sexta-feira, 11 de junho de 2021

Caldeirão Poético XLV


Arievaldo Vianna

Quixeramobim/CE

DILEMAS DE ÍCARO


Lançar-se ao voo de maneira decidida
Desafiando os raios cálidos deste sol
Morder a isca, feito peixe no anzol,
Alçar um voo deslumbrado na subida

Não importar-se com a cera derretida,
Aventurar-se sem ter bússola ou farol,
Trinar um canto - liberto rouxinol!
Perder as asas, sorrindo na descida...

Armar a rede diante de um vulcão,
Desafiar Potestades do Universo!
Ou, simplesmente, não abraçar qualquer meta;

Acomodar-se com os elos do grilhão...
Conter os brados ferinos do seu verso...
São os dilemas que torturam o poeta.
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Carlos Vazconcelos
Tianguá/CE

EM DEFESA DO SONETO


Garboso em fardão ou então despido
De inútil esplendor - na inculta cena,
Velho sempre e já rejuvenescido
Ele pousa sim nas melhores penas

Maculam demais sua reputação
Dizem-no arcaico e obsoleto
Superado, vil, servo da emoção
Adulterado de pai para neto

Acusam-no de cárcere do verso.
Escravo feitio; quarteto, terceto
Sisudo e arredio; oposto, cateto

Mas se a Poesia, bela e diversa,
Criada com arte em plano secreto
Cabe em toda forma... elejo o soneto!
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Inês Carolina Rilho
Recife/PE

ECOANDO N'ALMA


Olho incessantemente da janela. Não te vejo mais.
Busco avidamente tuas mãos entre as minhas.
Parece-me ainda sentir teu cheiro nas linhas
do papel. Tua voz a meu lado não ouço mais.

As pedras do caminho sabem de todos os teus passos.
O sol perdeu um pouco do brilho. Estou sem teu olhar.
A lua reflete languidamente sobre o mar com pesar.
Os dias correm sem parar. Estou sem teus abraços.

Ouço rumores nas ruas. A tua voz em mlnh'alma ecoa.
Vejo alguém semelhante a ti, julgo enfim delirar.
Pessoas para lá e para cá... Ouço então cantarem loas.

Já não sei por onde ir nesse desejo de te encontrar.
Volto para minha sacada, vejo um trovador qu'entoa.
És tu e me surpreendes, buscando meu lenço segurar!
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Ismar Dias de Matos
Belo Horizonte/MG

DIAMANTINA


Tens o clima intraduzível;
cedo é sol, tarde é neblina...
Diamantina, Diamantina...
que natureza aprazível!

"Se é por demais incrível
e o meu dilema fascina,
inclina o ouvido, inclina,
ouve o tempo indescritível!

Se o sol que ora clareia
der lugar à lua cheia
e convidar à seresta;

deixa o sol, essa torrina,
calor e qualquer rotina,
vê a natureza em festa!"
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Michelle Gomes Moreira
Curitiba/PR

DETALHADOS SEGREDOS


Sou a própria tristeza em meio à multidão
Mútuos sentimentos misturando ilusão
Ambivalente nos versos, sou a composição
Não temo às dores, muito menos solidão

Estou bem sim, acompanhada do meu próprio ser
Transpasso os dias desse tal mundo fugindo
Conversas longas sempre tenho tido comigo
Escrevo-me para que assim eu possa me ler

Em enigmas eu esmiuço detalhes de mim
Pareço ser inocente, porém sou réu enfim
Sentenciada, condenada a ser infeliz

Ao desnudar poemas, e escrever sonetos
Neles eu me mostro, neles eu desapareço
Sou eu paradoxo, detalhados em segredos.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Versejando 65

 

Marques Rebelo (Uma senhora)

Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia por um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada - cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.

- Econômico? Então se encera mesmo.

O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera - da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?

Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.

Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia. Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Elcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas precauções.

- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...

E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.

Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava.

Chegando o carnaval, tirava a forra.

As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:

- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?

Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.

No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:

- Quanto temos ainda?

Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:

- Duzentos e oitenta.

- E os oitocentos do automóvel?

- Já estão fora.

- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.

O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.

Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro.

O "lá dentro" de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.

Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.

- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado.

- Assim, assim...

Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito. Que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah!

Seu Adalberto exultava:

- É isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?

As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:

- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!

Seu Adalberto corrigiu logo:

- Girassol, não, Artur; crisântemo.

Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisantemo ou crisântemo - quer ver que eu disse besteira?

Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...

- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos também a pé.

O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? – ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...

Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.

A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro.

Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!

Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.

Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.

Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

Fonte:
Marques Rebelo. Contos Reunidos. Publicado em 1977.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXII

A Chuva Desce a Ladeira

 
A  água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
De o amor os não qu'rer...
Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.
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A Aranha
 
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida balançada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou  presa do meu suporte.
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A Criança Que Ri na Rua
 
A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo  isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo
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A Estrada, Como Uma Senhora
 
A estrada, como uma senhora,
Só dá passagem legalmente.
Escrevo ao sabor quente da hora
Baldadamente.

Não  saber bem o que se diz
É um pouco sol e um pouco alma.
Ah, quem me dera ser feliz
Teria isto, mais a calma.

Bom campo, estrada com cadastro,
Legislação entre erva nata.
Vou atar a lama com um nastro*
Só para ver quem ma desata.
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nastro = laço, tira.
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Ah, a Esta Alma Que Não Arde
 
Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama,
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.
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Ah, Como Incerta, na Noite  em  Frente
 
Ah, como incerta, na noite  em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudade do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da  ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quanto existe, só porque existe.

Contos e Lendas do Paraná - 1 (Paranaguá: A Lenda do Pirata Zulmiro)


A incandescida imaginação do vulgo sempre inclinado ao maravilhoso, acolhe e acaricia sedutoras e extravagantes lendas, como essa do pirata Zulmiro, que chegou a convencer meio mundo da existência de tesouros que esse suposto ladrão do mar, após abandonar uma vida aventurosa e inchada de crimes, teria ido esconder num sítio dos arredores de Curitiba.

A esse misterioso personagem se prende a fama dos tesouros da ilha da Trindade, divulgada na década de 1920 por um farmacêutico paulista possuidor de velho documento com a indicação do lugar exato onde, no solitário rochedo, distando 300 léguas da costa do Espírito Santo, jaziam as fabulosas riquezas, produto das piratarias exercidas no Atlântico pelo famoso flibusteiro.

Zulmiro, segundo o dono do documento, seria nome de guerra, arranjado para ocultar a verdadeira personalidade de um Lorde, talvez filho segundo de alguma das grandes casas da Inglaterra, ingressado jovem na marinha do seu país e da qual desertou nos agitados dias do primeiro quartel do século retrasado, na Europa sacudida pelas guerras napoleônicas, para entregar-se às criminosas atividades do ofício de pirataria.

Até que um dia, capturado o seu navio por um vaso de guerra britânico, descobriu o comandante deste no capitão prisioneiro um antigo colega da Escola Naval, resolvendo, para não enforcá-lo, como mandavam as leis penais inglesas, desembarcá-lo na costa mais próxima (a Barra de Paranaguá), sob condição de se internar no continente e nunca mais aparecer. Deu-lhe três libras esterlinas e uma Bíblia, únicos haveres com que contou o infeliz para fazer vida nova no país, que então se ensaiava para a independência.

Seria nessa época que o estranho personagem, rumando ao planalto por julgar perigosa a permanência à beira-mar, foi assentar residência em Curitiba, de onde não mais saiu, falecendo em avançada idade, entre os anos de 1880 e 1882, conforme o testemunho de coevos que nos afirmaram, em 1910, tê-lo conhecido numa chácara do Pilarzinho, originando-se deste fato a suspeita de estarem ali enterrados os supostos tesouros.

Provado que realmente existiu na Curitiba dos meados do último século um estrangeiro, cuja vida se cercava de grande mistério, e se este era o indivíduo egresso da marinha inglesa ao qual faz referência a narrativa do farmacêutico Barbosa, neto do funcionário imperial que residia no Paraná, do pirata recebera a confidência do seu passado e a Bíblia com os “croquis” da ilha da Trindade, assinalando o local do tesouro. Fica esclarecida a impossibilidade de existir este no Pilarzinho, pois o fato de haver Zulmiro aqui desembarcado apenas com as três libras da generosa dádiva do seu compatriota e antigo camarada, exclui toda a hipótese de subir ao planalto carregando as riquezas.

Na época era muito comum aportarem ao Brasil indivíduos fugidos ao ajuste de contas com a justiça do país natal e que para refazerem a vida no virgem ambiente americano, e esquecerem o tenebroso passado, tinham a cautela de não revelar a verdadeira identidade.

