segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 412

 


Stanislaw Ponte Preta (O Diário de Muzema)


MUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais amassada que para-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão. O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:

— Chamem a Polícia!!!

Mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:

— Um de cada vez, pombas!

Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:

— Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.

— Sim. E esse pequenino aí?

— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de “Meu Diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.

— Como é que é? — estranhou o delegado.

Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:

— Calem-se! Um só de cada vez!

Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:

— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).

Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.

— Prossiga! — Disse pro pequenino.

O pequenino pigarreou e prosseguiu:

— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.

— Como é o seu nome? Onde você mora?

— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote “A”, casa 18.

O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele. “Dona Jurema, do lote “B”, casa 75, estava saindo de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um caso com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela”. O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava escrito ali.

O pequenino foi sincero:

— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o miserável do garoto lendo em voz alta:”… o seu Osooo… Osório. Não: Osório. O seu Osório quando sai pra o trai… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu… a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.

— Eu achei o diário dele — falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório.

Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o Delegado Levi perguntou ao dono do diário:

— O senhor também é poeta?

— Mais ou menos, né?

— Eu pergunto — esclareceu o delegado — porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário: “Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na certa ele fura a bola”.

Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote “J”, casa 77. O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando:

— Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir tanto, em seu futuro diário, tá?

O pessoal prometeu.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Febeapá 1: Festival de Besteira que Assola o País. Publicado em 1966.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XII


Ande sempre com amigos,
nunca no 'mundo da lua',
cuidado com os perigos
que circulam pela rua.
- - - - - -
Ao deixarmos escorrer
uma lágrima no rosto,
deixamos transparecer
a emoção, talvez desgosto.
- - - - - -
A saudade nunca nasce
dum fato pouco marcante,
mesmo que o tempo não passe
ficam marcas no semblante.
- - - - - –
Bastam poucas estocadas
de otimismo e confiança,
pra fazermos das pancadas
novos gestos de esperança.
- - - - - -
Belo presente, o ofertado,
na mesa do entardecer,
podendo ser resgatado
com juros no alvorecer.
- - - - - -
Com muito amor e coragem
bem saibamos escutar,
de Deus a sua mensagem
que tem a nos relatar.
- - - - - -
Conservemos os valores
e sejamos compassivos,
misto de conservadores
e um pouco de permissivos.
- - - - - -
Em fragmentos, folhas rolam,
pelos ventos enxotadas,
verdes campos se descoram
e esperam novas floradas.
- - - - - -
Iluminai-me, Senhor,
ao cair na enfermidade,
transformando cada dor
numa luz de sanidade.
- - - - - -
Mesmo no maior combate
muitos dizem que amariam,
porém no primeiro embate,
largam tudo e renunciam.
- - - - - -
Nossa primeira impressão
é a que sempre permanece,
gravada no coração
e jamais alguém esquece,
- - - - - -
O bem que não for cuidado
no tempo vai se perder,
se for algo inacabado
também deixará de ser.
- - - - - -
O canarinho amarelo
embora preso ele canta,
mas com seu cantar singelo,
sendo livre mais encanta.
- - - - - -
O incrível "João de Barro"
se orgulha de ser autor,
do projeto menos caro
na lida de construtor.
- - - - - -
O que todo o mundo espera
e ninguém questiona o meio,
é seguir quem mais prospera
mesmo olvidando onde veio.
- - - - - -
Os afoitos, na avenida,
nem olham pra atravessar,
outros, não ligam pra vida
e atravessam sem olhar.
- - - - - -
Os efeitos da omissão
são reflexos do egoísmo,
sinais da má formação,
ou do próprio pessimismo.
- - - - - -
Os passos que foram dados
na direção planejada,
são caminhos desbravados
rumo à meta desejada.
- - - - - -
Para chegar ao terraço
podemos usar a escada,
porém maior é o cansaço
e a subida demorada.
- - - - - -
Pra finalizar um texto
não basta um ponto final,
deve ter forma, contexto
e uma conclusão normal.
- - - - - -
Quando voltamos, dizemos:
um pouco de nós ficou
e aquilo que já fizemos
nos campos frutificou.
- - - - - -
São tantos os animais
que os livros fazem memória.
Dinossauros e outros mais
no cativeiro da história.
- - - - - -
Seja qual for o lugar
que algo aconteceu na vida,
a saudade faz voltar
sempre ao ponto de partida.
- - - - - -
Se melhor quiser chegar
ao destino desejado,
ande sempre devagar,
mas nem tanto demorado!
- - - - - -
Sendo fortes os pilares
que sustentam a mansão,
com certeza, muitos lares,
também têm sustentação.
- - - - - -
Somos fortes o bastante
pra podermos derrotar,
todo mal que a cada instante
vem tentando nos matar.
- - - - - -
Toda vez que o mar bravio
pelas costas nos ataca,
dizemos que "por um fio",
não tragou-nos na ressaca.
- - - - - –
Todo fruto, Deus conhece,
mesmo sem tê-lo almejado,
ao colhê-lo reconhece
quando está deteriorado.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo trovador.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Três) Entre Biscoitos e Pirâmides


Texto integrante do livro “Comédias da Vida na Privada”.
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MINHA FILHA BEATRIZ acabou de me dizer que não vai se casar, pelo menos por enquanto. Segundo explicações dela, ‘está fazendo estágio com o namorado’. Enfurecido e colérico, pedi um elucidário mais pormenorizado sobre esta história de estágio:

—  Seguinte, paizinho. A gente, pra tudo na vida, não faz estágio? O senhor mesmo, quando se formou em medicina não fez?

Fui grosso e curto, ou melhor dito: mais curto, que grosso:

—  Não, Beatriz. Fiz residência.

Ao que ela, em seguida, de nariz empinado e sem pestanejar, retrucou:

—  Então, paizinho. Antigamente a gente —, quero dizer, no seu tempo —, os doutores, como o senhor, faziam residência. Hoje, com a chegada da modernidade, a gente faz estágio. Nos seus idos, se amarrava linguiça com cachorro...

— Beatriz, cachorro com linguiça... Por tudo quanto é mais sagrado!

—  Desculpe, paizinho. Foi mal!

Depois deste ‘foi mal’, interrompi bruscamente, começando a espumar pela boca Logo teria um troço:

— Beatriz, está querendo me fazer de besta? Minha mãe, sua avó, escreveu aqui na minha cara que sou otário?

— Não, pai, de fato não. Raciocine comigo. Eu mais o Beto estamos fazendo uma espécie de preliminar... Um treino básico para ver se daremos certo, se as funções que estamos agregando no dia a dia contribuirão para que, num porvir não muito longe, conseguiremos chegar inteiros a uma velhice sadia e sem complicações. Se tudo correr como engendramos, no final da praticagem, reuniremos as famílias, marcaremos a igreja (quero subir no púlpito toda de branco e pleiteando, desde agora, que o senhor me leve até o padre), distribuiremos os convites, faremos uma festinha, e, por fim, trocaremos as alianças...

