sexta-feira, 4 de maio de 2018

Malba Tahan (O Pai que casou cinco filhas)

Na célebre e turbulenta cidade de Bagdá — a dileta dos califas — Vivia outrora um negociante que se chamava Chebac, homem dotado de bom-senso e cuja vida era equilibrada e conduzida ao ritmo suave da honestidade tranquila.

Esse bom mercador era viúvo e tinha cinco graciosas filhas cujos nomes (se Allah quiser!) serão indicados no decorrer desta singular narrativa.

    O extraordinário cuidado que Chebac dispensava à educação de suas filhas poderia merecer o excepcional qualificativo de al-monetib — vocábulo que os filósofos não sabem (é pena!) traduzir com verdadeira fidelidade. A sua ambição máxima, na vida, era vê-las casadas, e vivendo em perfeita harmonia com os seus esposos. Que sonho mais radiante poderia iluminar a imaginação de um pai?

    Casar bem cinco filhas! Eis o grande e terrível problema que o diligente mercador cumpria resolver, dentro de um prazo relativamente curto.

    Obter para uma filha um noivo desejável e rico já é tarefa bastante delicada e difícil. Mas casar bem cinco filhas... Só mesmo com o auxilio de Allah, o Altíssimo, o Único, o Onipotente!

    — Allahur Akbar! — exclamam os verdadeiros crentes. — Allahur Akbar quer dizer: Deus é grande! Não deve haver na vida lugar para desânimo e fraquezas! O fraco é como o camelo atacado de congestões.

    Continuemos, porém, a história.

    Quis a vontade do Onipotente que o mercador Chebac se sentisse obrigado, pelos seus deveres religiosos, a fazer uma peregrinação a Meca, a Cidade-Santa.

    Como partir para uma jornada tão longa, durante a qual a fadiga, sendo imensa, ainda é menor do que o perigo, deixando as suas queridas filhas ao desamparo num centro populoso como a tumultuosa Bagdá?

    Levá-las? Eis uma solução que qualquer pasteleiro da aldeia repeliria sem hesitar um segundo.

    O deserto, como todos sabem, é infestado por beduínos ferozes que sonham com viagens impossíveis.

    Sentindo-se embaraçado, em dúvida, sobre a melhor resolução a tomar, o mercador achou que seria de bom-aviso ouvir a opinião de seu judicioso amigo Al-Tarik, que exercera o cargo de Primeiro-Conselheiro na Corte do saudoso califa Al-Mamum. Al-Tarik era um ulemá, isto é, um xeique dotado de notável saber. (Allah, porém, é mais sábio).

    — O teu caso é muito sério, meu caro Chebac — respondeu o ulemá. — Não posso aconselhar que leve as tuas cinco filhas no meio da caravana; seria sacrificá-las no deserto, fazendo-as, talvez, cair nas mãos dos audaciosos beduínos traficantes de escravos, homens que são mais perigosos que o simum. Deixá-las, porém, sozinhas em Bagdá, não é medida que um árabe prudente e sensato possa aprovar. As seduções da cidade, e a perniciosa companhia dos maus, arrastam as jovens para o fundo dos abismos e dos erros mais degradantes.

     Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu, com paternal carinho, para que elas ouvissem, a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o grave embaraço em que se achava.

E, depois de meditar algum tempo, disse o sábio Al-Tarik:

    — Só vejo, no momento, uma solução, para o caso que se me afigura complicado. Quando chegares, hoje, a tua casa, dirás às tuas filhas o seguinte: — “Minhas queridas meninas! O dever sagrado de crente obriga-me a fazer uma peregrinação à Meca, a cidade de Deus, o Santuário da Fé. Tenho, entretanto, cinco pérolas que são para mim de inestimável valor. Não posso levar comigo esse tesouro, pois a jornada que vou empreender é longa e não isenta de graves riscos. Parece-me que não seria prudente deixar as preciosas pérolas e partir; durante a minha ausência, quem poderá livrá-las, como sempre tenho feito, da cobiça insaciável dos aventureiros, rapinantes e ladrões? Que devo, pois, fazer, nessa emergência, minhas filhas?” Ouvirás com a maior atenção todas as respostas das jovens. Interessa-me conhecer a opinião de cada uma delas. Só então poderei dar um conselho acertado e seguro sobre a melhor forma de resolver a dificuldade. Combinado? Uassalã!

    O negociante fez precisamente como lhe havia aconselhado o discreto ulemá.

    Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu com paternal carinho, para que elas ouvissem a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o grave embaraço em que se achava. E interpelou-as afinal:

    — “Que devo, pois, fazer, minhas filhas?”

    A mais velha, que se chamava Quetir (Quetir dos Olhos Verdes), assim falou:

    — Acho, meu pai, que deveis vender as cinco pérolas por bom preço e comprar um terreno em boas condições. O negócio será altamente vantajoso e seguro. Durante a vossa ausência o terreno ficará valorizado e poderá ser vendido, mais tarde, com um bom lucro. O dinheiro ganho nessa transação será, para o futuro, um descanso tranquilo para a vossa velhice, justa recompensa às vossas fadigas e trabalhos.

    Respondeu a segunda, a deliciosa e meiga Ahizil:

    — Penso, meu pai, que seria mais prudente deixar as vossas pérolas nas mãos de um homem sério, honrado, que fosse de absoluta confiança. Não possuis, meu pai, um amigo digno da vossa confiança? A boa amizade, para os ricos, serve de glória; para os pobres, de renda; para os desterrados, de pátria; para os fracos, de esforço; para os enfermos, de medicina; e até para os mortos, de vida! Confiai o vosso tesouro aos cuidados de vosso maior amigo!

    Amine, a terceira, convidada a falar, não hesitou. Em Amine, o principal traço de formosura era o sorriso de bondade e candura que bailava em seus lábios. Disse Amine:

    — Se o dever religioso vos obriga, meu pai, a uma jornada, por que vos preocupais tanto com os bens materiais que nada valem? Confiai em Deus, meu pai! Allah pode ouvir as queixas surdas de nosso coração e ler os nossos desejos na cor invisível de nossos pensamentos. Allah é poderoso, é justo, e sabe premiar, com infinita bondade, os crentes dedicados e sinceros! Esquecei as cinco pérolas que não passam de um mísero tesouro da terra, para pensar apenas nas cinco preces diárias que são os grandes tesouros do Céu. A oração, meu pai, é uma das expressões mais íntimas e delicadas da vida piedosa. Allahur Akbar! Deus é grande! Se colocardes Deus em tudo o que fizerdes encontrá-lo-eis em tudo o que vos suceder.