Saint-Hilaire, em 1820, visitando Paranaguá encontrou na ilha da Cotinga um alemão de avançada idade, ali estabelecido há muito tempo e “que havia sido muito atormentado por faltas contra a disciplina e os costumes”, diz o notável botânico francês.

Perguntou-lhe o que o fizera vir a um país tão afastado do seu. “Erros, extravagâncias”, respondeu-lhe, lacônico, o exilado.

Como esse, outros muitos teriam acostado ao nosso país, e daí a possibilidade da vinda do enigmático inglês do Pilarzinho, cujo nome Zulmiro não seria por ele adotado, tratando-se de provável corruptela indígena de Saulmers (pronuncia-se Sulmir).

A dúvida, porém, ocorre quanto à qualidade de antigo pirata que se lhe atribui, bastando recorrer a argumentos cronológicos para provar o infundado de tal suposição: dado o falecimento de Zulmiro em 1882, aos 90 anos de idade prováveis, teria ele nascido em 1792 e supondo que com 20 anos, no mínimo, tenha desertado da frota de guerra inglesa, temos 1812 para início da sua carreira criminosa, mas numa época em que a pirataria já estava praticamente abolida no Atlântico, permanecendo apenas no litoral dos Estados barbarescos ao norte da África, até que a conquista francesa a extinguiu de vez. O corso, forma legal de pirataria autorizada por governos em guerra para causar danos ao inimigo e o tráfico de escravos, esse sim estava em vigor.

As repúblicas americanas em luta pela independência, concediam cartas de corso aos que se propunham perseguir e saquear navios espanhóis. E a indústria do transporte de negros da África para venda no Brasil e nos Estados meridionais da América do Norte, se exercia franca e prosperamente, sem embargo da perseguição dos cruzeiros ingleses.

Fonte:
texto de Jorge D. dos Santos, professor e historiador, FUMCUL 
In Renato Augusto Carneiro Jr (coord.). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Versejando 64

 

Adega de Versos 27: Maria Nascimento Santos Carvalho

 

Nilto Maciel (Sombra Não Identificada)

Humberto ligou a televisão e se sentou no sofá. Locutor falava sem pestanejar. Presidente da República viajava mais uma vez. O homem olhou para o ventilador. Pela janela, nenhuma brisa invadia a sala. Levantou-se. Avião caiu nos confins do mundo, com 120 passageiros. Acionou botão para acelerar a rotação das hastes. Vento, vento, vento. Objeto ou inseto não identificado voou nas proximidades da lâmpada presa ao teto. Voltou ao assento. Agricultores invadiam fazenda no Pontal do Paranapanema. Bandeiras vermelhas, gritos, foices. Cruzou perna, coçou nariz. Televisão precisava de limpeza. Poeira até na cara do papa. Sujeira nos quatro cantos da casa, nos quatro pontos cardeais. Cisco intrometeu-se nos seus olhos. Assalto a loja no centro da cidade. Locutor franziu cenho. Cenas de barbárie gravadas pelo circuito interno de televisão. Bandidos entram armados no estabelecimento comercial. Alguns fregueses conseguem fugir. Homem encapuzado aponta arma para consumidor idoso. Por más artes, a arma se dispara na cabeça do freguês, que tomba inerte. Bandidos recolhem saco dinheiro da loja e fogem. Sombra de objeto ou inseto não identificado passeia aos pés de Humberto. Locutor reaparece para rematar a reportagem: o morto é Humberto Dias Tavares, aposentado, morador do bairro de Fátima, que havia ido ao centro comprar ventilador. Rosto do morto em close. Humberto se pasma. Morto? Como?, se via tudo: a televisão, a poeira acumulada nela, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador, os próprios pés, o sofá, as paredes da sala. Põe-se a rir. Como a vida podia ser tão cheia de coincidências? Corre ao banheiro, mira-se no espelho. O telefone toca. Ajeita-se, alisa o nariz, penteia-se, volta à sala. O locutor falava sem pestanejar. Alô. Pai, você está bem? Muito bem, filha. A Sinfônica apresentará peças de Berlioz, Mendelssohn e Mussorgsky. O homem passa mãos na testa e nos cabelos. Deve ter enlouquecido. De novo a sirene do telefone, feito alarme de incêndio, tragédia. Da casa de Humberto? É ele mesmo. Você foi morto? O vento açoita as pernas do homem. A luz da televisão pisca. Soldados se matam no deserto. Presidente dos Estados Unidos fala de paz. Humberto desliga a televisão, se senta no sofá, alisa o queixo. Como pode ter morrido no assalto?, se via tudo com nitidez: o sofá, os próprios pés, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador com as hastes em rotação acelerada. O que havia entre o teto e o piso? Entre o céu e a terra? Luz, insetos ou objetos não identificados? Sombras em movimento? Batem à porta. Humberto deixa o sofá, espanta a sombra do mosquito invisível e pergunta: quem é?

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 3

LÁGRIMA OCULTA

"Levanta-te, minha amada, formosa minha."
(Ct 2.13)

Gota de pranto d'alma escondida,
Que sutilmente caiu da flor;
Foi o pulsar da emoção dorida,
Que ternamente me trouxe amor.

Foi essa lágrima, então, pendida,
Que dos teus olhos eu vi brotar,
Lágrima única, enternecida,
Que, compungido, me fez sonhar.

Lágrima afável e misteriosa,
Secretamente mui delicada,
Deixou esbelta - manhã graciosa,
A linda face sempre corada.

Sereno rosto, alma lacrimante,
Quão silenciosa é a oculta dor!
Teu seio puro - pombinha errante,
Só busca o sonho de um puro amor.

Lágrima doce em face formosa,
Ó lábios virgens de viva cor,
Encosta aqui teu rostinho rosa
E que eu, de graça, te dê amor.
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NA JANELA
"Tuas faces são graciosas
entre os brincos."(Ct. 1.10)


Formosa e atraente naquela janela,
Perfumes de amor exalavas, sem fim;
De novo, da esquina, em belíssima tela,
Quisera rever o que vive por mim.

Daquela sombria e apática esquina,
Eu vi a velha casa espargindo jasmim;
O rosto de encantos de meiga menina
De amor acendeu-se - brilhava pra mim.

De longe te vi, lá naquela janela,
Meu ser, por inteiro, vibrou de alegria;
De ver tanto amor na tua face tão bela,
Senti que feliz eu contigo seria.

Assim, ao te ver, calorosa quão linda,
Não pude conter da emoção o pulsar;
Correndo apressado, queria eu, ainda,
No fogo do teu coração me abrasar.

Na sala adentrei-me, onde estavas sorrindo,
Teus olhos brilhavam com grande emoção;
-Macios cabelos!.. Que rosto tão lindo!...
Beijando abracei-te com muita paixão.
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POMBINHA MEIGA
''Mostra-me o teu rosto,
faze-me ouvir a tua voz." (Ct. 2.14)


Pombinha meiga de cor rosada,
Vem aquecer-me com teu calor!
Apaixonado estou, minha amada,
Por este cheiro que tens da flor.

Pombinha meiga de rósea cor,
Cristais dos olhos - cristais do mar,
Ó suave néctar - sublime amor,
Leva-me às nuvens para eu sonhar.

Pombinha meiga, tão cor-de-rosa,
De lábios dóceis, de viva cor;
Assim contemplo-te, ó carinhosa
Ternura amena cheia de amor!

Pombinha meiga de cor rosada,
Cândida lágrima cristalina,
Sonha comigo, musa esperada,
Sonha somente, rósea menina.
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RAINHA DO FIRMAMENTO
"Quem é essa que surge como a aurora,
bela como a lua, brilhante como o Sol?"
(Ct. 6.10)


Do céu amável rainha,
Nobre figura virgínea,
Feita somente de luz
Que a todo meu ser seduz.

De estrelas bem circundada,
Com astros toda adornada,
Como rainha vestida,
Senhora da minha vida.

Do firmamento é o luzir,
Do meu viver, o sorrir,
Destino que me encaminha
A ser teu servo, ó rainha.

És bela no firmamento!
Meu singular pensamento;
Vou dar-te um cetro de escol
E um trono acima do Sol.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

O. Henry (Mamon e o arqueiro)


Nota do blog: Mamon é um termo derivado da Bíblia, usado no que se refere à riqueza material ou cobiça. A palavra é uma transliteração do hebraico “Mamom”, que significa dinheiro.

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O velho Antony Rockwall, fabricante e proprietário da Rockwall's Eureka Soap olhou pela janela do escritório de sua mansão na Quinta Avenida e sorriu. O vizinho da direita, o aristocrático clubman G. Van Schuylight Suffolk-Jones aproximou-se do automóvel que o esperava no portão, franzindo o altivo nariz, como de costume, à escultura estilo Renascimento italiano que ornava a fachada do palácio.

