quinta-feira, 11 de junho de 2020

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 16 - Trabalho


É pelo trabalho que o homem se reinventa e supera-se. A importância do trabalho está no seu papel fundamental para o equilíbrio do homem, bem como para sua inserção no meio social, para sua saúde física e mental.

Não há maior bem no mundo
que o homem possa almejar:
- manter-se ativo e fecundo,
ter saúde e trabalhar.
Gonzaga da Silva - RN

O trabalho é luta santa
que não vislumbra medalha,
e um país só se levanta
pelas mãos de quem trabalha.
José Lucas de Barros - RN

Preces, crenças, ritos, cultos...
Tudo é valor sem medida.
No entanto, a paz do trabalho
é a bênção maior da vida.
Auta de Souza - RN

Comigo, num certo dia,
meu coração conversando
prometeu o que eu queria:
continuar trabalhando.
Andière Abreu - RN

De sonhar não me envergonho,
mas ante o dever, não falho:
troco a varanda do sonho
pelo galpão do trabalho!
José Tavares de Lima - MG

Os gregos tinham duas palavras para designar trabalho: ponos, que faz referência ao esforço e à penalidade, e ergon, que designa a criação, a obra de arte. A diferença entre trabalhar no sentido de penar (ponein) e trabalhar no sentido de criar (ergozomai) pode ser expressa na seguinte trova:

Com talhadeira e martelo,
finas madeiras entalho...
E esse trabalho é tão belo
que já nem sei se é trabalho.
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

O mundo capitalista globalizado procura esconder o sofrimento no trabalho. A mídia mostra apenas o progresso refletido nas vitrines, sem avaliar o quanto custou em exploração do trabalhador. São poucos os que percebem que é o trabalho que move o mundo e não o dinheiro;

Da face do mundo inteiro
tirei um saber profundo...
É trabalho, e não dinheiro,
o força que move o mundo!
Lucília Trindade Decarli - PR

Mas é preciso reconhecer que muitas vezes o trabalho comporta todo um pano de fundo de sofrimento e de constrangimento, historicamente condicionado. Com o advento da era industrial, o trabalhador perdeu o controle sobre os meios de produção, transformando-se num autômato na linha de montagem.

O trabalho passa a ser o mediador da passagem do sofrimento para o prazer quando ocorre o espaço aberto de discussão e são respeitadas a singularidade e a subjetividade de cada um, possibilitando a construção de relações mais satisfatórias. Infelizmente na maioria dos casos não é isso que ocorre,

Assim como há riqueza na terra para todos, há possibilidade de trabalho também para todos. O problema é que os "donos" do mundo, a fim de manter os salários aviltados criaram as chamadas reservas de mão de obra.


Enquanto proles "distintas"
esbanjam pão e agasalho...
milhões de bocas famintas
vivem clamando trabalho.
Djalma Alves da Mota - RN

Trabalhador sem trabalho,
faminto sem ter comida,
fazem da vida um atalho,
uma vereda esquecida!... 
Gonzaga da Silva - RN

Ao gerar prosperidade
e bem-estar social
o trabalho é, na verdade,
o maior bem contra o mal
Joamir Medeiros - RN

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Emperrado)


TIA VERUSCA OLHOU PARA A SOBRINHA de seis anos que dormia como um anjinho e comentou com Godofredo, seu marido:

– Olhe só para a Luma, veja que menina linda!

– Puxou ao pai.

– Mas, em compensação, espoleta igual a ela está por nascer...

– Puxou à mãe.

– Já percebeu um sorriso sempre alegre bailando em seu rostinho largo?

– Puxou ao pai.

– E os pezinhos? Que fofura!

– Puxou à mãe.

– Os olhos verdes são meus.

– Qual o quê! Puxou ao pai.

– Os cabelos encaracolados... As sobrancelhas...

– Puxou à mãe.

– Mentirosa! Já aprendeu a mentir, a espertinha...

– Puxou ao pai.

– Carinhosa, delicada, meiga...

– Puxou à mãe.

– Emburra, fecha a cara quando a babá põe na mamadeira leite frio com chocolate. Ela odeia.

– Puxou ao pai...

– Nesse ponto concordo com você: chata para comer igual ao Tião, está por existir...

– Puxou à mãe.

– Engraçadinho, você. Puxou ao pai, puxou à mãe. E a tia? Será que Luma não tem nada de mim?

– Acertou em cheio. Nada. Puxou à mãe.

– Dorminhoca!

– Puxou ao pai.

– Aprendeu a contar historinhas.

– Puxou à mãe.

– Não gosta de tomar banho, igual o tio chato...

– Um a zero para você: nisso ela puxou ao pai.

– Estudiosa. Só recebe elogios da professora.

– Puxou à mãe.

– Tem um problema: gosta de bater nas coleguinhas.

– Puxou ao pai.

– O Tião vivia dando porradas nos amiguinhos?

– Quase que diariamente. Puxou à mãe.

– O quê?

– Puxou à mãe, eu disse.

– Vira o disco. Deixe de ser asqueroso.

– Puxei a você.

A mulher ficou furiosa com essa conversa furada e cansativa do marido que não saía do: “puxou à mãe, puxou ao pai”. Estava de saco cheio. Partiu para cima do sujeito e acabou acertando uma unhada que deixou uma marca enorme no lado esquerdo de seu rosto. A briga dos dois despertou a pequena Luma que dormia tranquilamente ao lado num sofá de canto de sala. A jovenzinha acordou braba e ainda por cima chorando. A babá veio lá de dentro. A mãe e o pai também.

– Que foi que aconteceu? Que arranhão é esse na sua cara, mano?

– A Verusca.

– Eu sabia: puxou nosso pai.

– Até você, mana?

– E não gosta que lhe chamem a atenção: puxou a mãe.

A confusão recomeçou, desta vez mais acirrada

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013.  Ebook enviado pelo autor.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 289


Malba Tahan (O Leão Irritado)


Certa manhã o Rei Leão, depois de uma noite agitada por maus sonhos e terríveis pesadelos, acordou irritado.

Os animais, tomados de pânico, reuniram-se na grande floresta. Que fazer? O Rei Leão está de mau humor, enfurecido! Como levar a tranquilidade e a calma ao espírito do poderoso e invencível soberano?

— Tenho uma ideia — começou o prudente Camelo, dirigindo-se aos outros animais. — O Rei Leão gosta muito de ouvir contar lendas e histórias maravilhosas. Se um de nós for à sua presença e lhe relatar um caso original e interessante, estou certo de que ele se acalmará e a bondade lhe há de voltar ao coração.

— Quem, entretanto, terá a audácia de aproximar-se do Rei Leão? — acudiu tristonho o Elefante — Qual de vocês conhece alguma história digna de ser ouvida por Sua Majestade?

— Nada mais fácil — retorquiu a Raposa, com trejeitos de orgulhosa. — Coragem não me falta, nem me há de faltar nunca! E se o curar-se o Rei depende apenas do relato de uma história, é-me facílimo aplicar-lhe o remédio. Conheço trezentas histórias, lendas e fábulas interessantíssimas que aprendi no decurso de longas viagens empreendidas pelo mundo. Uma dessas histórias há de, por força, agradar ao nosso impávido soberano e dissipar a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

— Muito bem! Muito bem! — conclamaram alegres os outros animais — Está resolvido o caso! Vamos ao palácio do Rei Leão!

Puseram-se todos a caminho, pavoneando-se, à frente da numerosa comitiva, a esperta Raposa, que sabia trezentas histórias!

No meio da jornada, porém, a Raposa parou repentinamente e assustada, a tremer, exclamou dirigindo-se aos companheiros:

— Meus queridos amigos, grande infortúnio acaba de ferir-me!

— Que foi? Que aconteceu? — indagaram todos aflitos.

— Das trezentas histórias que eu tão bem sabia esqueceu-me agora o fio de cem!

— Não te aflijas por isto — afirmaram os outros animais. — Duzentas histórias são suficientes. Uma delas há de, por força, agradar ao Rei e dissipar de seu espírito a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

E o cortejo novamente se pôs em marcha pela larga e verdejante estrada que conduzia ao palácio do soberano da floresta.

Momentos depois, quando já se ouviam nitidamente os urros atordoadores do Leão, a Raposa parou novamente e, ainda mais assustada, voltou-se para os que a acompanhavam dizendo-lhes com voz transformada:

— Amigos! Nova e terrível desgraça me vem surpreender!

— Que foi que te aconteceu, amiga Raposa? — acudiram pressurosos e em coro os companheiros.

