não iam melhor. Inês tinha agora um filhinho, e o alferes, depois do casamento, piorara de gênio e de costumes. Se ele até aí era já despejado de maneiras, era agora nada menos do que brutal, e, se dantes costumava beber nos dias de folga, agora se emborrachava toda a vez em que se lhe oferecia ocasião.

E o demônio do homem, quando se punha no gole, ficava que ninguém podia com ele: muito grosseiro, muito exigente, tanto com a mulher como com a sogra, e por tal forma ameaçador que fazia tremer as duas míseras criaturas. Nos sábados à noite era certo o chinfrim em casa de D. Margarida e, como por experiência já sabiam que o Picuinha, quando entrava bêbado, reduzia a cacos quanta louca lhe caía nas mãos, mal o pressentiam de longe, tratavam de esconder às pressas nos armários tudo o que fosse de quebrar.

Ele chegava resmungando e pedia logo alguma coisa para beber; elas negavam, e principiava então a grande luta, cujo desfecho era muita bordoada e uma berraria dos diabos, porque tanto a velha praguejava, como chorava Inês e berrava o pequeno. E o alferes, cada vez mais furioso, ia distribuindo pontapés e murros para a direita e para a esquerda, danado por não encontrar nem um pires ao seu alcance.

Oh! Aquela mania de quebrar a louça era o que mais enraivecia a velha.

— Mas o grande causador de tudo isto, exclamava ela, é aquela peste daquele Coruja! Se não fosse ele, eu não teria agora de aturar este bêbado! Se não fosse ele Inês não teria casado com semelhante homem e não estaria com um filho às costas e outro no bucho!

E naquela casa o Coruja ficou sendo o termo de comparação para tudo o que havia de mal ou feio ou repugnante.

"Ruim como o Coruja! Mais torto que o Coruja! Velhaco que nem o Coruja! Mentiroso nem como o Coruja!"

E, quando Inês fazia recriminações ao marido, este lhe atirava logo em rosto com o nome do outro:

— E, dizia ele, com a sua voz cavernosa de ébrio, você nunca devia ter-se casado senão com aquele coxo! Estavam mesmo talhados um para o outro! Asno fui eu em meter-me neste inferno e ligar-me a semelhante gentinha! Não solto um espirro, que logo não me queiram tomar contas porque espirrei — é o que se pode chamar "não ser senhor do seu nariz!" Aqui todos querem mandar sobre mim — é mulher, é sogra, é o diabo! Ah! Mas um dia cismo deveras e vai tudo raso, faço uma tal estralada que vai tudo de pernas para o ar! Mexam muito comigo e verão!

E, depois de sacudir os braços e repelir do pulmão o ar alcoolizado:

— Caramba! Quero saber se tenho de dar contas de meus atos a safardana algum desta vida!

— Pois então não se casasse!... Arriscava Inês.

— Ah! Se eu pudesse adivinhar, decerto! Antes de tudo a minha liberdade! Agora já nem com o que eu ganho posso contar!

— Quem o ouvisse havia de supor que lhe custamos muita coisa! Olha a graça! Depois do tal casamento é preciso puxar aqui muito mais pela agulha e pelo ferro de engomar!

— Ó raio de uma fúria! Berrava afinal o Picuinha, se não calas essa boca do diabo, racho-te de meio a meio!

— Também é só para que você presta, casta de um bêbado!

— É! O Coruja havia de prestar para muito mais!

— E talvez que sim!

— Bem, mas basta! Estou farto! Arre!

D. Margarida em geral só se metia nestas polêmicas de Inês e Picuinha, quando a contenda chegava ao auge, e então é que era barulho!

Quase sempre terminava o banzé com a intervenção dos vizinhos, muita vez com a da Policia. O alferes, porém, longe de tomar caminho, ficava pior de dia para dia.

As duas senhoras já não conseguiam apanhar-lhe dinheiro, senão tirando-lhe à força das algibeiras, e isso mesmo quando sobrava algum da pândega. E que não lhe apresentassem na manhã seguinte a calça engomada e a camisa limpa, que haviam de ver o bom e o bonito!

— Ah! Dizia a velha, aquele malvado, cortado em pedacinhos e posto em salmoura, ainda não pagava a metade do mal que nos tem feito!

Este malvado, a quem ela se referia, não era o alferes, era o Coruja.