— Velho presumido! Retrato mesmo da inércia! — comentou o ex-rei do sabão consigo próprio. — Se não se cuida em breve as musas do Éden acolherão esse gélido Nesselrode. No próximo verão mandarei pintar a casa de vermelho branco e azul e veremos se aquele nariz holandês não se levantará mais ainda!

Antony Rockwall, que jamais se importava com as campainhas, encaminhou-se para a porta da biblioteca e, no mesmo tom de voz que fizera cair pedaços de céu nas pradarias do Kansas, gritou:

— Mike!

À voz doméstica que lhe contestou, berrou:

— Diga a meu filho que passe por aqui antes de sair.

Quando o jovem Rockwall penetrou no escritório, o ancião largou o jornal, mirou-o com sorriso bondoso, refletido no seu rosto grande, suave e avermelhado, alisou, com uma das mãos, uma mecha de cabelo branco e com outra fez tilintar as chaves no bolso.

— Richard, quanto pagas pelo sabonete que usas?

Richard, que saíra do colégio há apenas 6 meses, surpreendeu-se. O rapaz ainda não havia captado as esquisitices do progenitor e era tão inexperiente como uma rapariga que vai pela primeira vez ao baile.

— Penso que 6 dólares a dúzia, papai.

— E pelas roupas?

— Cerca de 80, mais ou menos.

— És um cavalheiro — afirmou convicto Antony. — Ouvi dizer que esses jovens de estirpe pagam vinte e quatro dólares por uma dúzia de sabonetes e gastam mais de cem com roupas. Dispuseste de tanto dinheiro quanto eles e no entanto te mantiveste dentro de um nível moderado e decente. Eu uso atualmente o velho Eureka, não só por sentimentalismo, senão também porque é o mais puro que se fabrica. Se pagas dez centavos por uma pedra de sabão, compras maus rótulos e perfumes. Porém cinquenta está bem para um rapaz de tua posição, classe e geração. Afirmam serem necessárias três gerações para se formar um cavalheiro. Estão enganados. O dinheiro enverniza tanto o indivíduo quanto suaviza a graxa do sabão. Contigo, consegui-o. homem! Comigo não obteve grandes resultados. Sou quase tão incivil e desagradável e possuo maneiras tão rudes quanto esses dois velhos descendentes de uma das primeiras famílias holandesas estabelecidas em Nova Iorque, que vivem ao nosso lado e que não podem dormir tranquilos à noite, porque comprei uma propriedade entre os dois.

— Há certas coisas que o dinheiro não pode comprar — aparteou o jovem Rockwall, com tristeza.

— Ora, não digas isso! — respondeu surpreendido o velho Anthony. — já repassei a enciclopédia até a última letra, à procura de algo que não se possa adquirir com o dinheiro e creio que na próxima semana terei que rever o apêndice, pois verifiquei que com dinheiro tudo se consegue. Menciona alguma coisa que não se possa comprar.

— Antes de mais nada — contestou Richard, nervoso — não se compra entrada nos círculos mais exclusivos da sociedade.

— Ah! Não?! — trovejou o campeão da raiz do mal. — Diga-me onde estariam os círculos exclusivos se o primeiro Astor não tivesse dinheiro para pagar passagem de proa?

Richard suspirou.

— E era disso mesmo que queria te falar — acrescentou o velho. — Para isso pedi que viesses. Algo vai mal contigo, rapaz. Já o percebi há muito tempo. Fora com as tristezas! Poderei levantar mais de onze milhões em 24 horas, além dos bens de raiz. Se for pelo teu fígado, ali está o Rambler, na baía, carregado e pronto para zarpar para as Bahamas, dentro de dois dias.

— Não estás muito longe da verdade, papai.

— Ah! — exclamou Anthony — como se chama ela?

Richard pôs-se a caminhar no escritório, de um lado para outro. Existiam cordialidade e simpatia suficientes no velho e rude pai, de maneira a inspirar-lhe confiança.

— Por que não a pedes em casamento? — prosseguiu o velho. — Ela se jogará em teus braços. Possuis dinheiro, físico atraente e és um rapaz às direitas. Tuas mãos são limpas, nelas não existem resíduos de sabão Eureka. Frequentaste bons colégios, mas ela pouco se importará com isso.

— Ainda não se apresentou a oportunidade — comentou Richard.

— Cria a oportunidade! — ordenou o velho — Convida-a para um passeio ao parque, uma caminhada sem destino, ou acompanha-a a casa de volta da igreja. Oportunidade! Bah!

Tu não conheces o redemoinho social, papai. Ela é parte da corrente que o impulsiona. Cada hora e minuto de seu tempo são marcados com dias de antecedência. Se não possuir essa criatura, essa cidade, para mim, não terá graça alguma. E não posso escrever-lhe. Não me atrevo.

— Basta! — exclamou o ancião. — Queres dizer que com todo o dinheiro que possuo não és capaz de conseguir uma hora do dia dessa moça?

— Esperei muito. Depois de amanhã, ao meio-dia, ela embarcará para a Europa, onde ficará dois anos. Amanhã à noite a verei durante uns poucos minutos. Recebi permissão para esperá-la na Grand Central Station, às vinte e trinta. Devo conduzi-la a galope pela Broadway até Wallacks onde sua mãe e um grupo nos esperam à entrada do teatro. Por acaso parece que poderei declarar-me nesses 6 ou 8 minutos e em tal circunstância? Não. E que oportunidade terei no teatro, ou depois? Nenhuma. Não, papai, essa é uma encrenca que teu dinheiro não resolve.

— Muito bem, meu rapaz — comentou o velho, alegremente. — Podes ir ao teu clube. Estou satisfeito sabendo que teu fígado está em ordem. Porém não te esqueces de acender, de quando em quando,  umas velas ao grande deus Mazuma. Dizes que o dinheiro não compra tempo? Realmente, não se pode conseguir que te embrulhem a eternidade e a entreguem a domicílio, por determinado preço, mas já vi o Papai Tempo machucar os pés, quando caminhava pelos garimpos de ouro.

Nessa noite, tia Ellen, muito sentimental, suave, enrugada, suspirosa e oprimida pela riqueza, aproximou-se do irmão Anthony, que lia os jornais da tarde e pôs-se a discorrer sobre as angústias do amor.

— Já sei de tudo — bocejou Anthony — Afirmei-lhe que minha conta bancária está à sua disposição. Foi então que se pôs a menosprezar o valor do dinheiro. Disse-me que este não poderá ajudá-lo na emergência em que se encontra e que a etiqueta social não pode ser abalada sequer por 10 milionários.

— Ó, Anthony! — suspirou tia Ellen — gostaria que não pensasses tanto em dinheiro. O amor é todo poderoso. Quando se trata de carinho verdadeiro, o dinheiro não conta. Se ele tivesse falado antes! Essa jovem não poderia recusar o nosso Richard. Todo o ouro que possuis não fará feliz a teu filho.

No dia seguinte, às 20 horas, tia Ellen tomou de um belo anel de ouro, guardado numa caixa comida pelas traças, e o entregou a Richard.

— Usa-o esta noite, querido sobrinho — pediu-lhe. — Foi tua mãe quem me deu. Disse que traria boa sorte e que o entregasse a ti, quando encontrasses tua amada.

O jovem Richard recebeu o anel respeitosamente e provou-o no dedo mindinho. O rapaz arrancou-o do dedo e guardou-o no bolso do colete. Imediatamente telefonou pedindo o carro.

Na estação, descobriu Miss Lantry, às 20 e 30, em meio ao gentio.

— Não podemos fazer mamãe e os outros esperarem — comentou a mocinha.

— Para o teatro Wallack e o mais rápido possível! — ordenou Richard.

Fizeram a volta pela rua 42 até a Broadway e desceram a ruazinha iluminada pelas estrelas. Na Rua 34, Richard preparou sua armadilha e mandou que o condutor do coche se detivesse.

— Caiu meu anel — desculpou-se enquanto descia. — Era da minha mãe e sentiria muito perdê-lo. Não me demorarei muito, pois vi onde caiu.

Em menos de 1 minuto estava de volta com o anel.

Foi então que um carro enorme parou bem em frente ao deles. O cocheiro tentou passar pela esquerda, mas  foi trancado por outro veículo. Livrou-se então pela direita e quase foi de encontro a uma carroça de móveis, que nada tinha que fazer naquele lugar. Procurou avançar, mas as rédeas não obedeceram e ele maldisse entre dentes. Estava bloqueado num confuso torvelinho de veículos e cavalos.

