sexta-feira, 16 de julho de 2021

Eduardo Affonso (Superlativinho, diminutivíssimo)

Tem coisas que só a língua portuguesa faz por você.

Ou principalmente a língua portuguesa do Brasil, sei lá.

O diminutivo não ser pouco, mas muito.

Ficar pertinho é ficar muito perto.

Ficar quietinho é ficar muito quieto.

O diminutivo não ser só pra diminuir, mas pra tornar intenso.

O superlativo ser mais que um grau mais elevado: tornar-se um grau épico.

Na concessionária, há o carro novo, o seminovo e o seminovíssimo.

Em que outro idioma um carro conseguiria ser meio novo – logo, meio velho – (o prefixo latino “semi” quer dizer “metade”), e, ainda assim, novíssimo?

O seminovíssimo é a metade que alcança a plenitude. O meio cheio e meio vazio que transborda.  

Nas imobiliárias, há o imóvel “na quadra da praia”. Isso quer dizer que pelo menos um dos lados da quadra é de frente para o mar.

Um apartamento “na quadra da praia” nunca é de frente para o mar, ou seria “apartamento de frente para o mar”.

Há apartamentos, entretanto, que não chegam a estar cara a cara com o oceano, mas tampouco estão num lugar qualquer. Eles estão na quadríssima.

A quadríssima não é uma quadra como as outras. É “a” quadra – seja isso lá o que for.

Ela pertence à variação linguística falada no Rio de Janeiro.  Não há notícia de quadríssimas em Belo Horizonte – até porque lá seria quarteirãozíssimo, e belo-horizontino algum conseguiria pronunciar isso.

Nos anúncios classificados, oferecem-se os serviços das profissionais do sexo. Há as ninfetas, as ninfetas completas, as ninfetas completinhas e as ninfetas completíssimas.

O que faltará às ninfetas básicas para atingir a completude? Como o diminutivo de intensidade conseguirá completar o já completo? E, uma vez completas e completinhas, qual será o plus, o dom, o dote que as levará ao grau superlativo de “completíssima”?

Tem coisas que só a língua portuguesa faz por você.

Ou só a publicidade, sei lá.

Estante de Livros (Hilda Furacão, de Roberto Drummond)

O AUTOR E A OBRA

Hilda Furacão é um romance escrito por Roberto Drummond, publicado em 1991. O romance foi adaptado para a televisão, em forma de uma minissérie, pela autora de telenovelas Glória Perez, e exibido na Rede Globo, em 1998, obtendo enorme sucesso. A minissérie colaborou para que Hilda Furacão fosse a obra mais famosa de Roberto Drummond, tendo sido vendido 200 mil exemplares. Hilda Furacão foi escrita com rapidez, se comparada às outras obras do autor: 64 dias, enquanto levou anos para escrever outros livros.

O livro foi baseado na história de juventude da prostituta Hilda Maia Valentim, conhecida na zona boêmia de Belo Horizonte, como Hilda Furacão “O feitiço volta-se contra o feiticeiro. Desde que foi lançada a campanha a favor da Cidade das Camélias, a Zona Boêmia é um promontório da alegria. sugere os últimos dias de Pompéia. Tudo lá é encantado. A rua principal, a Guaicurus, conhece noites inesquecíveis. E nunca se viu tanto dinheiro. O vendedor de churrasquinhos triplicou as vendas. No restaurante Bagdá, especialista em comida árabe, é preciso disputar um lugar. As mulheres dos hotéis de primeira, segunda , terceira e quarta categorias jamais foram tão solicitadas. E na noite da última quinta feira, a polícia foi chamada para conter os ânimos dos que disputavam um lugar na fila que vai dar num território mágico: o quarto 304, no terceiro andar do Maravilhoso Hotel onde Hilda Furacão é uma fada sexual.”

O romance Hilda Furacão [1991] tem uma proposta narrativa interessante, bem ao gosto pós moderno. Várias ações transcorrem no texto conferindo uma dinâmica que prende o leitor à narrativa, perseguindo um desfecho que nos é insistentemente prometido.

A história central focaliza a personagem que dá nome ao romance, Hilda Furacão. Entretanto, o lugar de protagonista é disputado pelo narrador que conta a sua história e ao contá-la, conta várias outras histórias, que se entrelaçam formando um tecido de conflitos que vamos conhecendo e com os quais muitas vezes nos identificamos.

Os capítulos se sucedem ao modelo dos folhetins, criando um suspense que buscamos desvendar com a leitura do próximo, sucessivamente. Essa técnica permite que, a cada capítulo, as personagens se revezem e ganhem um destaque na trama. Isto é tão evidente que a obra já foi encaminhada para o teatro pela direção de Marcelo Andrade e ainda ganhou projeção nacional ao se tornar uma grandiosa mini-série homônima, na Rede Globo.

O cenário principal da obra é a capital mineira do final dos anos 50 e início dos anos 60 [lembramos que o autor reside em Belo Horizonte e hoje representa um dos grandes nomes do jornalismo mineiro], mas há que se falar no cenário secundário que é a pacata cidade de Santana dos Ferros.

PERSONAGENS

Roberto = é o alter- ego biográfico do jornalista Roberto Drummond. Jovem comunista e idealista que ama a bela M. Aramel, o belo “nunca houve homem mais belo que Aramel” jovem que almeja o estrelato hollywodiano por sua aparência de galã. Acaba por tornar-se um cafetão a serviço do poderoso Antônio Luciano. Após um desencontro amoroso humilhante vai para os EUA e torna-se gângster

Frei Malthus = o pivô do grande romance julgado pela comunidade como “o santo”, este personagem se apaixonará pela bela Hilda Furacão. O mito da Cinderela é passado ao leitor quando do acidente que deixa o sapato de Hilda sob a posse do frei que tentará fugir do pecado martirizando-se e comendo o seu favorito doce de jabuticaba.

As tias Ciana e Çãozinha = são as representantes [há vários flashes de Santana dos Ferros, interior mineiro] do conservadorismo e liberalismo. São as tias que Roberto trava correspondência constantemente.

Gabriela = A primeira amada de Aramel, que fora contratado pelo traumatizado, gordo e tímido jornalista Emecê para representá-lo no encontro marcado.

Antônio Luciano = representante do poder econômico e político. Sua diversão era deflorar virgens e Aramel era o encarregado de receptá-las.

CENÁRIO / TEMPO / ESPAÇO

Alguns dizem que o romance é bairrista, e não é a verdade , pois o que se apura dessa obra é uma grande homenagem à cidade de Belo Horizonte e tudo que faz dela um grande cenário natural para representar o microcosmo político e social do macrocosmo que era o regime militar em seu tempo cultural e estético.

ESTRUTURA NARRATIVA


É muito presente nos textos de Roberto Drummond um constante diálogo com o leitor. A esse diálogo entre textos do mesmo autor damos o nome de intratextualidade. Outros diálogos intertextuais aparecem ao longo da narrativa, mesclando ditos populares e modinhas ao discurso narrativo. Outro aspecto intertextual que se observa é a construção da intriga entre Hilda Furacão e Frei Malthus desencadeada a partir do sapato que a moça perde e do qual o rapaz se apossa, tal “qual acontece no conto da Gata borralheira ou Cinderela.” Logo na abertura do romance, e nos capítulos que se seguem, Roberto narrador deixa claro que, por toda o texto, vai estar dialogando com o leitor, fazendo- nos presentes no tempo da enunciação -presente da narrativa. Essa é uma técnica bastante usada por nossos escritores, em especial por Machado de Assis. e confere uma dinâmica interessante ao relato, tornando-nos quase cúmplices do escritor.

O estilo do autor causou suspense quanto à real existência de Hilda Furacão. Roberto Drummond misturou personagens reais a imaginários, oferecendo verossimilhança. Contudo, até falecer em 2002, Roberto preferiu não esclarecer o que é realidade e o que é ficção. Segundo ele, se transformou em refém da Hilda Furacão. Dessa forma, a existência de Hilda continua sendo tema de debates entre os leitores e os moradores de Belo Horizonte – cenário onde a trama acontece. Diferentemente de Hilda, o personagem Malthus tem uma explicação: foi inspirado em Frei Betto, grande amigo de Roberto Drummond.