— Das duzentas histórias que eu sabia na ponta da língua — balbuciou chorosa — de cem não me lembro mais!

— Não vai nisso grande mal, boa amiga — redarguiram os animais já duvidosos da segurança de tão apregoada memória. — Cem histórias dão de sobra! A metade desse número bastaria, por certo, ao próprio Sultão! Em cem casos de peripécias atraentes uma há de agradar ao Rei Leão e dissipar de seu espírito e agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

E, isto dizendo, puseram-se novamente a caminho, levando por diante a Raposa, que parecia triste e abatida com o seu apoquentador esquecimento.

Quando o cortejo — que engrossara consideravelmente com a adesão de muitos outros
animais — chegava diante do palácio do Leão, a Raposa teve um desmaio e rolou desamparada pelo chão.

Reanimada, porém, pelos desvelos dos companheiros, reabriu os olhos e com voz sucumbida confessou tremente:

— Que desgraça, meus amigos! Não sei como ocultar-lhes que já não me lembro das cem últimas histórias de que ainda há pouco me recordava tão bem!

A infanda revelação da Raposa causou entre os animais presentes verdadeira desolação. Que fariam eles? Como remediar a situação? Já sabiam todos — pelos urros mais fortes e mais frequentes do Rei Leão — que Sua Majestade, exaltado e impaciente, se achava na sala do trono à espera do anunciado emissário que vinha trazer-lhe calma ao espírito agitado. Quem seria capaz, naquela grave emergência, de substituir a Raposa, atacada de tão forte acesso de amnésia?

O Chacal, prudente e sensato, sabedor do que acontecera à Raposa, reuniu os chefes do bando e disse-lhes:

— Meus camaradas! Sou, como bem sabeis, um animal rude e inculto! Tenho vivido sempre em soturnas grutas, isolado do mundo e dos poderosos. Aprendi, porém, com um velho mestre que tive nos primeiros anos de minha vida, uma história muito original, de que jamais me esquecerei. Estou certo de que, ao ouvir essa história, o nosso glorioso Rei Leão verá restituídas a calma e a tranquilidade ao seu espírito conturbado.

— Vai, Chacal! — exclamaram os animais — Quem sabe se não conseguirás com tua bela narrativa salvar-nos da fúria vingativa do Rei Leão!

Animado pelos amigos e companheiros, o Chacal galgou resoluto as longas escadarias do rico palácio que abrigava o exaltado soberano. A grande praça estava repleta. A população inteira da floresta aguardava ansiosamente o desfecho da arriscada tentativa. Esperavam todos, a cada instante, ouvir os uivos de dor que o pobre Chacal expediria quando estivesse sendo esmagado pelas garras impiedosas do Leão.

Decorridos, porém, alguns momentos de angustiosa expectativa, viram todos, perplexos, abrirem-se as portas do régio palácio e surgir, na larga varanda, o Rei Leão, calmo e satisfeito, a saudar risonho, com amáveis meneios de sua lustrosa juba, os súditos reunidos a seus pés. E para maior pasmo surgiu ao lado do temido Leão o abnegado Chacal, o peito escuro coberto de ricas medalhas e distintivos nobiliárquicos, a cintura envolta pela faixa dourada de ministro e conselheiro do Reino.

Os animais não se mexiam, de assombrados. Ninguém sabia explicar aquele espantoso mistério. Que teria contado o Chacal de tão extraordinário ao Rei Leão? Que história maravilhosa teria sido a que alterara tão radicalmente o gênio do monarca e fizera com que o seu narrador se tornasse digno de tão alta recompensa?

A curiosidade, mesmo entre os animais da floresta, é um fator da maior importância em todos os acontecimentos da vida. O Camelo, que fora até então um dos mais íntimos do Chacal, não podendo refrear a ânsia que o espicaçava, aproximou-se, discreto, do novo vizir do Rei e perguntou-lhe respeitosamente:

— Ilustre ministro, dizei-me, peço-vos por favor, que história contastes ao nosso glorioso soberano?

— Amigo Camelo — respondeu bondoso o Chacal — o conto que narrei ao Leão nada tem, realmente, de extraordinário. Aproximei-me do trono e contei-lhe, sem nada ocultar a peça que nos pregara a vaidosa Raposa! Sua Majestade achou-lhe muita graça e disse-me: — “É sempre assim, meu caro Chacal! É sempre assim! Longe de um rei violento e irritado todos se inspiram e apresentam ideias geniais! O verdadeiro talento e a verdadeira coragem só se revelam, porém, na ocasião exata e precisa ao defrontarem o risco e a ameaça”.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

III Concurso Internacional de Trovas do Uruguai (Trovas Premiadas)



Tema: GUIA

VETERANOS

Vencedores
1º Lugar

No ofício nobre, em que brilha,
confiante o cão me conduz!
É o guia da minha trilha,
para os meus olhos sem luz.
MÁRCIA JABER
Juiz de Fora - MG
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2º Lugar

No painel do caminhão,
uma frase traduzia
o que fala o coração:
“Eu dirijo, Deus me guia!”
GERALDO TROMBIN
 Americana – SP
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3º Lugar

Nos meus tempos de criança,
tudo era sonho e alegria!
Alma plena de esperança,
minha mãe: estrela-guia!
LEONILDA YVONNETI SPINA
 Londrina – PR
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4º Lugar

Não deixemos a alegria
sucumbir a uma aflição:
um sorriso é sempre guia
na pior escuridão.
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA
Saitama - Japão
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5º Lugar

Num mundo de nostalgia,
quisera ante o caos profundo,
ser aquela estrela-guia
guiando os passos do mundo!
CLENIR NEVES RIBEIRO
Nova Friburgo – RJ
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MENÇÃO  HONROSA

1º Lugar

Respeitar é garantia
que só nos guia à moral
e faz da moral, um guia,
que nos guia contra o mal.
PLÁCIDO FERREIRA DO AMARAL JÚNIOR
Caicó – RN
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2º Lugar

Vendo  o  mundo  em  aflição,
peço a Deus, bem  comovida,
em   sublime  devoção:
Sede  guia  em nossa vida!
NADIR NOGUEIRA GIOVANELLI
São José dos  Campos – SP
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3º Lugar

Se Deus te guia e abençoa,
então, filho amado, parte!
Por mais que a saudade doa,
me acharás sempre a esperar-te.
A. A. DE ASSIS
Maringá – PR
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 4º Lugar
Se tropeçares um dia,
não temas a escuridão…
Quem faz da luz o seu guia,
enxerga além da visão.
FRANCISCO GABRIEL RIBEIRO
Natal – RN
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5º Lugar

Sem saber por onde eu ia
na confusão dos caminhos,
você foi, enfim, o guia
que me afastou dos espinhos.
MARIA DULCE DE LIMA PESSOA
Tabira – PE
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MENÇÃO ESPECIAL

1º Lugar

Em meu céu de fantasia,
sou cometa e te proponho
que sejas a estrela-guia
que me acompanha em meu sonho!
RENATA PACCOLA
São Paulo – SP
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2º Lugar

Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis – RJ
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3º Lugar

Em meus desertos da vida
quem sempre se faz meu guia?
- Um Deus que me dá guarida
e, na alma, minha poesia !
DIONEZINE DE FÁTIMA NAVARRO
Ponta Grossa – PR
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4º Lugar

Se a fé te servir de guia
ao longo do teu destino,
em plena noite sombria,
vês um raio matutino!
CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI
Arcoverde –  PE
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5º Lugar

No meio da pandemia,
no tormento... solidão...
Quem tem amor como guia
conquistará salvação.
CÉLIA TEREZINHA NEVES VIEIRA
Irati – PR
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NOVOS TROVADORES


1º Lugar
A vida nos desafia,
só concluo e fico atenta:
Prefiro a mão que me guia
àquela que me sustenta!
RACHEL SANTO ANTONIO
São Gonçalo – RJ
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2º Lugar

Pelos caminhos da vida,
quem me guia é o bom Jesus,
sigo bem agradecida
por contar com Sua luz.
SUELY RIBELLA
Santos – SP
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3º Lugar

Vem! Guia-me nessa estrada.
Toma meu corpo sedento,
até surgir a alvorada
e inebriar-me de alento.
NILZE LENE DOS SANTOS BENEDICTO
São Gonçalo – RJ
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4º Lugar

À noite, mesmo sem luz,
caminhando ele dizia
que estava junto a Jesus
e era imbatível seu guia!
FLAVIO DE AZEVEDO LEVY
Campinas – SP
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5º Lugar

Mantenho a perseverança,
nesta vida em turbulência,
quando me falta esperança
meu guia é a resiliência.
HENRIQUE LÜCK
Rio Branco –  AC

Fonte:
Maria Luíza Walendowski - Coordenadora Final

Rachel de Queiroz (Emigrantes)

    

     Cearense é conhecido: pequenino (batoré), cara de índio, entusiasmado, cabeça chata. Tem muito cearense alto, branco, até louro, mas ninguém pode negar que o tipo geral é aquele mesmo — mais de 80% é.