— Por que não prossegue? — indagou Miss Lantry, impaciente. — Chegaremos atrasados.

Richard olhou em volta. Uma nutrida fila de carros, caminhões, coches, carroções de móveis e bondes atravancavam o vasto espaço em que cruzavam a Broadway, a 6a Avenida e a Rua 34. E ainda mias: das ruas perpendiculares marchavam com grande velocidade, convergindo para o mesmo ponto, outros carros, entrelaçando suas rodas e agregando mais imprecações ao clamor dos condutores. Tinha-se impressão de que todo o trânsito de Manhattan se congestionara ao redor deles. Os nova-iorquinos mais velhos jamais haviam presenciado bloqueio semelhante.

— Sinto muito — balbuciou Richard, quando tornou a sentar — mas estamos presos. Nem em uma hora poderão desembaraçar tamanho embrulho. Eu tive a culpa. Se não tivesse perdido o anel...

— Deixe-me ver a joia — disse Miss Lantry. — já que não tem remédio, não importa. De qualquer maneira, não tinha mesmo vontade de ir ao teatro.

Nessa noite, às 23 horas, alguém bateu levemente na porta de Anthony Rockwall.

— Pode entrar — gritou o velho, que se deliciava com um livro de aventuras de piratas.

Era tia Ellen, com todo o aspecto de um anjo encanecido, que tivesse ficado na terra por engano.

— Estão noivos, Anthony! — anunciou delicadamente. — Enquanto se dirigiam ao teatro, houve uma congestão de trânsito e 2 horas se passaram antes que pudessem continuar viagem. E, ó mano Anthony! Nunca mais te vanglories do poder do dinheiro. Richard encontrou a felicidade por meio de um pequeno emblema de verdadeiro amor: um anelzinho que simbolizava carinho infindo e desinteressado. Deixou-o cair na rua e desceu do coche para recolhê-lo. E antes que pudessem seguir, produziu-se a interrupção do trânsito. Confessou sua paixão à jovem e conquistou-a enquanto o carro se encontrava cercado. O dinheiro é lixo, quando se compara ao verdadeiro amor, Anthony.

— Muito bem — comentou o ancião. — Estou contente sabendo que o rapaz conseguiu o que desejava. Bem lhe disse que não pouparia esforço algum a esse respeito...

— Mas mano, que poderia ter feito o teu dinheiro?

— Mana, o meu pirata arrumou uma encrenca dos diabos. Seu barco foi avariado e ele conhece demasiado o valor do dinheiro para permitir que afunde. Muito te agradeceria se me deixasses terminar a leitura desse capítulo.

O conto deveria findar aqui. Eu o desejaria tão sinceramente quanto os que o lêem. Mas devemos chegar até o fundo do poço para encontrar a verdade.

No dia seguinte, uma criatura de mãos avermelhadas e gravata de algodão, chamada Kelly, bateu à porta da casa de Anthony Rockwall e foi imediatamente introduzida no escritório.

— Bem — disse o dono da casa, alcançando seu livro de cheques — foi uma bela soma de dinheiro. Vejamos, tu tinhas cinco mil dólares à disposição.

— E ainda gastei mais 300 do meu bolso — respondeu Kelly. — Foi mais caro do que eu esperava. A maioria dos carros e coches aluguei pelos cinco mil dólares, porém os caminhões e carroções me obrigaram a dobrar a quantia. Os condutores quiseram dez dólares, alguns vinte. Os guardas me exploraram. A dois, precisei dar cinquenta dólares e ao resto, vinte e cinco. Porém saiu maravilhosamente, não foi? E não houve ensaio algum! Os rapazes chegaram na hora exata. Foram necessárias mais de 2 horas antes que uma minhoca pudesse chegar aos pés da estátua de Greeley.

— Mil e trezentos. Aí tens, Kelly. — disse Anthony ao lhe entregar o cheque. — Os mil dólares são teus e mais os trezentos que pagaste do teu bolso. Não menosprezas o dinheiro, não é verdade, Kelly?

— Eu? — protestou o homem. — Gostaria de surrar o sujeito que inventou a pobreza.

Quando Kelly já se aproximava da porta, Anthony chamou-o.

— Não viste, por acaso — perguntou — em algum lugar, durante a interrupção do trânsito, um menino gordinho, nu a disparar flechas a esmo?

— Penso que não — respondeu Kelly, surpreso. — não, não vi. E se estava nu, como o senhor diz, por certo um guarda levou-o, antes que eu chegasse.

— Passou-me pela cabeça a ideia de que o malandro por lá estivesse — concluiu Anthony, sofreando o riso. — Adeus, Kelly.

Fonte:
Histórias de O. Henry. Ed. Cultrix, 1964.

Estante de Livros (Tente Outra Vez, de Jaqueline Machado)

sinopse feita por Lúcia Barcelos.

Essa primorosa obra de Jaqueline Machado, permeada por reflexões filosóficas, existencialistas e espiritualistas, mostra que nós, seres humanos, sem exceção, vivemos à busca.
 
Nessa trajetória temos quedas, levantamos, convivemos, celebramos passagens, superamos etapas, enfim, existimos. E apesar de às vezes presos à teia da ilusão terrena, sentimos que somos dotados de um algo mais, que transcende à reles existência. Percebemos que não somos apenas corpo e mente (intelecto), pois no recôndito do nosso ser, no reservatório de nossas emoções, sentimo-nos tocados por uma Energia Suprema, ainda que indescritível.

Através da personagem do presente romance, Jaqueline aborda que, por mais que o nosso intelecto possibilite compreender a lógica dos acontecimentos, nossa alma por vezes leva “choques” e nos desacomoda diante de certas coisas inevitáveis: da perda de um ente querido, por exemplo. E experimentamos uma sensação de ter a alma vazia e triste! A autora fala da realidade da vida, onde há bônus e há ônus. Todos têm seus prêmios e suas penas!

Num dado momento da narrativa, Jaqueline abre parênteses para uma revelação autobiográfica. Abre também seu próprio coração e chama a atenção para o fato de que nem sempre os laços de sangue significam união no sentido verdadeiro da palavra. Nem sempre a família sanguínea é a família amorosa na dimensão do espírito.

Qualquer pessoa, em qualquer condição, pode experimentar a solidão da incompreensão e do desamor. Ela fundamenta por observação e por experiências próprias, que a perfeição e a plenitude não existem nesse plano, nessa vida material. Todos, em qualquer contexto do nosso cotidiano, em algum momento nos deparamos com inquietudes e momentos de profunda tristeza ou até mesmo depressão!

Jaqueline traz à tona a delicada questão do suicídio, de uma forma jamais vista. E indica as soluções que vêm do Alto, da Misericórdia do Criador. Ela chama a atenção para a intercessão Divina nos momentos extremos, quando precisamos dar à alma, o conforto de novos horizontes, sonhos, esperanças, enfim, a luz implícita no AMOR que mostra veredas, que não aquelas cheias dos impedimentos das pedras e espinhos da realidade do nosso Planeta.

Jaqueline, com seu testemunho, com suas palestras e o dom da escrita, aponta que muitas vezes no limiar da trilha escolhida, ainda que sem respostas exatas, nos resta ter fé, aceitar nossos caminhos mudar de rumo quando e quantas vezes forem necessárias... É a metáfora da evolução. E sempre bendizendo as afeições que colhemos neste nosso andar pelo tempo e pela nossa própria vida!
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Jaqueline Machado nasceu em Cachoeira do Sul, em 1979. Poetisa, escritora e palestrante é autora de doze livros. Delegada da União Brasileira de Trovadores (UBT) na cidade.

Acesse AQUI o Link do livro, que está na Amazon

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Versejando 62

 

Arquivo Spina 35: Solange Colombara

 

Rachel de Queiroz (Trabalho & lazer)

NENHUM VIVENTE foi criado com destino ao trabalho; bicho nenhum trabalha, salvo abelhas e formigas, mas por isso mesmo são insetos, formas inferiores, muito abaixo na escala zoológica da aristocracia animal — nós, os mamíferos. Dizem, é verdade, que castores trabalham, constroem represas; mas ou será para estabelecerem a exceção necessária à regra, ou porque se corromperam como nós humanos, e aderiram ao labor como adeririam ao álcool ou à erva - puro vício.

No mais, os bichos todos vivem como nós lá no Nordeste, da mão para a boca, e sendo que o mão-à-boca deles é muito mais simples que o nosso, não exigindo plantar nem criar. Bicho sai por aí, se é herbívoro em procura de pasto, se carnívoro atrás de alguma presa — e comida a ração ou devorada a presa, vai dormir, remoer, digerir, que ninguém é de ferro. E tem até aqueles como as grandes jiboias e sucuris que nessa obra de digestão levam dias, semanas só dormindo.