Uma ocasião, entretanto, depois de uma tremenda carraspana, o alferes foi acometido por um violento ataque de nervos e viu-se obrigado a guardar a cama durante uma semana inteira; apareceram-lhe perturbações cardíacas e ligeiros sintomas de amolecimento cerebral. O médico declarou que isso tudo era efeito do álcool, e proibiu ao doente que bebesse, que fumasse, e recomendou-lhe que tivesse toda a regularidade na comida, sem o que se arriscava a ficar perdido para sempre. Picuinha ficou muito impressionado com o que ouviu do médico, e parecia seriamente resolvido a mudar de vida.

Principiou arranjando mês e meio de licença e durante este tempo submeteu-se ao mais rigoroso tratamento; logo, porém, que se achou com a saúde mais garantida, foi aos poucos recaindo nos seus antigos hábitos; e então, de cada bebedeira que apanhava, era--lhe preciso ficar em casa dois, três dias, prostrado, muito irascível, muito nervoso, a beber caldos, sem poder suportar no estômago um bocado de pão.

Por estas crises tornava-se tão insuportável à mulher e à sogra, que as duas já pediam a Deus que o levasse por uma vez.

E as bebedeiras repetiam-se. Então no dia do recebimento do ordenado a coisa era feia; nesse dia escondia-se a louça e preparava-se a casa para o infalível chinfrim.

Mas agora o borracho, receoso já de que as duas mulheres lhe dessem busca às algibeiras, como costumavam fazer, escondia o dinheiro em lugares os mais extravagantes que se podem imaginar; escondia-o dentro da meia, escondia-o no forro da farda e às vezes debaixo dos sovacos.

E, logo que a mulher ou a sogra, depois de uma terrível luta com o alferes, conseguiam descobrir e arrancar-lhe o dinheiro, o homem ficava possesso.

— Ladras! Berrava ele quase sem abrir os olhos! Ladras! Não posso ter um vintém que não mo roubem!

O Picuinha afinal caiu nesse estado mórbido das pessoas inutilizadas pela bebida e do qual, como os trabalhadores das minas de mercúrio, só conseguem fugir por instantes refugiando-se no próprio veneno que os corrompe e mata. Acordava muito mole, com um pigarro convulso, que só deixava depois que ele vomitasse a sua pituíta dos ébrios; e pela manhã tinha sempre o corpo dorido, a salivação grossa e amarga, os intestinos em brasa, os olhos ardendo e lacrimejando; mas, era só beber um trago de parati, e ficava logo esperto.

Também, agora não precisava de mais para aprontar-se; uma dose pela manhã, antes de entrar no serviço; outra à tarde, ao deixá-lo, e ninguém o via senão ébrio.

Os superiores começaram, pois, a repreendê-lo com mais frequência e já o ameaçavam com uma queixa ao chefe; na repartição diziam todos que, se ele há muito não estava na rua, era simplesmente porque o comandante tinha pena de deixar aos paus um pobre diabo com a mulher e filhos.

Não obstante, depois de mais algumas crises como a que o tomou pela primeira vez, o Picuinha ficou irremediavelmente perdido e incapaz de todo e qualquer serviço. Estava até meio idiota e o corpo tremia-lhe todo como o de um velho de cem anos.

CAPÍTULO XXI

— Uma desgraça nunca vem só! Considerou D. Margarida, pois que justamente quando o genro se inutilizava para ganhar o pouco que até aí ganhava, era ela acometida por uma carga de reumatismo. e tão forte, que não lhe permitia servir-se dos braços, nem das pernas.

O Coruja, sabendo disto, foi visitá-la incontinente.

— Ah! É você?... Resmungou a velha, ao ver entrar no quarto a entristecedora figura de André.

Inês escondeu-se para não lhe aparecer.

Ele estava muito acabado e abatido; parecia mais velho, ainda no seu andar de coxo.

— Então! Você foi quem se lembrou de vir visitar-me, hein? Grande caiporismo, o meu!
E a voz da velha era repreensiva e dura.

— É exato... Respondeu Coruja, indo assentar-se ao lado da cama em Que ela estava estendida. — É exato; ouvi dizer que a senhora e os seus têm curtido ultimamente bem maus pedaços...

— Por sua causa, atalhou Margarida, gemendo pelo esforço de mexer com um dos braços — só ao senhor devemos tudo isto!

— Pois acredite, minha senhora, que nunca pensei em fazer-lhe mal de espécie alguma... Resmungou o acusado, sentindo-se já comovido em meio de toda aquela desgraça.

— Ora! Rosnou a outra, se o senhor não tivesse procedido pelo modo imperdoável com que procedeu conosco, minha filha não teria caído nas mãos daquele homem e ambas nós não estaríamos neste bonito estado!... Até digo-lhe mais: o senhor, se tivesse um bocado de consciência, nem poria mais os pés nesta casa!