Estrangeiro, aqui, sempre deu pouco e até mesmo negro chegou por cá moderado. Não havia cultura nem mineração que justificassem a caríssima aquisição da mão-de-obra  servil. Tão cara, em verdade, que no tempo em que um alto funcionário não ganhava talvez um conto de réis por ano, um negro novo e sadio, bom de peito, dava até dois contos de réis. E, pois, como aqui não se produzia açúcar nem café, nem nada dessas culturas que dão bom dinheiro, apenas alguns mais ricos compravam negros para o serviço doméstico. E, claro, compravam só a semente — um casal, um terno de africanos importados. O resto ia se criando em casa, para isso estavam às ordens o sinhô velho e os sinhozinhos, sob a vista grossa da sinhá, que precisava das mulatas ladinas para suas mucamas. A lavra da terra, que era o gado, se fazia com pouca gente, e para o emprego de vaqueiro dava muito bem o índio andejo, cuja natureza era mesmo vaguear pelo sertão. Era apenas necessário lhe ensinar a querer bem a boi, a correr a cavalo. E estava pronto o centauro amarelinho de Euclides.

Teve também o contingente português. Dele saíram as chamadas melhores famílias, as tradicionais, as aristocráticas. Assim mesmo misturado com muita índia, quase na proporção daquele restaurante francês que anunciava pastéis de perdiz e, indagado o dono por um freguês se não punha alguma mistura na perdiz, ele confessou que punha 50% de carne de cavalo: assim: um cavalo, uma perdiz... Aqui também era um português só para muita índia, muita.

Mas passada a fase própria para a introdução desses alienígenas, a emigração para cá se deteve. As condições ásperas da terra, a pobreza geral, as ameaças de seca. (Pouca gente sabe que o nosso primeiro donatário morreu neste sertão de fome e sede, vítima da primeira seca registrada oficialmente. E mais, de quebra, um jesuíta.) Raro se encontrava um francês, um inglês, um alemão. De francês recordo só Boris e Meyer, e, muito mais tarde, os Gradvohl. Inglês só o pai do Barão de Studart, porque Mister Hull não foi emigrante, era inglês colonizador da estrada de ferro. E alemão teve, mas não recordo o nome. Colônia mesmo de europeu nunca existiu aqui, nem sequer lusitana. Não dava para se encher uma sala de baile com eles todos. Árabe (que, curiosamente, o povo pequeno chama de galego) foi o estrangeiro que melhor se adaptou ao Ceará, o que é natural. Tanto as condições da terra como o próprio caráter do cearense se adaptavam perfeitamente ao emigrante ismaelita.

Esses vieram, ficaram, chamaram os outros. É a única colônia apreciável que temos aqui. E já passaram a fase inicial de aclimação e pobreza, da segunda geração em diante os filhos foram tirando carta de doutor, casando com gente nativa e estamos aí com um belo contingente de cearenses com apelido árabe; o único defeito deles é que são árabes sem petróleo e sem petrodólares. Mas isso virá.

Agora porém há uma onda nova, aliás quase não se pode dizer que é uma onda, de tão discreta: são os japoneses. Entram no macio, em geral com contrato agrícola de algum fazendeiro mais progressista. Logo se instalam em terra própria e já conseguiram revolucionar a dieta alimentar senão do homem do interior, pelo menos dos fortalezenses, que aprenderam com os japoneses a consumir legumes — beterraba, cenoura, couve-flor, repolho. Subvertendo até a linguagem tradicional, pois legume, aqui, sempre se chamou o feijão e o milho. O resto é “verdura” ou mesmo “mato”. Até morango na serra plantam e ouvi dizer que deu ótimo, não vi. Mas japonês emigrante pode se destacar em outras terras de gente de cara branca. No Ceará se funde com o geral da população que tem a cara igual à deles.

Me lembro até de um caso, se passou faz muitos anos; nós morávamos no Pici, o nosso sítio que acabou dando o nome ao bairro que é hoje lá. Nos fundos do Asilo de Alienados, perto da lagoa de Parangaba onde Iracema tomava banho, as Irmãs de Caridade instalaram um japonês para fazer uma horta. A horta prosperou e o japonês — Seu Kamura — prosperou com ela. Mas só enquanto manteve a sua severa solidão nipônica. Depois Seu Kamura arranjou uma cabocla e começaram a aparecer os curuminzinhos, e era tudo o puro bugre. E o povo da terra não distinguia mais Seu Kamura do resto da caboclada e acabou que nem o próprio Seu Kamura se distinguia mais. Porque um belo dia ele entregou a horta às Irmãs. Agarrou a mulher e os curumins que já eram nove, arranjou um lote de terra para morar e ficou vivendo de plantar mandioca-de-catacumba, como os índios já plantavam desde o começo do mundo. Desde o começo do mundo, não. Porque não diz que o nosso índio é filho dos de raça amarela que vieram para a América através do estreito de Bering? Sendo assim, Seu Kamura apenas revertia ao original. E aliás deixou de se chamar Kamura, que a mulher não gostava. Passou a se chamar Nonato.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. Publicado originalmente em 1976.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 288


Altino Afonso Costa (Velha Marocas)


Ela não teve notícias da segunda guerra mundial.

Feia, cega de um olho, lampião a querosene "jacaré" pendurado em um galho de árvore; ao seu lado a "pica~pau " de carregar pela boca, com pólvora preta, fumacenta, bem socada com vareta de pau, bucha e pedaços de metais.

Na boca desdentada o cigarro de palha de fumo macaia ou o cachimbo de barro, vara de pescar rústica de taquara, própria para a pesca de lobó na lagoa; sob o olhar alento de seu vira-lata rabugento, essa era a velha Marocas, de cócoras à margem da ponte feita de pau roliço de coqueiro, às margens do Rio Tibiriçá.

Era uma figura dantesca, no meu tempo de moleque, que enchia de curiosidade o meu olhar quando ia pescar naquele rio.

Mulher que inspirava medo e respeito ao mesmo tempo; teria    sido sacrificada nas fogueiras da Santa Inquisição, pois passaria por feiticeira diante de qualquer tribunal eclesiástico da Idade Média.

Pobre Marocas, não fazia mal a ninguém, exceto aos animais incautos que rondavam os seus domínios à beira das lagoas.

Figura conhecida naquelas redondezas, que o tempo se encarregou de apagar.

Pobre selvagem como os ribeirinhos que a viam pescando e exibindo a sua fieira de peixes.

Pele ressequida e fustigada pelo sol, pelo vento e pelos mosquitos, causadores de tantas malárias.

Sua morada era a céu aberto à beira da estrada e sob árvores frondosas, que deixavam filtrar a luz do sol, da lua e das estrelas.

Velha Marocas, se teu espírito ainda estiver rondando por aí, não te esqueças de iluminar o caminho tortuoso e escuro daquele menino simples que ficava olhando para ti, com espanto, do alto das pinguelas; daquele menino que se vestia com roupas brancas feitas de sacos vazios de farinha de trigo "Santista", bornal a tiracolo, cheio de pelotas de argila e uma latinha com minhocas, trazendo o estilingue no pescoço, vara de pesca e bodoque nas mãos.

Não te esqueças, velha Marocas, do menino que vivia com os pés descalços sem pensar no amanhã e que hoje vive só pensando no futuro e na busca da felicidade fugidia. Peço a tua benção, velha guerreira das matas e lagoas do Rio Tibiriçá.

Enquanto o tempo passa, esquenta o teu peixe enlameado, no espeto sujo de bambu, na fogueira crepitante de gravetos.

Toma um trago da tua cachaça ou bebe da água barrenta da lagoa, solta uma baforada forte do teu cachimbo, espanta os espíritos maus da floresta com tiros para o céu; põe minhoca no anzol e deixa a vara de pesca na espera, na barranca do rio, e depois, velha Marocas, descansa na paz que nunca tiveste aqui na terra...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XVI


FRATERNIDADE

MOTE:
A fraternidade, eu creio,
está bem dentro de nós:
repartindo o pão ao meio,
mesmo quando estamos sós!

Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP


GLOSA:
A FRATERNIDADE, EU CREIO,
é um sentimento profundo
e que esteja, é o que eu anseio
aumentando em nosso mundo!

Sei que esta doce emoção,
ESTÁ BEM DENTRO DE NÓS:
nasce em nosso coração,
ouvimos a sua voz!

Suave brisa sobreveio
que eu senti, com paz e calma
REPARTINDO O PÃO AO MEIO,
bem no fundo de minha alma!

Vamos repartir o pão
pensando que logo após,
pode chegar um irmão...
MESMO QUANDO ESTAMOS SÓS!
****************************************

BRASIL – PORTUGAL

MOTE:
Tendo a grandeza por tema,
Portugal, em versos sãos,
o meu Brasil é um poema
escrito por tuas mãos!...

Sérgio Bernardo
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:

TENDO A GRANDEZA POR TEMA,
em tamanho e inspiração,
temos por princípio o lema:
tudo fazer c’o emoção!

À nós, tu sempre cantaste,
PORTUGAL, EM VERSOS SÃOS,
e é verdade o que falaste:
somos, na verdade, irmãos!

Tendo essa beleza extrema,
com tanto céu, tanto mar,
O MEU BRASIL É UM POEMA
gostoso de declamar!

Esse poema tão lindo,
é a união de nossos chãos
nesse teu querer infindo,
ESCRITO POR TUAS MÃOS!…
****************************************

EM SEU TRAJETO...

MOTE:

Que o poeta, em seu trajeto,
em vez de buscar a glória,
ensine aos homens o afeto
e mude os rumos da história.

Thalma Tavares
São Simão/SP

GLOSA:

QUE O POETA, EM SEU TRAJETO,
semeie amor no caminho
e a chuva banhe direto
a plantação de carinho!

Que o poeta busque a paz,
EM VEZ DE BUSCAR A GLÓRIA,
somente quem assim faz
é que consegue a vitória!

Que ele tenha em seu projeto
a semente da alegria,
ENSINE AOS HOMENS O AFETO
incrustado de poesia!

Que ele seja um vencedor
sempre, em sua trajetória,
que desperte muito amor
E MUDE OS RUMOS DA HISTÓRIA.
****************************************

MEU DIÁRIO

MOTE:

 Meu diário! Em tuas folhas,
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas,
que outros fizeram por mim!

Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


GLOSA:

MEU DIÁRIO! EM TUAS FOLHAS,
eu escrevo com emoção,
e peço que tu acolhas
os ais do meu coração!

Sem que eu possa controlar,
MORREM DESEJOS SEM FIM...
Os meus desejos de amar,
foram ceifados, enfim!

Feito um champanhe com bolhas,
que tonturas, faz sentir,
PAGO O PREÇO DAS ESCOLHAS,
das quais não pude fugir!

Diário, és meu confidente
e sofres comigo, assim,
pela escolha inconveniente
QUE OUTROS FIZERAM POR MIM!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Basílio de Magalhães (A Rainha das Onças)


Era um dia, uma moça muito pobre, que tinha um filhinho. Uma vez, não tendo comida nenhuma para dar ao menino, agarrou-o e saiu de casa desesperada da vida, disposta a ir a toa pelo mundo afora. Em vez de seguir a estrada real, tomou por um atalho, perdendo-se no mato.

Quando já tinha andado muito, encontrou um velho que lhe disse:

- Ih! minha filha, você por aqui vai dar na casa da onça-verdadeira que é a rainha das onças.

- Ai! meu velho, que é que eu hei de fazer? Não sei caminho nem carreira; já estou perdida nestas brenhas e o jeito que tenho é ir aonde Deus quiser me levar.

E contou-lhe o motivo que a obrigava a andar por aqueles fins de mundo.

- Está bem. - disse-lhe o velho – Quando você chegar na casa da rainha das onças, há de ver uma muito grande, sentada na porta. É essa. Salve ela e diga que foi pedir para ela ser madrinha de seu filho.

A moça despediu-se do velho, depois de lhe ter agradecido muito o conselho e toca a andar. Andou, andou, até que deu naquele campo vasto, de admirar, tendo ao meio uma casa muito grande, que era um convento, rodeada de uma porção de onças. Na porta estava uma que era um mundo, de enorme, sentada, lambendo as patas. Com muito receio, a moça chegou perto dela, levando o filhinho pela mão e disse:

- Bom dia. Eu vim aqui pedir a vosmincê pra ser madrinha deste menino.

A onça-verdadeira, com a cara muito fechada, sem dizer palavra, pôs-se a olhar para a moça e para o filho. E as onças todas que estavam por ali, ficaram também muito quietas, olhando para os dois. Afinal, a verdadeira disse que sim. Pegou na criança, deu-lhe uns tombos, à maneira de afagos e mandou a futura comadre entrar. A moça obedeceu, ficando em pé num canto da sala, sem largar o filhinho.

Passado algum tempo, a rainha das onças perguntou-lhe se queria comer. Respondeu a moça:

- Ou! se vosmincê me der, eu quero.

Então a onça-verdadeira mandou buscar um pedacinho de carne sapecada, muito dura, e um punhadinho de farinha. A moça comeu aquele tiquinho de comida com o filho e ficou ali sossegada, sem dizer palavra, sentada ao chão com o pequeno no colo. E as onças, bem de seu, sem se importarem com ela; umas entrando, outras saindo; umas carregando água, outras rachando lenha, outras cozinhando.

Quando foi de noite, a onça-verdadeira deu umas palhas para ela fazer a sua cama mais a do filho. Pela manhã muito cedinho, varreu a casa toda, varreu o terreiro, depois acendeu o lume, que quando as onças acordaram, só tiveram o trabalho de botar a comida no fogo.

A verdadeira tornou a lhe dar aquele pedacinho de carne sapecada com um punhadinho de farinha, para ela e o filho. Depois disse:

- Comadre, você fique estes dias aqui comigo, para então se fazer o batizado do menino.

A moça disse que sim. Falava somente quando a comadre lhe perguntava alguma coisa. Todos os dias de manhã, arrumava e varria a casa e acendia o lume.

Passado algum tempo, efetuou-se o batizado do menino. A moça disse então à rainha das onças:

- Comadre, vosmincê agora me dê licença para amanhã eu ir m’embora.

No outro dia, a onça-veradeira mandou ver um cavalo com dois caçuás, encheu-os de muita roupa e muito dinheiro para o afilhado, dando-lhe também uma trombeta. A moça despediu-se da comadre e de todas as outras onças, com muitos agradecimentos e saiu por ali a fora mais o filhinho, puxando o cavalo pelo cabresto.

Assim que ela entrou no mato, o velho tornou a lhe aparecer e disse:

- Moça, as onças, agora, vão lhe atalhar no caminho para lhe matar, mas não tem nada.

Então ensinou-lhe o que devia fazer, concluindo:

- Assim elas lhe deixam ir em paz com seu filho. Todos os que têm ido lá são comidos por elas, na volta, porque não sabem o que eu acabo de ensinar a você.

Já havia andado um bom pedaço, quando a onça-verdadeira, que tinha corrido com as outras para atalhá-la no meio do caminho, gritou de lá de dentro do mato:

- Minha comadre!... Oh! minha comadre!...

A moça respondeu, conforme o velho lhe ensinara:

- O que quereis comigo, onça verdadeira?

Disse a onça:

- Quando você chegar em casa, que seu pai e sua mãe perguntarem quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

A moça:

- Eu hei de dizer
Que quem me tratou
Que quem me zelou
Foi quem come boi
Quem come cavalo
Quem come mocó.

Muito satisfeita, gritou a onça:

- Bravo, minha comadre! Toque a trombeta!

Ela tocou:

- Esta trombeta é de mongolô
Este cavalo é de mongolô
Este cabedalé de mongolô...

Meteu o pé no caminho, meteu o pé no caminho, que ia mesmo voando. A onça-verdadeira correu, correu, com as companheiras, indo atalhá-la de novo adiante. Tornou a chamá-la e a fazer-lhe a mesma pergunta, respondendo a moça tudo direitinho, como da primeira vez. Aí as onças voltaram, deixando-a ir-se embora.

Chegou em casa muito contente, referindo minuciosamente aos pais o que lhe acontecera. Fez logo um sobrado muito grande, muito bonito, para morar com eles, botou o filho nos estudos e ficou vivendo como rica, com os cabedais que a onça-verdadeira dera ao afilhado.