E também há os bichos porcos chauvinistas como o. leão, que só vive para amar, gozar e querer bem. Quem abastece a família é a leoa — o leão só come o que a companheira matou.

Passarinho faz ninho, é verdade; mas passarinho, além de ser ovíparo, e portanto abaixo dos exaltados mamíferos, faz o seu ninho quase como uma brincadeira, cantando, bailando e namorando. Trabalho maior só no tempo da alimentação dos filhotes; mas também é só na ordem dos volantes que o macho reparte a tarefa com a fêmea — nos mamantes a fêmea que se vire — e dê leite. (Isso quererá dizer que a forma superior da criação é toda dos porcos chauvinistas?)

O homem primitivo não sabia o que era trabalho. Caçava, pescava, mas até hoje em dia caçar e pescar continua a ser diversão, lazer. Na saída do jardim do Éden, o Senhor amaldiçoou o homem com a praga de ter que ganhar o pão com o suor do seu rosto — e aí vocês estão vendo, era praga mesmo, castigo, não tendência natural.

A mulher, sempre inventiva, foi, segundo todas as reconstituições científicas dos hábitos dos primitivos — sim foi ela a inventora da primeira plantação, da primeira panela de barro, da primeira roupa de pele costurada. E o coitado do homem teve então que assumir a maldição do Senhor; e completou as invenções femininas com outras de sua lavra para ao menos aliviar o labor — e assim se inventaram a enxada e o arado.

Depois, a família primitiva, que se abrigava em cavernas quando as achava, foi crescendo de número, as cavernas ficaram poucas — e as mulheres exigiram as cabanas como moradia. (Foi decerto então que se cunhou o slogan “teu amor e uma cabana”.) Da cabana saíram para a casa — e está aí no que deu: estas selvas de cimento que nós chamamos de cidade.

Portanto, voltando à minha tese inicial: o homem não nasceu para o trabalho, nasceu para o lazer. A civilização (que é o ordenamento racional e científico da degenerescência das nossas tendências naturais), foi que instituiu o trabalho como virtude, pois que uma vive na razão direta do outro: — sem trabalho não pode haver civilização.

O pessoal lá do sertão tem uma pena dorida de gente de cidade, que de pequenino começa a sofrer. Enquanto as crianças de lá correm livres pelo mato, as daqui, mal começam a trocar os passos, já estão indo para a escola, quase sempre à força, para trabalhar, ou seja — estudar. E daí até se formarem é aquele cativeiro, obrigadas a aprender tudo que passa pelas estúpidas cabeças dos adultos, a atenderem às manias, preconceitos e à falsa sabedoria dos mais velhos. Menino que odeia matemática, tem que estudar matemática, a pau e a corda. E assim os que odeiam gramática, ciências naturais, física e química; e a prova de que muitas dessas imposições não são tão impositivas quanto se alega, é que com o passar do tempo elas são retiradas do currículo — como hoje o latim, o grego, a retórica. E já houve um tempo em que não se podia conceber infeliz estudante que não recebesse, goela abaixo, o latim ou a retórica.

Fala-se em vocação. Não acredito muito em vocação, salvo aquelas que explodem espontaneamente, como Jorge Amado fazendo romance aos 17 anos, Mozart compondo música criança ainda. Mas hoje há testes vocacionais para descobrir as vocações mais recônditas dos meninos — quando está na cara que os meninos não têm vocação nenhuma, só vão fazer os cursos que lhes são impingidos ou obrigados — nasceram mesmo para o lazer — a chamada sombra e água fresca.

A alegria do trabalho. Pode ser, mas eu por mim não conheço. Nunca trabalhei com gosto — no sentido de trabalhar como cumprir obrigação. Porque cozinhar um almoço para a família reunida pode ser realmente um ato gratificante, inventar comidas pode dar a alegria da criação — mas dar conta do feijão com ensopadinho de cada dia, nós sabemos como é chato; e depois ainda tem que lavar as panelas.

E como cozinhar é escrever, costurar, cuidar de criança, tocar música, representar no teatro. Enquanto se está na etapa voluntária e criadora, ótimo. Mas depois que deixa de ser invenção e diversão para virar tarefa, quer dizer trabalho, é sacrifício demais.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 
RJ: J. Olympio, 1976.

Nilsa Alves de Melo (Trovas Temáticas) 4

MADRUGADA

Na madrugada que passa,
não chore, guarde a saudade
e se inspire. Ela é de graça,
e tão doce e é de verdade!
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São as horas perdidas;
aquelas da madrugada,
em que foram as queridas
inspirações esperadas!
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MÃE

A cada tranco da vida
minha mãe vem me avisar:
- Coragem, cabeça erguida,
isso também vai passar.
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Coloque um bem alto preço
ao pagar, com gratidão,
a mãe que lhe teve o apreço
que ultrapassa a imensidão.
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Com certeza, mãe querida,
terás os cuidados meus,
agora e por toda a vida,
até dizermos: - Adeus!
= = = = = = = = = = =

Mãe, jardim, duas palavras
que digo em grande emoção.
Ela, a mãe de muitas lavras,
cultivou-o naquele chão.
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Mãe, olhe o ninho vazio,
ficou grande para mim;
nele o pranto silencio
numa saudade sem fim!
= = = = = = = = = = =

Minha mãe, que, de cuidados
cercou-me desde o nascer,
depois, em tempos mudados,
dela fui mãe, com prazer!
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Não posso queixar da vida,
tesouro de valor tive;
minha mãe, a mais querida.
lembrança que em mim revive.
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Que mulher esta, tão linda,
nos braços te segurando?
– Minha mãe, jovem ainda,
aqui, na foto me olhando!
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MULHER

Cada mulher traz, latente,
coração de trovadora;
pode dizer o que sente
numa rima encantadora.
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Com mania de limpeza
e com vassoura na mão,
mulher desfaz da beleza
Das flores que ornam o chão.
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Enigma dos mais incríveis,
só decifra quem puder,
com esforços indizíveis,
ler uma alma: - a da mulher.
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PAI

Ao dizer o nome "Pai"
uno os lábios como que
a dizer: este, que aí vai
é um beijo para você.
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Mesmo com a dor da ausência
do pai, no curso da vida,
A fé diz que, na sequência,
o verei no fim da lida.
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Minhas células, trilhões,
trazem, pai, seu DNA;
riquezas em carrilhões.
- Herança maior não há!
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PÃO


O pão doce ou pão salgado,
sem açúcar ou sem sal,
é um alimento sagrado,
saboroso, sem igual.
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Pai do Céu, como meninos,
ensinai-nos repartir
nosso pão aos pequeninos,
com espontâneo sorrir.
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PAUSA

A mais feliz pausa é aquela
para um sono ao fim da vida,
retornando à outra, mais bela,
de alma leve e agradecida.
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Após a bendita pausa,
novas forças, novos rumos;
Em verdade ela foi causa
deste efeito: - Meus aprumos.
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Na música, a pausa fica
ali, quieta, sem o som;
em nossa vida, ela indica:
- Este tempo é um grande dom!
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PROFESSOR

Já conviveste com um santo,
sábio, de real valor?
Eu sim. E lhe devo tanto:
foi meu grande professor!
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Pai, padrinho, professor,
de pequena já aprendi
a respeitar, dar valor:
- Lição que nunca esqueci.
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Passou pela minha vida,
do saber vi o encanto.
Hoje sei, em meio à lida:
meu professor era um santo.
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Professa tão grande crença
como um profeta em clamor.
Profissão? Palavra densa
que resume: - Professor.
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PREGUIÇA

A preguiça, a dita cuja
só te faz desanimar,
As juntas ela enferruja,
leva tudo a desandar.
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Se alguém vires paradão,
não vás fazendo premissa.
- Anemia, amarelão,
se confundem com preguiça.
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ROSA

A rosa, fixa no herbário,
de nada lembra o frescor
das que levo ao santuário
relembrando nosso amor.
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Rosa, digo bem baixinho:
– Não estamos longe assim.
eu também trago um espinho
que me fere em dor sem fim.
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Rosa, Rosa, nome terno
da minha fada formosa.
que ensinou-me o amor eterno
e a plantar um pé de rosa.
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Sê como a rosa que enflora,
lá do esterco, ao sol sorrindo.
- Paciência, já chega a hora
que ao mundo estarás florindo!