— Engana-se, D. Margarida, justamente por não me faltar consciência é que vim procurá-la; quero ser útil à senhora e à sua filha, naquilo que estiver ao meu alcance.

— E com isso nada mais faz do que o seu dever!

— Bem sei; bem sei que o dever de todos nós neste mundo é auxiliar-nos uns aos outros e, tanto assim que aqui estou. Olhe! Não lhe poderei dar muita coisa, porque desgraçadamente de muito pouco disponho na presente ocasião, mas com o pouco também se ajuda. Por enquanto cá estão vinte mil réis, desculpe; logo mais virá o médico e eu me encarregarei de mandar aviar as receitas que ele fizer. Adeus.

— Passe bem, respondeu a velha.

E o Coruja, arrastando a sua perna coxa, saiu, prometendo aparecer de vez em quando.

Na segunda visita, Inês não se escondeu e foi apertar-lhe a mão, em agradecimento pela parte que lhe tocava, a ela, na "esmola" feita por ele à velha. — Não foi esmola... Disse Coruja, abaixando os olhos envergonhado, pelo menos juro que não foi com essa intenção Que fiz aquele pequeno serviço. Hoje por mim, amanhã por ti! Ora essa!

E, assim falando, ele considerava intimamente a grande transformação física que se havia operado em Inês durante os últimos tempos.

Estava uma velha, e feia. Não parecia mulher de trinta e cinco anos, mas de cinqüenta. Faltavam-lhe dentes; o cabelo lhe encanecera e a pele do rosto lhe estalara em rugas; as mamas, rechupadas, caíam-lhe até a cinta e os braços pareciam, quando se fechavam, espetar com a ponta do cotovelo aquilo que encontrassem. Além disto, muito emporcalhada pelas duas crianças (a segunda nascera), muito cheia de desmazelo e de privações; o pé sujo e sem meia, o cós do vestido despregado e roto; sempre descansado e indiferente, sempre "Tanto se me dá, como se me dê", sempre a repetir o seu velho provérbio "Homem, mais vale a nossa saúde!"

Coruja perguntou-lhe como ia o marido.

— Foi para o hospital, respondeu ela.

— Para o hospital?

— Decerto, pois se lhe deu a fúria!.

— Como a fúria?

— Ora; deu para doido furioso. Quebrou aí uma porção de coisas, rasgou toda a roupa e afinal fugiu para a rua, a dar berros e quase nu. A polícia agarrou-o e meteu-o no hospício. Nós o deixamos lá, porque ele aqui não podia ficar; já bastam as consumições que temos, e não são poucas! Se eu lhe disser que seu Costa não nos deixou sequer uma xícara inteira!... Quebrou tudo, tudo que era louça!

— Coitado! Lamentou André.

— Ora! A culpa foi só dele; para que bebia daquele modo? Ah! O senhor não imagina às vezes enxugava três garrafas de parati durante o dia! Nunca vi assim! Credo!

— Coitado!

— Não apanhava um vintém, que não fosse para o demônio do vício! Ultimamente estava até descarado; pedia dinheiro a todo o mundo — Para beber!

— É uma desgraça!

— Ora! O médico bem que o preveniu. Importou-se esta mesa com o que disse o médico. Assim fez ele! Até parece que ao depois que lhe proibiram os espíritos, bebia ainda mais!

— Uma verdadeira desgraça, coitado!

— Coitado! Coitado! Coitada mas é de mim, que me casei só para ficar com duas crianças às costas e agora de mais a mais com minha mãe doente, que era a única pessoa que me ajudava! Coitada de mim e de meus filhos!

— Descanse que a senhora e seus filhos não hão de morrer de fome! Enquanto Deus me der um pouco de forças, hei de olhar por todos.

Inês agradeceu suspirando tristemente, como quem se submete a um vergonhoso sacrifício. E desde esse dia, o Coruja ficou sendo o esteio daquela desgraçada família. Então, todas as tardes, levava-lhes o que podia, pagava-lhes a botica, o padeiro, o açougue e finalmente o aluguel da casa.

Mas só ele sabia os sacrifícios que isso lhe custava; só ele sabia quanto esforço era necessário por em prática para que não faltasse o pão de cada dia àquela gente a quem o monstro, na loucura da sua extrema bondade, entendia dever proteção e apoio.
E quem o visse tão maltrapilho, tão miserável, a bater a cidade de um ponto a outro à procura de fazer dinheiro; quem o visse tão reles, tão ordinário e tão chato, não seria capaz de acreditar que à sombra das asas daquele corvo se abrigava inteira uma família de pardais.