—  Beatriz, não me venha com esta conversa de cerca Lourenço*. Você está de namorico com este tal de Beto, há mais de dois anos. Podem se considerar, pelo tempo de uso, marido e mulher.

—  Que isto, paizinho. Papo mais careta! Tempo de uso? De jeito nenhum. O Beto tem lá as suas manias —, uma ou duas que odeio —, tipo ficar jogando a noite inteira, no celular, ou cantando, no banheiro, enquanto toma banho, por sinal, umas músicas chatas num inglês meia sola que faria Freddie Mercury perder seus quatro dentes nascidos a mais, dentro da boca numa única mastigada. Se fosse só esta droga de cantar e jogar... Na verdade, o cantoria até que dá para digerir, porém, durante as partidas, ele briga com os parceiros gritando... Gritando não, berrando: ‘vai pro lado, volta, volta, tem um inimigo atrás de você... Imbecil, olho no telhado... Cuidado, Mané, vai levar um tiro...’.

—  Meu Deus, minha filha que horror!

— Bota horror nisto paizinho... Sem mencionar o fato de que o Beto fica de luz acesa e fumando o tempo todo. Aliás, a noite inteira. Fiz a gentileza de marcar num caderninho. O infeliz consome três ou quatro maços de cigarros... Se não mais...

— Larga deste cara. Abandone esta digressão etílica que está consumindo a sua beleza. Manda o infeliz para os quintos do inferno. Você é jovem, tem presença... Logo aparecerá um rapaz direito, étimo* e sem vícios... Um homem que lhe dê valor e, sobretudo, que se eleve a si mesmo e pense à nível de futuro em construir uma família ordeira e na senda da retidão.

— Não posso, paizinho. Estamos, como disse, em fase de estágio. Temos um pré contrato antenupcial de... Como é mesmo a palavra?... Ah, lembrei. Tirocínio probatório.

— Rasga esta porcaria de documento, filha. Larga deste verme, volte para casa. Não eduquei você para viver com um sujeito que não deixa você dormir e, ainda, por ironia dos pecados, fuma e joga a noite toda. Ele, por acaso trabalha?

— Não, paizinho. Desde que começamos a dividir os mesmos espaços, ele, coitado... Tadinho, está esperando exatamente um estágio.

— E você pode me dizer quem mantém o vício deste picareta?

—  ...

— Fala filha, quem mantém a fumacinha viciante deste encosto?

—  Se o senhor não zangar, eu abro o jogo.

— Jogo, que jogo? Não me fala em jogo.

— A pedra, paizinho. Eu quis dizer a pedra.

— Canta logo. Quem mantém o pavio aceso deste canalha?

— Ta legal, paizinho, mas lhe peço, não se irrite. Eu falo. Quem mantém é o senhor.

— Eu? Está me tirando, Beatriz?

— Não senhor.

— Você sabe que eu não fumo, não bebo, nem jogo. De mais a mais, você acabou de me revelar que sou eu quem sustenta o parasita. Onde é que eu entro neste circuito?

— Não é bem no circuito, mas na mesada que o senhor me dá todo mês. É com ela que o Beto compra as carteiras de cigarros.

Olhei bem dentro dos olhos da minha filha com uma suspicácia* apreensiva e desassossegada:

— Fala sério, minha filha. A que ponto você chegou! Vejo a sua jornada como um balde se debatendo, vazio, no fim de um poço cavo e sem água!

— Vou falar sério paizinho e a que ponto ‘esse você chegou...’. Estamos ambos, duros e sem nada. Sequer dispomos de um centavo para fazer um cego de esquina cantar Jesus Cristo, de Roberto Carlos. E é em razão deste pormenor que estou aqui agora e desculpe, este é o ponto em que ‘você chegou’, porque eu o coloquei... Me perdoe, paizinho. A culpa é toda minha.

— Acaso está me dizendo que não veio visitar seu velho pai e tomar o desjejum comigo?

— Sim e não.

— Como, sim e não?!

— Seguinte, paizinho... Eu e o Beto passamos a matar jacarés a beliscões. Um leão na hora do almoço e um tigre na janta.

— Seja mais clara...

— Paizinho, estou lhe pedindo que me adiante a mesada do mês que vem. É com ela que vou tentar despistar a nossa fome!
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GLOSSÁRIO
Cerca Lourenço – Papo fora de esquadro. Diálogo bobo, sem nexo.
Suspicácia – Qualidade do que é suspicaz; suspeita, desconfiança.
Étimo – Verdadeiro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 18 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 411

 


Barão de Itararé (Um Plano Genial)

Joaquim Rebolão estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz inexperiente que também estava no desvio.

Joaquim Rebolão, porém, defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e ideias.

O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente geniais, graças aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel o torturava.

Naquele dia, o seu grude já estava garantido. Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava necessitando de claque. Mas o nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira um convite para o filho.

À hora marcada, porém, Rebolão, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a cerimônia. Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto:

— Fica firme aqui na porta um momento, porque preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim.

Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de ferradura, quando, ao começar o bródio, Rebolão se levanta e exclama:

— Senhores, em vista da ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. Em nome do Padre e do Espírito Santo!

— E o filho? — perguntou-lhe um dos convivas.

— Está na porta — responde prontamente.

E, voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico:

— Entra de uma vez, menino! Não vês que estes senhores te estão chamando?

(Publicado em 1955)

Fonte:
Máximas e Mínimas do Barão de Itararé.

Isabel Furini (Poema 20) Redes Sociais

 


Contos e Lendas do Mundo (A Melodia e o Acorde)

A melodia e o acorde tinham uma velha rixa entre si.

A melodia falava como quem morde ou arranjava sempre um motivo para fazer gozação com o pobre do acorde. Dizia que o acorde não sabia fazer outra coisa além de um único e grande ruído, que ele não tinha a menor ideia da beleza de um solo melodioso, puro e sem alarido. Não conhecia a vida levada a sério, ao seu mais fundo sentido, vendo o futuro, a partir do passado, passo a passo construído.

O acorde fazia que nem ligava e em altos brados retrucava que aquela velha senhora continuava a viver à moda antiga, com saudades do passado e frases mofadas de intriga. Bem se via que não entendia nada do prazer de viver a vida. Eu não, dizia ele imponente, gosto mesmo é de estar presente, de viver livre cada segundo, de gozar o som inteiro, a voz intensa de todos os instrumentos, gritar que eu existo no mundo. Quero ser eu e horizonte, quero vibrar no clímax da poesia em vez de mofar passados em mirrados e melosos trilhos de melodia.

Era uma briga sem tréguas. Cada um na sua teimosia.

Se a melodia desafinava, o acorde entrava em atonia. Se o acorde falhava, quebrava-se a melodia.

A melodia vivia cantando sozinha, o acorde correndo atrás de novas alegrias. Era a vida que se repetia. Para um era uma monotonia, para outro era sempre a viagem em um grande momento, seguido de quase nenhuma poesia.