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

Lima Barreto (A indústria da caridade)

Era dia de moda. A confeitaria regurgitava. Aqueles móveis de falsa laca, muito pechisbeques (ouro falso) e pernósticos, davam a tudo um ar de fatuidade e presunção. A frequência especial de cavadores, gigolôs, "melindrosas", "guitarristas", bobos-alegres, etc., enchiam o salão, sentados ao redor das mesinhas, olhando, de quando em quando, de soslaio os espelhos que o circundavam.

A um canto, abancados a uma mesa, tendo uma garrafa de Canadian em frente, dois amigos conversavam. Eram sibaritas desses lugares. Gozam em contar um ao outro o que sabem da vida faustosa dessa gente que, rica de uma hora para outra, se empavesa de repente com coisas caras, tal e qual um régulo africano que, nos salvados de um naufrágio, achando um fardão de oficial de marinha, o veste, põe o chapéu armado e fica de pés no chão. Os dois amigos tinham esse prazer, esse “gozo" de andar pelas reuniões públicas, tidas como da moda, para "biografar" os frequentadores.

Já tinham passado em revista a toda a sala e, com desgosto, viram que todo o pessoal era "conhecido". Afinal, deram com uma família "desconhecida" que procurava esconder as suas maneiras de Catumbi, com uma morgue procurada e sob trajes caros no rigor da moda.

O mais velho, o Chichorro, perguntou ao mais moço, o Veiga:

— Quem é aquela gente? Tu conheces?

— Sim; conheço, Chichorro; aquela gente é típica, é a mais pura representação da época. É a família do major Almério que é aquele de cinzento.

— Major! então não é dos "novos"?

— Qual! É da Guarda Nacional, filho!

— Quem é aquele que tem uma pasta, no último mês de gravidez, e está ao lado do tal Almério?

— Aquilo não é uma pasta; é uma “guitarra". Aquele sujeito é um advogado que anda metido com contrabandistas e gente que tal.

— Compreendo... Ele, o tal Almério, é "guitarrista" também?

— Não. É homem honesto; exerce legalmente a Indústria da Caridade.

— Indústria da Caridade! Tens cada uma - livra!

— Lembras-te dos da Renée Mauperin?

— Lembro-me; e como não me havia de lembrar desse livro que me causou tanta emoção?

— Pois bem. Há lá um personagem, cujo nome não me recorda agora, que diz: o furto é a maior indústria do nosso tempo. Os autores do Renée dizem que estudam, nesse livro, a burguesia ou um povo burguês de 64; há, portanto, quase sessenta anos que isso era corrente. Hoje ainda continua a ser; mas uma indústria nova apareceu ultimamente.

— Qual é?

— A da Caridade.

— Meu Deus! Isto é uma blasfêmia!

— Mas é uma verdade.

— Vou te mostrar como o é. Este Almério, há menos dez anos passados, morava em Bonsucesso, numa casinha, pela qual pagava trinta ou quarenta mil-réis. Vivia sabe Deus como. O aluguel da casa era pago com o produto das costuras da mulher e da filha mais velha, que tinha, por esse tempo, dezesseis anos; e o resto os vizinhos e amigos forneciam. Ele vinha todo dia à cidade, a ver se arranjava alguma coisa, qualquer lugar, mesmo de servente em qualquer repartição pública. Era, porém, caipora, nada obtinha; mas não desanimava. Veio uma agitação política, por ocasião de uma sucessão presidencial, e ele viu bem que o "caminho do burro" era ser do partido do candidato popular. Recordas-te da anedota de Diderot com Rousseau?

— Qual?

— Aquela da resposta a dar à Academia de Dijon: — "se o progresso das ciências e artes tinha contribuído para a felicidade do gênero humano?"

— Sim; lembro-me, pois não. Rousseau queria responder afirmativamente; mas Diderot disse-lhe que seria burrice: devia responder negativamente.

— Foi o que fez o nosso major. No negócio presidencial, respondeu — não; foi contra a opinião geral e acertou. Entrou para uma junta a favor do candidato execrado; fizeram-no major da Guarda Nacional e recebia uma diária pelo serviço de meetings, etc. Começou a jantar e a almoçar diariamente, e a família também. Os seus horizontes se alargaram. Não quis mais emprego, fosse qual fosse. Pensou coisa melhor.

— Que fez?

— Planejou um hospital de crianças. Interessou jornalistas e repórteres do partido da coisa. Recebeu donativos, o governo federal cedeu-lhe o velho edifício do hospital da brigada e casas adjacentes, restauradas, deu-lhe uma subvenção; o governo municipal, outra. Ele se instalou num palacete, mobiliado com remanescentes das subvenções, que lhe dão também para comer e vestir-se luxuosamente, ele, mulher e filhas.

— Como se mantém nessa “mamata"?

— À custa de manifestações a tudo quanto é impopular, portanto, do agrado
do "poder".

— Talvez tenha razão, porque nem tudo o que é popular é justo.

— Não há dúvida, caro Chichorro. Noto um fato social e mais nada.

— O papai Basílio fez pior, com o seu Asilo de Santa Rita de Cássia — caso que muito contribuiu para a fama do nosso atual desembargador Ataulfo... Como o tempo corre, hein?

— É verdade. Valha-nos isto: Almério não repetiu o papai Basílio.

Sorveram um trago de uísque e, com o pensamento longe, puseram-se a olhar a sala sem nada ver ao centro e sem trocarem palavra.

A família do major levantou-se e todo o rancho passou por perto dos amigos que sonhavam, mergulhados naquele burburinho de vaidade.

O homem da “guitarra” disse bem alto e cheio de suficiência:

— Consinto em ir jantar com "vocês"; mas com uma condição: eu pago o automóvel.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

domingo, 6 de junho de 2021

Versejando 61

 

Varal de Trovas 506

 


Carolina Ramos (Frustração)

Quem não gostaria de ver, no habitat, um bicho vivo, solto e feliz, em pleno gozo de seus direitos?

Pois em minhas andanças por este mundo de Deus, deixando de lado os encantos turísticos, artísticos, sacros e culturais que tanto nos arrebatam, tenho notado que, em cada lugar que visito, há sempre um animalzinho a marcar presença de modo bastante pitoresco, e que acaba por incluir-se no rol de minhas lembranças, sem que o perceba.

Não me esqueço da emoção, misto surpresa, quando, lá por Goiás, em tempos idos, parei o carro para admirar um lindo tucano empoleirado num galho à beira da estrada.

Com suas cores e inconfundível bico, eclipsava a paisagem, dono absoluto do momento! Magnífico!

Logo depois, doloroso impacto: - estendido, naquela mesma estrada, um tamanduá com sua cauda franjada manchada de sangue! Um pedacinho do Brasil selvagem literalmente atropelado pelas rodas do progresso! Num mesmo dia, com diferença de minutos, duas emoções fortes, contraditórias e inesquecíveis! Vida e morte, in loco, a poucos passos uma da outra!

Sempre gostei muito de animais... não fora, o Poverello de Assis, meu padrinho!

Mas sempre gostei de animais saudáveis e livres, como os saguis mineiros, da praça de Lavras, já quase sumidos; as maritacas barulhentas de Pousada do Rio Quente. Indo mais longe, aqueles gatos e cachorros de minha infância, e, retomando ao presente, os gatos e cachorros criados por meus filhos que ainda habitam uma casa, já que agora as paredes de um apartamento são hostis àqueles fieis amiguinhos de quatro patas, que não gostam de confinamento.

Neste passeio pelas ruas das lembranças, passo para a área internacional e surge ainda aquele esquilo atrevido, que sob o frio intenso de Bethesda, próximo a Washington, deu-me um valente susto, ao saltar de uma árvore, quase sobre meus pés!

Anos mais tarde, outro esquilo, este londrino, mansamente atenderia ao meu chamado no Hyde Park, chegando bem pertinho de minhas mãos, para fugir em seguida, desapontado, ao vê-las lamentavelmente vazias, sem nada a lhe oferecer, a não ser o meu carinho... que dispensou! E aquela numerosa família de coelhos silvestres, surgida de repente, numa noite de lua, resolvida a passear, tranquilamente, por uma das calçadas de Amsterdã, atropelando os pés surpresos de uma família brasileira?!

Todavia, é melhor não dar prosseguimento a este desfile de animaizinhos que algum dia trançaram seus passos aos meus, sem antes explicar o porquê destas lembranças.

Não me move o desejo exibicionista de abrir o passaporte, há muito desatualizado, para expor carimbos internacionais. É certo que gosto de viajar! E quem não gosta?! Mas, hoje, não troco o cômodo prazer da leitura de um bom livro (também deliciosa forma de viajar) por qualquer outra espécie de prazer mundano. E falar sobre alguns bichinhos inofensivos, que encontrei por aí em minhas andanças, sempre é mais agradável, quem sabe, do que falar sobre certa gente, que também por aí anda e que rosna e morde, quando menos se espera!