    A formosa Astir, que admirava os poetas e sonhava com as coisas mais românticas da vida, não soube conter os arroubos e fantasias de sua imaginação exaltada. Eis como Astir resolveria o caso:

    — Tenho uma ideia, meu pai, que parece genial. Com as cinco pérolas fareis um lindo adereço, que será, por vossas mãos, entregue ao califa, nosso amo e senhor. O monarca surpreendido exclamará: “Que belo diadema!” E perguntará a razão de ser daquele rico presente. Direis então: — “Ó rei poderoso, sombra de Allah na terra! Essas cinco pérolas colhidas nos mares da Arábia, não passam de humilde homenagem de um pobre e esforçado peregrino viúvo, pai de cinco filhas solteiras. Esquecer o desvalor deste insignificante presente é a maior caridade que podeis fazer ao ofertante!” Encantado com essa delicada resposta, tão cheia de modéstia, o califa, que é generoso e bom, dirá, com toda certeza: — “Se vais fazer uma peregrinação, ó muçulmano!, precisas, imediatamente, de um bom auxílio.” E determinará que sejam postos à vossa disposição cinco mil dinares de ouro; uma caravana; dez cameleiros e cinco guardas bem armados. E o glorioso califa (que Allah o conserve!) acrescentará afinal: — “Com os valiosos recursos que ponho agora à tua disposição, ó peregrino, poderás ir à Cidade Santa, levando, em tua companhia, as tuas cinco filhas, que devem ser lindas como a lua de Ramadã(1). Essa viagem, cheia de episódios, será utilíssima para elas!” E assim, meu pai, iríamos todos conhecer o Santuário Da Fé, a milagrosa Caaba, no coração do Islã (2).

A mais moça de todas, a encantadora Leilá, compreendendo que chegara, enfim, a sua vez de falar, disse:

    — Essa original história, meu pai, das cinco pérolas, que acabais de nos contar, não passa, a meu ver, de um símbolo muito bem-imaginado. Às cinco pérolas que afirmais possuir, somos nós, com certeza, as vossas filhas. Aconselha a prudência que um pai não leve suas filhas moças a jornadear pelos caminhos inseguros dos desertos, infestados de chacais e aventureiros da pior espécie. Ao vosso coração, entretanto, não agrada deixar-nos sozinhos no burburinho desta Bagdá. Se o problema é assim tão grave, deveis, a meu ver, consultar os vossos amigos mais sérios e judiciosos, antes de tomardes qualquer resolução. Atentai, meu pai, nas palavras do filósofo: “A perfeição moral consiste em fazermos por inspiração do amor o que faríamos por exigência do dever”.

O mercador foi ter novamente com o prudente Al-Tarik e repetiu-lhe fielmente as diversas respostas formuladas por suas filhas.

    Disse o judicioso e nobre ulemá:

    — Esse caso tornou-se interessantíssimo e merece ser analisado com a maior atenção. Logo mais, depois da última prece, devo fazer, a pedido do califa, uma conferência na mesquita. Nessa conferência, que é destinada aos nobres e xeiques, vou tomar por tema os diversos aspectos sob os quais se apresentam as respostas de tuas filhas. Quero conhecer sobre o caso, a opinião dos homens mais cultos da cidade.

    A conferência feita pelo ilustre Al-Tarik causou profunda impressão ao seu numeroso auditório. No dia seguinte, na alta sociedade de Bagdá, não se comentava outra coisa senão a situação complicada do mercador e a diversidade das originais sugestões formuladas pelas cinco jovens.

    E a palestra do sábio polemista teve, ainda, outras consequências mais interessantes que passaremos a relatar.

    Ao cair da tarde achava-se o bom Chebac trabalhando em sua loja, quando foi procurado por cinco rapazes, pertencentes às famílias mais ricas e prestigiosas da cidade.

    Intrigado com a inesperada visita dos nobres, o mercador perguntou-lhes o que desejavam.

    Ao ser interpelado, disse o primeiro cheique:

    — Alimentei sempre a esperança de casar com uma jovem boa, sensata, e que tivesse uma compreensão clara, perfeita e prática da vida. A vossa filha Quebir revelou, a meu ver, qualidades excepcionais. Aquela lembrança de vender as pérolas e comprar um terreno é maravilhosa! Venho, portanto, pedi-la em casamento, pois é com uma mulher ajuizada e perita em transações, que eu desejo vivamente casar.

    O segundo visitante, que era um dos rapazes mais brilhantes de Bagdá, assim falou:

    — Fui informado hoje da admirável resposta proferida pela vossa filha Ahizil no caso das Cinco Pérolas. Demonstrou ser uma jovem sensata e prudente. Sabe confiar naqueles que são dignos e repelir os perversos. Fez da verdadeira amizade o maior elogio que já ouvi. Essa jovem demonstrou possuir uma alma boa, límpida, livre do peso das desconfianças torturantes que nublam os afetos e perturbam a vida. Venho, pois, pedir em casamento a vossa filha Ahizil.

Aproximou-se o terceiro visitante e dirigindo-se ao mercador declarou o seguinte:

    — O meu sonho dourado, senhor Chebac, era escolher, sem possibilidade de erro, uma esposa dotada de elevados sentimentos religiosos. Sou adepto da moral religiosa; a moral sem Deus é falsa e ridícula. A esposa religiosa é, a meu ver, a esposa ideal. Virgem, esposa, mãe ou filha, a mulher religiosa é sempre um agente de Deus nas obras de Seu amor. Deus fê-la bálsamo de todas as dores, alívio de todas as tristezas, amparo de todas as desventuras, e não há uma só miséria na vida de que Deus não tenha feito da mulher o anjo libertador. A vossa filha Amine, pela resposta que proferiu, demonstrou possuir um nobre coração e ser uma crente sincera. É, pois, Amine que eu venho pedir em casamento. Queira Allah que ela possa ter por mim o mesmo e infinito amor que eu sinto, desde já, por ela.

    Antes que o bom Chebac pudesse despertar do assombro em que se achava, o quarto cheique, que era prosador e poeta, tomou da palavra e confessou sem mais preâmbulos:

    — A vossa filha Astir, ó mercador!, é um sonho de poeta que os gênios bondosos fizeram viver neste mundo. A sua imaginação prodigiosa deslumbrou-me; o seu talento incomparável arrebatou o meu coração. Os atos do coração parecem ridículos quando é o espírito que os julga. Estou loucamente apaixonado por Astir e considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se ela se dignasse aceitar-me por esposo!