A melodia, por seu lado, não conseguia mais esconder sua tristeza. Só entendia de passados. Só sabia de futuros solitários. Era uma vida de sino de campanário. As linhas melódicas de cada instrumento, no seu isolamento, perdiam toda beleza. De grandes momentos, de vibrações de orquestra, de festas de fazer tremer o coreto quando tocavam as furiosas, sempre garbosas, disso ela quase nada entendia.

A melodia buscou durante muito tempo uma saída, até que começou a achar que o acorde tinha lá suas razões para se sentir feliz da vida.

O acorde, cheio de si, entre grandes parvonadas, começou também a descobrir seu lado escuro. Passou a sentir receio de viver grandes noitadas e acabar embriagado, caindo pelas escadas, sem ontem nem futuro. De que serviriam grandes acordes sem amanhã, sem sonhos nem história, viver um momento de glória e o resto da vida vazia? Isso, com certeza, não era o que ele queria.

Nessas praias, ele pensava, bem que podia lhe dar uma mãozinha a velha e previsível melodia. Com a decisão tomada e pronto para nova estrada, o acorde parou para ouvir a flauta da melodia. Procurava entrar em sintonia. Propôs à teimosa senhora criarem juntos uma sinfonia.

O acorde ensinaria à melodia o pulo do gato, a arte de criar encontros para a vida vazia de cada linha da pauta musical. As afilhadas da melodia viviam sempre isoladas e já era hora de acordar para o dia! Em contrapartida, ela, a melodia, ensinaria ao acorde a trilha para ligar à terra, a sua ilha.

A melodia, acostumada a monologar sobre a vida, achou atraente a proposta e respondeu que estava disposta a enfrentar tal ousadia. Finalmente ela passaria a dialogar com uma nova filosofia. O acorde, sem filosofar, poderia pôr os pés na terra e, desta forma, entre eles, acabaria a guerra.

Assim passaram a fazer e a mudança deu-se a olhos vistos. Entre tropeços, foram afinando seus instrumentos.

Para chegar ao céu é preciso subir à Terra. Amor sem prazer é amendoim sem sal. Nasceram, desse tratado, grandes valsas, cantigas, sonatas, cirandas, dobrados, cantatas e até, quem diria, temas de carnaval.

A melodia e o acorde descobriram que tanto paz e guerra como o bem e o mal são invenções do homem, contraditório animal. Viver é a poesia de transformar-se, aprender a criar alegria. Não há segredos na natureza. Quem sabe o segredo esteja em ser natural?

O interessante da história é que, na briga sonora entre melodia e acorde para melhorar seu próprio dia a dia, quem acaba sempre levando vantagem é a tranquila harmonia.

Fonte:
Universo das Fábulas.

sábado, 17 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 410

 


Arquivo Spina 20 (Isabel Pernambuco)

 


Carlos Eduardo Novaes (No País do Futebol)


Juvenal Ouriço aproximou-se de um vendedor parado à porta de uma loja de eletrodomésticos e perguntou:

– Qual desses oito televisores os senhores vão ligar na hora do jogo?

– Qualquer um – disse o vendedor desinteressado.

– Qualquer um não. Eu cheguei com duas horas de antecedência e mereço uma certa consideração.

– Para que o senhor quer saber?

– Para já ir tomando posição diante dele.

O vendedor apontou para um aparelho. Juvenal observou os ângulos, pegou a almofada que o acompanhava ao Maracanã e sentou-se no meio da calçada.

– Ei, psiu – chamou-o um mendigo recostado na parede da loja – como é que é, meu irmão?

– Quer me botar na miséria? Esse ponto aqui é meu.

– Eu não vou pedir esmola.

– Então senta aqui ao meu lado.

– Aí não vai dar para eu ver o jogo.

– Na hora do jogo nós vamos lá pra casa.

– Você tem TV em cores?

– Claro. Você acha que eu fico me matando aqui pra quê?

Juvenal agradeceu. Disse que preferia ficar na loja, onde tinha marcado encontro com uns amigos que não via desde a final da Copa de 90.

Aos poucos o público foi aumentando, operários, vendedores, contínuos, vagabundos, e às 15h e 45min já não havia mais lugar diante das lojas de eletrodomésticos, os retardatários corriam de uma para a outra à procura de uma brecha. Alguns ficavam pulando atrás da multidão tentando enxergar a tela do aparelho.

As lojas concentravam multidões. As calçadas da cidade, que já são poucas, desapareciam completamente. Em jogos da Seleção Brasileira, durante a semana, cresce bastante o número de atropelamentos, porque o pedestre é obrigado a circular pelas ruas. Além disso, os motoristas ficam muito mais ligados no rádio do que no trânsito.

Na porta da loja onde estava Juvenal havia umas 200 pessoas do lado de fora e somente uma do lado de dentro: o gerente. Até os vendedores da loja já tinham se bandeado afirmando que assistir a um jogo atrás da televisão não é a mesma coisa que vê-lo atrás do gol. Quando a bola saía entravam os comentários dos torcedores.

No início do segundo tempo um cidadão que não se interessava por futebol (um dos 18 que a cidade abriga) foi pedindo licença à galera e que muita dificuldade conseguiu entrar na loja. O gerente foi ao seu encontro: “O senhor deseja algo?”

– Um aparelho de televisão.

– Por que o senhor não leva aquele?

– Qual?

– Aquele que está ligado ali na porta.

– É bom?

– O senhor ainda pergunta? Acha que haveria 200 pessoas diante dele se não tivesse uma boa imagem?

– Bem…

– E não é só isso – completou o gerente aproveitando a euforia do público com um gol do Brasil – que outro aparelho transmite emoções tão fortes?

O cidadão convenceu-se. Disse que ia levá-lo. O gerente, precavido, pediu-lhe para ir à porta da loja apanhá-lo. O cidadão não teve dúvidas. Ignorando aquela massa toda diante do seu aparelho, foi lá tranquilamente e cleck. Desligou-o.

O que aconteceu depois eu deixo por conta da imaginação de vocês.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes e outros. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) III, décimas


"É MAIS FELIZ A VELHICE
QUE É POR ALGUÉM AMPARADA."


Distante da meninice,
Nos remansos da saudade,
Havendo fraternidade
É mais feliz a velhice;
Há mais encanto e meiguice
Sobre a fronte esbranquiçada...
Mais branda se torna a estrada
Que é pisada com amor,
Como dói menos a dor
Que é por alguém amparada.
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"ESSE PECADO QUE EU FIZ
SÓ DEUS PODE PERDOAR."


Até ficarei feliz
Se o padre, por caridade,
Perdoar pela metade
Esse pecado que eu fiz.
Pecar não foi o que eu quis,
Vou dizer aos pés do altar
Quando for me confessar
Ao capuchinho barbudo,
Porém pecado rabudo
Só Deus pode perdoar,
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"NÃO PODE HAVER POESIA
NO CHEIRO DA GASOLINA."