RESUMO

Como já dito anteriormente o romance é muito desfragmentado, pois possui constantes mudanças de enfoques. Para facilitar o nosso trabalho proporemos que se faça duas leituras: uma primeira que almeja desvendar o mistério da garota do maiô dourado [ a Hilda que desfilava sua beleza pelo Minas Tênis e depois tornou-se prostituta]; uma segunda que mistura ficção e realidade histórica brasileira [ditadura militar e censura]; o mais brilhante é que tudo começa e termina no dia 1° de abril que simboliza o dia da mentira eis então a grande proposta ficcional do autor. Roberto começa narrando em 1° pessoa a sua própria condição jovem de comunista e idealista. Pretende ser um grande jornalista e irritadiço por compararem seu sobrenome com o grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Pelo que o narrador fala de si e da cidade observamos que o tempo precede os anos de 64 [época do golpe militar]. Nesse interím, o narrador trava correspondência com as tias de Santana dos Ferros Tia Ciana e Çãozinha, que são as interlocutoras do relato. A grande trama da obra verifica-se no encontro entre o santo Frei Malthus e a bela Hilda no qual aquele, ao tentar expurgar o mal da zona boêmia acaba enredado pela paixão que estabelece-se entre ele e Hilda. Roberto é o jornalista que relatará ao leitor como estão acontecendo os fatos na zona boêmia [lembre-se que Malthus, Aramel e Roberto são os três mosqueteiros amigos de infância e desta forma Roberto terá maior possibilidade de levantar dados para o leitor].

Após o desaparecimento do seu sapato, Hilda lança um concurso para que o devolvam então inicia-se um conto de Cinderela às avessas pois Malthus acabará por reconhecer o seu amor pela bela. Contudo o final é triste pois ambos desencontram-se quando da fuga para viverem um grande amor Malthus será preso no primeiro dia de vigência do golpe militar de 64.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Adega de Versos 34: Clarisse da Costa

 

Jaqueline Machado (A moça e a redoma)

A moça era triste...
Mas ninguém notava sua tristeza.
A moça tinha sonhos secretos.
E dons que atraíam admiradores.
Ainda assim, ela era triste...
Apesar de possuir beleza e virtudes,
ela não podia correr.
Mas sua redoma era de princesa.
Não precisava se ocupar com afazeres domésticos,
nem trabalhar para sobreviver.
Suas obrigações eram escrever, cantar e sorrir.
Sim, ela tinha uma vida de princesa.
E todas as mulheres invejavam a sua posição.
Pois todas as mulheres sonham ser princesas.
Menos a moça.
Mesmo recebendo cartas de admiradores, manjares, flores,
seus olhos marejavam ao cair da noite.
E seu coração reclamava um outro viver.
Ela tinha tudo.
Mas o espírito do vazio atormentava sua inquieta alma.
Seus amigos eram distantes, seus amores eram proibidos...
Ninguém podia penetrar na sua redoma de pérolas e cristais.
E o que era visto como um castelo por todos,
para ela não passava de uma prisão.
Prisão essa que roubava-lhe o ar, a alegria, a emoção.
Contudo, muitos não acreditavam na sua tristeza.
A moça era vista como um anjo.
Por outros, como uma verdadeira deusa.
Mas a moça era humana.
Humana até demais.
E desejava viver num paraíso de portas abertas.
Correr, cair, se machucar, depois levantar e rir do próprio tombo,
como fazem todos os mortais.
A moça não queria asas a título de anjo.
Mas sonhava poder voar sobre os montes,
cruzar campos abertos, beber água direto da fonte,
plantar roseirais...
Queria tocar as pessoas, brincar com as crianças.
E, quem sabe, cozinhar para seu amado.
Queria poder rir à toa,
ser tratada de igual para igual entre as pessoas,
ser chamada por um nome comum.
E poder sonhar...
Nem de menos e nem demais...  
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Jaqueline Machado – Escritora, Palestrante, Cronista e Poeta.
Contatos para trabalhos : E-mail:  tudoepossivelw7@gmail.com
Facebook: https://www.facebook.com/jaqueline.machado.5494
WhatsApp :  (51) 98016-2837  

Fonte:
Texto e imagem enviados pela autora.

Olivaldo Júnior (Cristais Poéticos) = 2 =

O HOMEM DA MÁSCARA DE PANO


De ferro, entre árvores queridas,
o “homem da máscara de pano”
enxerga o próprio rosto em vidas
que o enxergam como humano.

Humano, não de ferro, espero
que a ferrugem das vivências
não corroam o que mais quero,
o semblante das consciências
que pipocam no meu cérebro,
que transbordam de minhalma
sobre o colo de quem acalma
minha máscara e meu espírito.

Pois o espírito desse homem
quer no espírito de outro ser
se iluminar e ser o horizonte
que, um dia, irá se conhecer
na fonte que deságua a fonte
em que Deus vai beber: mito.

O que há por trás da máscara
que forçosamente usa o homem
nem mesmo o homem poderá
saber até que ela caia e, ao longe,
suspenda de todos os “parças”
suas máscaras de pano também.
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UMA ORQUÍDEA COMO AQUELA
Para a amiga que me mandou a foto de sua cattleya

No quintal daquela amiga,
com a cigarra e a formiga,
entre várias borboletas,
ou monarcas, ou plebeias,
uma orquídea cattleya
espreita o dia.

Espreita o dia,
que é feito a rósea poesia
de suas pétalas,
artimanhas poéticas
para ver se algum inseto
vem ter com elas
seu colóquio amoroso,
honra aos poetas.

Não, o quintal dessa amiga
não é uma floresta tropical,
mas guarda um ar especial
para que uma flor que intriga
seu sonho enfim prossiga
e se mostre, gloriosa, linda,
no quintal daquela amiga!
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SEU REI MENINO IRÁ CHEGAR
(Em especial, para a amiga Walkyria Garcia Maia)

Querida amiga adormecida,
Seu Rei Menino irá chegar.

Não, não sei de onde ele vem,
mas sei que, a passos largos,
rasga o céu de suas íris e vem,
montado num branco cavalo,
não de verdade, mas de nuvem,
ele vem, todo senhor de si
deixar em ti seu beijo e, sim,
ficar contigo para sempre!

Por isso, arrume a casa,
tome um banho e se perfume
com aquele néctar doce
que só as melhores flores
podem dar. Sim, amiga,
é tempo de amar!

Pedirei a um vaga-lume
que seja a presilha viva
em teus cabelos
e a uma borboleta,
o broche vivo
em tua blusa.

Usa aquele riso de menina
que o rio da vida te mostra
que tens em horas de amor
e espera, mesmo dormindo,
Seu Rei Menino, amiga,
que irá chegar.
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HOJE OS POETAS MORTOS ESTÃO TODOS EM CASA
(31 de outubro: Dia Nacional da Poesia)

Sim, amigo, é verdade o que lhe digo:
- Hoje os poetas mortos estão todos em casa.
Por isso, ponho os fones de ouvido
e deixo a canção portuguesa impregnar-me
os ouvidos com o sal
que salga o espirito
dos que vieram de lá
das últimas terras
de Portugal, ó pá!

Onde foi que Pessoa achou a fresta
no Céu dos Poetas que dava direto
para a casa tão simples deste poeta
que vos fala sobre o mais completo
sentimento que o recobre, concreta,
acimenta em seus olhos a vã beleza
das palavras de um poema, seminu,
desfile ao léu no quarto escuro, vão
por onde os ratos, répteis da língua
se amontoam e, em pele e coração,
tecem as redes que põem à míngua
os corações desavisados?...