Ora, uma vizinha, com inveja de vê-la enriquecer assim da noite para o dia, começou a espremer com ela que lhe dissesse como tinha achado tanto dinheiro, de repente. Deu em cima da moça, deu em cima da moça, até que ela lhe contou tudinho, tim-tim por tim-tim.

A vizinha pegou no filho, dizendo que ia procurar também a casa da rainha das onças para ser sua comadre e fazê-la rica. Mas, chegando lá, muito malcriada e orgulhosa que era, procedeu exatamente ao contrário de quanto a moça lhe ensinara. Não varreu nem arrumou a casa, não acendeu o lume, nem nada. Quando lhe deram a comida, reclamou, dizendo que aquilo era pouco, que ela não era pinto, que aquela carne era muito dura e a farinha, mofada. Ao lhe darem as palhas para se deitar, gritou:

- Eu não sou cachorro para dormir no chão, em cima da palha...

Só vivia rindo e caçoando das onças:

- Credo! Nunca vi onça rachar lenha!... Te arrequeiro! Nunca vi onça com pote d’água na cabeça!... Cruz! Eu te arrenego!... Nunca vi onça varrer casa!...

E assim por diante.

Mal se acabou de fazer o batizado, ela disse à comadre que queria ir-se embora. A onça mandou ver um cavalo, encheu os caçuás de roupa e de dinheiro e deu-lhe uma trombeta. A mulher nem se despediu da comadre. Pegou no filho, escanchou-o no quarto e foi puxando o animal pelo cabresto, sem olhar para trás.

Quando já estava bem no meio da mata, ouviu a onça-verdadeira gritar:

- Comadre!... Oh! minha comadre!...

Ela respondeu:

- Pra lá, anzol! Eu te desconjuro!...

A onça tornou:

- Quando você chegar em casa, que seu pai mais sua mãe perguntarem quem foi que lhe tratou, quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

Exclamou a mulher:

- Vai-te para as areias gordas, onde morreu a primeira baleia... Ave Maria!

E assim tornou a dizer, quando, adiante, a onça-verdadeira a chamou pela segunda vez. Então as onças todas saíram do mato, sangraram-na, bem como ao menino, botando os dois corpos em cima do cavalo. Chegando à casa, fizeram aquela fogueira enorme, assaram-nos e comeram-nos, bem de seu.

Fonte:
Basílio de Magalhães. O folk-lore no Brasil. Publicado em 1928.

Basílio de Magalhães (1874 – 1957)

Basílio de Magalhães nasceu em Barroso, então distrito de Barbacena em 1º de junho de 1874. Segundo os dados obtidos no seu registro de batismo, era filho de Antônio Inácio Raposo e de Francisca de Jesus; e seus padrinhos de batismo foram Ladislau Artur de Magalhães e Prudenciana Augusta Meireles. Há indícios de que Basílio seria filho de Ladislau Artur de Magalhães, que foi seu padrinho de batismo e de Francisca de Jesus, sua serviçal na fazenda Venda Grande, assim como o seu marido, Antônio Inácio Raposo, que consta no registro como o pai de Basílio. Ladislau era casado com Belizandra Augusta de Meireles e se tal fato se tornasse público, haveria um “escândalo”, já que o casal pertencia à elite da cidade.

Ainda pequeno, mudou-se para a cidade de São João del-Rei. Em 1889, com 15 anos de idade, empregou-se como tipógrafo no jornal “Gazeta Mineira”, em São João del-Rei, no qual exercia também trabalhos de auxiliar de redação. Inconformado com a postura conservadora do “Gazeta Mineira”, transferiu-se para o “Pátria Mineira”, jornal com ideais republicanos. Neste jornal, Basílio foi tipógrafo, paginador, revisor e auxiliar de redação, até o ano de 1894. Paralelamente às atividades nesse último jornal, fundou e manteve o pequeno jornal “A Locomotiva” em parceria com Altivo Sette.

Formou-se em engenharia pela Escola de Minas de Ouro Preto. Mais tarde tornou-se professor de História, em São Paulo, depois no Rio de Janeiro, sendo o 27º diretor do então Instituto de Educação do Rio de Janeiro.

Em 1900 foi eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Paulista de Letras e Academia Mineira de Letras.

No biênio de 1917-1918, foi Diretor Interino da Biblioteca Nacional. No ano de 1919, voltou para São João del-Rei e se deparou com uma prática política conservadora e contrária à sua postura e a seus ideais liberais e lá se insurgiu contra a política dominante.

Ingressou na política em São João del-Rei, sendo eleito para o Senado Mineiro em 1922. Em 1923, Presidente da Câmara de Vereadores de São João del-Rei, exercendo cumulativamente o cargo de Agente Executivo Municipal, equivalente ao atual cargo de prefeito. Em 1924 elegeu-se Deputado Federal e foi reeleito para o mesmo cargo no ano de 1927. Dois de seus projetos foram as proposta de voto secreto e obrigatório e a extensão do direito de voto às mulheres.

Pouco antes da Revolução de 1930 opôs-se à candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República. Basílio fazia parte da corrente política liderada por Raul Soares e foi por ele apoiado nas eleições em que foi vitorioso. Com a morte de Raul Soares Basílio passou a ser apoiado por Artur Bernardes. Porém, este apoiou a candidatura de Getúlio Vargas, à qual Basílio fez oposição.

Sua trajetória política terminou com a Revolução de 1930, quando exilou-se no Rio de Janeiro. A partir de então dedicou-se ao magistério e ao jornalismo, tendo colaborado em publicações periódicas como a revista Atlântida. Reassumiu suas funções na Escola Normal do Distrito Federal e foi convidado pelo Ministério das Relações Exteriores a examinar candidatos à carreira diplomática no Instituto Rio Branco.

Em 1935 Basílio foi reconhecido como historiador emérito. Sua monografia foi vencedora do “Prêmio Pedro II”, ampliada e refundida, passando a se chamar “Expansão Geográfica do Brasil Colonial”. Foi ainda o primeiro autor a dar profundidade erudita nos estudos folclorísticos, com a obra Folk-lore no Brasil, de 1928.

Foi autor de cerca de cem obras, era poliglota e pertenceu a 26 associações culturais, sendo 17 brasileiras e 9 estrangeiras. Sua biblioteca chegou a possuir cerca de 27 mil volumes.

Em 1952 o então Governador Juscelino Kubitschek, sabedor do estado de penúria em que vivia o historiador, encaminhou uma mensagem à Assembleia Legislativa de Minas Gerais propondo uma pensão mensal de cinco mil cruzeiros ao escritor, como pagamento para que Basílio anotasse e comentasse as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga. Basílio não mais tinha força física para tal tarefa, e por isso não aceitou o encargo nem a pensão.

Faleceu aos 83 anos de idade, em 14 de dezembro de 1957 na cidade de Lambari, vítima de hemorragia cerebral.

Basílio é patrono da cadeira 20 do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, e patrono da cadeira 7 da Academia de Letras de São João del-Rei.

Além disso, Câmara Cascudo dedicou-lhe um verbete no Dicionário do Folclore Brasileiro. O Salão Nobre da Prefeitura de São João del-Rei foi nomeado em sua homenagem, local onde funcionou por muitos anos o plenário da Câmara Municipal do município e onde ele exerceu as funções de presidente.

Algumas Obras
Expansão geográfica do Brasil colonial
Viagem pelo Amazonas e rio Negro, 1939. (Prefácio da 1ª edição)
O café na história, no folclore e nas belas-artes, 1939.
Estudos de História do Brasil, 1940.

Fonte:
Wikipedia

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 287


Paulo Mendes Campos (Maria José)


Faz um ano que Maria José morreu. Era meiga quase sempre, violenta quando necessário. Eu era menino e apanhava de  um  companheiro maior, quando ela me gritou da sacada se eu não via a pedra que  marcava o gol. Dei uma tijolada no outro e acabei com a briga como por milagre.

Visitava os miseráveis, internava indigentes enfermos, devotava-se ao alívio de misérias físicas e morais do próximo, estudava o mistério teológico, exigia sempre o mais difícil de si mesma, comungava todos os dias, ingressou na Ordem Terceira de  São  Francisco. Mas  nunca deixou de ter na gaveta o revólver que recebera, menina-e-moça, das mãos do pai,  e que empunhou no quintal noturno, perseguindo um ladrão, para espanto de meus cinco anos.