Se o poeta passa o dia
Nos manejos de uma bomba,
O sonho suspira e tomba,
Não pode haver poesia;
Tudo quanto a musa cria
Vai caindo na rotina...
A neurose da buzina
Do motorista insistente
Sufoca e mata o repente
No cheiro da gasolina!

(Ao poeta Manoel Juvêncio da Silva, que trabalhava num posto de gasolina,
em Serra Negra do Norte).

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"O BOLO TEM QUATRO VELAS
QUE O TEMPO NÃO APAGOU."


Quatro luminosas telas,
Quatro cristais de magia,
Por quatro anos de poesia
O bolo tem quatro velas;
Quatro esperanças singelas,
Quatro dons que o céu guardou,
Quatro almas que Deus salvou
Com quatro messes divinas,
Quatro estrelas peregrinas
Que o tempo não apagou.
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"ORILO VIROU FORMIGA
ENTRE AS MALAS DO CORREIO."


Empresa dura o castiga
Com grossa enchente de malas
E, para bem despachá-las,
Orilo virou formiga;
A papelada o fatiga,
No corre-corre sem freio.
De minha parte, eu receio
Perder sua lira doce,
Pois o poeta enfurnou-se
Entre as malas do Correio.

(O poeta Orilo Dantas vinha faltando às sessões do Clube dos Trovadores do Seridó e alegava sobrecarga de serviços nos Correios, onde trabalhava).
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"SE EU NÃO MATAR A SAUDADE
ELA FINDA ME MATANDO!"


A própria felicidade
Parece chegar ao fim;
Não sei que será de mim,
Se eu não matar a saudade!
Todo instante ela me invade,
Machucando, machucando!
Não sei, meu Deus, até quando
Terei essa dor no peito!
Eu já vi que não há jeito,
Ela finda me matando!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carla Rejane da Silva (Medo Voraz)

 


Toc, toc, toc... Ouvi, de repente! Quem será? A esta hora da noite quem estaria batendo em minha porta? Perguntei, assim de chofre, consultando meus botões, como se eles tivessem vida e voz e pudessem me dar uma resposta à altura.  “Alguém em perigo, ou sou eu, que estou em grandes apuros?”
 
Ainda meio sonolenta, e preocupada, olhei de lado para onde havia colocado um criado-mudo. Infelizmente mudo e surdo pra variar. Descobri a sua deficiência, assim que o adquiri. Apesar disto, fiz a aquisição e o trouxe para casa.  Seria um companheiro que me ouviria calado, sem contestar.
 
Fizera-lhe algumas perguntas e nunca respondera nenhuma delas. Nada, absolutamente nada. Tentei até mesmo o braile, por fim, cansada e desanimada,  desisti de vez. Se assemelhava a bater em ferro frio.
 
Bem deixa para lá. Foi ai que direcionei meu olhar para o relógio de cabeceira. Caramba! Passava da meia noite.  Um calafrio percorreu o meu corpo, medo talvez. Sem acender a luz, caminhei até onde havia deixado meu roupão. Ele estava repousando no encosto de uma cadeira que jazia ali, no meu quarto, como eu me derramava em torno de mim mesma.
 
Essa cadeira está aqui faz bom tempo.  Sempre foi uma companheira fiel, notadamente nas minhas noites de insônia. Passei a mão no roupão, vesti e sai, na pontinha dos pés, quieta, sem fazer barulho, todavia, num ritmo meio que cambaleante.  Fui até a janela da sala tentando vislumbrar a varanda.

Sem abrir espiei pelas frestas. A noite estava em total escuridão. Um breu medonho.  Sequer uma estrelinha para iluminar. Lua, nem sinal.  Por conta disto, não enxergava um palmo adiante do nariz, nada, nada podia se ver do lado de fora.
 
Mas as batidas continuavam insistentes. Tomei coragem. Caminhei até a porta para espiar. Nada também.    Na entrada dos fundos, que ficava na cozinha,  idem. Bem, se quem batia não se identificasse, jamais abriria, ainda mais sem contactar visualmente o estranho chegado.

Morrendo de medo, e ao mesmo tempo levada pela curiosidade mórbida, voltei ao meu aposento, pé ante pé. Quem sabe a proteção do meu dormitório, a cadeira, o criado-mudo  ou, em último caso, o ‘embaixo da cama’ me fizessem criar coragem.
 
O bater incessante na porta da sala não cessava. Além dessas batidas, algo, que agora se encontrava bem pertinho, parecia ter entrado de alguma maneira irreal: eu podia sentir seu hálito, sua presença, através dos passos no corredor.   

Como se estivesse tentando me encarar no escuro.  Como louca, uma senil de carteirinha, corri, e me atirei debaixo das cobertas, tapando o medo e também a cabeça e os pés. Nesta altura do campeonato – disse para mim mesma: “Eu é que não vou me atrever a  perguntar quem é”.
 
“Não adianta você se atrever a me tocar -, porque a minha porta, pra você, não abrirei” -, acrescentei. O barulho lá fora e aqui dentro, numa intercalação estranha ficou mais ensurdecedor. Voraz como se o intruso quisesse se apoderar de mim de qualquer jeito. Meu Deus, quem batia, quem me importunava? O que me esperava, se de repente, resolvesse partir para cima dos meus receios?!
 
Como num filme de terror percebi que a coisa horripilante, não estava no escuro, mas sim dentro do meu quarto.  Havia escutado e sentido a sua presença.  Derrubara alguma coisa perto do guarda roupa. Fiquei estupefata, paralisada, amedrontada, imaginando que seria meu fim. Um terrível e amargo despedir da minha vida, vivida e revivida.
 
Senti se aproximar da minha singela e protetora cama. Nada podia fazer. Eu ali deitada, subjugada, como podia me defender?  Fechei os olhos esperando que a coisa a ser realizada fosse rápida e sem dor. Eu sentia que meu corpo estava ficando frio, gélido como se eu estivesse me petrificando por inteira.
 
Meus pés e minhas mãos, coitados, pareciam picolés. Endurecida, sem me mexer, sequer respirar, fiquei aguardando meu fim. Aguardei e aguardei. Depois de muito tempo de espera, decidi dar uma nova espiadela, um relance rápido em torno do escuro, bem devagarinho. Fui afastando o cobertor de minha cabeça. Vi, assustada, quem me aterrorizava por horas a fio.
 
“É você... – gritei, furiosa -  É  você que veio do nada para me incomodar e me desesperar? Brincadeira mais sem graça. Ok, pra mim chega. Já deu, basta!”

Com certa raiva, fui até o guarda roupas, peguei alguns cobertores e voltei para o aconchego da minha caminha quentinha. E o silêncio se fez mais denso e se as batidas continuaram nem sei dizer. Apenas me acomodei buscando me aquecer.
 