    O quinto cheique aproximou-se do velho Chebac, fez um respeitoso salã (3) e declarou, com voz firme e pausada:

    — Todas as vossas filhas, ó mercador!, revelaram possuir predicados excepcionais. As respostas que elas formularam, no caso das Cinco Pérolas, dariam assunto para dez lindos poemas em prosa e verso. Leilá, a mais moça, demonstrou, porém, ser a mais inteligente de todas, pois foi a única que compreendeu o simbolismo do caso. A mulher inteligente, cordada e obediente (dizem os maiores filósofos) é a companheira ideal, é a esposa invejável. A mulher perfeita, segundo ensina o Alcorão, deve possuir três predicados, cinco virtudes e sete atributos. Os três predicados são: bondade, inteligência e beleza. Venho, pois, pedir em casamento a mão de vossa filha Leilá, a criatura mais fina e mais espirituosa do mundo! Exaltado seja Allah, que criou a Mulher, a Beleza e o Amor!

Allahur Akbar! Foi assim que Chebac, o mercador, resolveu o complicadíssimo problema das “Cinco Pérolas”.

Casou muito bem as suas filhas e partiu tranquilo, em meio de uma grande caravana de peregrinos, para ir beijar, como bom devoto, a pedra negra da Caaba, na Cidade Santa de Meca.

    E, dois anos depois, quando regressou a Bagdá, veio encontrar as suas filhas diletas, vivendo felizes e radiantes com seus dedicados esposos: foi recebido, também, por cinco lindos netinhos que já exclamavam em árabe (parece incrível!) estendendo, risonhos, os braços morenos:

    — Jedê! Jedê! (Vovô! Vovô!).
_______________________________
Nota:
1- Ramadã — período do ano muçulmano (28 dias) durante o qual o jejum é obrigatório aos crentes do Islã. Esse jejum só deve durar entre o nascer e o por do Sol. Quando a Lua aparece no céu (lua-cheia) começam logo as festas e banquetes. A lua de Ramadã é, por esse motivo, apontada como a “lua” mais linda do céu.

2– Islã — significa “resignação”. Conjunto de países cujos povos adotaram a religião de Mafoma. Caaba é um templo, de forma cúbica, que é venerado em Meca.

3- Salã quer dizer paz. É a expressão de que se servem os árabes em suas saudações.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.5) I


FORGET ME NOT
(não me esqueças)

Não te esqueço, florzinha humilde e bela
Que tornas a campina um firmamento,
Inocente, sublime bagatela,
Joia viva, risonho monumento.

Não sei que poesia encontro n'ella,
Que instila em roda etéreo, vago alento
Tão breve, tão discreta, tão singela,
Qual pirilampo, o nítido portento.

N'essa cintilação fosforescente,
Lágrima-esmalte da urze tão sutil,
Abrandas as escarpas da torrente

Mensageira do lascivo mês de abril
Quem te não ama, o coração não sente
Miniatura com pétalas d'anil!

VENDETTA

Juraste a minha perdição, ingrata,
A quem adoro como adoro a vida
Casta flor, flor de neve estremecida,
Que sorris, quando o teu olhar me mata.

Gravei no peito aquela rubra data
Em que te vi, amor! qual na avenida
Se entalha na fiel casca endurecida
O nome da huri*, que nos maltrata.

E, apesar de seres tão bela e mansa,
Folgas que a desventura me persiga
Dilacerado de cruel esp'rança.

Seja assim! É atroz minha vingança,
Pois que amor e ódio tanto me castiga,
Cada vez te amo mais, doce inimiga.
__________
Nota:
Huri: mulher muito bonita
___________________

DESDITOSA CECÉM*!

Pobre flor, que se estiola**
Na vertente da montanha,
Ninguém aqui te consola
Fria sombra te acompanha.

Comoção que te desola!
Uma peçonhenta aranha
Sobre a nítida corola
A sua rede emaranha!

Quem te lançou no degredo
D'este acerbo pavimento
Para te olvidar tão cedo?

– A meus pais fugi mesquinha
Fugi nas asas do vento
Triste sorte foi a minha!...
_______________
Nota:
* Cecém: lírio
** Estiola: enfraquece, debilita
_____________________

O Marques de Pombal

O rei mendigo cerrará os olhos
E partirá entre nuvens para o céu
Surge, depois, na côrte um escarcéu
Que brame da vingança nos escolhos

D'altas vagas de bronze nos refolhos
Pôs a Intriga um galeão como troféu
A efígie de Pombal tinha em labéu*
Jaz na poeira, no olvido**, e nos abrolhos.

Então a Inveja alastra a baba escura
Qual serpente, que as roscas enovela
E a empresa do ministro transfigura.

Entretanto o Marquês com amargura
Diz fitando a grosseira caravela:
"– Lá te vais Portugal, agora á vela."
_______________
Nota:
* Labéu: desonra
** Olvido: esquecimento
________________________

ABANDONADO!

Uma fita prendi cor de safira
No leve, tênue pé d'uma andorinha;
Este ano regressou a pobrezinha
E junto ao ninho seu constante gira.

Quando o sol no horizonte se retira
Esvoaça em redor de mim sozinha;
Também esta alma, sôfrega, mesquinha
Por ti enfeitiçada geme, expira.

Ela na espuma branca, qual arminho
Foge no mar á raiva dos açores
Não perdendo a lembrança do seu ninho

Só tu na primavera dos amores,
Como víbora oculta em rosmaninho,
De mim te olvidas na estação das flores.

GARIBALDI
(Falecido a 1 de junho de 1882)

É morto o “condottiere”*, o paladino
Soldado da razão e da justiça
Forasteiro, que o sangue desperdiça
Nas refregas do trágico destino.

Gênio do bem, suave e peregrino
Estátua de luz e amor toda maciça
A cujo aspecto a multidão submissa
Se agrupa em alvoroço repentino,

Guerrilheiro da América indomável
Espada de Dijon, e da Marsala,
De Nápoles e Roma inconsolável!

O solitário de Caprera é morto,
E, quando o herói no túmulo resvala,
Um calafrio gela o mundo absorto.
___________________
Nota:
Condottiere: líder

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

Joaquim de Melo Freitas (1852 – 1923)

Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas - Aveiro/Portugal
Joaquim de Melo Freitas nasceu em Aveiro, Portugal em 1852 e faleceu nesta mesma cidade em 1923, dedicando toda a sua vida a Aveiro, deixando o seu nome ligado a diversas coletividades, jornais, revistas e outras publicações. Bacharel formado em direito, Sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, Sócio fundador da Associação dos Jornalistas e Escritores portugueses

Hoje, o nome de Joaquim de Melo Freitas é lembrado na toponímia aveirense – Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas – junto aos “Arcos” e às “Pontes”, em pleno centro da cidade, precisamente onde se ergue o monumento de homenagem aos Mártires da Liberdade e a José Estevão, do qual foi um dos mentores.