Tratou-me com a dureza e o carinho que mereciam a rebeldia e o verdor da minha meninice. Ensinou-me a ler as primeiras sentenças; me falava no Cura de Ars e nos dois Franciscos, o de Sales e o de Assis; apresentou-me aos contos de Edgar Poe e aos poemas de Baudelaire; dizia-me sorrindo versos de Antônio Nobre que decorara em menina; discutia comigo as ideias finais de Tolstói; escutava maternalmente meus contos toscos. Quando me desgarrei nos primeiros enleios adolescentes, Maria José com irônico afeto me repetia a advertência de Drummond: "Paulo, sossegue, o amor é isso que você está  vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será".

Logo que me fiz homenzinho, deixou a dureza e se fez a minha amiga: nada me perguntava, adivinhava tudo.

Terna e firme, nunca lhe vi a fraqueza da pieguice. Com o gosto espontâneo da qualidade das coisas, renunciou às vaidades mais singelas. Sensível, alegre, aprendeu a encarar o sofrimento de olhos lúcidos.

Fiel à disciplina religiosa, compreendia celestialmente as almas que se transviam. Fé, Esperança e Caridade eram para ela a flecha e o alvo das criaturas.

Tornara-se tão íntima da substância terrestre, a dor que se fazia difícil para o médico saber o que sentia; acabava dizendo que doía um pouco, por delicadeza.

Capaz de longos jejuns e abstinências, já no final da vida, podia acompanhar um casal amigo a Copacabana, passar do bar da  moda ao restaurante diferente, beber dois ou três uísques em santa serenidade e aceitar com alegria o prato exótico.

Gostava das pessoas erradas, consumidas de paixão, admirava São Paulo e Santo Agostinho, acreditava que era preciso se fazer violência para entrar no reino celeste.

Poucas horas antes de morrer, pediu um conhaque e sorriu, destemida e doce, como quem vai partir para o céu. Santificara-se.

Deus era o dia e a noite de seu coração, o Pai, a piedade, o fogo do espírito.

Perdi quem me amava e perdoava, quem me encomendava à compaixão do Criador e me defendia contra o mundo de revólver na mão.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Anjo Bêbado. RJ: Sabiá, 1969.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XV


AMOR MEU

Na bela penumbra do belo recinto,
Vejo-te calma respirando amor.
Na cama fosca com lençóis tão brancos,
Onde fizemos nosso ninho de amor.

Que maravilha quando juntos estávamos,
E juntos saciávamos nossos desejos.
Numa sequência de beijos tão puros
Que a cada um aguçava mais e mais nossos desejos.

Para mim no mundo só existe uma mulher,
Encantadora que me encanta,
Que me transforma em escravo seu.
Esta mulher és tu, anjo divino,
Amor meu.
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COM CERTEZA

Quando te vejo com esses olhos tristes,
Pois nascestes para ser feliz.
Porque sofrer por um amor distante!
Que só te traz mágoas e desilusões.

Esquece esse amor sem esperança,
Segue em frente sem desfalecer.
Sempre buscando alternativas,
E a vida te ajudará a esquecer.

Procura analisar teus sentimentos,
E verás que tens tudo que almejas...
Segue adiante pensando em Jesus,
Que cedo ou tarde a vitória virá..
Com certeza.
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ELA ESTÁ SEMPRE EM MINHA RETINA

O amor
Com arma poderosa
Feriu-me o coração
Ainda moço.
Apesar dos anos
Ainda carrego na alma
Este desgosto.

Desgosto de amar
Quem não me amou,
Que só me trouxe
E continua trazendo
Tristezas e angústias,
Em minh´ alma já ferida.
Mesmo distante
E sem o menor contato
Ela continua
Destruindo e envolvendo-se
Na minha vida.

Depois que ela passou
Não tive condições
De amar alguém,
Até porque
Ela está sempre na minha retina
E o meu coração
E minh'alma
Não aceitam mais ninguém.
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FICOU NO PASSADO

Amor que belo presente,
Que ficou em segredo.
Naquela noite divina,
Tu me dares aquele beijo.

Aquele beijo tão doce,
E cheio de inspiração...
Penetrou em minh’alma,
E limpou meu coração.

Que estava tão sofrido,
Por amar quem não me amou.
E por estar apaixonado,
Coração triste ficou.

Agora tenho certeza,

De por ti ser amado.
Não sofrer daquele jeito,
Por estar apaixonado.
as tristezas e angustia,
Tudo ficou no passado.
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TUA AUSÊNCIA

Como sofro por a tua ausência,
Que não me faz esquecer-te um só momento.
Lembro-me de ti a toda hora,
Até quando o velho vento...
Querendo agradar-te,
Acariciava os teus cabelos docemente.

E tu ficavas insatisfeita.
Pois o vento brincava com os mesmos,
Pra lá e pra cá.
E indignavas-te dizendo:
-Por favor, procura outra pra incomodar.

Lembro-me de tudo que fazias parte,
Como aquele bordado cheio de ternura.
Que era uma toalha para a nossa mesa,
Que a deixou extremamente linda.
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VOCÊ

Como posso viver sem
Os seus doces beijos em minha vida,
Como foi terrível e dura a despedida
Que ainda relembro.
Pois foi e continuará sendo o meu maior fracasso
Contigo eu era gente sem ti sou um trapo,

Mas com isso não pretendo
Que voltes para mim
Vou levando e continuo vivendo
A vida sofrendo assim,
Até me sinto bem, depois que te amei
Não quero amar ninguém.

Encher-me o coração de esperança
Isso jamais irá acontecer
Pois meu coração e minh´alma
Já estão acostumados a sofrer,
E a não querer outra a não ser você.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Língua de Trapo)


A MOÇA DO ALTO-FALANTE DA ESTAÇÃO RODOVIÁRIA que anunciava as saídas dos ônibus interestaduais e as respectivas plataformas de embarque parece que havia colocado alguma coisa que não gostou, na boca e, por causa disso, dava a impressão de estar subitamente engasgada. Célio pensou logo num ovo cozido bem quente. Depois de alguns segundos concluiu que, decididamente, o ovo cozido e estupidamente quente estaria completamente fora de cogitação. Quem sabe a beldade mandasse alguma coisa mais leve para a barriga: um pedaço de pão duro, uma banana verde, um sanduíche de presunto com pedaços de frango ou uma barra de cereais, dessas que se encontram nos voos domésticos.

Não que o ovo quente fosse pesado. Ovo de rodoviária é igual pastel de feira livre. Neste nunca se acha o queijo e a carne, naquele, não se escuta o cocoricar da galinha.

“... Atenção senhores passageiros com destino a Casa do Chapéu. Horário de 09h30min. Por favor, dirijam-se...”.

Pudesse estar com essa jovem, o Célio a faria engolir o microfone. Junto, de lambuja, o papel que estava lendo, ou melhor, tentando. Pelo que seus ouvidos escutavam a desgranhenta, nem juntar as palavras de forma correta, sabia. Soletrar, nessas alturas, já estaria de bom tamanho. Ao menos se decorasse a porcaria do texto, ou procurasse pronunciar as frases com mais precisão, com certa flexibilidade, sem atropelar as vírgulas e deixar para trás os pontos finais...

“... O terminal rodoviário informa: para dores gripes e resfriados procure a Farmácia do Chicão ao lado da Viação Sebo nas Canelas boxe 34... Agora falta cinco para a sete atenção não dê esmolas não colabore com os pedintes... Assim você evitará a propagação da ‘mendingância’”.

Pensou com seus botões que essas criaturas deveriam ter um curso de como tratar com carinho e esmero um anúncio a ser lido corretamente, dando-lhe a devida atenção e respeito, seguido, claro, da prática do exercício da pronúncia correta, e com desenvoltura e garbo. “Mendincância” é o fim da picada.

Falar sem cantar, procurar interpretar como se estivesse conversando normalmente. Nada de boa viágeeeeeeeeem (esse viá sem a conotação da Kely Key, tão em moda). Ridículo o “... apresentem-se para embarque na plantaforma...”. Parece que uma abelha havia entrado em seus tímpanos e lascado uma tremenda de uma ferroada. Não é plantaforma que se diz, mas PLATAFORMA. Meu Deus durma-se com um barulho desses, ou melhor, viaje-se com um barulho desses, ou, pior ainda, espere-se pelo horário da passagem com uma incisão dessas na pele sedutora da língua portuguesa.

“... Senhores passageiro a Informe Bem deseja-lhe boa viagem...”