“E quanto a você – disse ao meu algoz -, fique a vontade, porque comigo você não vai dormir”. Ato continuo, fechei de vez meus olhos e me preparei para algumas horas de sono que ainda me restavam até que o dia voltasse a nascer. “Fique a vontade, Senhor Frio’“. E adormeci feliz.  

Fonte:
texto enviado por Aparecido R. de Souza

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 409

 


Arquivo Spina 19 (José Feldman)

 


Paulo Mendes Campos (O Cego de Ipanema)


Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no alto, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da terra. Os cegos, habitantes de um mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo as nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada com um barulho seco e compassado, investigando o mundo geométrico. A cidade é um vasto diagrama, de que ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvario. Sua sobrevivência é um cálculo.

Ele parava ali na esquina, inclinava a cabeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos da selva de asfalto. Se da rua chegasse apenas o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem. Ao chocar-se com o obstáculo, seu corpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plena rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.

Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. De profissão, por estranho que seja, faz chaves  e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem para o botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam longamente com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que ele fosse completamente cego. Outra  vez,  quando  ele  passava,  uma pessoa a meu lado fez um comentário que parecia esquisito e, entretanto, apenas nascia da simplicidade com que devemos reconhecer a evidência: - Já reparou como ele é elegante?

Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos vazios de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas, compunham uma figura misteriosamente elegante, de uma elegância abstrata e hostil, uma elegância que as nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Às vezes, revolta-se perigosamente contra o seu fado. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo quase silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto em que se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto o cego vibrava a bengala contra o motor, gritando:"Está pensando que você é o dono da rua?"

Outra vez, eu o vi em um momento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram os para-lamas, o painel, os faróis, os frisos. Seu rosto se iluminava, deslumbrado, como se  seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira, o mar de encontro aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.

E não me esqueço também de um domingo, quando ele saía do boteco. Sol morno e pesado. Meu irmão cego estava completamente bêbado. Encostava-se à parede em um equilíbrio improvável. Ao contrário de outros homens que se embriagam aos domingos, e cujo rosto  fica irônico ou feroz, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava naquele momento todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre  a  Terra. A poesia se servia dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam na turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado como qualquer um de nós. A agressividade que lhe empresta segurança desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com o seu sol opaco e furioso. Naquele instante ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, a  bengala  espetava  o  chão, evitando a queda. Voltava assustado à certeza da parede, para  recomeçar momentos depois a tentativa desesperadora de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no caos.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor, 1961.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 11


A bonequinha de pano
que vi, naquela vitrina,
era o aflito desengano
do olhar da pobre menina!
- - - - - -
Da flor da infância, o perfume
me embriaga, eternamente!...
Saudade é faca sem gume,
aos poucos cortando a gente!
- - - - - -
Desperta a aurora em meu ninho,
e a alvorada, enfim, reluz...
Pondo mais luz no caminho
da estrada que me conduz!
- - - - - -
É tão profundo o desgosto,
das queixas do fim do dia...
Que escuto os ais do Sol posto,
na dor da melancolia!
- - - - - -
Lágrimas de luz, ao vê-las,
nos olhos do céu bonito,
são queixumes das estrelas
na solidão do infinito!
- - - - - –
Mãe! um temor me assedia
nesta idade que me alcança:
É o de esquecer, que algum dia,
em teus braços fui criança!
- - - - - -
Minha casa é uma surpresa;
é simples, do teto ao chão...
Se faltar pão sobre a mesa,
sobra amor no coração!
- - - - - -
Na praça, os dois se exibindo;
idílios da vida em flor...
E o banco em silêncio ouvindo
jovens promessas de amor!
- - - - - -
Nos versos, mais sutileza,
na trova, laços de enlevo.
Assim, convenço a tristeza
que é mais feliz quando escrevo!
- - - - - -
O mar, com tudo se arruma.
Por ser poeta, se esmera,
quando faz versos de espuma
nas noites de primavera!
- - - - - –
Para a criança indefesa,
vítima desse fracasso...
Melhor que um pão sobre a mesa.
é a ternura de um abraço!
- - - - - -
Por teu talento, ó, Jesus,
vejo entre estrelas tão belas...
Uma lua sem ter luz,
brilhar mais que todas elas!
- - - - - -
Quando a saudade me aperta,
nada, no amor, mais me acalma...
Só tu tens a chave certa,
que abre os portões de minha alma!
- - - - - –
Quando o céu pinta a moldura
de uma seca no sertão,
o manto da desventura
cobre as cinzas do meu chão!
- - - - - -
Quando o velho mar se alteia,
por entre as brisas e a bruma,
esconde o tédio na areia,
por sob a barba de espuma!
- - - - - -
Se a solidão desconforta,
que tal, sentir a ilusão
de ver no trinco da porta,
as digitais de outra mão?...
- - - - - -
Se a vida é um grande torneio,
na arena, eu não me confino;
vou montar noutro rodeio
até moldar meu destino!
- - - - - -
Se há flores mais preciosas
entre os jardins dos rosais...
Não há disputa entre as rosas;
sentem-se todas iguais!
- - - - - -
Se o amanhecer nos conduz
aos encantos da alvorada,
o Sol é um beijo de luz
nos lábios da madrugada!
- - - - - -
Se o mar esconde o temor,
de um feitiço que o atraia,
Rende-se aos laços do amor
quando adormece na praia!
- - - - - -
Setenta e um!... E, eu preciso
deixar mais gestos de amor;
Em cada curva um sorriso
e em cada esquina uma flor!
- - - - - -
Só depois que a idade avança,
o homem, já curvo e cansado...
Enxerga a luz da esperança
no olhar de um crucificado!
- - - - - -
Toda tarde, a brisa mansa,
sopra os varais do poente,
e esconde o sol da esperança
da luz dos olhos da gente!
- - - - - -
Um sabiá, na janela,
toda tarde canta um hino,
regendo a canção mais bela
das tardes do meu destino!
- - - - - -
Voz cansada, olhar sem brilho,
passa o tempo, a idade avança,
e a velhinha espera o filho
sem perder nunca a esperança!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimunto de Souza (Parte Vinte e Dois) Empacotados.

Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
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UM

DOIS LITROS DE LEITE caminham pela calçada em acirrada conversa. Os ânimos dão a impressão de estarem exaltados. Mas não. É o modo como falam e gesticulam, que parece destoado dos demais que cruzam com eles.  

— Pois é, véi. Agora como bem pode ver, estou de visual novo.

— E daí? Que adianta isso? Eu sou pasteurizado, você não.

— Grande coisa! Eu não tenho nata, você tem.

— Em compensação, não preciso ser fervido. Você, se não for ao fogo... kikikiki... Quarenta e oito horas depois...

— Qual o quê! Sempre me mantenho fresco e saudável. Notadamente entre um grau centígrado e dez.

— Hummmm...! Bem que eu desconfiava... Você tem cara de fresco mesmo. Aliás, isso já me deixava com a pulga atrás da orelha. Ante a sua confirmação, acabou de tirar todas as minhas duvidas, assumindo...