Joaquim de Melo Freitas era oriundo de uma família com fortes pergaminhos liberais. O pai foi perseguido e esteve exilado por motivos políticos, enquanto pior sorte teve o seu tio, Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, que foi enforcado na Praça Nova, do Porto, com outros liberais aveirenses também implicados na revolução de 16 de maio de 1828.

Sobre Joaquim de Melo Freitas, o historiógrafo aveirense Eduardo Cerqueira escreveu que “perfilhava os princípios dos seus familiares e primava por um largo espírito de convivente tolerância, foi uma figura singularmente simpática e aliciante, um escritor e orador de faculdades invulgares e um cintilante conversador, pontífice de tertúlia, cultivado, espirituoso, com o dom de amenizar pela anedota propositada, ou a fina ironia da réplica imediata e desconcertante, os temas mais austeros”.

Já o seu contemporâneo Marques Gomes, outro dos grandes nomes aveirenses, anotou que “a forma nova e leve com que reveste os seus escritos, a sua graça espontânea, franca, portuguesa, que em todos eles esfuzia hilariante, a sua muita correção de linguagem, tão opulenta e ao mesmo tempo tão castigada e esbelta, as suas qualidades de observador, de artista e narrador”, acrescentando que Melo Freitas “falava com a mesma suprema elegância com que escrevia”.

Eduardo Cerqueira realçou que a personalidade de Joaquim de Melo Freitas “mais se evidenciaria na colaboração esparsa pela maioria dos jornais aveirenses” de então, “muito particularmente em «A Época», que fundou e dirigiu”, cujo primeiro número saiu no dia 5 de fevereiro de 1885. O último seria datado de exatos dois anos depois”. De acordo com este historiógrafo aveirense “«A Época» espelhava os seus predicados e predileções e marcou, assim, na imprensa local um lugar de evidência já do ponto de visto literário, já na defesa dos interesses regionais”.

Antes de se lançar na publicação de «A Época», Joaquim de Melo Freitas foi redator dos jornais aveirenses «O Povo de Aveiro» e «Locomotiva», tendo ainda colaborado “com assiduidade, no «Campeão das Províncias», no «Distrito de Aveiro», no «Tribuno Popular», na «Revista Ilustrada», no «Democrata» e vários outros periódicos, durante mais de meia centúria de anos”, como referiu Eduardo Cerqueira.

Como escritor, Joaquim de Melo Freitas publicou inúmeros livros, sobre os mais variados temas, dos quais, mais de uma dúzia está disponível para consulta na Biblioteca Municipal de Aveiro. Alguns dos de que foi autor têm por título: “Homenagem a Serpa Pinto”, que escreveu em parceria com o Barão de Cadoro (Carlos de Faria), “A Granel – Diabruras, brado e bagatelas, provincianismos e chinesices”, “Garatujas”, “Ironias transparentes” e “Violetas”.

Joaquim de Melo Freitas foi um ativo interveniente na sociedade aveirense, tendo integrado diversas coletividades e sociedades. Em 20 de abril de 1879, foi convidado a integrar a “Sociedade Construtora e Administrativa do Teatro Aveirense”, constituída por dez acionistas, que construiu o Teatro Aveirense, inaugurado no dia 5 de março de 1881.

No dia 5 de fevereiro de 1888, foi eleito comandante da Companhia dos Bombeiros Voluntários de Aveiro (atual Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro “Bombeiros Velhos”), cargo que manteve até janeiro de 1893. 

Eduardo Cerqueira recordou que ele era “profundamente arraigado à sua terra”, pelo que “coube-lhe por dilatado tempo, a função, que por tácito sufrágio lhe confiavam os seus concidadãos, de intérprete dos mais estrênuos sentimentos de aveirismo, intramuros da cidade ou fora dela, cantando-lhe as belezas, advogando-lhe as reivindicações; acolhendo os visitantes, singulares ou coletivos, com fidalga e cordialíssima lhaneza; realçando a história, as figuras insignes e demais valores, e as tradições da sua terra”.

O grande escritor português Camilo Castelo Branco correspondeu-se com Joaquim de Melo Freitas, tendo mesmo solicitado, numa carta escrita em S. Miguel de Seide, datada de 26 de maio de 1890, que intercedesse junto do oftalmologista aveirense Edmundo Magalhães, que queria consultar numa desesperada tentativa de evitar a cegueira que o afetava.

Também o jornalista e escritor aveirense Acácio Rosa afirmou que “Joaquim de Melo Freitas é um nome que, grande como é, não cabe bem numa simples nota”.

Alberto Souto, outro dos nomes grandes de Aveiro, proferiu, no dia 9 de dezembro de 1923, o elogio fúnebre de Joaquim de Melo Freitas, dizendo junto ao monumento dos Mártires da Liberdade, no cemitério central, que “em Aveiro, longe do grande mundo, sem que a grande imprensa o soubesse, foi a enterrar em varão ilustre que, tendo vivido apenas para o pensamento e para o sentimento, teve na sua morte uma consagração local que constitui um ato belo e comovente civismo”.

Alberto Souto recordou que o féretro de Joaquim de Melo Freitas saiu dos Paços do Concelho, num domingo, conduzido pelos Bombeiros Voluntários, “rodeado dos estandartes de todos os clubes, de todas as associações, de todas as coletividades da cidade. Cobria-o a bandeira de damasco e ouro do município”.

No centro da atual Praça Joaquim de Melo Freitas ergue-se o monumento aos Mártires da Liberdade. O discurso de encerramento da inauguração desse monumento oferecido a Aveiro pelo Clube dos Galitos em 1909, no centenário do nascimento de José Estêvão, foi proferido por Joaquim de Melo Freitas que então afirmou: “entre os festejos do dia, este obelisco, devido ao lápis e ao cinzel de Ernesto Korrodi, avulta, já pelo seu pensamento generoso, já porque se ergue neste local, onde a 16 de Maio de 1828, um núcleo de cidadãos, unindo-se às forças de Caçadores 10, de guarnição nesta cidade, soltaram o grito de revolta e iniciaram esse grande movimento, que dotou o país com as instituições constitucionais! Nem o exílio, nem o ergástulo, nem a forca, nem os combates, a miséria e a desgraça detiveram esse punhado de bravos patriotas, que se propunham fundar uma pátria nova, impregnada de luz, de progresso e de amor!”

Fontes:
Correio do Vouga. Aveiro. 10 abr. 2013.
Projeto Gutemberg.