Cadê o “os” de passageiros e o “lhes” de deseja-lhes? O gato comeu! Com certeza a infeliz não tinha nada dentro da boca. Célio pensou, a princípio, tratar-se de um ovo, um ovo cozido bem quente. Logo depois achou que fosse um pau. Um pau no bom sentido, ou seja, uma lasca de madeira atravessada, ou uma espinha de peixe. Essas coisas também atrapalham. Contudo, o melhor que tinha a fazer, seria conectar seus fones de ouvido no celular e ouvir a Eguinha Pocotó, que ganhara da namorada, em face de ter em seu sítio, uma eguinha que ganhara de um amigo com o nome de Pocotó. Célio não se conformava. Professor de português graduado em letras, mestre em linguística pela universidade de Campinas, não descia garganta abaixo essas baixarias da língua. Uma palavra dita de forma errada fazia com que perdesse o sono. Uma frase mal construída espantava a fome, o bom senso, se duvidasse, até o tesão. Com um verbo colocado erroneamente chorava, enjoava, magoava, enfim, ficava estressado. Se tivesse um tantinho assim de chance, subiria até lá na cabina, onde a garota da rodoviária estava sentada e lhe enfiava incontinente, o chip que ganhara da namorada. Socava o troço sem dó nem piedade goela abaixo. Tinha importância não: era um chip pirata com várias músicas, inclusive a do Lacraia! Desses que vem com tapa olho grudado na embalagem.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

domingo, 7 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 286


Cláudio de Cápua (Coisas que Acontecem)


Fúlvio já não era criança, havia ultrapassado os 20 anos de casado. Tinha quase 50 anos de idade e o casamento tornara-se monótono. Seus cabelos já se agrisalhavam, seu sangue latino o impelia a uma aventura extraconjugal.

Não aguentava mais fazer amor em horas certas e sentir a reprise dos beijos frios da mulher ao sair para o trabalho.

Diz um velho ditado: "Quem procura, acha".

Um dia, num piscar de olhos, conheceu, no metrô, a mulher dos seus sonhos, ao retornar do trabalho. Olharam-se, sorriram, partiram para um papo, trocaram números de telefone e um dia acabaram num motel, classe média, na Raposo Tavares.

Ia Fúlvio nesta vida há quase um ano, quando resolveu ser homem, no bom sentido da palavra, e contar tudo a sua mulher, Leda.

Pensou e achou que a melhor forma seria lhe dizer tudo, sem drama.

Simples: "Não te amo mais, tenho outra"

Sabia que se tal situação acontecesse com Leda, ela assim agiria.

As cinco estações do Metrô que o levavam do trabalho para casa tornaram-se um longo trajeto, o mais longo de sua vida!

Saiu da estação decidido, cheio de coragem, a passos largos e nervosos.

Ao chegar, abriu a porta da sala, com as palavras ensaiadas querendo saltar-lhe da boca. Frustrado, constatou a ausência da esposa. Tomou uma ducha. Estranhou, no quarto, em cima do travesseiro, estava um envelope que lhe era dirigido. A caligrafia era de Leda, que assim dizia: "Não quero ser desleal com você, já há algum tempo gosto de outro. Adeus" Leda.

(publicado na Revista Santos, Arte e Cultura – Setembro/2009)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Camilo Castelo Branco (Sonetos Escolhidos)


ALMA ATRIBULADA

O' alma atribulada, corta o laço
da torva angústia que te cinge à vida!
Vai, foge para Deus, ou para o espaço...
Ou nada ou Deus, que importa? eis-te remida.

Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.

Vai! Não leves saudades do que deixas.
Se a fé em melhor mundo te preluz,
alma gemente, por que assim te queixas?

Desprende-te, a sorrir, da horrenda cruz
em que tanto penaste! Os olhos fechas?
Abre os d'alma, e verás que infinda luz.
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A MAIOR DOR HUMANA

Que imensas agonias se formaram
sob os olhos de Deus! Sinistra hora
em que o homem surgiu! Que negra aurora,
que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o céu, que respondeu? As mãos baixaram
para abraçar a filha morta agora.

Depois um pai em trevas vai sonhando,
e apalpa as sombras deles onde os viu
nascer, florir, morrer! Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos...
És coração que a dor empederniu,
sepulcro vivo de dois filhos mortos.
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A OUTRA METADE

Quando este corpo meu esfacelado
Baixar à leiva úmida da cova,
Hão de os jornais carpir a infausta nova,
Taxando-me de sábio consumado.

Estalará na imprensa enorme brado,
Pedindo a ressurgência d’um Canova
Que a morta face em mármore renova
Para esculpir meu busto laureado.

E algum dos imbecis necrologistas,
Com soluçantes vozes de saudade,
Dirá em ricas frases nunca vistas:

“Esse gênio imortal, rei dos artistas,
No céu pede ao Senhor que a outra metade
Reparta por vocês, ó jornalistas!”
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LÁGRIMAS

Senhora! em vosso rosto macerado
Transluz da alma aflita a imensa dor!
D'um lado, a morte; do outro, o vosso Amor
Tremenda luta ao pé do Esposo amado!

Contais as pulsações do peito ansiado
Em estes convulsivos do estertor;
Só podem vossos lábios dar calor
Àquele corpo inerte, hirto, gelado.

Vós bem vedes, Senhora, este quebranto
Que enluta Portugal! Ergue-se o pranto,
Quando a morte do Paço se avizinha...

Pois quanto uma nação pode sofrer
Não tem o acerbo e intenso padecer
Das vossas santas lágrimas, Rainha!
****************************************

LISBOA BUCÓLICA

Na lusa Babilônia há parvices
Atávicas, talvez; pois bons autores
Carimbam de sandeus os fundadores,
E chamam parvo ao seu caudilho Ulysses.

Assim começa o rol das tais tolices:
Famílias vão, nos meses dos calores,
Refrigerar no campo os seus ardores,
E haurir das frescas brisas as meiguices.

Alugam-se uns casebres purulentos,
Onde os ratos vorazes e macróbios
Esfarelam a dente os vigamentos.

Metidas n'esses fétidos cenóbios,
Depois de incalculáveis sofrimentos,
Voltam do campo cheias de micróbios.
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LUA DE MEL

Aquele teu amigo de Peniche
Casou, já sabes? Com a «Celidônia»,
Horizontal, (hectaíra, em língua jônia)
De lábio rubro e olho d'azeviche.

Naufragou muitas vezes no beliche
De notáveis pilotos da Parvônia;
Vogou desde Monção à Patagônia,
E, voltando, não topa onde se aniche.

Enfim, com sete filhos enjeitados
E os músculos bastante escanifrados,
Pilha um palerma que jamais lhe escapa!

São noivos. Vão fazer a lua em Cintra.
Pergunta agora tu ao tal pelintra
Se a lua foi de mel ou de jalapa.
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REMORSO

Eu choro quando, ás vezes, me concentro
A meditar nas horas malogradas,
Noites de inverno, gélidas, passadas
Nos Carnavais retóricos do Centro.

Convidam-me a ser sócio. Aceito e entro,
Deixando solitárias, consternadas,
Três Marílias que amei! Estais vingadas!
Remorsos me excruciam cá por dentro.

Dizia-me um dinástico - esquerdista:
«Prepara-se você para estadista?
Aspira a ser ministro? A escola é esta.»

Pois, senhores, dez meses decorridos,
Bom político, em todos os sentidos,
Saí do Centro, mas saí mais besta.

Fonte:
Camilo Castelo Branco. Nas trevas: Sonetos sentimentaes e humoristicos. Publicado pela Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão (Lisboa/Portugal), em 1890.

Machado de Assis (Umas Férias)


Vieram dizer ao mestre-escola que alguém lhe queria falar.

— Quem é?

— Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.

— Que entre.

Houve um movimento geral de cabeças na direção da porta do corredor, por onde devia entrar a pessoa desconhecida. Éramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou que aparecesse uma figura rude, tez queimada, cabelos compridos, sem sinal de pente, a roupa amarrotada, não me lembra bem a cor nem a fazenda, mas provavelmente era brim pardo. Todos ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que ninguém, porque ele era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zeca.

Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O mestre fê-lo sentar, olhou para mim, e creio que lhe perguntou alguma coisa, porque tio Zeca entrou a falar demorado, muito explicativo. O mestre insistiu, ele respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim, disse alto:

— Sr. José Martins, pode sair.