Na verdade, tudo isto veio à luz em virtude de uma frustração recente.

Há muito, eu desejava ver um lobo-guará, soltinho da silva em seu ambiente natural. Por isso mesmo, já cogitara até visitar o velho mosteiro de Caraças, lá pelas bandas de Belo Horizonte, onde esses dóceis animais se aproximam sem medo, à hora do Angelus, para receber alimentos e acabar por virar atração pública. Mas essa visita, sempre adiada, vai sendo, aos poucos, engolida no tempo.

O que acabo de dizer, reporta-me a uma viagem, não tão recente, por solo mineiro, quando voltava de Alfenas, cidade que julgava menor do que realmente é.

Anoitecia. Eu ocupava o banco traseiro do carro dirigido por meu filho, que tinha ao lado a esposa que Minas lhe concedera. Junto a mim, outra filha e genro.

De repente, a prosa em família foi subitamente interrompida por violenta freada que, por sua vez, arrancou exclamações de surpresa dos demais companheiros de viagem!

Assustada e de coração acelerado, a imaginar a iminência de um atropelamento, fechei os olhos e tampei os ouvidos, como fazia em criança, para não ver o baque e nem escutar os gemidos de uma possível vitima! Silêncio pesado abatia-se sobre nós!

Por instantes, ninguém falava... Nem parecia respirar!

Só consegui abrir os olhos quando o entusiasmo geral saudava, com alarido, o fim daquele mágico e precioso instante!

Precioso, sim... e mágico também… uma vez que, naquele preciso momento, um fantástico exemplar de lobo-guará, ofuscado pelos faróis, parara por segundos, à frente do carro, bem no meio da estrada… com risco de ser atropelado... para logo embrenhar-se na vegetação marginal!... E eu?... De olhos fechados!!!

Era ele, exatamente ele, identificado por todos! - Ou seja, aquele magnífico exemplar descrito pelos dicionários como "maior canídeo nacional, pelo avermelhado, tímido e inofensivo, de quase um metro de altura" - Era ele, aquele lobo-guará que eu tanto desejava e do qual nem rastro vi!

Frustração total! - Mas... É assim mesmo que as coisas acontecem! Ironias da vida! - Quantas vezes, tudo aquilo que mais desejávamos ver, nos surge diante dos olhos e... Sabe-se lá por quê? – Mantemos os olhos fechados, deixando que tudo escape... E sem chance de volta!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 9 –

Amor! Quem no amor se esmera
faz da existência sofrida,
um riso de primavera
e esquece as mágoas da vida!
= = = = = = = = = = =
Ante os seus atos incertos,
Pilatos, viu ante a cruz...
Jesus, de braços abertos,
enchendo o mundo de luz!
= = = = = = = = = = =
Ao longe, escuto o cicio
de um canto triste e plangente;
é a voz cansada de um rio
chorando as dores que sente!
= = = = = = = = = = =
A saudade se resume
no sisudo ritual,
desse silêncio sem lume
da solidão outonal!
= = = = = = = = = = =
De volta à igrejinha antiga,
vi minha infância tão bela...
Cantando a ancestral cantiga
no altar da mesma capela!
= = = = = = = = = = =
Dou meu conselho ao mais velho
num breve e simples resumo:
Segue a estrela do evangelho
que a luz da treva é sem rumo!
= = = = = = = = = = =
Enquanto a lua se arruma
abre a janela e se alteia...
A onda escreve de espuma
hieróglifos na areia!
= = = = = = = = = = =
Eu começo a perceber
que a saudade se completa,
nas horas do entardecer
do coração de um poeta!
= = = = = = = = = = =
Eu guardo os sons e os afetos,
com os quais, mamãe me embalava;
e hoje, eu embalo os meus netos
com as canções que ela cantava!
= = = = = = = = = = =
Mãe! O amor com que me aqueces,
e acende a luz que me guia,
se eu fosse pagá-lo em preces
seriam cem mil por dia!
= = = = = = = = = = =
Mãe - três letrinhas, só três,
e em qualquer outro alfabeto,
gênio nenhum, nunca fez
palavra com tanto afeto!
= = = = = = = = = = =
Meus versos, entre os aflitos,
se escondem da lua cheia;
porque versos mais bonitos
a espuma escreve na areia!
= = = = = = = = = = =
Na infância, a gente nem sente,
quanto o tempo nos desgasta;
mas como desgasta a gente,
depois que a infância se afasta!
= = = = = = = = = = =
Na infância, essa tez bonita!
Na velhice, não há fuga;
nem se escondendo, se evita
a mão da primeira ruga!
= = = = = = = = = = =
Não precisa pressa alguma,
para a vida mais ditosa;
o sol, sem pressa nenhuma,
pinta a tarde cor de rosa!
= = = = = = = = = = =
Num ranchinho abandonado,
no insensível desengano,
vive um sonho do passado
na bonequinha de pano!
= = = = = = = = = = =
O rio, arrastando o entulho,
sem reclamar do que sente,
mostra a violência do orgulho
que entulha o peito da gente!
= = = = = = = = = = =
Ó, sonho de amor de outrora,
te procuro tanto em vão,
que nem sei mais por quem chora
esse velho coração!
= = = = = = = = = = =
Parte a jangada!... E, ante a bruma,
entrega os sonhos plebeus,
aos braços do mar de espuma
e aos remos das mãos de Deus!
= = = = = = = = = = =
Por mais que não me respondas,
te pergunto, ó velho mar:
– Se não pões almas nas ondas,
quem faz a onda chorar?
= = = = = = = = = = =
Prendi meus olhos, naqueles
olhos verdes, tão risonhos;
nem pensei que o riso deles
fosse a prisão dos meus sonhos!
= = = = = = = = = = =
Quando a jangada se lança
aos sopros dos vendavais,
enfrenta o mar, na esperança,
de sempre voltar ao cais!
= = = = = = = = = = =
Quem luta e crê não se cansa,
por mais que a vida se oponha;
que a crença, é a própria esperança
da paciência de quem sonha!
= = = = = = = = = = =
Se a velhice nos impede
dos sonhos da mocidade...
Essa distância se mede
pelos passos da saudade!
= = = = = = = = = = =
Sinto em velhas madrugadas,
que entre nós dois sempre a sós,
conversamos de mãos dadas
e há solidão entre nós!
= = = = = = = = = = =
Só depois que o sol desmaia,
deixando o céu mais aflito,
a orquestra da tarde ensaia
seus arranjos no infinito!
= = = = = = = = = = =
Tempo, por que me envelheces,..
Não vês que a melancolia
é a mais sofrida das preces
que se reza ao fim do dia?!...
= = = = = = = = = = =
Velhos sonhos andarilhos!...
Hoje, cercados de afetos...
Vivem presos aos meus filhos
e aos carinhos de meus netos!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Sammis Reachers (A maratona da panificação: Quem vencerá?)

O tema deste capítulo não é um assunto politicamente correto, mas este livro e o próprio humor também não o são. Vamos falar de uma realidade algo delicada, algo controversa: os idosos que, valendo-se do fato de não pagarem passagem, e do tempo de sobra que têm para fazer (ou não fazer) o que quiserem, pegam ônibus à esmo, seja subindo num ponto para descer no seguinte, seja percorrendo grandes distâncias, por motivos fúteis ou mesmo à toa, para "fazer hora".

Em mais um dia comum na garagem da Ingá, pela manhã, a galera está reunida para aquela tradicional resenha, o bate-papo que dá o ânimo do dia. Alguém começa a falar do assunto, dizendo de um ancião que sai do bairro Fonseca para, todos os dias, comprar quatro míseros pães franceses no mercado Extra, no centro de Niterói. Sendo que, no mesmo Fonseca, ele tem à disposição umas 15 opções de compra, sem ter que apanhar ônibus algum. Todos os presentes dizem então conhecer casos semelhantes. Mas nisso o motorista Fabiano "Gueiry", antiga "cria" da empresa, toma a palavra e, dizendo que o que eles viam no dia-a-dia não era nada, passa a relatar o seguinte:

- Na linha do Apolo (bairro de São Gonçalo, coberto pela empresa Fagundes), eu costumava pegar às vezes o carro de certo motorista, no horário das 5h00. O motorista seguia normalmente apanhando os passageiros do horário nos respectivos pontos. A maioria, galera que trabalhava nos estaleiros de Niterói. Certa vez, ao apanhar uma leva e dar a arrancada no carro, alguns dos passageiros puseram-se a gritar:

- Ei! Ei, motorista! Está vindo um senhor lá atrás, espera ele aí!