Carlos Leite Ribeiro (Aquela Boneca)


(Peça teatral dramática)

Elenco:
- Fernando, 50 anos. Frequentador do café "Ti Pedro" e seu grande amigo ...
- Pedro, 65 anos. A quem o povo chamava carinhosamente, "Ti Pedro" ...
- Joana, 60 anos. A mãe de Américo ...
- Maria do Carmo, 45 anos. Foi ela quem criou a Eunice ...
- Américo, 42 anos. Para que Eunice tivesse oportunidade de ser operada quando era ainda criança e, depois para lhe pagar os estudos, entrou numa de contrabando, e foi preso. Depois, imigrou para o estrangeiro …
- Eunice, 22 anos. Durante muitos anos apreciou e desejou "aquela boneca", nunca pensando que anos mais tarde seria sua ...
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Em todas as pequenas localidades, existe sempre um local, onde se sabe e se discute a vida dos seus habitantes. No local onde se vai desenrolar a nossa história, esse local de encontro era o café do "Ti Pedro". Uma pequena loja com pintura e mobiliário já muito antigo.

Atrás do velho balcão, o seu proprietário, já septuagenário, a quem o povo, respeitosamente e carinhosamente, chamava "Ti Pedro".

Nas poucas prateleiras de vidro que se encontravam por detrás do balcão, na prateleira central e em destaque, encontrava-se uma linda boneca, metida numa caixa de celofane.

Aquela boneca tinha uma história ...

Estávamos em princípios de Junho, quando os dias começam a aquecer. Neste momento entra no café, o Fernando, grande amigo do "Ti Pedro" ...

Fernando: - Boa tarde, Pedro. Os jornais já chegaram ?

Ti Pedro: - Ainda não chegaram, Fernando. O Expresso, como habitualmente, está atrasado. Olha lá, amigo, bebes o costume ?

Fernando: -  Não, hoje apetece-me... nem sei o quê...

Ti Pedro: - Olha, "nem sei o quê", é uma bebida que não tenho cá !

Fernando: - Vejo que hoje estás muito espirituoso. Aproveitando essa tua boa disposição, mais uma vez te peço que me contes a história dessa boneca, que há tantos anos se encontra aí atrás desse balcão.

Ti Pedro: - Qual boneca ?! ... ah, a boneca! Pois está aqui há mais de dezesseis anos, mas por estes dias deve sair daqui.

Fernando: - Nem quero acreditar que vais dar essa boneca ...

Ti Pedro: - Estás completamente enganado, pois eu vou dar esta boneca e com grande prazer e à pessoa certa!

Fernando: - Pedro, tu cada vez estás a ficar mais misterioso. O que se passa contigo, homem? Vá lá, desembucha e diz-me que mistério tem essa boneca?

Ti Pedro: - Podes crer que não tem mistério nenhum. Nenhum mistério...

Fernando: - Então, se não tem qualquer mistério, sê amigo e conta-me a história dessa boneca. 

Ti Pedro: - Amanhã ou por estes dias, conto-te.

(Entra em cena nova personagem)

Joana: - Boa tarde, "Ti Pedro" e Sr. Fernando. Olhe, troque-me esta garrafa vazia por uma cheia de vinho tinto. Se possível, pode ser fresquinho.

Ti Pedro: - Olha a tia Joana! Então, tem tido notícias do seu filho Américo?

Joana: - Tenho, tenho. Ele continua lá pelos "estrangeiros". É a vida dele, sabe?

Fernando: - Vocês desculpem-me de me meter na vossa conversa. Se não me engano, o seu Américo, desde que imigrou para o estrangeiro, nunca mais veio a Portugal, pois não?   

Joana: - O meu filho é um homem de vergonha e, assim que saiu da prisão, foi logo para o estrangeiro, e nunca mais cá voltou.

Fernando: - Que pena! um rapaz tão trabalhador e tão honesto... custa a compreender como é que se meteu naquela embrulhada do contrabando.

Joana: - Nem eu compreendo, Sr. Fernando, pois, o meu Américo sempre foi o que se pode chamar "uma joia de pessoa" e um filho exemplar. Agora é um inválido

Fernando: - O quê? Um inválido?! ... ora diga-me lá o que se passa, tia Joana!

Joana: - Não se passa nada... nada, nada. "Ti Pedro", dê-me a garrafa, pois estou com muita pressa...

Ti Pedro: - É muito curioso. A tia Joana, habitualmente, não vinha aqui comprar vinho, mas, há  uns tempos para cá, vem todos os dias comprar uma garrafa...

Joana: - Sim, sim uma garrafa. Sabe, é para, para temperar a comida ... ganhei agora o hábito de temperar todos as comidas...fazer "vinho d`alhos”... compreende, não compreende ?

Ti Pedro: - Francamente, não compreendo mesmo nada. Mas enfim ...

Joana: - Bem, agora que já estou aviada, tenho que me ir embora.

Ti Pedro: -  Tia Joana, fique mais um pouco, por favor. Disse-nos há pouco que o Américo estava inválido?

Joana: - Mas eu disse isso ?

Ti Pedro: - Pois disse...

Joana: - Então, foi sem querer !

Ti Pedro: - Eu logo compreendi que tinha sido sem querer. Tia Joana, diga-me: o Américo está cá?

Joana: - Ai que chatice... deixe-me ir embora, "Ti Pedro"!

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo está cá?

Joana: - Por favor deixem-me ir embora! Deixem-me, deixem-me. E deixem-no a ele, ao meu pobre filho, pois ele, coitadinho, está inválido!

Fernando: - Tia Joana, o que se passa, ou melhor, o que se passou com o Américo?... Nós somos amigos dele e por isso, temos o direito de saber, para assim o podermos ajudar.

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo sofreu algum acidente?

Joana: - Meu Deus, que infeliz que eu sou... o meu pobre filho sofreu um acidente com a máquina que trabalhava e, ficou sem um braço. Aquele infeliz nunca teve sorte na vida!

Fernando: - Lamento muito. Coitado do Américo!

Ti Pedro: - Mas diga-me lá, tia Joana, o Américo está cá ou não?

Joana: - Está cá, está. Mas tem vergonha de sair de casa. O espectro da prisão persegue-o, e agora pior ainda, pois não tem um braço. Que infeliz é o meu Américo!

Fernando: - Lamento muito, mas mesmo muito. Mas, tia Joana, por favor, acalme-se.

Ti Pedro: - Mas ainda bem que o Américo está cá, pois eu preciso muito de falar com ele.

Joana: - Quem me dera que o meu filho saísse de casa, que convivesse com os amigos. Que saísse daquele quarto escuro, em que voluntariamente se encerrou. Talvez daqui a algum tempo perca os complexos que hoje tem, e então comece a sair. Oxalá que comece novamente a viver a conviver!

Ti Pedro: - Tia Joana, eu hoje sem falta, tenho de falar ao Américo!

Joana: - Falar para quê, "Ti Pedro" ?!... Por acaso, o meu filho ficou a dever-lhe alguma coisa? Se é isso, diga-me por favor, pois eu, apesar de ser muito pobre, com certeza que lhe pagarei.