DOIS

— Deixa de ser besta, véi. Assumindo o quê?

— Ora, a sua frescura. Até um minuto atrás, só havia suposições. Agora, a certeza.

— Você não passa de um grandessissimo idiota.

— Antes idiota que fresco.

— Fresco, seu depravado, mente suja, no sentido de puro, gostoso, saboroso, delicioso. Sem falar que não engordo.

— Filtra de novo!

— Como? O que foi que disse?!

— Conta outra. Você engorda. E muito. Já o papai aqui, seja puro, ou misturado, ao chocolate, ou com um cafezinho feito na hora, me torno indispensável, insubstituível. Na verdade, ninguém fica sem mim. Em toda casa de família, seja ela rica ou pobre, eu me faço presente...

— E qual a vantagem disso? Pra ficar escondido, de castigo na geladeira? Eu não! Meu lugar é sempre no melhor da casa. Onde todos me enxergam, me procuram, brigam para me verem na mesa, principalmente no desjejum da manhã e, claro, no lanche da tarde. Os patrões me amam... À noite, ninguém vai pra cama sem antes bater um papinho comigo.

TRÊS

— Eu tenho grande valor energético. E você?

— Sou rico em carboidratos.

— O que faz a diferença, hoje, meu prezado, são as proteínas. As proteínas entende o que falo?

— Você está por fora. Proteínas já eram. A galera está ligada nas gorduras totais.

— Kikikikikikikiki... Estas gorduras estão todas saturadas.

— Nada a ver. Por isso as minhas são trangênicas.

— Fique sabendo que eu tenho no sangue fibras alimentares...

— Eu, sódio.

— E, eu, bobão, cálcio.

— Meus VDRs, valores diários de referência servem de base para dietas de 2000 kcal ou 8400 kl.

— Você tem Glúten. Eu não.

QUATRO

— Já ouviu falar em estabilizantes? Eu sou rico em estabilizantes...

— Em contrapartida, lhe falta o Citrato (não confunda com Nitrato) de sódio. Sem falar no monofosfato e difosfato dissódico, que, por sinal, passou a quilômetros de você...

— Minha estampa imponente chama a atenção. Olhe para mim. Não sou lindo? Confesse!

— Você se acha. Mas não passa de um trouxa com cara de almofadinha. Agora dá uma espiada aqui no papai. Como bem pode ver meu amado, eu ando na moda. Nos trinques. Sou destaque internacional. Meus pais ganharam o ISO recentemente. Ah, outro detalhe, tenho SIF e sou registrado como manda o figurino do Ministério da Agricultura. Tenho também o DIPOA e os cambaus. Sem contar que apareço na televisão, em uma infinidade de comerciais em horários nobres.

CINCO

— Como você é metido. Que coisa feia! Eu sou Integral. Acho que já disse isso, mas vá lá. Não me custa repetir. EU SOU INTEGRAL. Sabe o que é ser INTEGRAL? Não é para qualquer um...

— Você pode até ser integral, mas não é UHT.

— Quero ser um mico de circo se estiver errado. Você se gaba ai de ser UHT. Aposto uma grana que nem sabe o que isso significa.

— Errou meu amigo. Sei e muito. UHT significa Ultra-Alta Temperatura.

SEIS

— Não disse? Sabe nada! UHT, seu paspalho, nada mais é que Ultra High Temperature. E sabe o que quer dizer isto?

— Sei.

— Então desembucha...

— Sou pré-cozido.

— Buuuurrrroooo... UHT é um processo em que os responsáveis por você e por mim, nos fazem passar antes de irmos para as gôndolas dos supermercados. Consiste em um tratamento térmico feito em alta temperatura, todavia...

— Todavia...?

— Todavia mantemos as nossas qualidades essenciais. Aprendeu?

— Pra aturar você tem que ter SAC. E eu tenho um SAC bem grande...

— Que diferença isso faz? — Eu tenho WWW e aposto que você não tem.

SETE

— Mas por outro lado, venho com imagens ilustradas. Neste quesito, você passou longe. Tão longe que visto daqui parece um ponto no universo.

— Tudo bem. Posso até ter passado longe. Um  ponto no universo, né? Mas segura essa, mano véi. Eu tenho FSC e você não.

— Eu fui agraciado com o S.I.F. Sou, portanto, inspecionado pelo Ministério da Agricultura.

— Agora eu calo a sua boca. Dou minha tapa à cara. Você não tem Tetra Pak.

— Quêêêê...?!

— Dou minha cara à tapa.  

— De fato. Nesse treco realmente entrego as mãos à palmatoria. Que vem a ser isso?

— Trocado em miúdos, minha embalagem. Minha roupagem, minha vestimenta, kikikiki... Protege o que é bom.

— Convencido de uma figa!  Somos todos iguais. Saímos do ube ou das tetas da mesma vaca.

— Duvido. Duvidoóóóó... Minha mãe é uma vaca, porém, a sua, a sua é uma... A sua é uma bezerra. Kikikiki...

— Ria, seu idiota.  Ao contrário de você, sou enfardado e envasado em embalagem asséptica. Ninguém toca em mim...

— Só falta o engraçadinho querer me convencer agora nessa altura do campeonato, que é virgem. Kikikiki... Fala ai, mano. Você é virgem? Tem selo de inspeção? Tem código de barras?

— Tenho tudo isso e muito mais. Venho de boa usina, meu laticínio é conhecido país afora, possuo CEP, CNPJ e etc. etc...

— Você não preserva a natureza... Eu, ao oposto...

— Como você é tapado. Tapado e idiota. Sabia que tenho como ser reciclado?

— Reciclado coisa nenhuma. No final das contas você vai é servir de lixeira pra encherem você de porcaria. Au... Au... Au... Ua... Ua... Ua...

OITO

De repente, em face da conversa acalorada, febricitante, ambos, distraídos (embora usem a faixa destinada aos pedestres), são atropelados por um motoqueiro que inopinadamente avança o sinal. Fatalidade, sorte quem sabe, acaso, destino, um sobrevive. O outro, porém, chega a óbito. Bate com as doze.

NOVE

Dia seguinte, os jornais noticiam, em letras garrafais: “DOIS LITROS DE LEITE, AO CRUZAREM A AVENIDA, SÃO ATROPELADOS NO SEMÁFORO POR UM MOTOQUEIRO BÊBADO E EM ALTA VELOCIDADE” Mais embaixo, o texto em explicação à chamada. “UMA DAS VÍTIMAS, INFELIZMENTE, NÃO RESISTIU AOS FERIMENTOS E FALECEU À CAMINHO DO HOSPITAL”.