A minha sensação de prazer foi tal que venceu a de espanto. Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Um chamado de casa, o próprio tio, irmão de meu pai, que chegara na véspera de Guaratiba, era  naturalmente alguma festa, passeio, qualquer coisa. Corri a buscar o chapéu, meti o livro de leitura no bolso e desci as escadas da escola, um sobradinho da Rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio Zeca. Na rua fui andando ao pé dele, amiudando os passos, e levantando a cara. Ele não me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegávamos ao colégio de minha irmã Felícia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram, e fomos os três caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente havia festa em casa, pois que íamos os dois, ela e eu; íamos na frente, trocando as nossas perguntas e conjeturas. Talvez anos de tio Zeca. Voltei a cara para ele; vinha com os olhos no chão, provavelmente para não cair.

Fomos andando. Felícia era mais velha que eu um ano. Calçava sapato raso, atado ao peito do pé por duas fitas cruzadas, vindo acabar acima do tornozelo com laço. Eu, botins de cordovão, já gastos. As calcinhas dela pegavam com a fita dos sapatos, as minhas calças, largas, caíam sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez parávamos, ela para admirar as bonecas à porta dos armarinhos, eu para ver, à porta das vendas, algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé. Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cansa em tal idade. Tio Zeca é que nos tirava do espetáculo industrial ou natural. — Andem, dizia ele em voz sumida. E nós andávamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo. Entretanto, o principal era a festa que nos esperava em casa.

— Não creio que sejam anos de tio Zeca, disse-me Felícia.

— Por quê?

— Parece meio triste.

— Triste, não, parece carrancudo.

— Ou carrancudo. Quem faz anos tem a cara alegre.

— Então serão anos de meu padrinho...

— Ou de minha madrinha...

— Mas por que é que mamãe nos mandou para a escola?

— Talvez não soubesse.

— Há de haver jantar grande...

— Com doce...

— Talvez dancemos.

Fizemos um acordo: podia ser festa, sem aniversário de ninguém. A sorte grande, por exemplo. Ocorreu-me também que podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a vereador; embora eu não soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto ouvira falar em vitória próxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao domingo, e o dia era sexta-feira. Imaginei bandas de música, vivas e palmas, e nós, meninos, pulando, rindo, comendo cocadas. Talvez houvesse espetáculo à noite; fiquei meio tonto. Tinha ido uma vez ao teatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte estava tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada do que ouvira. Vira muita coisa, isto sim, cadeiras ricas, tronos, lanças compridas, cenas que mudavam à vista, passando de uma sala a um bosque, e do bosque a uma rua. Depois, os personagens, todos príncipes. Era assim que chamávamos aos que vestiam calção de seda, sapato de fivela ou botas, espada, capa de veludo, gorra com pluma. Também houve bailado. As bailarinas e os bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de posição e um sorriso constante na boca. Depois os gritos do público e as palmas...

Já duas vezes escrevi palmas; é que as conhecia bem. Felícia, a quem comuniquei a possibilidade do espetáculo, não me pareceu gostar muito, mas também não recusou nada. Iria ao teatro. E quem sabe se não seria em casa, teatrinho de bonecos? Íamos nessas conjeturas, quando tio Zeca nos disse que esperássemos; tinha parado a conversar com um sujeito.

Paramos, à espera. A ideia da festa, qualquer que fosse, continuou a agitar-nos, mai s a mim que a ela. Imaginei trinta mil coisas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas vinham, e tão confusas que não as distinguia, pode ser até que se repetissem. Felícia chamou a minha atenção para dois moleques de carapuça encarnada, que passavam carregando canas, — o que nos lembrou as noites de Santo Antônio e S. João, já lá idas. Então falei-lhe das fogueiras do nosso quintal, das bichas que queimamos, das rodinhas, das pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma coisa... Ah! lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o dela também, com os pontos de costura que estava aprendendo.

— Isso não, acudiu Felícia.

— Eu queimava o meu livro.

— Papai comprava outro.

— Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito aborrecido.

Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o desconhecido ao pé de nós. O desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para ele, fitou-nos com seriedade, deixou-nos e despediu-se.

— Nove horas? Lá estarei, disse ele.

— Vamos, disse-nos tio Zeca.

Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e até me pareceu conhecê-lo vagamente. Felícia também. Nenhum de nós acertava com a pessoa; mas a promessa de lá estar às nove horas dominou o resto. Era festa, algum baile, conquanto às nove horas costumássemos ir para a cama. Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como chegássemos a um rego de lama, peguei da mão de Felícia, e transpusemo-lo de um salto, tão violento que quase me caiu o livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do gesto; vi-o abanar a cabeça com reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos pela calçada adiante.

Era o dia dos desconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dois era mulher. Vinham da roça. Tio Zeca foi ter com eles ao meio da rua, depois de dizer que esperássemos. Os animais pararam, creio que de si mesmos, por também conhecerem a tio Zeca, ideia que Felícia reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo era folgar. Fosse como fosse, esperamos os dois, examinando o casal de roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e também mais moça; ele tinha os cabelos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca; vimo-lo, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar à mulher, que também nos deitou os olhos, agora com pena ou coisa parecida. Enfim apartaram-se, tio Zeca veio ter conosco e enfiamos para casa.

A casa ficava na rua próxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da casa forrados de preto, — o que nos encheu de espanto. Instintivamente paramos e voltamos a cabeça para tio Zeca. Este veio a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra que lhe ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando chegamos, as portas estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua, curiosos. Nas janelas fronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo rebuliço quando chegamos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felícia. Tio Zeca empurrou uma das meias portas, entramos os três, ele tornou a cerrá-la, meteu-se pelo corredor e fomos à sala de jantar e à alcova.

Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da nossa chegada, ergueu-se de salto, veio abraçar-nos entre lágrimas, bradando:

— Meus filhos, vosso pai morreu!

A comoção foi grande, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciência da notícia. Não tive forças para andar, e teria medo de o fazer. Morto como? morto por quê? Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento não perguntei nada a mim nem a ninguém. Ouvi as palavras de minha mãe, se repetiam em mim, e os seus soluços que eram grandes. Ela pegou em nós e arrastou-nos para a cama, onde jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai morrera deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não é coisa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. O pai ali estava defunto, sem pulos, nem danças, nem risadas, nem bandas de música, coisas todas também defuntas. Se me houvessem dito à saída da escola por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria não houvera penetrado o coração, donde era agora expelida a punhadas.

O enterro foi no dia seguinte às nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquele amigo de tio Zeca que se despediu na rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi as cerimônias; alguns vultos, poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu padrinho, dono de um trapiche, lá estava, e a mulher também, que me levou a uma alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão, creio eu: — “vire de lado, — mais à esquerda, — assim, segure bem...” Depois, ao longe, o côche andando e as seges atrás dele...

Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via meu pai às horas do costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de fora. Foi assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta notícia muitas vezes; as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia tudo, a hora, o gesto, a ocasião: tinha ido beber água, e enchia um copo, à janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-lo contar.

Nem por isso os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha memória. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria.

— Sábado, meu filho, disse minha mãe, quando lhe repeti a pergunta imaginada; a missa é sexta-feira. Talvez seja melhor voltar na segunda.

— Antes sábado, emendei.

— Pois sim, concordou.

Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu queria voltar mais cedo à escola. Mas, sabendo que eu não gostava de aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do céu ou do marido. Em verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de descansar também não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira.

Usava um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro.

Uma vez, como desse por mim a andar na sala sem ler, minha mãe repreendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pai. A explicação fê-la chorar, e, para dizer tudo, não era totalmente mentira; tinha-me lembrado o último presentinho que ele me dera, e entrei a vê-lo com o mimo na mão.

Felícia vivia tão triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal não era a mesma. Gostava de brincar, mas não sentia a ausência do brinco, não se lhe dava de acompanhar a mãe, coser com ela, e uma vez fui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio vexado, pensei em imitá-la, e meti a mão no bolso para tirar o lenço. A mão entrou sem ternura, e, não achando o lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava só originalidade, mas sinceridade também.

Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quis uma vez ir para o armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o caixeiro continuou a servir. Conversaria com este, assistiria à venda de linhas e agulhas, à medição de fitas, iria à porta, à calçada, à esquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer. Mal chegara ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos à guisa de quem quer dar murro; não me lembra se chorei de raiva.

O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os saltos à saída. Senti cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com que nos espertavamos uns aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como acontecia às vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou depressa. Alguns, mais tímidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco, mas já me valia por ele.

Aquele degredo que eu deixei tão alegremente com tio Zeca, parecia-me agora um céu remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lápis maior número de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos. Não alegrava, mas distraía.

A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no sábado não fui à escola, fui à casa de meu padrinho, onde pude falar um pouco mais, e no domingo estive à porta da loja. Não era alegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui mirado com curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram as férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.