Ti Pedro: - O Américo não me deve nada, e que eu saiba, não deve nada a ninguém. Mas eu preciso de falar com ele, sobre um assunto pessoal, de interesse comum. Tia Joana, pode crer que é um assunto que interessa a ambos...

Joana: - Se por acaso o meu filho vem a saber que eu contei a alguém que ele está cá, vai ficar muito zangado comigo! E eu não quero que ele fique desiludido comigo, que sou a sua mãe! O Américo tem sofrido muito, muito, e só eu, com o coração de mãe, o posso compreender.
Desculpe-me, "Ti Pedro", mas eu não lhe posso dar o seu recado!

Fernando: - A tia Joana pode-lhe dizer que eu, um dia destes, passei perto de sua casa e que o ouvi falar. Logo fiquei muito desconfiado, e que hoje, por acaso, a encontrei no café e lhe falei no caso. E a tia Joana, sem querer caiu na armadilha que eu lhe montei, para saber se ele tinha ou não regressado a Portugal. Valeu? ...

Joana: - Não sei, Sr. Fernando... Se o meu filho vai aceitar essa desculpa, pois, como é natural, anda muito desconfiado.

Fernando: - Resulta, sim, tia Joana! vai ver que vai resultar. Para mais, o rapaz não pode passar o resto da vida escondido. Lá por ter estado preso por causa de contrabando, e depois, ter ficado sem um braço, quando trabalhava no estrangeiro, não é razão para ele se esconder.

Ti Pedro: - Olha, Fernando. Mudando de assunto, tenho a sensação que vêm aí os jornais.

Fernando: - Tens toda a razão, pois também a mim me parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso ...

Joana: - E eu vou indo para casa. Mas antes, peço-vos que não digam a ninguém que o meu filho Américo, está cá.

Ti Pedro: - Fique descansada, tia Joana!

Fernando: - Tia Joana, peço-lhe que não se esqueça de fazer o que eu lhe disse, está bem?

Ti Pedro: - Assim como também não se esqueça, que eu hoje, sem falta, preciso de falar com o Américo!

Fernando: - Olha que nos enganámos, Pedro. Ainda não é desta vez que chegam os jornais. O barulho que estávamos a ouvir, era de um expresso de excursão, mas...

(Nova personagem entra em cena)

Maria do Carmo: - Boa tardes, "Ti Pedro" e Sr. Fernando! O tempo está a aquecer. O que também não admira, pois já estamos perto do Verão.

Ti Pedro: - Olá, garotona!

Fernando: - Aqui a nossa querida Maria do Carmo, cada vez está mais bonita!

Maria do Carmo: - Ora, ora. O Sr. Fernando está sempre a brincar comigo. Estou a ver que hoje, o expresso, está muito atrasado, não está?

Ti Pedro: - Tens toda a razão, Maria do Carmo.

Fernando: - E os jornais hoje nunca mais chegam!

Ti Pedro: - A tua, ou melhor, a nossa menina, a Eunice, deve chegar ainda hoje, não é verdade, Maria do Carmo?

Maria do Carmo: - Conto que ela venha na próxima carreira, pois já deve ter terminado os exames finais.

Ti Pedro: - Que cabecinha d` ouro que ela tem! Por isso é que ela tem sido uma magnífica estudante e que nunca chumbou nenhum ano!

Fernando: - E só de pensar que ela, por causa daquela doença nos ossos, passou aqueles anos todos num sanatório. Mas, felizmente que hoje, quase não se nota que ela coxeia um pouco.

Maria do Carmo: -  Teve a sorte de ter encontrado um grande cirurgião, além de ter também tido a sorte de uma pessoa desconhecida, que lhe pagou todas as despesas da operação, e também os estudos. Mas Graças a Deus, a esta hora já deve estar licenciada!

Fernando: - Sempre gostava de saber quem foi esse desconhecido que lhe pagou tudo ?

Maria do Carmo: - Eu também não sei e gostava de saber, mas nunca cheguei a descobrir. E parece-me que nem aqui o "Ti Pedro", embora todo o dinheiro que essa pessoa desconhecida mandou para a Eunice, lhe tivesse passado pelas suas mãos. Ou será que o "Ti Pedro" sabe quem é, e não nos quer dizer ...?!

Ti Pedro: - Eu já vos tenho dito muitas vezes que não sei quem é. Por favor não me venham agora com essas conversas, porque eu já vos tenho dito que também não sei quem é essa pessoa; o que também pouco interessa...

Fernando: - Tenho-me questionado se seria algum dos muitos amantes que a mãe teve?

Ti Pedro: - Não, não é esse o caso.

Maria do Carmo: - Também não me parece que seja, pois esses, só a exploraram. Por isso é que a desgraçadinha morreu na pior das misérias!

Tio Pedro: - Já o pai tinha morrido, tragicamente, na chamada Guerra do Ultramar. Se não fosse o tal misterioso benfeitor, o que teria sido da nossa Eunice?

Fernando: - Aqui p`ra nós, vocês não desconfiam mesmo quem possa ser essa misteriosa personagem?

Ti Pedro: - Eu já vos disse que não desconfio de nada nem de ninguém!

Maria do Carmo: - Eu lá desconfiar, desconfio. Mas é assunto só para eu comentar com os meus botões.

Fernando: - Por acaso será que este mistério esteja dentro daquela boneca, que o "Ti Pedro" tem ali naquela prateleira, há tantos anos?

Ti Pedro: - Francamente, por muita vontade que tenha, não vos estou a compreender. Aquela boneca não tem qualquer mistério. Vocês hoje é que se voltaram p`ra aí...

Fernando: - Mas o certo é que tu já me disseste que hoje, aquela boneca, ia sair dali para sempre. Não foi? 

Ti Pedro: - E daí, homem? Em minha casa não poderei dizer o que muito bem queira?

Fernando: - Não é por nada, Pedro, e por favor, não te irrites. Para mais, daqui a pouco deve chegar a Eunice, já com o "canudo" e com o título acadêmico de "doutora".

Ti Pedro: - Cá p`ra mim, tu continuas a tentar esconder alguma coisa ... cada vez te compreendo menos, Fernando!

Maria do Carmo: - Escutem, escutem. Parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso. Vocês, por acaso, não ouvem?

Ti Pedro: - Sim, sim. Também parece que estou a ouvir o motor, do outro lado do vale. Fernando, os teus jornais já devem de estar a chegar...

Fernando: - Como sempre, anseio que eles cheguem, para saber o que vai por esse mundo. Mas, não sei o que sinto, ou melhor, pressinto. Parece-me que hoje vai acontecer qualquer coisa de muito especial

(neste momento entra em cena outra personagem)

Américo: - Boa tarde a todos. A minha mãe disse-me que o "Ti Pedro" me queria dizer qualquer coisa.