DEZ

O litro sobrevivente, ainda na enfermaria, ao ser procurado, um tanto quanto assustado e ligeiramente abalado, não quis dar entrevista. Os repórteres só conseguiram saber seu nome verdadeiro. “Longa Vida”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Ed. AMC-GUEDES, 2020.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 408

 


Arquivo Spina 18 (Carla Bueno)

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Peladão


Por motivos fartos e facilmente compreensíveis, ele acabou ganhando status de atração turística – um dos pontos de parada obrigatória para todo grupo que visite Maringá pela primeira vez. Ali o guia aproveita para contar como começou a história da cidade: é o local do encontro entre o Maringá Velho e o Maringá Novo. Oficialmente, o nome do charmoso espaço é Praça Sete de Setembro. Mas na boca do povo é Praça do Peladão.

Deu-se assim: o prefeito na época (1972) era o Doutor Adriano Valente. Ocorreu-lhe a ideia de dotar a cidade de um monumento em homenagem aos nossos grandes pioneiros. Propósito mais do que justo, visto que a bela urbe da qual hoje tanto nos orgulhamos só existe porque um peitudo grupo de homens e mulheres teve a coragem de erguer aqui os primeiros ranchos.

A obra foi confiada ao renomado artista plástico Henrique Aragão, a quem o Doutor Adriano explicou o que pretendia: algo que configurasse um esperançoso desbravador com os braços levantados para o céu, como que a saudar o futuro e indicar sua sede de infinito.

O artista, que residia em Ibiporã, foi para casa, dialogou com a inspiração, voltou com o projeto pronto: uma grande e esguia estátua, tendo ao lado três machados estilizados lembrando a abertura da mata para construção da cidade.

Até aí tudo bem. Era um conjunto bonito, empolgante mesmo, traços modernos, e seria fácil entender a simbologia. Surgiram, porém, dois “poréns” deveras embaraçosos.

O primeiro era que o bravo desbravador, ali representado pela estátua, seria instalado de frente para o Maringá Novo. Coisa chique sim. Mas com isso o bumbum ficaria desaforadamente virado para o Maringá Velho... E aí aconteceu o que ninguém imaginara antes: os moradores do bairro pioneiro não gostaram nadinha da história, armou-se o entrevero, e o enredo por pouco não desenredou.

Foi necessária uma caprichada dose de diplomacia para convencer o pessoal de que realmente não havia outro jeito. Ou seja: não havia como fazer o desbravador olhar ao mesmo tempo para o leste e para o oeste.

O segundo problema era mais delicado ainda: é que o artista, movido pela sua pureza de alma e de coração, esculpira a estátua desnuda. Isso mesmo: nuinha da cabeça aos pés, tal qual Adão no paraíso. Entendeu o drama?...

Pois deu no que deu... o maior bochicho na cidade: “Como é que o Doutor Adriano, um homem tão fino e de tão bons princípios, consentira numa vexação daquelas?”. Pressão em cima do prefeito, pressão em cima do escultor. O único jeito de pacificar os ânimos foi acatar a genial ideia não se sabe de quem: colocar uma folha de parreira por sobre as partes pudendas do inocente herói de cobre. Só não foi possível evitar que o simpático personagem resultasse condenado a carregar para todo o sempre o folclórico apelido de “Peladão”.

O que, aliás, faz dele uma atração mais chamativa ainda.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-9-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) IV

CRESCIMENTO

De crescer, o ser começa,
a partir do nascimento
e o crescimento só cessa
depois do sepultamento,
a fim de avançar depressa
se acelera o crescimento,
porque todos temos pressa
em conquistar nosso intento,
quando a meta não for essa,
se chega a fazer promessa:
pra alcançar nesse momento.

Talvez a felicidade,
que tanto sonhamos ter,
esteja à nossa vontade
para dela nos valer,
viver com simplicidade
num mundo sempre a crescer,
sem excesso, nem vaidade,
que possa comprometer,
não só como humanidade
mas também na eternidade,
é feliz quem souber SER.
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ESSÊNCIAS


Nunca espere frutos ter
se nada tiver plantado,
sempre acaba sem colher
quem nunca tem semeado.
Portas que só têm sinais
de entrada e não de saída,
quem entrar, talvez jamais,
de lá voltará com vida.
Sejam ternos os fanais,
eternos fachos florais
numa senda colorida.

A primavera nos traz
as primeiras sensações,
que enchem da sublime paz
tão sequiosos corações,
um sorriso transbordante
cobre a face com olores
e no olhar do ser pensante
um ramalhete de cores,
essência aromatizante,
unge e perfuma o semblante
dos sensíveis prosadores.
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MEDIDA CERTA


Peço a Deus que me dê vida
na devida proporção,
se possível na medida
pra cumprir minha missão,
nunca me falte energia
nem vontade de viver,
mostrando no fim do dia
a paz que brota do ser,
minha mão plante harmonia
meu semblante a luz que guia
nos caminhos do saber.

Tudo na vida são fases
nem sempre bem sucedidas,
muitas delas são capazes
de causar graves feridas,
tomara, possamos vê-las
integralmente vencidas
sabendo que pra vencê-las
por nós devem ser vividas,
mesmo sem nunca querê-las
preferimos ser estrelas
frente as flores coloridas.
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MUTAÇÕES


Tarde de julho, nublada,
o vento uivando anuncia
que a noite será gelada
e a manhã cinzenta e fria,
quem nunca teve morada
faz da estrada a moradia,
entre o pouco e o quase nada
com o pouco ficaria.
Vida insossa provocada
pela ferida causada
nos passos de cada dia.

Mas o sol quando desponta,
bem cedo, no alvorecer,
lentamente toma conta
do cosmos vital do ser.
Toda a treva, a luz desmonta,
fazendo à paz florescer
um vasto rol que remonta
aos confins do entardecer.
A vida não nasce pronta
nela o tempo é quem reponta
sonhos que fazem viver.
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PONTE


Muitos fazem das marquises,
um improvisado teto,
resultante dos deslizes
na busca de amor e afeto.
Repousando nas calçadas
sem colchão, sem protetor,
calça e manga arregaçadas
tendo o céu por cobertor.
Corpo inerte estatelado,
ignora o que passa ao lado
mesmo assim é sonhador.

Sedentos por natureza
buscamos água na fonte,
vida vinda à profundeza
do mais distante horizonte.
Com farta delicadeza
descemos ao pé do monte,
pra sorver toda a beleza
refletida em nossa fronte.
O tempo mostra agudeza,
nos lapida com destreza
para sermos dele a ponte.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Uganda) A História de Dois Amigos

Era uma vez um oleiro, a mulher e um filho. À medida que este crescia, os pais ficavam cada vez mais tristes, pois ele era diferente das outras crianças. Nunca brincava com eles; nem ria, nem cantava. Só ficava sentado, sozinho. Mesmo com os pais ele só falava de raro em raro, e nunca aprendeu os modos educados das outras crianças da aldeia. Ele ficava só sentado, pensando o dia inteiro - e ninguém sabia em que ele tanto pensava, o que entristecia muito aos pais.

As outras mulheres tentavam consolar a mulher do oleiro, dizendo:

- Talvez você ainda tenha outro filho, igual às outras crianças!