— Por que o senhor não vem morar conosco? Perguntou-lhe Inês, um dia em que o Coruja deixou involuntariamente transparecer o embaraço que lhe causava morar em casa de Teobaldo.

E ela acrescentou para justificar a sua proposta:

— Acho que o senhor faria bem; em primeiro lugar, porque teria aqui quem cuidasse do que é seu, de sua roupa, de seus papéis; segundo, escusava de comer em outra parte, porque comeria aqui conosco e assim a comida sai mais em conta, e, finalmente para deixar por uma vez aquela casa, que digam o que disserem, é a principal causa dessa tristeza em que o senhor vive.

O Coruja, apesar do desgosto que lhe trazia a idéia de separar-se do amigo, reconhecia razão de sobra nas palavras de Inês. Sim, não havia dúvida que ele precisava mudar-se da casa de Teobaldo e, se havia de ir para outra parte, era melhor que fosse para ali, onde todas as despesas já corriam por sua conta. Ao menos seria isso o mais lógico.

— Quer então deixar-nos? Interrogou Teobaldo na ocasião em que ele lhe deu parte da mudança.

— É melhor, respondeu André, ali fico mais à minha vontade; sinto muito separar-me de ti, mas reconheço que a minha presença muitas vezes te constrange...

E, porque Teobaldo fizera um gesto negativo:

— Ah! Não é por tua causa, decerto! Mas pelos que te cercam... Conheço perfeitamente o que são estas coisas... A política e a sociedade têm exigências muito especiais. Não te perdoariam a minha amizade, se soubessem até que ponto de intimidade ela chega. Assim, pois, é melhor mesmo que eu vá e que apenas te apareça de vez em quando, para te ver.

— Bem... Disse Teobaldo, faze lá o que quiseres; não te contrario, mas bem sabes que a minha casa estará sempre às tuas ordens.

— Ah! Quando de todo me faltar um canto para me meter...

— Certamente, certamente. Já sabes que aqui não serás nunca um estranho.

— Eu hei de aparecer sempre.

Mas Teobaldo já não lhe podia prestar atenção, porque era todo de um discurso que pretendia apresentar na câmara no dia seguinte.

Branca mostrou-se em extremo sentida com a mudança do Coruja; foi com os olhos cheios d’água que ela se despediu dele.

— Seja sempre meu amigo, disse, e, quando não tiver o que fazer, venha ler-me algumas páginas dos seus poetas favoritos.

— Deixo-os todos com a senhora, respondeu André, era essa a minha intenção desde que pensei na mudança. É para não se esquecer de mim.

— Obrigada; creia que não era preciso isso; o senhor nunca será esquecido nesta casa.

Depois disto, ele foi abraçar o velho Caetano, despediu-se de todos os outros criados, e saiu logo para não perder de vista a sua bagagem, que já havia partido adiante.

Uma coisa o mortificava agora, era que Teobaldo não tinha mais para com ele aquelas expansões primitivas; já se lhe não abria nos seus momentos penosos; já não lhe expunha, como dantes, as suas preocupações, e já igualmente não lhe pedia conselhos.

Agora dir-se-ia até que ele o tratava com um certo ar de proteção; que o ouvia distraído e apressado, sem conversar e dando-lhe muito menos atenção do que qualquer dos seus amigos dos mais modernos.

— É que ele vive lá preocupado com os seus negócios... Pensou o Coruja, para se consolar. Mas sentiu perfeitamente que no fundo azul do seu coração um principio de sombra se formava, como a nuvem negra que surge no horizonte, ameaçando logo a estender-se pelo céu inteiro e transformar-se em medonha tempestade.

Perder a amizade de Teobaldo! Oh! De todas as suas desilusões seria essa com certeza a mais cruel e dolorosa!

— Não! Não era possível!

E André nem pensar queria em semelhante coisa. Defronte de tal hipótese o seu pensamento recuava aterrado, fugindo de todo e qualquer raciocínio. E no entanto, logo à primeira visita que ele fez ao amigo depois da mudança, ainda o encontrou mais frio e distraído.

André ia pedir-lhe algum dinheiro e Teobaldo deixou muito claramente perceber a sua impaciência.

— Sabes, filho, estou, que não imaginas, atrapalhado com uma infinidade de coisas! Agora não posso tratar disso. Aparece logo! Adeus.
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continua…