Conhecendo a 'peça' e um pouco contrariado, o motorista ainda fez menção de acelerar mais o veículo, cujo horário era extremamente apertado, mas alguns dos passageiros sentados na parte de trás chegaram a xingá-lo.    

O motorista    então    puxou    o freio de mão e pacientemente esperou. Lentamente    o senhor se aproximou e subiu com dificuldade no ônibus.

- Obrigado meu filho, se eu perder esse ônibus eu não pego a fornada de pão das seis horas...

O motorista, a essa altura já com a cara fervendo e querendo ensinar uma lição aos passageiros, mesmo sabendo que estava completamente errado, resolveu ir devagar. Os pontos já ficavam normalmente cheios, e com a lentidão repentina eles enchiam ainda mais, e assim também o ônibus,    que nunca vira tantos passageiros na vida, enquanto o piloto tranquilamente se arrastava, rebocando como um pé-de-pano.

Aquela lentidão já prefigurava o atraso daqueles trabalhadores, que tinham hora certa para pegar no serviço. A insatisfação e o burburinho dentro do veículo só faziam crescer, até que a galera não se conteve e começou a reclamar:

- Como é que é, ô piloto! Vamo com essa carroça! Nós temos hora pra chegar em Niterói!

Era o momento pelo qual o motorista, alma tinhosa, esperara e trabalhara,

- Ué rapaziada, vocês têm hora? Não me xingaram, lá atrás, para esperar o coroa? Pensei que vocês não tivessem pressa.

- Mas ele é velho já, se perdesse esse ônibus o outro ia demorar!

- E vocês sabem o que ele vai fazer? Ele sai todos os dias lá do Apolo, só para ir em Niterói comprar meia dúzia de pães!!! Atravessa centenas de padarias, pega engarrafamento, toma chuva, só pra ir em Niterói comprar pão porque "o de lá é mais gostoso"! E ele não tem nada melhor pra fazer mesmo... Então esse é o preço do atraso de vocês: um saco com seis pães franceses. Agora podem xingar, pra ver se anima o motor.

A galera ficou contrariada e, confusa entre ficar com raiva do motorista vingativo ou do idoso de paladar exigente, ficou em silêncio o resto da viagem.

Desnecessário é dizer que eles nunca mais pediram àquele piloto para esperar ninguém!

Após tal relato, Fabiano acreditou que se sagrara o vencedor da disputa sobre a maratona da panificação, praticada diariamente por milhares de velhinhos. Mas então Marqulnho, motorista baixinho e grande zoador, morador do bairro gonçalense do Jockey, terminou de tomar seu café e tomou a palavra.

- Malandros, como alguns aqui sabem, antes de trabalhar como motorista na Ingá eu era da empresa Rosana, em São Gonçalo. Pegava às 17h00 e largava às OlhOO da madruga. Acontece que a garagem da Rosana era problemática, e quando chovia, corria o risco de alagamento. Assim, em noites de muita chuva o dono da empresa ligava pra lá e pedia pra galera fazer uma força e rodar até às 05h00 da manhã, e se ainda assim a chuva continuasse e a garagem ficasse alagada, era pra largarmos os ônibus nas ruas próximas a ela. Nessas vezes, sempre às 04h00 da manhã, quando eu ia com minha última viagem, já exausto, sempre pegava um velhinho, que dizia estar esperando o outro carro da linha, que era efetivo de todo dia, mas passava às 04h20. Com o tempo fui pegando uma certa amizade com o velho, pois sempre que tinha que rodar até às cinco lá estava ele, sem falta. Até que chegou certo dia, e eu perguntei:

– Trabalha aonde?

- Ô meu filho, eu não trabalho não... Sabe o que é, é que há muito tempo eu morei no município de Rio Bonito, e gostei muito do pão de lá. Aí todo dia eu vou lá comprar pão.

Ou seja: o indivíduo saía às 05h00 da matina do município de São Gonçalo, pegava dois ou três ônibus só de ida, e além de São Gonçalo atravessava os municípios de Itaboraí e Tanguá para chegar em Rio Bonito, quase duas horas depois... apenas para comprar pão.

E com essa bordoada o presepeiro do Marquinho aniquilou todos os presentes e sagrou-se campeão da disputa.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Mulher que Escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar)

O Autor


 Moacyr Scliar, médico e escritor. Gaúcho de origem judaica, produziu ao longo de sua vida uma obra vasta que vai do romance ao ensaio, traduzida para doze idiomas e adaptada para o cinema, o teatro e a TV. Publicou entre outros a coletânea de contos "A orelha de Van Gogh", ganhadora do prêmio Casa de Las Américas e os romances "Sonhos tropicais" e "A majestade do Xingu", baseados nas vidas de Oswaldo Cruz e Noel Nuttels respectivamente.

Sinopse:

A mulher que escreveu a Bíblia é um pequeno romance em que se fundem as três maiores qualidades do gaúcho Moacyr Scliar: a imaginação, o humor e a fluência narrativa. Para estas qualidades recebeu o Prêmio Jabuti 2000.

Ajudada por um ex-historiador que se converteu em "terapeuta de vidas passadas", uma mulher de hoje descobre que no século X antes de Cristo foi uma das setecentas esposas do rei Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever a história da humanidade - e, em particular, a do povo judeu -, tarefa a que uma junta de escribas se dedica há anos sem sucesso. Com uma linguagem que transita entre a elevada dicção bíblica e o mais baixo calão, a anônima redatora conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma personagem anônima, filha de um chefe tribal obscuro.

Moacyr Scliar recria o cotidiano da corte de Salomão e oferece novas versões de célebres episódios bíblicos. Em sua narrativa, repleta de malícia e irreverência, a sátira e a aventura são matizadas pela profunda simpatia do autor pelos excluídos de todas as épocas e lugares.

Tema:

Último romance escrito por Scliar e lançado no final de 1999, A mulher que escreveu a Bíblia reúne o que há de melhor no trabalho desse escritor cujo texto é marcado pela leveza, fluência e imaginação. Em sua trama bem urdida, misturam-se sem cerimônia erudição e escracho, sagrado e profano, História e ficção, sublime e ridículo, religião e sexo. Para escrevê-lo, Scliar baseou-se na hipótese do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C.

A trama, que envolve um terapeuta de vidas passadas charlatão e apaixonado por sua paciente, leva-nos numa viagem aos esplendores do reinado do sábio rei Salomão em Israel, a cujo harém acaba de chegar uma mulher feia, apaixonada e - coisa incomum para a época - letrada. Será ela a narradora dessa história repleta de ação, aventura, paixão e intriga. Diversão garantida pelas hilariantes versões de episódios bíblicos, tratados com originalidade e irreverência rejuvenescedoras pelo talento de uma dos maiores representantes de nossa literatura.

Trecho:
"Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, essa afinidade organizando não apenas o texto como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho, quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas celestes que indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa que não resulta do acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam minha mão quando ela deixava seus sinais sobre o pergaminho."(p.41)

Resenha:

Em The Book of Jo, o crítico norte-americano Harold Bloom levanta a surpreendente tese de que a primeira versão da Bíblia hebraica teria sido escrita por uma mulher, na segunda metade do século X a.C. Moacyr Scliar, neste breve e delicioso romance, vai além: ao submeter-se a uma “terapia de vidas passadas”, uma mulher de nossa época descobre que foi ela que, há três mil anos, como a única letrada entre as setecentas esposas do rei Salomão, recebeu deste a incumbência de escrever a história da humanidade e do povo judeu.

É pelos olhos dessa mulher feiíssima e intelectualmente brilhante que percorremos os bastidores da corte de Salomão e a vida cotidiana da Jerusalém de seu tempo. Por essa via oblíqua, Moacyr Scliar constrói uma narrativa fascinante, que é ao mesmo tempo sátira e romance de aventura.

Como costuma acontecer nos livros do autor, o humor irreverente anda de braços com um profundo humanismo, cujo traço mais evidente é a simpatia pelos deserdados e excluídos. Aqui, Scliar, além de sua fabulosa imaginação, demonstra todo o seu virtuosismo literário ao misturar o registro elevado da linguagem bíblica com a fala desabusada da narradora/escriba, criando anacronismos deliberados e impagáveis.

Desse modo, brinda-nos com versões novas e hilariantes de célebres episódios bíblicos, como o das duas mulheres que recorreram a Salomão na disputa por um bebê (“prostitutas de uma estrela, no máximo”), ou o do encontro do rei dos judeus com a bela rainha de Sabá (a quem ele recita, com propósitos lascivos, os versos do Cântico dos Cânticos).

Diante desse banquete de fantasia e humor, nenhum leitor ficará indiferente.

Fonte:
Resenha por José Geraldo Couto e resumo disponíveis em
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