Sim, amigo, os poetas mortos se deixam
entrever na minha cama, na cadeira
atrás de mim, no meu cangote, e beijam,
lambem as palavras como brincadeira
de colar os selos nas cartas
que jamais serão mandadas...

Cecília, Bandeira, Cabral, Drummond,
Quintana, Cora e o Manoel de Barros,
todos no balaio, de soslaio, dão o tom
de minha noite da poesia, aos berros
sem berrarem, balbuciam o que é bom
para eu dizer, para eu deixar de birra,
que o futuro quase tem o mesmo som
do vão passado, que o futuro é borra
no fundo da xícara, caixa de bombons
que a vida empresta ao pobre burro
que se julga um catedrático dos sons.

Sim, amigo, hoje os poetas mortos
ressuscitaram, e nem é Dia de Finados!
Hoje é o Dia Nacional da Poesia,
e todos os portos e celestes aeroportos
estão abertos aos meus chegados,
inconclusos companheiros que dia a dia
me acompanham, mesmo tortos,
pela reta que eu tomei,
linhas tortas que cruzei
para ver onde é que dá
toda a vida que inda há...

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Paulo Setúbal (As Maluquices do Imperador) I

BRASIL-REINO


7 de março de 1808. A nau Príncipe Real, com a flâmula azul branca panejando ao vento, entra galhardamente pela barra a dentro. Todos os tripulantes, sacudidos por áspero bombardeio de surpresas, derramam olhos escancarados sobre o panorama embebedante, único:

— Que lindo! Que lindo!

No ar que faísca, debaixo dum céu entontecedor, azul de Sêvres, o sol escachoa avanhandavas de ouro. E sob a luz fúlgida, dentro da sua virgindade selvagem, recorta-se em coloridos fortes a paisagem — maravilha, Águas e morros!

Tudo pródigo, tropical, cheirando a terra moça, ineditamente belo. Como pássaros verdes, papagaios enormes pousados à tona d’água, surge das espumas um bando arrepiado de ilhas. Que pitoresco! E toda gente, na amurada, a apontar com o dedo:

— É a "Rasa"!!

— A "Comprida!"

— A "Redonda"!

— Os "Dois Irmãos"!

— As "Palmas"!!

Ao longe, magnífico bugre americano, lá está o Gigante de Pedra, estendido no chão, tatuado, brônzeo, com a sua empolgante monstruosidade rústica. Além, encoscorado e bravio, caboclamente brasileiro, o Corcovado pintalga-se de mataria brava, a paulama enroscada no cipoal, os nhacatirões gritando pelo carnavalesco das flores. Acolá, esbeltíssimo, núncio da Terra Nova, o Pão de Açúcar arremessa nas nuvens, arrogantemente, o seu pico de pedra, que fura o céu.

E o Príncipe Real, enfeitado de bandeirolas e de galhardetes, rasga com bizarria a ondada mole.

As fortalezas da terra, avistando-o, içam as cores portuguesas. E sob o cascatear do sol, na alegria olímpica da manhã, estruge de súbito uma atroada frenética. É a salva real que estronda, cento e um tiros pipocando, sinos a carrilhonarem, roqueiras, estrépito de rojões, zabumbas, charangas, fogos de artifício que riscam o ar.

De todos os lados, às dezenas, já os escaleres engaivotam as águas crespas da baia. Remam com fúria, rumo da nau que entra. Um deles, leve barquito com grandes embandeirados, alcança-o logo. Chega-se ao casco. Tomba-lhe da amurada a escadinha de bordo. Sôfrego, os olhos chispando, sobe por ela um passageiro. É José Caetano de Lima. É o primeiro carioca que se embarafusta pela nau. Os tripulantes abrem alas. E o feliz morador do Rio de Janeiro, ao passar, corre uns olhos atordoados pelo bando suntuoso.

Quanta gente luzida! São todos fidalgos do mais velho sangue. As damas, em grande decote, os cabelos encaracolados, chapéus de plumas berrantes, faiscam de sedas e de pedrarias. Os cavalheiros, hirtos, espartilhados, as casacas azuis de riço claro, trazem o peito estrelado de crachás. Apenas, com um destoar chocante, vêm dum beliche gritos estranhos, gritos roucos de mulher presa:

— Não me matem! Não me matem!

O embarcadiço continua varando a ponte. Em meio da turba, por entre a mescla rutilante de fidalgos e fidalgas, destaca-se um casal muito grave, muito protocolar, de que os demais circunstantes se distanciam com respeito. Ele é gordo, muito rechonchudo, bochechas estufadas, olhos parados, de suíças. Ela é áspera, feições de homem, bigodes no lábio, pelos no rosto, pelos na mão, pelos por toda parte. Ele, o molengo é D. João VI; ela, a cabeluda, é D. Carlota Joaquina. São os regentes de Portugal.

José Caetano de Lima precipita-se para os dois. Tomba-lhes aos pés. Beija-lhes as mãos vitoriosamente: é o primeiro fluminense que, tonto de gozo, tem a ventura de prestar vassalagem aos fujões reais!! Do beliche soturno, porém, ecoa subitamente a estranha voz:

— Não me matem!

É D. Maria, a louca. É a rainha de Portugal que chega aos berros, encarcerada, enfunebrecendo a nau:

— Não me matem! Não me matem!

Assim, naquele dia gloriosamente radioso, por entre ribombos formidáveis, com espavento e gala, aportava ao Brasil, escorraçada por Napoleão Bonaparte, a família Real Portuguesa.

continua...

Fonte:
Paulo Setúbal. As maluquices do Imperador. Publicado em 1927.

Colcha de retalhos: a vida em um frasco - POESIA (Prazo: 5 de agosto)


Estão abertas as inscrições para Colcha de retalhos: a vida em um frasco - POESIA.

OBJETIVO

COLCHA DE RETALHOS: A VIDA EM UM FRASCO, promovida pela Revista Letrilha / Assis Editora, é uma chamada para publicação do volume 2 (POESIA), da trilogia digital e/ou impressa, sendo os três volumes:
1) Prosa (Conto) 25/05/2021 a 25/06/2021;
2) Poesia 05/07/2021 a 05/08/2021;
3) Tirinha (ainda sem data).

Volume 2 (POESIA) chamada de 05/07/2021 a 05/08/2021

Temática: A vida em um frasco.

OBJETIVO ESPECÍFICO:
Apresentar poemas com histórias contadas ou vivenciadas.

JUSTIFICATIVA:
A partir de 1796, o mundo inovou com o marco da história das vacinas, conseguindo estancar a mortandade por doenças implacáveis, como: Varíola; Sarampo; Malária; Febre Amarela; Tuberculose; Tifo; Gripe Espanhola; Raiva; Tétano... Covid, o frasquinho da vacina é uma dose de esperança. Basta observar o cartão de vacinação de uma criança até 2 anos de idade para compreender a importância do processo. Mas toda descoberta e criação de uma vacina é precedida por uma tragédia que abocanha milhares ou milhões de vidas, como o drama da Covid-19 que atravessamos; são feridas que, muitas vezes, não se fecham. Famílias são dizimadas, outras mutiladas... e no final, cada sobrevivente tem sua dor para contar. Por isso, escolhemos esta temática para a fase 2 do nosso Colcha de Retalhos.

CONCLUSÃO:
As obras inscritas visarão explanar em seus versos / eu-lírico as batalhas enfrentadas pela humanidade, ante o desconhecido, descrevendo a dor, o medo, a incerteza, o estranhamento... mas também apontando a esperança, a empatia, a vida... porque é nos conflitos que nos moldamos e nos tornamos melhores, e como escreveu Guimarães Rosa, “a vida aperta e afrouxa, o que ela quer da gente é coragem”.

O objetivo é promover a arte e a literatura. Não se trata de concurso, mas, sim, chamada para publicação de uma trilogia, mesmo assim, haverá sorteios e premiações entre os participantes. É um modo de incentivar e fortalecer os gêneros prosa, poesia e tirinha, de modo criativo e estimulante. A arte e a literatura são a voz de muitas pessoas emudecidas.