Ti Pedro: - Olha, mas és tu, és tu, o Américo, o filho da tia Joana?!

Fernando: - Olha, o Américo! Que saudades já tinha de ti!

Américo: - Sim, vocês não se enganam, meus amigos. Sou eu, o Américo, ex-presidiário e maneta permanente!

Ti Pedro: - Tu, meu rapaz! Que alegria me dás!

Américo: - Alegria... ou piedade ?!

Ti Pedro: - Qual piedade, qual carapuça! Tu, com ou sem um braço, és e serás sempre o mesmo: um grande homem!

Fernando: - Atenção que o expresso, cada vez está a aproximar-se mais.

Ti Pedro: - Américo, por acaso sabes que é que está a chegar no expresso?

Américo: - Como é que eu posso saber, se há tantos anos estou afastado desta terra?

Ti Pedro: - Tens toda a razão Américo, mas eu vou-te dizer: deve vir lá a Eunice, a nossa querida Eunice!

Américo: - De verdade ?!... Então, vou-me já embora, "Ti Pedro".

Ti Pedro: - Não. Tu Não te podes ir já embora, pois ainda não falei contigo!

Américo: - "Ti Pedro", deixe-me ir embora!

Ti Pedro: - Espera um pouco mais, Américo. Olha p`ra aqui: a boneca que há muitos anos deste à Eunice, ainda está aqui. Tu, antes de ires para a prisão, encarregaste-me de ser o seu "fiel" depositário. Pois bem, a Eunice ...

Maria do Carmo: - A nossa menina, a nossa Eunice, finalmente, chegou!

Ti Pedro: - O que vocês querem dizer, é que a nossa querida doutora Eunice, chegou !

(entra em cena outra personagem: a Eunice ...)

Eunice: - Olá!!! Mal estou a chegar e já me estão a ofender. Eu sempre fui e continuarei a ser a Eunice, a vossa menina!

Ti Pedro: - Mas tu agora, tens um curso superior, Eunice!

Eunice: - O que eu tenho é uma valorização pessoal, que muitos podiam ter, se tivessem a sorte de encontrar um benfeitor como eu tive. Mas, com esta barafunda toda, nem sequer ainda os cumprimentei: Boas tardes a todos!... Cheguei, sou a Eunice, aquela menina que vocês bem conhecem desde pequenina !

Ti Pedro: - Senta-te aqui, ao pé do Sr. Américo.

Eunice: - Com todo o prazer. Já há muito tempo que não tinha o prazer de o ver. O Sr. Américo, dá-me licença que eu lhe dê um beijo na sua face?

Américo: - Um beijo?! Um beijo a mim?!

Eunice: - Porque não, Sr. Américo?! Olhe que eu não tenho nenhuma doença contagiosa!

Américo: - Não é isso. È que eu, é que eu ... já estive preso e, além disso, não tenho um braço.

Eunice: - E o que é que isso importa?!... se esteve preso, pagou uma dívida que teve com a Sociedade; se teve um acidente, do qual perdeu um braço, é uma situação que pode acontecer a qualquer pessoa.

Américo: - E também já tenho os cabelos grisalhos.

Eunice: - Ora. Ora. A isso, chama-se vaidade masculina. Vejam lá por ter uns cabelitos brancos, já se considera velho! O Sr. Américo ainda é um belo homem!

Ti Pedro: - Peço desculpa, mas tenho de interromper a vossa agradável conversa, pois, há mais de dezesseis anos que ando como embuchado. Américo, está aqui a boneca que tu, naquele dia em que foste preso, deixaste aqui para quando a Eunice acabasse o curso, a entregar-lhe. Pois bem, entrega-a tu. Eu, estou velho, cansado, mas muito feliz por ter cumprido esta missão.

Eunice: - Esta boneca é para mim?!... E foi o Sr. Américo que me ofereceu?! ... Muito obrigado. Como sabem, eu sempre adorei esta boneca. O "Ti Pedro" deve-se lembrar bem que, quando era pequena, ficava longos minutos a admirá-la. Mas o "Ti Pedro" nunca me disse que a  boneca era para mim!

Ti Pedro: - E também nunca te disse que o teu benfeitor, era o Sr. Américo!

Eunice: - O Sr. Américo?!!! ... Mas, mas porquê?

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", peço-lhe que não fale mais neste assunto.

Eunice: - Desculpe, Sr. Américo, mas eu quero saber tudo - tudo, percebem? Eu tenho o direito de saber, por favor, digam-me!

Ti Pedro: -  É um conto muito longo. Mas eu vou tentar ser o mais sucinto possível, pois encontro-me muito cansado, muito doente. Este meu coração...

Américo: - "Ti Pedro", por favor, não se canse mais, pois não merece a pena estar a falar mais neste assunto.

Ti Pedro: - Merece, merece meu rapaz. Para mais, eu tenho de terminar este trabalho que me deste há dezesseis anos. Eunice, vem cá. O Sr. Américo sempre gostou muito da tua mãe (da tua pobre mãe, que tão cedo nos deixou), mesmo antes de ela ter casado com o teu infeliz pai, que lá ficou naquela maldita Guerra Colonial...

Fernando: - Pedro, tu não estás bem, pois não. Deixa-me pôr esta almofada nas tuas costas.

Ti Pedro: -  Põe lá essa almofada. Assim, estou muito melhor  -  obrigado,  Fernando. Mas como ia a contar, tu eras muito pequenina e já há muito que estavas internada num sanatório, para os lados de Lisboa. Precisavas, urgentemente, de seres operada...

Fernando: - Tu não estás a sentir-te muito bem, pois não, Pedro?... Estás cada vez a ficares mais pálido...

Ti Pedro: - Estou a sentir-me muito cansado... ai, este meu coração... mas vamos ao que interessa. Tu precisavas de ser operada por um grande especialista, mas não havia dinheiro. Foi, para conseguir essa importância, que o Américo se meteu nessa do contrabando, acabando por ser preso. Mas, mesmo assim, conseguiu o dinheiro necessário para a tua operação ...

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", não continue.

Ti Pedro: - Já falta pouco, podes crer... Depois de sair da prisão, o Américo, por vergonha e por necessidade de ganhar dinheiro para os teus estudos, emigrou para o estrangeiro...

Eunice: - Eu, estou tão confusa, tão surpreendida... tão agradecida, que não consigo encontrar palavras adequadas para me exprimir!

Ti Pedro: - Dentro da boneca, encontra-se um papel, que eu quero que o leiam... depois de eu morrer...

Américo: - O "Ti Pedro" está tão pálido...

Eunice: - Atenção !!!... O "Ti Pedro" está a cair!... Por favor, chamem já uma ambulância. Depressa, depressa...