Mas ela dizia:

- Eu não quero outro filho. Eu quero é que esse seja sociável.

E os homens da cidade tentavam animar o oleiro, dizendo:

- Esses meninos estranhos frequentemente se tornam grandes homens!

E o homem dizia:

- Deixem o garoto em paz. Algum dia vamos saber se ele é um homem sábio ou um idiota. Ao chegar em casa, o oleiro contou à mulher a conversa com os outros homens.

O menino escutou e pareceu despertar. Ficou pensando naquilo durante alguns dias, e por fim, um dia saiu bem cedinho, levando seu cajado, e foi para a floresta ficar lá pensando.

Perambulou o dia todo e acabou chegando a uma pequena clareira no flanco de um morro, de onde podia avistar todo o país. O Sol estava se pondo sobre as gigantes montanhas azuis e tudo tinha um luminoso tom róseo e dourado. Profundas sombras cobriam as bananeiras e florestas ao longe. Mas o menino não via nada disso. Estava com os pés doídos, exausto e miserável; sentou-se sobre um tronco caído, cansado do longo dia.

De repente, um leão surgiu na clareira.

- O que você está fazendo aqui, tão sozinho? - perguntou o leão, ríspido.

- Estou desolado! - disse o menino - e vim para a floresta pensar, pois não sei se sou um homem ou um idiota.

- E é só nisso que você fica pensando? - inquiriu o leão.

- É - respondeu o menino - penso nisso dia e noite.

- Então você é um idiota - falou o leão decidido - homens sábios pensam sobre coisas que beneficiam o país.

E foi embora.

Um antílope veio saltando pela clareira e parou, encarando o menino.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Você costuma comer alguma coisa?

- Sim - disse o menino - minha mãe faz comida duas vezes por dia, e eu como.

- E você alguma vez agradece?

- Não. Nunca pensei nisso - respondeu o menino.

- Então, você é um idiota. Os homens sábios são sempre agradecidos.

E foi embora para dentro da floresta.

Então chegou um leopardo, olhando-o desconfiado.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Eles gostam de você, lá na aldeia?

- Não, acho que não - disse o garoto. Eu nem os conheço direito.

- Então você é um idiota - disse o leopardo - todos os meninos são bons; muitas vezes eu tenho vontade de ser um menino. Os homens sábios se misturam aos companheiros e conquistam seu respeito.

E foi embora, fungando.

Nesse momento, um grande elefante cinza veio se embaralhando pela trilha da floresta, abanando o rabinho, catando um galhinho aqui, uma folhinha ali, das árvores por onde passava.

- O que você está fazendo aqui, sozinho, com o Sol já se pondo? Você devia estar na sua casa, na aldeia! - falou o elefante.

- Estou desolado - disse o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Que tipos de trabalhos você faz? - perguntou o elefante.

- Eu não trabalho em nada - respondeu o menino.

- Então você é um idiota - disse o elefante - todos os homens sábios trabalham.

E afastou-se gingando pela trilha que levava ao lago da floresta, onde os animais matam a sede.

O menino apoiou a cabeça nas mãos e chorou amargamente, de coração partido, pois já não sabia o que fazer. Pouco depois, ouviu uma voz ao seu lado, dizendo gentilmente:

- Oh meu irmãozinho, não chore assim; conte-me o seu problema.

O menino viu então uma pequena lebre ao seu lado.

- Estou muito triste. Eu não sou como as outras pessoas e ninguém gosta de mim. Vim para cá tentar descobrir se sou um homem sábio ou idiota e todos os animais me falaram que sou idiota!

E chorou mais do que antes. A lebre deixou-o chorar e depois falou:

- Não chores mais. O que os animais falaram é verdade. Disseram para você ser agradecido... Ter pensamentos grandiosos... Ser simpático com as outras pessoas... Trabalhar... Todas essas coisas são sábias.

Os animais não são ociosos e ficam admirados ao ver que os homens, tão bem-dotados, conseguem desperdiçar suas vidas. Pense em como ficaram surpresos ao ver um menino como você, forte e saudável, sem fazer nada o dia inteiro! Eles sabem que o mundo estará a seus pés, se você comandar. Mas há muito tempo ainda: você é um menino!

O Sol já desaparecera atrás das montanhas distantes e a mansa escuridão ia cobrindo rapidamente toda a floresta. A lebre disse:

- Você está cansado, com fome e longe de casa. Passe a noite aqui comigo, para conversarmos.

Então, entraram pela floresta. A lebre trouxe água numa cuia e maravilhosas nozes para o menino se alimentar e preparou-lhe uma cama macia com folhas secas. Conversaram sobre muitas coisas e o menino disse:

- Meu pai é oleiro e acho que gostaria de ser oleiro também.

- Se você for, nunca se contente com trabalho malfeito - disse a lebre - seus potes podem ser os melhores do país. Não descanse até conseguir fazer coisas realmente lindas. Nenhum homem tem o direito de espalhar coisas malfeitas pelo mundo. A vida do homem é como um rio... Fluindo sem parar... O que passou, acabou-se, mas sempre vêm outras águas. Ninguém pode dizer que é tarde demais, ainda mais você, com a vida toda pela frente. E só os idiotas ficam desencorajados pela zombaria.

"A aurora prateada as sombras dissipou; aos sonhos alegres, adeus eu dou. A multidão da floresta já amanheceu; nas árvores, o canto dos pássaros ecoou, do longo sono, toda flor despertou; e eu sei hoje o mundo é meu. Meu passo é seguro e forte é minha mão; enquanto puder, muito vou trabalhar. Quando num mar de luz o Sol se apagar e a noite trouxer a escuridão por direito, vou então descansar, pois hoje o mundo eu vou ganhar."

De manhã bem cedo, a lebre acompanhou o menino até a orla da floresta e fizeram um juramento de amizade, tão sagrado para os animais quanto para os homens. A lebre falou:

- Volte de vez em quando para me ver. Venha até esse ponto e cante essa canção; os passarinhos me avisarão e eu lhe esperarei.

O menino voltou animado para casa e encontrou a mãe trabalhando na horta. Ele a cumprimentou tão alegre como qualquer outra criança simpática, e viu que ela ficou feliz. Depois foi ter com o pai e disse:

- Quero ser oleiro. Vou tentar aprender.

O pai ficou muito contente. Todos na aldeia ficaram sabendo e alegraram-se com o casal e seu menino.

O menino trabalhava com afinco e anos mais tarde tornou-se um oleiro famoso. Vinha gente de todas as regiões comprar seus potes, que sempre eram bem-feitos e bonitos. Contudo, quando vinha uma depressãozinha, ele se recolhia para a floresta e lá encontrava-se com sua amiga lebre. Passavam o dia juntos.

O homem abria seu coração para a amiga, contando todas as suas tristezas. E sempre recebia amor, carinho, consolo e encorajamento, voltando ao trabalho cheio de esperança.


Fonte:
Universo das Fábulas.