REGULAMENTO

INSCRIÇÕES 100% gratuito

– Textos somente em Língua Portuguesa.

– Qualquer pessoa fluente em língua portuguesa, independentemente da nacionalidade ou residência, pode participar.

– O poema deve ser inédito. (Não serão aceitas prosas poéticas. O trabalho participante deve ter estrutura em versos).

– Período: 05/07/2021 a 05/08/2021

– Envio exclusivamente pelo e-mail: revistaletrilha@gmail.com.

– No corpo do email, informar dados cadastrais do autor, para correspondência física: Nome, endereço (rua, casa, apartamento, bairro, cep, cidade, estado...)

– No email, enviar a seguinte declaração, nome conforme CPF:

EU “_____________”, NASCIDO EM ___/___/____, CPF ____________ COM ENDEREÇO NA “__________________”, DECLARO QUE LI ATENTAMENTE O EDITAL E ESTOU DE PLENO ACORDO COM OS PRÉ-REQUISITOS. ESTOU PARTICIPANDO, NA CONDIÇÃO DE AUTOR, NO GÊNERO POESIA, COM O TRABALHO/TÍTULO _______.

CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO POESIA:

– Um POEMA de, no máximo, 30 versos. Não há mínimo.

– Fonte: Arial, tamanho 12.

– Título. Abaixo do título o nome do autor (como será publicado, não poderá mudar depois).

CERTIFICAÇÃO:
Todo participante receberá o certificado de participação em .PDF, via email.

SORTEIO 1:

– Ao final das inscrições será sorteado um belíssimo objeto decorativo, totalmente em madeira, entre todos os participantes inscritos, confeccionado por um artesão mato-grossense.

SORTEIO 2:
– Ao final das inscrições, 3 (três) participantes serão contemplados, por sorteio, com um livro (à escolha da equipe organizadora) autografado.

PRÊMIO:
– Os 45 primeiros inscritos (15 por categoria) serão convidados a participar da Maratona COLCHA DE RETALHOS, e concorrerão a uma matéria exclusiva para a Revista Letrilha (haverá 3 pessoas contempladas) e destes 3, um será escolhido para participar do grande prêmio final (uma linda colcha de retalhos, confeccionada por uma artesã goiana), que será na conclusão do projeto, composto pela trilogia e pelo prêmio Frase Premiada (última etapa).

COMPRA:
– O eBook ficará à venda por R$ 10,00, esperamos que cada participante compre, no mínimo, um exemplar digital dos trabalhos publicados, para auxiliar na continuação projeto, e na promoção da cultura.

NOTA:
As obras participantes poderão ser utilizadas, a critério da organização do concurso, para publicação em meio eletrônico e/ou físico, sem que isso incida em pagamento de royalties ao autor. A publicação poderá ser em meio gratuito ou comercial.

RESULTADO DESTA ETAPA:
Data provável: 30/08/2021

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VETOS

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3: Ao se inscrever no presente evento, o autor deixa explícita a sua concordância com este regulamento e autoriza a publicação da obra conforme edital, mantendo ao projeto o direito de utilizar o texto enviado, premiado ou não, em publicação, posterior ao resultado da chamada.
Eventuais casos não previstos no Edital serão inapelavelmente dirimidos pelos organizadores do Concurso.

Uberlândia-MG, julho de 2021.
Ivone Gomes de Assis
Revista Letrilha / Assis Editora.
(34) 3222-6033
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Fonte:
Email enviado pela Letrilha Revista <revistaletrilha@gmail.com>

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Varal de Trovas 513

 


A. A. de Assis (Maringá dó-ré-mi-fá)

Esta cidade nasceu para ser a Atenas do norte do Paraná. Tudo aqui indica a vocação deste povo para a música, para a literatura, para todas as artes. Um dia vocês vão entender por que estou dizendo isso”. – Palavras do compositor Joubert de Carvalho, em discurso no dia da inauguração da rua que tem o seu nome em Maringá. A profecia não tardou a confirmar-se.

Maringá nasceu cantando” – era o que já naquela época se dizia. O então jornalista, radialista e vereador Antenor Sanches empunhou a bandeira: conseguiu por unanimidade a aprovação da lei que oficializou o apelido da jovem urbe como “Cidade Canção”.

Hoje é difícil dizer quantos músicos aqui atuam, quantos escritores, quantos atores, quantos pintores, quantos escultores. Conheço alguns, não conheço a maioria. Na música, por exemplo, vêm-me de pronto à lembrança o notável maestro, compositor, tenor Geandré Ramiro, a querida maestrina Denise Pimentel, a ótima cantora Madalena Alves.

Penso também no Femucic, na Orquestra Filarmônica UniCesumar, na Orquestra de Câmara da UEM, no Coro Cobra Coral, no Coro Arquidiocesano. Mas sei que há vários outros grupos de altíssimo nível  fazendo bonito aqui e até em apresentações no exterior.

Conheci melhor os da geração pioneira, dos quais guardo ótimas lembranças, a começar pelo inesquecível maestro Aniceto Matti. Aquele sorriso gostoso dele tocando piano e acordeón na Rádio Cultura, nos bailes, ou regendo coros nas igrejas e nos colégios.

Quando cheguei aqui (1955), já havia uma banda e uma orquestra. Henrique Marchini era o maestro das duas; o presidente da banda era o vereador Primo Montéschio. Depois a banda passou a chamar-se “Joubert de Carvalho”, presidida pelo poeta Ary de Lima e depois pelo pioneiríssimo Otávio Periotto. Fernando Penha era o maestro e tinha também uma orquestra, que contava com músicos excelentes, como o baterista Toninho, o pistonista Pirulito, o violonista Romeu.

Veio em seguida o famoso grupo “Britinho e seus Cometas”. Uma rapaziada moderna que inaugurou por aqui a era do rock. Havia também o professor Thomé com a sua Academia de Acordeón. E os geniais Shiniti Ueta e Tercílio Men, que continuam na ativa.    

Lembro-me ainda do professor Geraldo Altoé, o primeiro organizador de coros da Catedral, e de sua irmã, também regente – a queridíssima professora Polônia Altoé Fusinato, que ainda hoje dirige com brilho e ardor um dos nossos melhores grupos corais religiosos.

Destaque especial para o simpaticíssimo maestro Fumimasa Otani, um dos personagens mais fascinantes de nossa música. Também para o maestro Antônio Balan e para os dirigentes das grandes fanfarras que marcaram época na história da cidade: Hiran Sallée, Dalisbor, Irmão Pedrão. E ainda para as inesquecíveis professoras dos conservatórios pioneiros, entre as quais Mirthes Fernandes de Souza e as irmãs Yaeko e Sumiko Miyamoto, do Luzamor.

Peço desculpas por não citar todos e todas. Mas a todas e todos os que têm feito  realmente de Maringá uma “Cidade Canção”, deixo aqui um carinhoso abraço. Bravo!!!
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 08-7-2021)

Fonte:
Blog do autor.
https://aadeassis.blogspot.com/2021/07/maringa-do-re-mi-fa.html

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXVII

REVOLTA...


MOTE:
Chega a noite...Aumenta o frio...
E esta revolta em meu peito,
se faz maior que o vazio,
que tu deixaste em meu leito!...
Aloísio Alves da Costa
(Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE)


GLOSA:
CHEGA A NOITE...AUMENTA O FRIO...

a tristeza se agiganta,
e a lembrança em desvario
qualquer alegria, espanta!

Me acompanha a solidão
E ESTA REVOLTA EM MEU PEITO,
que fazem meu coração,
sentir-se, agora, desfeito!

Tua ausência é um desafio
bem maior que tudo, enfim...
SE FAZ MAIOR QUE O VAZIO,
que sinto dentro de mim!

Revolta, dor, desencanto
de um amor, quase perfeito,
foi o tudo, no entretanto
QUE TU DEIXASTE EM MEU LEITO!…
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PENSANDO...

MOTE:
Quando a sorrir, me abraçaste,
quando, a sorrir, te beijei,
imagino o que pensaste,
pensando no que pensei!...
Ciro Vieira da Cunha
(São Paulo/SP, 1897 – 1976, Rio de Janeiro/RJ)


GLOSA:
QUANDO A SORRIR, ME ABRAÇASTE,

foi tudo maravilhoso,
o sabor que, em mim, deixaste,
foi muito mais que gostoso!

Tu ficaste bem feliz,
QUANDO, A SORRIR, TE BEIJEI,
com o carinho que eu fiz
sinto que te conquistei!

Não falei e não falaste,
mas nesse exato momento,
IMAGINO O QUE PENSASTE,
imagino, cem por cento!

Unidos , em simbiose
por ti, eu me apaixonei,
e que o teu coração goze,
PENSANDO NO QUE PENSEI!…
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VENCER!

MOTE:
SÃO MUITOS OS FARDOS TEUS?
LUTA SEM ESMORECER
PROCURA FORÇAS EM DEUS,
POIS O QUE IMPORTA É VENCER.
Clair Fernandes Malty
(Itapema/SC)


GLOSA:
SÃO MUITOS OS FARDOS TEUS?

Para repartir – juntemos!
Coloca-os junto aos meus,
de mãos dadas, seguiremos!

É necessário lutar!
LUTA SEM ESMORECER
e segue sempre a sonhar,
pra que não venhas perder!

Deus ajuda os filhos seus.
Segue seus ensinamentos,
PROCURA FORÇAS EM DEUS,
e findarão teus lamentos!

Segue em frente, no teu dia,
não te deixes abater,
terás contigo a alegria,
POIS O QUE IMPORTA É VENCER.
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NOITES EM CLARO

MOTE:
Eu passo as noites em claro,
não consigo mais dormir!
Ter noites de sono é raro
depois que te vi partir!
Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS)


GLOSA:

EU PASSO AS NOITES EM CLARO,
o sol nasce, em explosão
de luz, mas eu nem reparo
pois é negra a solidão!

Rolo sozinha no leito,
NÃO CONSIGO MAIS DORMIR!
Soluça forte o meu peito,
meu coração quer fugir!

Boas lembranças, separo,
para ficarem comigo !
TER NOITES DE SONO É RARO;
tal angústia é o meu castigo!

Um lago só de tristezas
vejo do pranto surgir,
nessas noites sem belezas,
DEPOIS QUE TE VI PARTIR!
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SAUDADE

MOTE:
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou!
Edgard Barcelos Cerqueira
(Rio de Janeiro/RJ, 1913 - ????)


GLOSA:
SAUDADE – LEMBRANÇA TRISTE

de uma alegria sentida,
que, agora, não mais existe,
deixando cinza essa vida!

A lembrança que hoje tenho
DE TUDO QUE JÁ NÃO SOU...
fica em mim e então desenho
como a minha alma ficou!

Meu pranto a jorrar assiste,
afogar-se como gente...
PASSADO QUE TANTO INSISTE
em permanecer presente!

Continuo o meu caminho
com o resto que sobrou...
Teima o passado daninho
EM FINGIR QUE NÃO PASSOU!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Alcântara Machado (A Piedosa Teresa)

(Dona Teresa Ferreira)

Atmosfera de cauda de procissão. Bodum.

Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-são-josé. Estrelas prateadas no céu de papel de seda.

Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverências. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pé no chão de terra socada. Pan-pan~pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente.

Para bater palmas. Pla-pla-pla-plá! Pla-plá Plá! Pla-pla-pla-plá! Pla-plá! Param de repente.

Para os violeiros cantarem, viola no queixo:

É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo

- Senta ai mesmo no chão, Benedito. Tu não é mió que os outro, diabo!

É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo

E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! Ôaiiiih! Um guincho!

O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para a direita. Reverências para a esquerda. Ninguém pisca. Volta para seu lugar.

- Entra, Seu Casimiro!

O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de brim. Inclina-se diante de São Gonçalo. Acocora-se.

O acompanhamento das violas feito de três compassos não cansa. Nos cantos sombreados os assistentes têm rosário nas mãos. No centro da sala de cinco por quatro a lâmpada de azeite dança também.

Minha boca está cantando
Meu coração lhe adorando

Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta é um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados.

- Não vê que meu defunto Seu Vieira tá enterrado já há dois ano... Faiz mesmo dois ano agora no Natar.

Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan!

- A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem podê entrá no céu.

Pla-pla-pla-plá! Pla-plá!

- Eu antão quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixá ele entrá.

Vou mandá fazê um barquinho
Da raiz do alecrim

O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é uma paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI.

Pra embarcá meu São Gonçalo
Do promá pro seu jardim

Desafinação sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala é o melhor dançarino da quadrilha religiosa.

São Gonçalo é um bom santo
Por livrá seu pai da forca

Só a casinha de barro alumiando a escuridão.

- Não vê que o Crispim também pegou uma doença danada. Não havia jeito de sará. O coitado quis até se enforcá num pé de bananeira!

Dona Teresa é viúva. Viúva de um português. Mas nem oito dias passados Dona Teresa se ajuntou com o Crispim. A filhinha dela ri enleada e é namorada de um polaco. Na Fazenda Santa Maria está sozinha pela sua boniteza. Dona Teresa cuida da alma do morto e do corpo do vivo. No carnaval deste ano organizou um cordão. Cordão dos Filhos da Cruz. Dona Teresa é pecadora mas tem sua religião. Todos gostam dela em toda a extensão da Estrada da Cachoeira. Dona Teresa é jeitosa, consegue tudo e ainda por cima é pagodeira.

Artá de São Gouçalo
Artá de nossa oração

- Nóis antão fizemo uma promessa que se Crispim sarasse nóis fazia esta festinha.

Foi promessa que sarando
Será seu precuradô

As violas têm um som, um som só. É proibido fumar dentro da sala. Chega gente.

São Gonçalo tava longe
De longe já tá bem perto

Um a um curvam-se diante do altar. O violeiro de olhos apertados está de sobretudo. Negros de pé no chão.

Nóis tamo memo emprestado neste mundo.
Cantando cruzam a salinha quente.

Amor castiga a gente. Olhe a Rosa que não quis casar com o sobrinho do poceiro. Não houve conselho de mãe, não houve ameaça de pai nem nada.

Fincou o pé. E fugiu com o italiano casado carregado de filhos. Um até de mama. Não tinham parada. Agora, agora está ai judiada com o ventre redondo. São Gonçalo tenha dó da coitada.

Abençoada seja a união
Que enfeitô este oratório

O preto de pala dá um tropicão engraçado. E a mulher de azul-celeste dá urna risada sem respeito. O bico do peito escapuliu da boca do filho.

Da dança de São Gonçalo
Ninguém deve caçoá

Ôooôh Aaaah! ôaiiiih!

São Gonçalo é vingativo
Ele pode castigá

Silêncio na assistência descalça. As bandeirinhas de todas as cores riscam um x em cima dos dançarinos. Atrás da casa tem cachaça do Corisco.

- Depois é a veiz das môça. Quem quisé pode pegá o santo e dançá com ele encostado no lugá doente.

Onde chega os pecadô
Ajoeai pedi perdão

O estouro dos foguetes ronca no vale fundo. Anda um ventinho frio cercando a casa.

São Gonçalo tá sentado
Com sua fita na cintura

O caboclo louro puxa a faca e esgaravata o dedão do pé.

- São seis reza de hora e meia cada mais ou meno. Pro santo ficá satisfeito.

Lá no céu será enfeitado
Pla mão de Nossa Sinhora

Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pla-pla-pla-plá! Plaplá! Plá! Pla-pla-pla-plá!

Oratório tão bonito
Cuma luz a alumiá

De cima do montão de lenha a gente vê São Paulo deitada lá embaixo com os olhos de gato espiando a Serra da Cantareira. Nosso céu tem mais estrelas.

São Gonçalo foi em Roma
Visitá Nosso Sinhô

Dona Teresa parece uma pata.

- Só acaba aminhã, sim sinhô! Vai até o meio-dia, sim sinhô! E acaba tudo ajoeiado, sim sinhô!

Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! ôaôaiiiih! Primeiro é órgão. Cantochão. Depois carro de boi. No finzinho então.

Sinhora de Deus convelso
Padre Filho Espírito Santo

Quem guincha é mesmo o caipira de bigodes exagerados.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Rachel de Queiroz (A Decoração da fama)

A NOSSA casa de fazenda é extremamente rústica, e rústico o que a cerca o pátio coberto de mata-pasto, a cerca fechando o terreiro, o curral, a casa de farinha, as casas dos moradores. Tudo como era o uso por cá, cem anos atrás.

E então as pessoas vêm de visita conhecer a casa da escritora e sentem-se decepcionadíssimas, chegam a ficar ofendidas. Acham que seria de esperar que alguém, cujo nome sai com frequência nas folhas, alguém que muita gente conhece, devesse ter um cenário que realçasse e não que diminuísse!

Certa senhora, mulher de um figurão, deu volta no seu caminho para passar por aqui; imagino o que ela viu, coitada: era a seca do ano passado, nós estávamos longe, a casa fechada, o açude com a água lá embaixo, o mato crestado, o curral vazio. Ficou danada:

— “Então é aqui que mora a R. Q.? E eu perdendo o meu precioso tempo em passar por cá!”

Acho que ela esperava encontrar a fazenda “Empyrio”...

Hoje em dia, creio que é influência americana, o êxito das pessoas só se mede em termos de riqueza. Os astros de rádio e TV se sacrificam para exibir casa com jardim na Barra da Tijuca, ou cobertura palacial no Leblon; sabem como é importante a imagem: — o público só acreditará no sucesso deles se os vir dentro da indispensável moldura de luxo.

A nós, escritores, não nos exigem tanto, mas, dirão eles, tudo tem um limite! Acabou-se o tempo em que o poeta escrevia suas obras-primas numa mansarda. Agora não mais se admite mansarda: agora é só mansão!

É, nesta sociedade chamada ‘afluente’’, só se respeita mesmo o abastado; nem se concebe que alguém escolha a modéstia, se lhe for possível ostentar ou aparentar riqueza. É até um desaforo, ofende as pessoas — como sucedeu com a minha dama visitante.

Recordo um exemplo muito significativo:

Certa vez, Manuel Bandeira jantou lá em casa e, à saída, eu o acompanhei à rua, onde ele ia apanhar condução. Não passava um táxi, nem havia nenhum no ponto; nisso veio um ônibus que lhe passaria à porta, e Manuel o tomou.

Duas mulheres paradas à esquina nos olhavam; e quando, depois de embarcar Manuel, eu passei por elas, ouvi que uma dizia:

— Garanto a você que aquele é mesmo o Manuel Bandeira!

Mas a outra a encarou furiosa e falou alto, sem se importar que eu ouvisse.

— Manuel Bandeira, de ônibus! DE ÔNIBUS, imagine! Você é mesmo é louca!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Trovas de Escritores de Ontem I

ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Como, Jesus, me esqueceste
nesta horrível soledade!
Aos trinta e três tu morreste...
E eu já tenho a tua idade!
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Nasci em leito de rosas
e morro em leito de espinhos...
Ó mães, que sois caridosas,
velai por vossos filhinhos!
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O cinamomo floresce
em frente do teu postigo:
cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo.
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O coqueiro, todo em palmas,
beija o cinamomo em flor...
Imagem das nossas almas,
unidas no mesmo amor!
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Quando em teus olhos reluz
o carinho de uma prece,
se é dia, o sol tem mais luz,
se é noite, logo amanhece.
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Quando os teus olhos, Senhora,
repousam no meu olhar,
fica mais formosa a aurora,
mais formoso fica o luar.
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Tradições, quimeras, lendas...
Ninguém crê na Eterna Voz!
Que vale, Senhor, que estendas
o teu carinho até nós?
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Tristeza das tardes ermas,
das noites brancas de luar!
As almas que estão enfermas
no teu seio vão chorar...
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Tu não sabes porque a lua
é triste e nunca sorri...
Mas que ingenuidade a tua!
— Os poetas moram ali.
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ÁLVARES DE    AZEVEDO


Acorda, minha donzela!
Foi-se a lua — eis a manhã.
E nos céus da primavera
a aurora é tua irmã!
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Acorda, minha donzela,
soltemos da infância o véu..,
Se nós morrermos num beijo,
acordaremos no céu!
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Amemos! Quero de amor
viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
que desmaia de paixão!
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Amo a voz da tempestade
porque agita o coração,
e o espírito inflamado
abre as asas no trovão!
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Dá-me um beijo — abre teus olhos,
por entre esse úmido véu:
Se na terra és minha amante,
és a minha alma no céu!
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Descansar nesses teus braços
fora angélica ventura;
Fora morrer — nos teus lábios,
aspirar alma tão pura!
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É doce amar como os anjos
da ventura no himeneu;
minha noiva ou minha amante,
vem dormir no peito meu!
= = = = = = = = = = =

Entre os suspiros do vento,
da noite ao mole frescor,
quero viver um momento,
morrer contigo de amor!
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Quero viver de esperança,
quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
quero sonhar e dormir!...
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Tenho músicas ardentes,
ais do meu amor insano,
que palpitam mais dormentes
do que os sons do teu piano!
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Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva, 1967.

Contos e Lendas do Paraná 2 (Tibagi: O drama da Fazenda Fortaleza)


Prestem muita atenção no que agora vou contar
Na Fazenda Fortaleza tem história de arrepiar
Uma escrava coitadinha que era alegre e bonitinha
Teve os dentes arrancados pela mulher do Tenente
Que pegou o alicate e sem ter pingo de dó
Deixou a pobre menina desdentada a chorar
Logo os dentes arrancados ela entregou de presente

II
E as histórias da fazenda não param por aí
Conta-se que José Felix tinha grande fortuna
Ela estava escondida em algum canto da fazenda
E até hoje se procura esconderijo da fortuna
Os escravos que sabiam não voltaram pra contar
Pois o tal do José Felix tratou de os matar
E hoje muitos que almejam a fortuna desfrutar
Fazem consultas do além para os dobrões encontrar

III
Mais de cem anos passados da morte de José Felix
Um médium invoca o espírito do rico senhor
Mas o morto reclamava que abusavam dele
E gritava “afinal quem manda aqui?”
Falando de sua vida, suas lutas e chorou
E em meio da emoção esta frase ele soltou
“Aqui vi dias felizes e aqui cheguei a chorar
Vocês estão todos loucos isto aqui não vale nada”

IV
Para terminar a história meu amigo não se iluda
Essa busca é inútil nem do amém se descobriu
O esconderijo da fortuna continua um mistério
Viva sua vida em paz e não mais corra atrás
Pois o ouro enterrado do senhor da Fortaleza
É um tesouro maldito quanto escravo ele matou
O que vale nesta vida é em Tibagi viver em paz
Da Fazenda Fortaleza a fortuna não quero mais.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Jaqueline Machado (Doe vida)

Independente dos conflitos internos e externos que insistem em nos perturbar, tudo o que desejamos é viver bem. Mesmo quem geme de dor, pedindo para morrer, em verdade, quer ser feliz, sentir-se vivo, pleno em seus propósitos. A vida é o que há de mais precioso no mundo. E não só a nossa vida importa, a de nossos familiares, amigos, conhecidos e, até mesmo a vida de quem não conhecemos importa muito!

Portanto, vamos deixar de lado o egoísmo, o comodismo e agir em favor do bem geral. Vamos a partir de hoje, olhar mais por nós e pelo nosso próximo. Seja solidário e cumpra com o seu dever. Como? Doando uma parte de você para salvar alguém. Estamos no mundo para fazer o amor fluir.

Uma das formas mais belas de salvar vidas é, sem dúvidas, doando parte do que temos de melhor, amor para quem está carente, tempo para prestar serviços voluntários ou quem sabe, o nosso próprio sangue. Pesquisas revelam que doações sanguíneas caíram muito nesse período de pandemia. Mas não podemos esquecer que os problemas de saúde existentes anteriormente a pandemia, continuam aí, pessoas permanecem sofrendo a todo instante por complicações no coração, diabetes, câncer, acidentes, etc...

E por falar em acidentes, diariamente, muitos acidentados, clamam por doadores. Em tais tragédias, pessoas se ferem, perdem sangue e, podem até morrer por causa da ausência de doadores. Por isso peço: seja um Doador de Sangue - Oriente-se a respeito - Adote esta ideia - Torne-se um Elo salvador - Participe dessa Corrente.

Uma doação pode salvar quatro vidas.
PENSE NISSO! PENSE COM AMOR!

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Arquivo Spina 38: Ana Meireles

 

Humberto de Campos (O Prestígio do "Rouge")

Quando a gripe devorava, no Rio de janeiro, diariamente, centenas de vidas, a porta do Céu fazia, recordar, lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa sensacional. Homens, mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou marcada para uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio das suas boas obras ou do seu martírio.

- Antônio Esmeraldino Gomes de Albuquerque! - chamava, em voz alta, o santo do dia, lendo uma lista de nomes.

- Presente! - respondia o invocado, encaminhando-se para a porta.

São Pedro conferia os sinais da pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o coro festivo dos anjos.

Uma tarde, porém, chegou à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia. Pálida, com os lábios alvos como a cera dos círios que deixara na terra, a sua fisionomia denunciava cansaço, tristeza, sofrimento. De repente, chamaram um nome:

- D. Luíza Gonçalves Pedreira.

- Presente! - confirmou a nobre defunta, pondo, já um dos pés no batente sagrado.

Uma grande mão desceu, porém, sobre o seu ombro, detendo-a.

- É a senhora? - indagou, severo, o chaveiro.

- Sou eu mesma, meu santo!

- Mas a outra, a que vivia na terra, tinha, segundo os sinais que me fornecem, as faces muito coradas.

A dama não respondeu.

- E os lábios muito vermelhos.

Novo silêncio.

- E os cabelos muito negros.

Silêncio ainda.

- E umas olheiras muito pronunciadas.

Nesse ponto, antes que a enumeração tomasse um caráter comprometedor, D. Luisinha teve uma ideia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da mortalha, arrancou de lá um lápis de "rouge", um pedaço de bistre, um canudo de cosmético, penteou-se, empoou-se, endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.

- Pronto! - exclamou a dama.

São Pedro mirou-a, sorrindo. E, escancarando a porta, convidou:

- Ahn! É a senhora mesmo... Entre!

E ela entrou.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925. (Conto LXXXVIII)

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 10 –

A infância é como se fosse,
a saudade que se foi
na voz da canção mais doce,
de um velho carro de boi!
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Ao sonhar e, em meus refolhos,
em meio a tantos sozinhos;
apago a luz dos meus olhos
e acendo a luz de outros ninhos!
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Ao ver o velho e a criança,
eu vi entre os dois, no entanto,
que era a fonte da esperança
junto da fonte do pranto!
= = = = = = = = = = =

Canta pardal... Que em teu trino,
há notas tão divinais
que, as musas do meu destino,
não cantaram, nunca mais!
= = = = = = = = = = =

Dando busca em meus papéis,
saudades de meus avós...
Reencontrei velhos cordéis
breviários de todos nós!
= = = = = = = = = = =

Duas letras do teu nome,
no travesseiro e na fronha:
Um "d", da dor que consome
e um "a", do amor de quem sonha!
= = = = = = = = = = =

Eis que a sombra me revela,
na tarde em que me consome
que, o rubro das cores dela,
pintou de rubro o meu nome!
= = = = = = = = = = =

Entre antigos pergaminhos
e os mais velhos alfarrábios,
há marcas pelos caminhos
dos pés descalços dos sábios!
= = = = = = = = = = =

Foram-se as verdes quimeras,
como as brumas outonais!...
E, entre as velhas primaveras,
elas não voltam jamais!
= = = = = = = = = = =

Fui rever nosso passado;
nas cinzas dos sonhos vãos...
Senti no fogo apagado,
as cinzas de nossas mãos!
= = = = = = = = = = =

Majestade e majestosa;
nela, é que a trova, se espelha.
Abrace e beije essa rosa,
é a nossa rosa vermelha!
= = = = = = = = = = =

Meu teto fica mais lindo,
rico de amor e de afeto,
com a chuva fina caindo,
batendo papo, no teto!
= = = = = = = = = = =

Não temas à dor injusta,
que a injustiça não reluz;
melhor a derrota justa
que a glória injusta e sem luz!
= = = = = = = = = = =

Na vida que se refaz,
minha alma, com destemor,
por ser mendiga da paz
pede uma esmola de amor!
= = = = = = = = = = =

No céu, sozinha, vagando
há uma nuvem que passeia,
qual lenço branco enxugando
os olhos da lua cheia!
= = = = = = = = = = =

No pranto das horas calmas,
sussurros no meu portão.
São os cochichos das almas
no ouvido da solidão!
= = = = = = = = = = =

No sertão, que a seca vai
ressecando os sonhos meus;
a gota d'água que cai
é uma lágrima de Deus!
= = = = = = = = = = =

Num pequeno gesto nobre,
e entre os trapos, ao meu lado,
vi na humildade de um pobre,
o orgulho sendo humilhado!
= = = = = = = = = = =

O cego de tudo ria;
que exemplo, o cego me deu!...
E, aquele cego de guia,
via bem mais do que eu!
= = = = = = = = = = =

O poeta em seus delírios,
se compara aos pirilampos
que, de manhã beija os lírios
e à noite, brilha nos campos!
= = = = = = = = = = =

O silêncio, de alma nua,
nas noites velhas, sem sono;
faz campana em minha rua
à espreita de alguém sem dono!
= = = = = = = = = = =

O Sol se põe sem alarde;
mas deixa sem perceber
lágrimas, no fim da tarde,
nas nuvens do entardecer!
= = = = = = = = = = =

Para o poema, que se espera
no entardecer do sertão;
o sol da tarde, se esmera,
pintando o céu de ilusão!
= = = = = = = = = = =

Passa o tempo, a idade avança,
vão-se os dias mais risonhos;
resta um resto de esperança
entre os cacos dos meus sonhos!
= = = = = = = = = = =

Quando a noite em seus fracassos,
conta os sonhos que se vão;
cada sonho, estende os braços
nos varais da solidão!
= = = = = = = = = = =

Se acaso, uma dor murmura
em teu peito, e aumenta o tédio...
Mesmo para um mal sem cura,
o amor, é um santo remédio!
= = = = = = = = = = =

Torna-se a dor mais aguda,
e a tristeza se mantém…
Quando uma lágrima muda,
prende-se aos olhos de alguém!
= = = = = = = = = = =

Trouxe os sonhos de criança
e, o meu velho bandolim!...
Quantos sonhos de esperança,
todos grisalhos no fim!
= = = = = = = = = = =

Velho mar, de alma vazia,
por que é que, tu não te acalmas?
Reclamas da companhia
do choro triste das almas?!
= = = = = = = = = = =

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Sabino (A Ironia do Destino)

— Vamos tomar um refresco.

Nunca fui muito assíduo às aulas e mal me lembrava dele. Mas já me pegava pelo braço e me arrastava com intimidade a uma confeitaria, depois de apresentar-me à esposa:

— Ele só aparecia nas provas. Hoje é escritor.

Era uma criatura de franja, olhos negros e esquivos, rosto de menina. Na confeitaria não deu uma palavra, enquanto o marido continuava relembrando um tempo que significava tão pouco para mim:

— E aquela prova de Constitucional?

Eu tomava rapidamente o refresco, para abreviar o encontro.

— Você não sabia que eu tinha me casado?

De repente eu me lembrava: seu namoro com uma colega nossa durante todo o curso, ficara noivo no último ano. Houvera até uma celebração entre os alunos... Mas não era aquela.

— Se você soubesse por que desmanchei o primeiro noivado...

E provou o refresco, para ganhar tempo. A mulher com rosto de menina mexeu-se na cadeira, constrangida. Ele percebeu, fez um gesto, disse que não tinha importância: eu era escritor, sabia compreender essas coisas.

E passou a contar por que desmanchara o noivado. O que a outra significava para ele: namorados desde meninos. Os pais haviam resolvido celebrar de uma vez o noivado, antes que as coisas se agravassem. O casamento seria assim que terminassem o curso. Ela com enxoval preparado, ele já com emprego garantido, o apartamento alugado, a mobília comprada. Foi então que alguém lhe sugeriu a ideia maldita: exame pré-nupcial. O médico o chamou a um canto para dizer que quanto ao mais tudo normal com ele, mas jamais teria filhos.

Olhei discretamente a mulher. Ela se distraía com o canudo do refresco, alheia a tudo.

— Eu disse que quanto ao mais tudo normal ...

Endireitou-se na cadeira para contar que procurou a noiva e deu-lhe a notícia. Que se havia de fazer? Podiam futuramente adotar uma criança. Essas coisas... Achou esquisita a reação dela: ficou séria, pediu prazo para pensar. E findo o prazo, veio dizer que sendo assim, sentia muito, mas preferia não se casar com ele.

— Fiquei arrasado. Nunca mais quis ouvir falar dela. Dela nem de mulher nenhuma. Pouco tempo depois soube que ela havia se casado com outro. Sete anos se passaram, veja a ironia do destino: sete anos se passaram e até hoje ela não teve um só filho. Ao passo que eu...

A mulher o interrompeu pela primeira vez:

— Meu bem, acho que está na hora de irmos.

— Ao passo que eu... — continuou ele, sem ouvir — ... um dia conheci esta aqui.

Contou como havia conhecido aquela ali. E como ficou de novo apaixonado, depois de sete anos! Mas dessa vez tinha sido mais prudente:

— Não procurei médico nenhum, não contei nada sobre o exame. Não foi isso mesmo, meu bem?

— Vamos, não é? — pediu ela, um pouco ansiosa: — Já está ficando tarde.

— E veja você como são esses médicos — prosseguiu ele. — Vivi sozinho esses anos todos, desiludido de mulher e de tudo mais só por causa do vigarista de um médico. Jamais teria filhos! Pois muito bem: me casei assim mesmo, não tem nem dois anos, e ela já está esperando um filho meu.

Sorriu, vitorioso, Voltando-se para a mulher. Senti que ela me dava um rápido olhar de expectativa. Como eu, imperturbável, não dissesse nada, abaixou modestamente os olhos.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

domingo, 11 de julho de 2021

Adega de Versos 33: José Antonio Jacob

 


Stanislaw Ponte Preta (O Milagre)

Vi aquela pequena cidade as romarias começaram quando correu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um simples boato, mas logo o povo — sofredor, coitadinho, e pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene chateação — passa a torcer para que o boato se transforme numa realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.

Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem bom, tranquilo, amigo da gente simples, que fora em vida um misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos necessitados e até advogado dos pobres, nas suas eternas questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.

Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara.

Era um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre (porque em histórias assim a cama da personagem chama-se catre), uma cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já que a prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.

E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.

— Milagre!!! — quiseram todos.

E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto à janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do pedido — conta-se — a senhora encontrou o filho
brincando, fagueiro.

— Milagre!!! — repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!" reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram as romarias.

Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caíam de joelhos, pedindo.

Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do milagre e ficou, apenas, mais folclore na lembrança do povo.

O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era, e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre.

Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O português, então, berrou para um pretinho que arrumava latas de goiabada numa prateleira:

— Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!

Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

— E por quê? — perguntamos.

— Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do padre.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXIV

ANDAVAM DE NOITE

 
Andavam de noite aos segredos
Só porque era noite...
Os bosques enchiam de medos
Quem quer que se afoite...

Diziam [?] palavras que pesam [?]
À sombra de alguém...
Ninguém os conhece, e passam...
Não eram ninguém...

Fica só na aragem e na ânsia
Saudade a fingir...
Foi como se fora distância...
Eu torno a dormir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A NOVELA INACABADA
 
A novela inacabada,
Que o meu sonho completou,
Não era de rei ou fada
Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia
Dizia eu quem não era...
A primavera floria
Sem que houvesse primavera.

Lenda do sonho que vivo,
Perdida por a salvar...
Mas quem me arrancou o livro
Que eu quis ter sem acabar?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A PÁLIDA LUZ DA MANHÃ DE INVERNO
 
A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão  
Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,  
Ao meu coração.
O que tem que ser  
Será, quer eu queira que seja ou que não.  

No rumor do cais, no bulício do rio  
Na rua a acordar  
Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,  
Para o meu 'sperar.  
O que tem que não ser  
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

AQUI ESTÁ-SE SOSSEGADO
 
Aqui está-se sossegado,
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-a ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.
Fecho os olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear.
Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho —
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola.

Contos e Lendas do Mundo (Os saltadores)

Certa vez o pulgo, o gafanhoto e um boneco de mola quiseram verificar quem pulava mais alto, e convidaram o mundo e mais alguém para ver o espetáculo. Quando os três estavam juntos na mesma sala, dava para ver que eram mesmo muito bons de pulo.

- Darei a minha filha a quem saltar mais alto! - declarou o rei - seria uma pena eles pularem por nada!

O pulgo apresentou-se primeiro. Tinha maneiras elegantes e cumprimentou a todos os presentes, pois tinha sangue nobre e estava acostumado a misturar-se à sociedade humana, e isto queria dizer muita coisa.

Em seguida veio o gafanhoto, que era bem mais robusto, mas parecia muito elegante em seu uniforme verde. Além disso, ele disse que vinha de uma família muito antiga das terras do Egito, e era tido em alta conta lá também. Tanto o pulgo como o gafanhoto elogiaram muito seus próprios talentos, e declararam que se julgavam adequados para se casar com uma princesa.

Quanto ao boneco de mola, não disse nada, mas as pessoas acharam que isso significava que ele estava pensando ainda mais alto. Quando o cão da corte foi cheirá-lo, disse que tinha certeza de que o boneco de mola era de boa família.

Então chegou a hora de começar a pular. O pulgo pulou tão alto, que ninguém conseguiu vê-lo. Disseram que ele não tinha pulado nada, e que estava trapaceando.

O gafanhoto só pulou a metade da altura do pulgo, mas pulou bem no rosto do rei, e o rei disse que aquilo era péssimo.

O boneco de mola ficou parado quieto por algum tempo, pensando no assunto, até as pessoas acharem que ele não era capaz de pular.

- Espero que não esteja se sentindo mal! - disse o cão da corte, cheirando-o de novo.

Vupt!

O boneco de mola deu um pulinho e pousou no colo da princesa, que estava sentada num tamborete dourado baixinho. Então o rei disse:

- O pulo mais alto foi de quem pulou até minha filha, pois não é possível chegar mais alto. Mas foi preciso ter inteligência para descobrir isso, e o boneco de mola é esperto e tem miolo. Assim, ele conquistou a princesa.

- Mas eu pulei mais alto! - disse o pulgo - ora, dá no mesmo. Ela que fique com o boneco de mola, eu não ligo! Pulei mais alto, mas parece que neste mundo só as aparências importam.

Assim, o pulgo foi para o estrangeiro servindo na ativa, e dizem que lá foi morto. O gafanhoto foi sentar-se no fosso para pensar nas coisas do mundo e concordou:

"Só as aparências importam!"

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