Ti Pedro: - Não se incomodem... Já não merece a pena, meus filhos... ai, este meu coração... Olha lá, Américo...

Eunice: - Um médico por favor, por favor...                                         
Ti Pedro: - A minha missão... está cumprida... parto em paz...

* * * * * * * * * 
Eunice: - Morreu, morreu o "Ti Pedro" - que bondoso velhinho!

Américo: - Eu, um ex-presidiário e um inválido, é que devia ter morrido!

Fernando: - Tu, Américo, ainda não cumpriste a tua missão cá na Terra. Hoje, morreu um grande homem, o "Ti Pedro". Amanhã morrerá outro ...

Américo: - Para o "Ti Pedro", acabou-se tudo!

Maria do Carmo: - Se há funerais bonitos, este foi um deles.

Eunice: - Tanta gente o acompanhou até à sua última morada... ele bem o mereceu, pois sempre foi muito educado e bondoso para toda a gente.

Maria do Carmo: - Descansa em paz, "Ti Pedro"!

Américo: -  E nós vamos embora, pois nada mais fazemos aqui.

Maria do Carmo: - Nenhum familiar dele o veio acompanhar.

Fernando: - Ele, também nunca nos falou que tinha família.

Maria do Carmo: - Então, não deve ter descendentes... 

Eunice: - Pois não. E sendo assim, é uma pena aquele café ficar encerrado. Por falar em café, tenho que lá passar para ir buscar a minha boneca.

Fernando: - E dentro da boneca, como o "Ti Pedro" nos disse, deve de estar um papel com alguma mensagem. Por curiosidade, gostava de saber o conteúdo dessa mensagem.

Eunice: - Então, podemos ir agora todos ao café.

Maria do Carmo: - E até nos calha em caminho.

Américo: - E assim podemos a ficar a saber a última vontade do "Ti Pedro".
* * * * * * * * * 

Eunice: -  Quem havia de dizer que esta boneca um dia seria minha! Madrinha, estou tão impressionada...

Maria do Carmo: - A boneca é muito linda, mas, sobretudo representa um gesto muito bonito de um verdadeiro altruísta, ou seja, o Américo.

Américo: - Por favor, não falem mais em mim. Ainda me obrigam a eu ir-me embora.

Fernando: - Oh Américo, modéstia em demasia, é um grande defeito que deve ser corrigido. Para mais, tu és tão brioso!

Maria do Carmo: -  O Fernando tem toda a razão. O Américo não pode ser tão modesto, pois é um homem que tem muito valor.                                                                                              
Fernando: - Com esta conversa toda, já estou a ficar ansioso por saber qual o teor da mensagem que o "Ti Pedro" deixou dentro dessa boneca.

Eunice: - Tenha calma, Sr. Fernando, pois já vamos ver.

Américo: - A caixa de celofane está deslocada na parte de trás.

Eunice: - Tem razão, e é por esse lado que eu vou tirar a boneca do celofane ... Olhem, cá o papel. O Sr. Américo quer lê-lo? 

Américo: - Eu mal sei ler. Lê tu, Eunice.

Eunice: - Então tomem muita atenção: "A 2 de Janeiro de mil novecentos e tal, no cartório da cidade, fiz o meu testamento, considerando meu herdeiro universal, Américo Araújo. Depois de eu morrer, entreguem esta mensagem ao Américo Araújo, pois, a partir dessa data, este café passa a ser dele ...".

Américo: - Não compreendo... Porque seria que o "Ti Pedro" me fez seu herdeiro universal?!... Mas eu não posso aceitar, para mais, sou um inválido ...

Fernando: - O "Ti Pedro" fez-te seu herdeiro universal, porque te apreciava muito. Agora, meu rapaz, é preciso teres brio, pois capacidade tens tu. E este café não pode fechar...

Eunice: - O Sr. Américo, só é um inválido se quiser. Mas eu, ou melhor, todos nós temos confiança em si, pois temos a certeza que irá reagir. Madrinha, vamos fazer a limpeza ao café? 

Maria do Carmo: -  É p`ra já. O "Ti Pedro", tinha os utensílios de limpeza e os detergentes todos bem arrumadinhos, naquela dispensa. Vou já buscá-los.

Fernando: - E eu também vou ajudar... a limpar o pó, claro!
Américo: - Ai! Aonde eu estou metido!... Um inválido como eu, e além disso, não percebo mesmo nada deste negócio, pois eu sempre trabalhei na indústria metalúrgica.

Maria do Carmo: - Olha Américo, escusas de estar p`ra aí com essas lamúrias, pois ninguém te está a ouvir. Vamos mas é ao trabalho!

Fernando: - Se nós te não conhecessemos tão bem, diríamos que estavas a fugir ao trabalho, e que não querias fazer nada, alegando que estavas inválido!

(Outra personagem entra em cena : Uma Voz mais outra Voz)

Voz: - Boa tarde. Vendo refrigerantes, águas e cervejas - o que é que precisa para a próxima semana ?

Américo: - O senhor é o distribuidor ?
Voz: - Sou o empregado do distribuidor.

Américo: - Então, para a próxima semana pode trazer: três grades de sumos, duas de águas e quatro de cervejas.

Voz: - Muito bem. Então, até p`ra a semana, e obrigado.

2ª Voz: - Vizinho, pode aviar-me um sumo de maçã, sem borbulhas?

Américo: - Pois posso, pois não estou aqui para outra coisa. Olha, queres um copo?

2ª Voz: - Pode ser e, também quero daqueles chocolates.

Américo: - Este aqui?

2ª Voz: - O que está ao lado desse. Está aqui o dinheiro e trocadinho.

3ª Voz: - Um maço de cigarros e uma bica curta. Já chegaram os jornais?

Américo: - Ainda não chegaram, mas o expresso não deve tardar aí. Queres que te guarde algum?

3ª Voz: - Eu espero pelo expresso.

2ª Voz: - Vizinho, o chocolate tem um prêmio.

Fernando: - Chiuu, cheguem aqui. Estão a ver o que eu estou a ver?

Maria do Carmo: - Isto aqui p`ra nós que ninguém nos está a ouvir: o Américo tem muito jeito para o negócio. Até parece que passou toda a sua vida atrás de um balcão.

Eunice: - E sobretudo, muita força de vontade. È um homem brioso. Reparem como ele, apesar de não ter um braço, consegue tirar tão bem as tampas das garrafas!

Fernando: - Temos o homem. O café "Ti Pedro" vai continuar...

Américo: - E vocês aí só falam, falam e não trabalham. Daqui a pouco os clientes começam a reclamar, pois há muito pó no ar!!!

FIM

Peça teatral dramática de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Fonte: