quinta-feira, 2 de junho de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Demônios eternos)

Nota do blog: Devido a falha técnica, quando da publicação deste texto no dia 30 de maio, faltou o parágrafo inicial. Por esta razão, está sendo publicado novamente na íntegra.
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QUANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível, que me pelava todo, da Cuca, que vovô João, dizia, a toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada, e me levaria dentro de um saco preto para um lugar distante. E eu fazia muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou de separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisas erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado para cortar cana na vendinha, onde comercializava pastéis, quibes, coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava em cena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente, numa espécie de cinto que comia, sem dó nem piedade, por cima do lombo.

Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar uma porção de salgados (já preparados na véspera) para, às sete horas em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao público e vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.

Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu também estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velho Airão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas, entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada para pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria da garotada ficava do lado de fora comendo, sentada na calçada, porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora que fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido o jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoado de moedinhas. Depois, separavam cada uma pelo seu valor correspondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó. Só, então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam.

Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante que havia no quarto do casal, e vovó Marta seguia para a cozinha para preparar o jantar. Geralmente, a última refeição se constituía numa suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes. Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias de manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se fazia presente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre por perto, prestes a dar o bote e me matar. O Orlando, um amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, se movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e, praticamente, todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo, costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava, com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho “danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudasse direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da notícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado, filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma outra coleguinha de classe (que sentava ao meu lado direito) não acontecia diferente. Aninha morava com uma tia feia e chata, de cabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinha mãe, nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da via férrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio, em que viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros, que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destino ao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simples menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado de choque.

Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto. Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos. Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um carrega dentro de si. Serão imortais esses mal nascidos, alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados, que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichos de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços, invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estão dentro de nossos corações.

A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta, nem leva ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos mais…

Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras mitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes davam vida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medo bobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido, inoculado, como uma vacina de horrores, pronto para entrar em cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi da Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos um receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma doença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca, definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja, no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela que ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá, desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele, preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz apagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto.

Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho do nosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem de dentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo o infinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios têm a vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas narinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas se movimentam, segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, a amedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois, tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão e estarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão e estarão presentes em nosso caminho, como aquela gigantesca árvore do mal, fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobre nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais vida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce do centro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões. Precisamos exorcizar esses demônios, banalizar a barbárie, de maneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida, apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossa memória.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 24


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SIMPLICIDADE
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A cidadania poderia ser melhor alcançada com a simplicidade. Ao se contentar com o essencial, não estaríamos sujeitos à ambição e à busca alucinada por bens materiais e, portanto, a riqueza poderia ser melhor distribuída.

Quem neste mundo se empenha
em buscar serenidade,
toda a vaidade desdenha
e abraça a simplicidade.
Oscar Baptista Guerra
São João Nepomuceno, 1873 – 1951, Cambuci/RJ

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Numa existência vazia,
quanta gente convencida
despreza a sabedoria
das coisas simples da vida!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

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Por nada tenho ambição,
com riqueza não me iludo;
pela só contemplação
eu tenho a posse de tudo.
Bento Rabelo
Natal/RN, 1915 – 1995

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Nunca desejei riqueza,
nem poderio e nem glória,
pois prefiro a singeleza
desta vida transitória.
Adolfo Figueiredo
RN

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Não sigas o mundo louco,
ouve o bom senso que diz:
– Quem se contenta com pouco
nunca se sente infeliz!
Ivo dos Santos Castro
Alberto Torres/RJ, 1917 – ???, Rio de Janeiro/RJ

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Minha camisa velhinha,
lavada à flor de melão,
tira-me o peso da vida,
faz-me leve o coração.
Adelmar Tavares
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

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Pela ambição desmedida
fiz da vida uma procela,
até descobrir que a vida,
quanto mais simples, mais bela!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

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Nem sempre muita riqueza
a felicidade traz,
pois é feliz, com certeza,
quem vive um mundo de paz.
Murilo Bartolomeu
PE

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TERCEIRA IDADE
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Os velhos morrem porque já não são amados [Montherlant).

Uma das formas de se apreender se um povo exercita de fato a cidadania, é verificando como este povo trata o velho, que se convencionou chamar de terceira idade. Pensamos que este tema ainda é tratado com ambiguidade. Por um lado, há os que não têm o menor respeito pelo idoso, por outro, há os que exageram, tratando os velhos de uma maneira piegas.

Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam... Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade (Paulo Mendes Campos].


Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a si mesmo governar!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Para o trovador, a velhice é constantemente associada à saudade:

Sempre que a praça atravesso
curvada ao peso da idade,
por onde passo eu tropeço
num canteiro de saudade...
Ercy Maria Marques
Bauru/SP

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Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela.
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Os anos trazem cansaços,
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice até o fim.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Outras vezes, a velhice é também associada à tristeza e morte dos sonhos:

Vai findando a mocidade
e, nos meus dias tristonhos,
em surdina, uma saudade
chora a morte dos meus sonhos...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

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Depois de muitas andanças,
cansado de tanta lida,
hoje vivo de lembranças,
juntando os cacos da vida...
Raimundo Andrade de Paiva
Sobral/CE

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Mas os sonhos não envelhecem, ou não deveriam envelhecer. Por mais que se tornem difíceis de serem realizados, não devemos abandoná-los.

Um sonho de juventude
não morre nunca, eu suspeito,
pois me assusta a inquietude
que ainda carrego ao peito.
Gonzaga da Silva
Natal/RN

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Beirando a terceira idade
me aproximando do fim...
Vejo em grande atividade
a criança que há em mim.
Francisco Macedo
Natal/RN, 1948 – 2012

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Não importa a face externa
do corpo que envelheceu:
juventude é sempre eterna
no sonho que não morreu.
Antônio Bispo dos Santos
Niterói/RJ

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Se a mocidade se afasta,
não julgue a vida tristonha.
– A ação do tempo não gasta
o coração de quem ama!
Aparício Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Em outros momentos, a velhice é vista com mais naturalidade e até com certo entusiasmo:

Minhas netas, sempre rindo,
são meu alegre evangelho:
- musgo verde revestindo,
de esperança, um muro velho!
Lilinha Fernandes
Rio de Janeiro/RJ, 1891 – 1981

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Nas sociedades em que a preocupação com a produção de bens materiais não é um fim em si mesmo, o velho é visto como um ser que acumulou experiência e sabedoria e, portanto, tratado com mais respeito e dignidade. É o que está expresso nestas sábias trovas:

Quanto mais a idade aumenta
e a ilusão se distancia,
a gente mais se alimenta
do pão da sabedoria.
Ercy Maria Marques
Bauru/SP

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O tempo tira a beleza,
rouba da gente a vaidade,
o tempo dá-nos firmeza,
sabedoria e bondade.
Nair Starling
Santa Luzia/MG, 1909 – 2004


Velhice não é demência
nem é vã filosofia;
é fonte de experiência
que nos traz sabedoria.
Hélio Pedro Souza
Natal/RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: O gaiteiro de Franchville)

Franchville é uma pequena cidade estacionada no tempo, como todos devem saber, na costa de Solent. Apesar de ela ser tranquila atualmente, já foi muito barulhenta, e quem fazia barulho eram os ratos. O lugar estava infestado de ratos que não valia a pena morar ali. Não existia celeiro, milho empilhado, armazém ou armário de cozinha onde eles não conseguissem entrar. Faziam furos nos queijos e esvaziavam barris de açúcar. Nem hidromel, nem cerveja nos tonéis escapavam da fome deles. Faziam buraco no alto do tonel, um rato enfiava o rabo comprido, e quando tirava o rabo dali ia passando para os amigos e primos, cada um chupando seu gole.

Tudo estaria bem se só estivessem procurando por comida, mas eles guinchavam, chiavam e corriam tanto que as pessoas não conseguiam ouvir o som da própria voz ou dormir à noite, sem falar que as mães precisavam ficar alertas e vigiar os berços dos bebês ou arriscar ver uma ratazana horrorosa correndo sobre o rosto do pobrezinho e fazendo sabe-se lá que maldades.

Mas será que a boa gente da cidade não tinha gatos? Sim, tinham, e a luta era grande, mas no final como os ratos eram em maior número, os bichanos sempre perdiam a briga.

Veneno? Claro que envenenaram muitos ratos, mas a praga continuou.

Exterminadores de ratos?! Não havia nenhum de John O´Groats a Land´s End que não tivesse tentado a sorte. Mas fosse lá o que fizessem, gatos, veneno, cães ou ratoeiras, cada vez parecia haver mais ratos, e a cada dia um novo rato movia o rabo e erguia os bigodes.

O prefeito e o conselho da cidade já não aguentavam mais. Certo dia, quando estavam todos sentados na prefeitura tentando pensar sobre o problema e maldizendo sua sorte, quem entrou ali foi o delegado.

– Por favor, honrados senhores, – disse ele – chegou à cidade um sujeito muito esquisito. Não sei bem o que fazer com ele.

– Mande-o entrar! – ordenou o prefeito, e assim foi feito.

Era mesmo um sujeito esquisito. Não havia cor do arco-íris que faltasse nas suas roupas, era
alto e magro com olhar penetrante.

– Sou um bom gaiteiro. – começou a dizer. – Digam-me, quanto estão dispostos a me pagar para que eu os livre dos ratos em Franchville?

Eles tinham muito medo dos ratos, mas não queriam gastar seu dinheiro e tentaram pechinchar. Mas o gaiteiro não era de ouvir bobagens, e no final prometeram pagar-lhe cinquenta libras (que era muito dinheiro naquela época) assim que não houvesse mais nenhum rato guinchando ou correndo por Franchville.

O gaiteiro saiu da prefeitura e levou a gaita aos lábios, soltando um som agudo que ecoou nas ruas e casas. E a cada nota que saía da gaita, a visão era estranha, porque de cada buraco iam saindo os ratos aos tropeções. Não havia rato velho ou jovem demais, muito alto ou muito baixo que não se aglomerasse junto ao gaiteiro, erguendo os pés e o nariz, e o seguisse pelas ruas.

O gaiteiro se preocupava com os ratinhos que mal sabiam andar, por isso parava de vez em quando e fazia mais um floreio na gaita só para lhes dar tempo de acompanhar os mais velhos e mais fortes na multidão.

Subiu a Rua de Prata e desceu a Rua de Ouro, e ao final dessa rua havia o porto, com a grande costa de Solent adiante. E, enquanto ele caminhava devagar e com seriedade, as pessoas da cidade chegavam às portas e janelas, mandando bênçãos.

Muitos ratos se aproximavam dele. Ao chegar às margens da água, o gaiteiro entrou em um barco e, enquanto avançava nas águas profundas sem parar de tocar a gaita, todos os ratos o
seguiram, salpicando água a torto e a direito, movendo os rabos com satisfação. O gaiteiro continuava a tocar sua gaita sem parar até que a maré desceu, e cada um dos ratos foi se afundando mais e mais no lodo pegajoso do porto e por fim todos morreram.

A maré voltou a subir, o gaiteiro foi para terra firme, e nenhum rato o seguiu. A essa altura os moradores da cidade deveriam estar atirando seus chapéus para o alto, gritando urras, parando para olhar os buracos vazios dos ratos e fazendo os sinos da igreja repicar, mas quando o gaiteiro pisou em terra firme e já não se ouvia nenhum guincho, o prefeito, o conselho e quase todos os moradores da cidade começaram a resmungar e balançar a cabeça.

Isso porque o baú com o dinheiro da cidade infelizmente estava vazio, e de onde tirariam as cinquenta libras prometidas? Além do mais, fora um trabalho bem simples! O gaiteiro só precisara entrar em um barco e tocar sua gaita! Se alguém tivesse pensado nisso, o próprio prefeito poderia ter feito o serviço.

Então ele continuou a resmungar e por fim disse:

– Venha, meu bom homem. Percebe como somos pobres. Não podemos pagar-lhe cinquenta libras. Você pode aceitar apenas vinte? No final das contas será um bom pagamento pelo pouco trabalho que teve.

– Negociei meu trabalho por cinquenta libras, – disse o gaiteiro secamente – e se fosse você pagaria logo. Sabe que posso tocar muitos tons diferentes na gaita como muita gente descobriu a duras penas.

– Está nos ameaçando, seu vagabundo? – gritou o prefeito ao mesmo tempo em que piscava um olho para o conselho.

– Os ratos morreram todos afogados. – continuou em voz mais baixa.

– Pode nos ameaçar quanto quiser, meu bom homem.

E assim dizendo, deu-lhe as costas.

– Muito bem! – disse o gaiteiro, sorrindo tranquilamente. E colocou os lábios na gaita de novo, mas dessa vez não saíram dela sons agudos como se fossem guinchos, arranhões e dentes roendo; dessa vez eram sons alegres e harmoniosos, como risadas felizes em meio a brincadeiras, e enquanto ele caminhava pelas ruas, os mais velhos debochavam, mas todas as crianças foram saindo das salas de aula, dos quartos de brinquedo, dos berçários e locais de trabalho com enorme alegria e entusiasmo, gritando e seguindo o chamado do gaiteiro.

Dançando, rindo de mãos dadas e com pés que tropeçavam, a alegre multidão subiu a Rua de Ouro e desceu a Rua de Prata, e além ficava a floresta verdejante e fresca cheia de antigos carvalhos e faias por todos os lados. Por entre os carvalhos era possível ver de relance o  casaco multicolorido do gaiteiro e ouvir as risadas das crianças que iam desaparecendo aos poucos enquanto adentravam na mata onde o homem estranho caminhava, e elas o seguiam.

O tempo todo os mais velhos observavam e esperavam. Agora já não zombavam. E, por mais que observassem e esperassem, nunca mais puseram os olhos no gaiteiro com seu paletó multicolorido, o coração deles não se alegrara com a canção e a dança das crianças que iam desaparecendo em meio aos velhos carvalhos da floresta para nunca mais voltar.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Isabel Furini (27) A Rosa e o Vaga-Lume

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 62, 63 e 64


A BAILARINA

A profissão de bufarinheiro está regulamentada; contudo, ninguém mais a exerce, por falta de bufarinhas. Passaram a vender sorvetes e sucos de fruta, e são conhecidos como ambulantes.

Conheci o último bufarinheiro de verdade, e comprei dele um espelhinho que tinha no lado oposto uma bailarina nua. Que mulher! Sorria para mim como prometendo coisas, mas eu era pequeno, e não sabia que coisas fossem. Perturbava-me.

Um dia quebrei o espelho, mas a bailarina ficou intacta. Só que não sorria mais para mim. Era um cromo como outro qualquer. Procurei o bufarinheiro, que não estava mais na cidade, e provavelmente teria mudado de profissão. Até hoje não sei qual era o mágico: se o bufarinheiro, se o espelho.
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A BELEZA TOTAL

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.

A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.

O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito.

Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.
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ABOTOADURAS

O maior fabricante de abotoaduras de punho fechou a indústria depois de convencer-se de que é infinitamente reduzido o número de camisas de manga comprida, à disposição da humanidade. E, mais, que os exemplares deste gênero, ainda existentes, são providos de botões, dispensando abotoaduras.

— Trabalhei a vida inteira no setor — lastimava-se — e almejava legar a meus filhos a tradição das abotoaduras de punho, como requinte terminal de uma camisa digna desse nome. Os fatos ergueram-se contra mim. Não posso mais produzir abotoaduras de punho para camisas sem punho ou de punho abastardado por míseros botões de plástico.

Concluiu que é o fim da civilização, e ia enforcar-se numa camisa esporte, estampada, quando esta, movida por vento súbito, saiu pelos ares, qual bandeira solta. E era tão bonito o esvoaçar do pano bigarreado, tão graciosas as evoluções, que o homem resolveu desistir da morte e aplicar sua fortuna em uma indústria colossal de camisas de manga curta.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 17

nomes a menos


Nome mais nome igual a nome,
uns nomes menos, uns nomes mais.
Menos é mais ou menos,
nem todos os nomes são iguais.

Uma coisa é a coisa, par ou ímpar,
outra coisa é o nome, par e par,
retrato da coisa quando límpida,
coisa que as coisas deixam ao passar.

Nome de bicho, nome de mês, nome de estrela,
nome dos meus amores, nomes animais,
a soma de todos os nomes,
nunca vai dar uma coisa, nunca mais.

Cidades passam. Só os nomes vão ficar.
Que coisa dói dentro do nome
que não tem nome que conte
nem coisa pra se contar?
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proema

Não há verso,
tudo é prosa,
passos de luz
num espelho,
verso, ilusão
de ótica,
verde,
o sinal vermelho.

Coisa
feita de brisa,
de mágoa
e de calmaria,
dentro
de um tal poema,
qual poesia
pousaria?
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Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
Só existe um segredo.
Tudo está na cara.
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o que quer dizer

para Haroldo de Campos,
translator maximus


O que quer dizer, diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
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um metro de grito
(máquinas líquidas)


Leiam-se índices,
mil olhos de lince,
entre meus filmes,
leonardos da vinci.
Abri-vos, arcas, arquivos,
súmulas de equívocos,
fechados,
para que servem os livros?

Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.
Líquidas lâminas,
linhas paralelas,
quanto me dão
por minhas ideias?
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sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é meu forte,
meu amor?
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Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.

Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego.
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volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?
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o hóspede despercebido

Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
&de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Versejando 113

 

Milton S. Souza (A menina da praia)

Ela nasceu em Tramandaí e passou a infância na beira da praia, ajudando o pai nas pescarias, no inverno, e trabalhando com a mãe no quiosque de venda de lanches, quando a praia ficava lotada no verão. Gostava de estudar e carregava dentro do seu coração o sonho de ser médica. Também adorava dançar. E foi exatamente nos bailes caseiros que ela começou a notar que os coleguinhas preferiam as outras meninas. Ela sempre ficava “esquentando o banco” por um bom tempo. O apelido de “gordinha” serviu para deixar a garota irritada. Mas serviu também para uma decisão: precisava emagrecer de qualquer maneira, pois, aos 13 anos de idade, até parecia uma daquelas baleias que apareciam no meio do mar. Precisava mudar.

Uma coleguinha receitou um “chá milagroso”, mistura de diversas ervas conhecidas com uma outra erva, mais forte, chamada cofrei. Ficou por quase um ano tomando aquele chá (escondido dos pais, é claro). E começou mesmo a emagrecer rapidamente. Mas junto com a magreza surgiu uma fraqueza nas pernas. Em pouco tempo já nem conseguia caminhar. Apavorados, sem dinheiro e sem cobertura de um plano de saúde, os pais procuraram socorro em Porto Alegre. Após perambularem por vários hospitais, serem atendidos por diversos médicos, os dois escutaram o diagnóstico terrível: a filha estava com câncer na espinha. Não voltaria a caminhar e teria pouco tempo de vida...

O casal sentiu o chão se abrir. Ainda ficaram por vários dias em Porto Alegre, chegando a dormir em bancos de praça por causa da falta de dinheiro. Quando os guardas deixavam, dormiam no saguão do hospital. Passavam fome e frio. Mas estavam pertinho da menina, que continuava emagrecendo. Na primeira melhora, com alta hospitalar, levaram a filha de volta para Tramandaí. Se não existia possibilidade de cura, ficariam mais perto dos vizinhos e dos amigos. Na praia a vida era mais calma e os “pilas” não sumiam tão rapidamente do bolso. E a garota começou a se adaptar, numa cadeira de rodas, iniciando uma nova vida. Seus olhos castanhos brilhavam quando falava em melhorar, voltar a estudar e cursar Medicina. Sonhava também participar dos bailes na vizinhança. Mas as suas pernas não queriam mais dançar...

Por cerca de um ano, enfrentou aquela agonia. Era muito teimosa: não gostava de ficar parada em casa. Muitas vezes, quando a mãe retornava do trabalho, ela estava lavando a casa ou arrumando a cozinha, se arrastando pelo chão. Fazia de tudo para não se entregar para a doença (não sabia que estava condenada). E até começou a planejar a sua festa de 15 anos. Queria um vestido branco, bem comprido, que tapasse a cadeira de rodas. Queria que o pai entrasse com ela no salão, mesmo sabendo que não poderia dançar a valsa. Queria todos os seus amigos em volta, para cantar com eles, como fazia nas festinhas da escola...

Poucos dias antes do seu aniversário, foi ficando cada vez mais fraca. Quase nem saia da cama. Pouco conversava. Num sábado de sol, porém, acordou disposta e pediu para dar uma volta na beira da praia. Com a cadeira de rodas empurrada pela mãe, deixou o verde do mar invadir os seus olhos castanhos. Ficou por longo tempo olhando os navios atracados na plataforma da Petrobras. Espantou as gaivotas, atirando punhados de areia. Antes de voltar, deixou as ondas beijarem os seus pés, fazendo  as rodas da cadeira atolar na areia. Voltou para casa muito cansada, mas com um sorriso nos lábios. Foi a sua despedida do mundo que tanto adorava. Na hora de dormir, pediu para a colocarem o vestido branco (comprado para os 15 anos) em cima da cama. Depois de dar um “boa noite” para toda a família, descansou. Sua vida terminou antes do sol nascer novamente. Morreu dormindo, sem um gemido, sem uma queixa. Partiu para o infinito poucos dias antes da sua festa. Seus pais entenderam aquela partida: certamente ela resolvera realizar no céu o seu baile de debutante…

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 7 =

ATITUDE

Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DESVENTURA

Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, — e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.
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EPIGRAMA N. 5

Gosto de gota d'água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar — límpido e exato.

E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 6

Nestas pedras caiu, certa noite, uma lágrima.
O vento que a secou deve estar voando noutros países,
o luar que a estremeceu tem olhos brancos de cegueira,
— esteve sobre ela, mas não viu seu esplendor.

Só, com a morte do tempo, os pensamento que a choraram
verão, junto ao universo, como foram infelizes,
que, uma lágrima foi, naquela noite a vida inteira,
— tudo quanto era dar, — a tudo que era opor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 7

A tua raça de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar...

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

GRILO

Máquina de ouro a rodar na sombra,
serra de cristal a serrar estrelas...

Caem pedaços de sono, entre os silêncios,
em grandes flores, mornas e dóceis,
com o peso e a cor de vagas borboletas.

Rostos de espuma, nomes de cinza,
— a vida sobe nos caules da noite, pouco a pouco.

Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio,
cortando o broto das palavras rente à boca...

Desmanchando nos dedos arquiteturas que iam parando,
e livros de imagens que o vento compunha, ilógicamente.

Ah! que é dos ramos de estrelas finamente desprendidas,
pela sonora lâmina que estás vibrando sempre, sempre?

Que é das noites extensas, de ares mansos de alegrias,
sem ruas, sem habitantes, sem solidão, sem pensamento?

Que é das mãos esperando o amanhecer definitivo
e caídas também na torrente do tempo?
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LUAR

Face do muro tão plana,
com o sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite toda é um zumbido
e um florir de vagalumes.

A boca morre de sede
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
na seda crespa dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.
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PAUSA

Agora é como depois de um enterro.
Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo,
junto à parede lisa, de onde brota um sono vazio.

A noite desmancha o pobre jogo das variedades.
Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas,
e mergulha silêncio na última veia da esperança.

Deixa tocar esse grilo invisível
— mercúrio tremendo na palma da sombra —
deixa-o tocar a sua música, suficiente
para cortar todo arabesco da memória...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VALSA

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
— Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

A. A. de Assis (Adélia, a poeta)

Há pessoas que são mais do que pessoas. Sei lá se é bem isso que estou querendo dizer, mas é mais ou menos isso. Há pessoas que são um pouco mais. Há pessoas que são Adélia Prado. Adiante falarei dela. Primeiro preciso falar da televisão.

Sou grato demais ao cara boa-cabeça que inventou a televisão. Tem gente que bota culpa nela pelo destramelamento dos costumes. Pode ser até que em parte sim. De qualquer modo, acho que ela faz mais bem do que mal. Pelo menos para os velhinhos como eu. Vejo nela um telejornal por dia para acompanhar a história do mundo; vejo todo dia a missa das 18h na TV Aparecida; futebol só vejo quando tem jogo da seleção brasileira. Mas o que curto mesmo é ver filmes na Netflix e na Prime e navegar no Youtube.

Faz pouco tempo tirei uma semana para ver/ouvir uma série de entrevistas da poeta Adélia Prado. Coisa gostosa é escutar conversa de gente inteligente e simpática. Adélia é assim. A gente escuta, escuta e não se cansa de escutar, ainda mais com aquele tão bonito sorriso dela.

A querida escritora nasceu e mora mineira há 88 anos em Divinópolis. Sempre igualzinha. Mudam as modas, mudam os modismos, Adélia continua Adélia. Nada muda nela, que bom que não muda. A mesma mulher independente, alegremente religiosa, corajosa, sábia. Só sai de Minas para de vez em quando ir a algum lugar derramar poesia. Sempre de ônibus, porque tem medo de avião. Sempre adelissimamente simples, espontânea, doce.

Última grande poeta brasileira conhecida, lida, ouvida e aplaudida em todo o Brasil. Não dá para falar aqui de toda a sua lindíssima obra. Dá, porém, para recordar alguns dos seus muitos deliciosos versos. Prepare o seu coração. Escute Adélia:

“Eu quero amar feinho. / Amor feinho é bom porque não fica velho”. “A poesia me pega com a sua roda dentada. / Eu corro ela corre mais, / eu grito ela grita mais, / me pega na ponta do pé / e vem até na cabeça”. “Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão / e soco. Macero ele”.

“O reino do céu é semelhante / a um homem como você, José”. “Falo em latim pra requintar meu gosto”. “O que a memória ama / fica eterno. Te amo com a memória imperecível”. “Te alinho junto das coisas que falam / uma coisa só: Deus é amor”. “Não sou feia que não possa casar”. “Eu te amo exatamente como amo / o que acontece quando escuto oboé”. “Meu coração vai desdobrando / os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos”. “Deus é mais belo que eu. / E não é jovem. / Isto sim, é consolo”. “Nem me adiantou envelhecer, / partes de mim continuam adolescentes”.

“Minha tristeza não tem pedigree, / já minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô”. “Minha mãe achava estudo / a coisa mais fina do mundo”. “Súbito é bom ter um corpo pra rir / e sacudir a cabeça. / A vida é mais tempo alegre do que triste”. “Bem-aventurado o que pressentiu quando a manhã começou”. “Quem entender a palavra entende Deus, / cujo Filho é o Verbo”, “Janela, palavra linda. / Janela é o bater das asas da borboleta amarela”. 

Há, sim, pessoas que são um pouco mais. Há pessoas que são Adélia Prado.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-5-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Daniel Maurício (Poética) 31

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLIV

ABRAÇO VAZIO


MOTE:
Quando em meus braços te aperto
numa ternura sem fim,
eu sinto que mesmo perto
tu ficas longe de mim.
Clênio Borges
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Quando em meus braços te aperto
bate forte o coração
e inteira me desconcerto
com uma enorme emoção!

Terminam os meus cansaços
numa ternura sem fim,
na doçura dos abraços
que em sonhos, tu dás a mim!

Mas sendo meu sonho incerto,
ser feliz eu não consigo,
eu sinto que mesmo perto
tu jamais estás comigo!

Eu sinto angústia, até quando
estamos juntos, enfim...
É que, mesmo me abraçando,
tu ficas longe de mim.
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METADE?

MOTE:
Metade da minha vida
eu passei sozinha, assim,
numa ilusão já perdida
sem você perto de mim.

Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS, ?? – 2020)


GLOSA:
Metade da minha vida
pensei em você, meu bem...
N’outra metade vivida,
pensei em você, também!

Pensando, sempre pensando
eu passei, sozinha, assim,
você, de mim, se afastando
aproximou o meu fim!

Minha lágrima caída
formou um lago de dor,
numa ilusão já perdida
afogando o meu amor!

Não sei pra que respirar,
para que viver, enfim?
A vida vai terminar
sem você perto de mim.
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PARA ALGUÉM QUE PARTIU...

MOTE:
Deixando a terra em saudade,
lá no céu vive a bonança
de morar na eternidade
tão viva em nossa lembrança!

Elisabeth Souza Cruz
(Nova Friburgo/RJ)


GLOSA:
Deixando a terra em saudade,
para sempre, tu partiste
e, sem ti, felicidade
aqui, já não mais existe!

Mas a tua alma tão pura,
lá no céu vive a bonança
pois deixaste só ternura
para nós, em tua herança!

Acredito de verdade
que estás feliz, que estás bem,
de morar na eternidade
onde, um dia, irei também!

Só o teu corpo está ausente,
vivemos dessa esperança,
pois continuas presente
tão viva em nossa lembrança!
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LÁGRIMAS...

MOTE:
Lágrimas... triste verdade
de uma ausência permanente,
é o recesso da saudade
que fica dentro da gente.

Fernando Câncio Araújo
(Fortaleza/CE, 1922 – 2013)


GLOSA:
Lágrimas... triste verdade
são as vertentes da dor
onde vemos a maldade
escondendo até o amor!

Sentimos forte presença
de uma ausência permanente,
e nossa esperança e crença
fogem repentinamente!

Enfrento a realidade
no pranto que jorra triste,
é o recesso da saudade,
de um algo que, ainda, existe!

É uma lembrança real,
é o passado, no presente,
é uma marca sem igual
que fica dentro da gente.
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VOCÊ.. NO MEU SONHO!...

MOTE:
Cada vez que tenho um sonho,
formas, luzes, cores, som,
é você que lá eu ponho,
para o sonho ficar bom!

Fernando Vasconcelos
(Diamantina/MG, 1937 – 2010, Ponta Grossa)


GLOSA:
Cada vez que tenho um sonho,
sentindo você comigo,
eu fico feliz, risonho...
esse sonho é o meu amigo!

Me faço, então, diretor:
formas, luzes, cores, som.
Ponho um enredo de amor,
e música de bom tom!

Sonhando, não sou tristonho,
no palco do coração.
é você que lá eu ponho
e vibra minha emoção!

Realizo o meu desejo.
Saber ser feliz é um dom.
Eu lhe dou um grande beijo
para o sonho ficar bom!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Nilto Maciel (A Grande Ave de Rapina)

Quase morri de espanto e medo, quando vi pela primeira vez a grande ave. Instintivamente deitei-me. Talvez por isso ela não deva ter visto a minha pessoa. Pousou lentamente, recolhendo as asas. Vagou a vista pela plantação e, a passos largos, dirigiu-se ao espantalho. Horrorizei-me: com duas bicadas violentas estraçalhou o boneco.

Parece um gavião, não fosse este tão pequeno. As pernas são de dois metros a mais. O bico figura tesoura de cortar galhos. Quando estende as asas lembra um avião.

Quase todo dia vejo o pássaro gigante. Surge de inopino (de repente), em voo rasante, comete uma rapina e foge. Às vezes pousa no lombo de uma vaca. Espeta as garras na barriga da presa e levanta vôo. No céu aquele gavião imenso e uma rês em gemidos de morte. Os animais menores ele os devora no próprio local da captura. Pousa, dá uma bicada na cabeça da vítima, e, em pouco tempo, não resta mais nada a mastigar.

Impotente, fui à cidade em busca de socorro. Alguns riram de mim. Aguentei calado as zombarias. Afinal, eles são autoridade. São aves de rapina, eu sou bichinho do mato. Disseram não existir ave maior no mundo que a águia. E em nossos ares não voam tais predadores. Sou um mentiroso. Nunca me haviam chamado assim. E, se eu não parasse de aterrorizar o povo com notícias falsas, um calabouço me esperava. Outros vieram em meu socorro: eu certamente me fizera louco. Nada de interrogatório e tortura. Bastava me internarem num manicômio. Com camisa-de-força, choque elétrico e outros tratamentos eu logo esqueceria as aves de rapina. Um senhor muito risonho sugeriu amarrarem-me pés e mãos e conduzirem-me ao campo onde tem aparecido o pássaro. Outro senhor me prometeu uns chifres. Assim eu semelharia um boi. Falaram ainda em espantalho. E gargalhavam: “com duas bicadas o gavião acaba esse espantalho”.

Depois da viagem nunca mais falei da grande ave de rapina. Se encontro um vaqueiro, fujo com medo de conversa. Vaca sumida, vaca comida.

E fico aqui sozinho, dia após dia, tremido de medo, miudinho, olho no gavião, que volta e meia retorna, espeta aqui e bica ali, devorador e insaciável.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (A escrava branca)

A história de uma certa escrava branca chamada Isaura, que se passava nos primeiros anos do reinado de Dom Pedro II, numa fazenda de café do Rio de Janeiro, foi belamente desenvolvida pelo autor Bernardo Guimarães. E tem muitíssimo a ver com os acontecimentos dos dias atuais.

Isaura era filha da jovem mucama Juliana, com o bondoso feitor de pele branca, Miguel. Juliana era a serviçal favorita da matriarca Ester, dona da casa grande da fazenda. Mesmo assim, Juliana sentia – se incomodada com as insinuantes abordagens do Comendador Almeida, marido da generosa Ester. O patrão, vendo que suas investidas eram em vão, mandou a moça para a senzala. Lá, Juliana foi profundamente castigada, mas mesmo vivendo em meio a um verdadeiro inferno, ela se encanta por Miguel, com quem tem um romance e engravida. Muito maltratada, a jovem morreu após o parto. A matriarca adota a menina, que nasce com a pele alva feito neve, e que se chamaria Isaura. Ela cresce tendo direito à educação e, no futuro, torna-se uma jovem requintada, doce e dona do coração mais íntegro e puro que as pessoas daquela casa conheciam.

Isaura era feliz e sentia-se protegida naquele ambiente. Até que, Leôncio, o filho da matriarca, retorna da Europa, onde vivia. O rapaz, ao conhecê-la, instantaneamente apaixona-se por ela. E logo passa a assediá-la. A moça resiste às investidas. Até mesmo porque o jovem era noivo de uma jovem chamada Malvina. Contudo, a sua protetora vem a adoecer e morre. Com a morte de sua senhora, ela fica sob a proteção do carrasco Leôncio. E seguindo o destino que cada dia assemelhava–se mais com o destino da sua mãe, continua a resistir aos assédios. Com isso, vai para a senzala e lá passa por constantes castigos. Mas seu pai, que não trabalhava mais na fazenda, ressurge e foge com ela para Recife. Lá, Isaura conhece Álvaro, um rapaz rico, abolicionista, e que menospreza a escravidão. Quando sua vida parecia melhorar, Isaura, a convite de Álvaro, vai a uma festa da alta sociedade, onde é descoberta por um ambicioso estudante chamado Martinho, que em troca de alguns benefícios, a denuncia para o seu senhor que a captura. O tempo passa. Leôncio descobre–se falido. E sabe quem compra todos os seus bens, incluindo a própria escrava Isaura? Álvaro.

Desesperado, Leôncio se mata com um tiro na cabeça. E, enfim, a escrava branca é libertada e pode ser feliz sem nada a temer.

Essa famosa história, escrita em linguagem romântica, lançada no século XIX, nos remete a quadros atuais, onde a condição do ser feminino, em muitos lares e áreas de trabalho, ainda sofre com o assédio e com a violência de homens, que ainda insistem em se apropriarem das mulheres da maneira indescritível.

Em pleno 2022, ao abrirmos os jornais, ligar a TV ou acessar a internet, logo nos deparamos com essa triste realidade.  Deve-se lançar um olhar mais carinhoso às escravas Isauras do século XXI. Pois é inadmissível pensar que justamente por não temerem passar por severas punições, tantos homens permaneçam insultando, assediando e até mesmo, matando mulheres.  

Onde a justiça não se cumpre, irremediavelmente a violência entra e se farta!

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 29 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 560

 

Moacyr Scliar (Cara de velho, cabeça de velho)

Rugas podem ser decisivas para comprar cigarro no Japão.  Máquinas que vendem cigarros no Japão podem começar  em breve a contar as rugas para verificar se quem está  comprando tem idade suficiente para fumar. A idade legal  para fumantes no Japão é de 20 anos. (19/05/2008)  


Quando ficou sabendo que as máquinas de vender cigarros  seriam equipadas com um dispositivo capaz de avaliar a idade do  comprador pelas rugas do rosto, ele ficou irritado e preocupado.  Irritado porque, apesar de ter apenas treze anos, era um fumante  inveterado, consumindo pelo menos uma carteira por dia, e não  admitia que alguém tentasse impedi-lo de fazer isso. Várias vezes  a mãe, viúva (o pai falecera quando ele era ainda criança), pedira  que o filho deixasse de fumar; sempre respondia com impropérios. “Sou dono do meu nariz”, gritava, “pouco me importa se o  fumo faz mal ou não, eu quero fumar e vou continuar fumando.”  

O problema, portanto, não era a mãe. O problema era a máquina.  Com a mãe podia gritar, a mãe podia ser intimidada; a máquina não. Se a implacável lente mirando seu rosto transmitisse para o computador uma imagem incompatível com o rosto de um adulto, ele  estaria simplesmente ferrado. A máquina era o lugar onde sempre comprava, porque em outros lugares jamais lhe venderiam o produto.

Só havia uma coisa a fazer: arranjar cara de velho (velho,  para ele, era qualquer pessoa com mais de 20 anos). Mas de que  maneira? Menino inteligente, várias possibilidades lhe ocorreram. A primeira: usar, diante da máquina, uma máscara de velho,  dessas que são vendidas em lojas de disfarces. Mas isso seria um  problema. Se, diante da máquina, colocasse a máscara, não faltaria  alguém para denunciar a fraude aos responsáveis, o que seria no  mínimo um aborrecimento.  

Outra possibilidade: maquiagem. Tinha uma vizinha que era  maquiadora profissional, poderia lhe pedir que o transformasse  num ancião, ou pelo menos num adulto capaz de comprar cigarros. Mas isso exigiria que a procurasse periodicamente. A moça  acabaria cansando dessa história. Além disso, a ideia de andar  maquiado pela rua não lhe agradava.  

Só restava uma alternativa: ficar mesmo com cara de velho. Sabia  que rugas aparecem com o tempo, com as preocupações, com o sofrimento. Mas poderia acelerar esse processo, mediante esforço pessoal.  E foi o que fez: todos os dias ficava na frente do espelho, franzindo a  testa, contraindo a face, tudo para produzir rugas. E rugas começaram mesmo a surgir, ou pelo menos assim ele o achava.  Mas ao mesmo tempo uma estranha mudança começou a ocorrer. Ele agora se sentia velho, olhava o mundo com olhos de velho,  e de velho rabugento. Já não podia suportar garotos barulhentos, garotos desaforados, garotos que não respeitavam pessoas de idade.  

A todo instante repreendia seus amigos, para espanto deles - e para  espanto dele próprio. Meu Deus, pensava, não é que as rugas estão  mesmo me envelhecendo?  

Só havia uma solução: parar de fumar. Foi o que fez. As rugas  sumiram. Uma tossezinha seca que o incomodava sumiu. Não briga mais com a mãe. E aguarda com tranquilidade o dia em que se  transformará num velho, enrugado, mas contente consigo próprio.

Fonte:
Moacyr Scliar. Histórias que os jornais não contam. Ed. Agir, 2012.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 6 –

LACRIMOSA

"No meu leito, durante a noite, busquei
aquele que meu coração ama."
(Ct. 3,1)


A tu'alma é triste
Qual funéreo sino,
Que traça o destino,
Soluçando a sorte;
Ao cair da tarde,
Terríveis anseios
Oprimem teus seios
Com odor de morte.

A tu'alma é triste
Como a mãe ferida,
Que já vê perdida
Sua filha amada;
Ao cair da tarde,
Transpassada em dores,
Carente de amores,
Padece calada.

A tu'alma é triste
Tal como o violino,
Que gagueja um hino
Com falhada voz;
Ao cair da tarde,
Só restam escolhos,
Que teus tristes olhos
Avistam a sós.

A tu'alma é triste
Tal como o condor,
Que o vil caçador
Expulsou do ninho;
Ao cair da tarde,
A tu'alma cora,
Consternada chora
Por um só carinho.

A tu'alma é triste
Como o bandolim,
Que chorou por mim
Triste despedida;
Ao cair da tarde,
São os teus cabelos
Do triste salgueiro
Ramagem caída.

A tu'alma é triste
Como o som da gaita,
E com balalaica
Acentuou seu choro;
Ao cair da tarde,
Faça uma oração,
Que os anjos irão
Abençoar-te em coro.
= = = = = = = = = = =

NO SALÃO
"...Mostra-me o teu rosto!"
(Ct. 2.14)


Neste dia negro
De febril pavor,
Meu desejo único
É te consolar.
Eu preciso muito
Aliviar tua dor
E as feridas d'alma
Com amor curar.

Vai o longo dia,
Vai mui lentamente,
Meu anseio é ver
Meu amor passar.
Um olhar apenas,
Um sorrir somente
Far-me-ão só bem,
Para me acalmar.

Sem estrela alguma
- Noite tenebrosa! -
Barulhenta festa
Naquele salão...
Eu quero o perfume
Da mais bela rosa,
Que podia estar
Entre a multidão.

Entro no recinto.
E, de quando em quando,
Atento palmilho
O extenso salão...
Meus olhos sedentos
Veem cada canto,
Mas, em cada canto,
Só há ilusão.

Não vejo mais nada...
Que posso fazer?!
Naquele local
Há imenso calor.
Eu fico frustrado,
Sem poder te ver,
Só resta-me o lenço
Pra enxugar meu suor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SAUDADE DE OUTRORA

"Ó tu, que habitas nos jardins,
faze-me ouvir a tua voz."
(Ct. 8.13)


Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sabia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava meu mundo,
Que o mundo retinha,
Bem dentro de si.

E o mundo que eu tinha
No seio do mundo,
O mundo não via
Que glória era a minha.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava o amor
- Da alma o perfume,
Que é alma da flor.

Do mundo que eu via,
Tão perto de mim,
Nem mesmo eu sabia
O tudo que eu tinha.

Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sentia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Samuel da Costa (Ópera mundi [de tudo que te é avaro])


''Dê-me tua mão, diz que tem saudade…
Esqueça nosso árduo passado, vaidade
Meu corpo febril, aqueça, junto ao teu
Sem receio, diz que me deseja, sempre.''
Fabiane Braga Lima


            Lenny passa em revista seus equipamentos de trabalho disposto na pequena bancada de trabalho! Dispostas, de forma aleatória, as sofisticadas e importadas máquinas fotográficas, os últimos modelos lançados no mercado mundial, passando por ultrapassadas máquinas analógicas, indo parar em caros celulares e tablets. Mas tem a voz, a orientação do pai: — Filmes, tudo analógicos, nada destas bobagens eletrônicas atuais!

— Madalena! Traga o seu kit! E a tua mochila! — A dona da casa ainda estava olhando profundamente para o que me melhor tem a disposição. Evitou olhar para a assistente de produção como quem admite uma derrota.

— Madame? — Atônita a assistente olha para o chão sem saber o que fazer ou dizer.

— A tua câmera bag infeliz, aquela que te dei de presente não sei quando! — Lenny se vira e joga a chave do carro para a assistente. — Deixa a tua motoneta aqui e vá pegar tudo o que tens em casa, os tripés não precisa vou usar os meus. Vai mulher!

 O grito bem alto, da dona da casa fez estremecer a pequena assistente de produção, que girou nos calcanhares e se dirigiu até a garagem.

Lenny sabia que a assistente tem o que ela precisa naquela hora, a velha tecnologia mecânica, as velhas polaroides, rolleiflexes de uma série de câmaras analógicas difíceis de encontrar no mercado. Colecionadora da velha tecnologia, Madalena é a cara da corrente foto-arte, ela é ligada umbilicalmente de corpo e alma ao movimento do romantismo.

A jovem sonhadora Madalena, não se encaixa mesmo na atual avalanche tecnológica digital. Lenny sabe do amor platônico da assistente por ela, muitas das vezes Lenny pensou em levar a assistente para a cama de fato. Mas Lenny não mistura trabalho com vida pessoal, em definitivos as aventuras de Lenny eram fora de casa e fora da vida profissional.

Lenny olha para o relógio na parede, não demoraria muito para as duas modelos chegarem e fotógrafa vai vestíbulo, vai até as araras separar os figurinos que pretendia usar. A fotógrafa pensa na mãe se um dia visse a filha adorada trabalhando de camareira, a requintada senhora desmaiaria, Lenny sorri para si mesmo, pois nunca esteve tão feliz e realizada. Ela não se sentiu assim nem mesmo quando chutou o ex-namorado, um jornalista bonachão, alto e gordo, um verdadeiro imbecil, um típico membro da classe média interiorano praiana.

A fotógrafa pensa em ligar para a assistente, para apressá-la, mas prefere ir até a varanda e acender um cigarro, os cigarros mentolados de Madalena que cedo ela pegou da balsa da assistente. Lenny não se reconhecia, sempre fora livre é verdade, mas um alguém que sussurra ditames ao seu ouvido, um som quase inaudível. Ela sabia que não é um sentimento de não pertencimento é outra coisa, algo bem mais profundo. E, de repente, vem uma lembrança da infância, não muito distante, uma lembrança adormecida que ressuscitou com a visita inesperada do senhor Otto Blumenthau. Estavam de férias no litoral, a família toda, estavam na orla da praia, que tinha sofrido um engordamento recentemente, no rádio local tinha um locutor histérico que discursava com o engordamento das areias da praia.

O pai de Lenny estava sentado em uma cadeira alugada para turistas, ele estava com o rádio no colo. O velho Otto Blumenthau estava lendo um jornal de circulação nacional e o político tinha um charuto caribenho apagado na boca. No céu azul, as aves marinhas grasnavam no alto, a mãe de Lenny ao lado do pai, ambos bem vestidos com suas roupas de veraneio, o casal abrigado por um guarda-sol. E os irmão de Lenny? A fotógrafa não sabia onde estavam, só ouvia eles que gritavam um para o outro: — A bola! A bola chuta a bola! — Os dois riram alto. Também tinha o vento ameno, o barulho do vento e as ondas que quebravam na orla da praia.

E tinha o abismo gelado, ela caminhou até a beira do abismo álgido, Lenny saiu de perto dos pais e caminhou e caminhou, e veio os gritos da mãe e Lenny voltou os olhos para trás. O pai baixou o jornal, ele estava com o charuto aceso na boca naquela hora e olhou e ergueu o jornal de volta na altura dos olhos. A mãe de Lenny correu até ela e abraçou, a ergueu do chão e voltaram para onde estavam instalados. A mãe de Lenny estava chorando, parou para gritar com a babá e para os seguranças. Depois se voltou para o marido

— Vamos embora, Otto! Chega Otto! Vamos voltar pra casa!!! — Os gritos histéricos da esposa do político chamaram a atenção de todos e todas.

– Cala boca, mulher, é só um sphyrna, e ainda é só um filhote!

— Um o quê?

— Um pequeno tubarão-martelo, um filhote ainda! Eu já vi maiores e mais vorazes lá no congresso! — O pai falou com o charuto na boca enquanto a mulher chorava com a pequena Lenny nos braços. A babá sorria, os seguranças sorriam e o chefe de gabinete de Otto sorriu seco.

De volta ao tempo presente, a fotógrafa tem a fotografia do tal tubarão-martelo em toda a parte. A lembrança do pai dando a máquina fotográfica descartável, que o pai de Lenny tinha comprado de um ambulante na calçada da praia. O pai somente deu a máquina fotográfica como quem dá brinquedo para uma criança. Otto simplesmente deu para a pequena Lenny, sem dizer nada, e lá foi a pequena Lenny tirar uma fotografia do sphyrna na beira mar. E foi assim que Lenny produziu a primeira fotografia, e foi assim que o pai de Lenny, mandou revelar a fotografia e orgulhoso mandou ampliar e emoldurar a fotografia da filha.

O barulho da porta da garagem se abrindo trouxe Lenny para a realidade em que vivia. E a fotógrafa tragou a fumaça do cigarro e foi ver se Madalena cumpriu a tarefa que ela tinha dado ou escutaria uma avalanche de desculpas vagas e tolas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Como funcionam os jornais (parte 2, final)

O que são os editoriais?


Um jornal publica sua visão sobre fatos atuais, regionais ou nacionais, nos editoriais. O editorial é um texto opinativo não assinado que reflete a posição coletiva da redação do jornal. Editoriais não são notícias, são opiniões baseadas em fatos. Por exemplo, os editoriais podem criticar a atuação de autoridades públicas como o prefeito, o chefe de polícia ou o conselho de alunos local. Por outro lado, podem também elogiar pessoas por suas contribuições. Seja qual for o assunto, jornais esperam que seus editoriais aumentem o nível de discussão na comunidade.

Isto ocorre de duas maneiras que são familiares para o leitor: as cartas ao editor e os artigos de opinião editorial. As cartas estão sempre entre as seções mais lidas de um jornal, pois é onde os leitores expressam suas opiniões. Alguns jornais limitam as cartas a um determinado número de palavras, 150, 250 ou até 300, enquanto outros publicam cartas de qualquer tamanho. Os artigos de opinião editorial normalmente têm de 850 a 1000 palavras. Os jornais têm espaço para cartas ao editor e artigos de opinião editorial, disponíveis como parte de sua contribuição para o diálogo.

O editorial é dirigido por um redator que não trabalha no setor de notícias. Pessoas que trabalham em jornais chamam isso de "separação entre a Igreja e o Estado", o que significa que há uma linha que não deve ser ultrapassada entre notícia e opinião. Se esta linha for ultrapassada, o jornal perde seu bem mais valioso, a credibilidade. Por este motivo, os redatores em alguns grandes jornais são subordinados ao editor, que é o diretor-geral da empresa, e não ao editor-executivo. Em outros jornais ele pode ser. Seja qual for o modelo da organização, nenhum dos dois departamentos pode dizer um ao outro o que publicar no jornal.

Por que os anúncios são importantes para um jornal?
 
O número de páginas é determinado não pelo setor de notícias, mas pela quantidade de anúncios vendidos para aquele dia (além de cadernos especiais devido a grandes eventos ou acontecimentos, como tornados, campeonatos esportivos ou outros acontecimentos importantes). O setor correspondente coloca os anúncios nas páginas antes de serem liberados para o setor de notícias. Como regra, os jornais imprimem um pouco mais de anúncios do que notícias. Os anúncios correspondem a 60% ou mais das páginas semanais, mas na edição de domingo é comum que as notícias tomem mais espaço do que os anúncios. A proporção de anúncios com relação a notícias deve ser alta porque os jornais não conseguem sobreviver sem os ganhos que os anúncios proporcionam. Os editores chamam este espaço deixado de "buraco na notícia". O setor de anúncios e o de notícias não influenciam no conteúdo um do outro.

Três tipos de anúncios dominam os jornais modernos:

1) anúncios de exibição - com fotos e gráficos, estes anúncios podem custar milhares de dólares, dependendo do tamanho. Estes anúncios, normalmente de lojas de departamento, cinemas e outros negócios, podem ser preparados por uma agência de publicidade ou pelo próprio departamento de anúncios. São chamados de carro-chefe e são responsáveis pela maior parte da renda;

2) anúncios classificados - normalmente chamados de classificados, são publicados em caracteres miniatura chamados de ágatas. Estes anúncios são de pessoas que querem comprar ou vender produtos, empresas procurando funcionários ou comerciantes oferecendo serviços. Os classificados têm preço acessível, são populares e eficazes, atingindo milhares de prováveis consumidores;

3) folhetos - o terceiro tipo de anúncio é feito por grandes cadeias de lojas. Estes folhetos coloridos são colocados no meio do jornal para serem distribuídos com a edição de domingo. Os folhetos trazem ganhos menores do que os anúncios carro-chefe. Os jornais cobram para distribuir os folhetos, mas não tem controle sobre seu conteúdo ou qualidade de impressão.

Como é produzido um jornal?


O setor de produção faz o trabalho pesado. Nestes departamentos há especialistas que operam e fazem a manutenção das prensas, fotocompositoras, digitalizadores de imagens e máquinas de impressão fotográfica. Alguns funcionários trabalham no turno diurno, enquanto outros no noturno.

Com início em torno de 1970, os setores de produção de jornal iniciaram um movimento histórico longe da tecnologia de trabalho intenso das máquinas fotocompositoras Linotype e outras "de última geração" usadas em impressão em relevo. Esta foi a mesma técnica usada por Johannes Gutenberg no século XIV: imprimir uma página de papel diretamente em um bloco. A invenção da fotocomposição, baseada em processos fotográficos, acelerou a produção e reduziu os altos custos de despesas gerais da impressão em relevo. Além disso, a fotocomposição funcionava melhor com as novas prensas em offset que estavam começando a ser usadas.

A maioria dos jornais diários mudaram para alguma forma de impressão em offset. Este processo grava a imagem de uma página de jornal em chapas finas de alumínio (páginas com fotos ou letras coloridas precisam de mais chapas). Estas chapas, agora com a imagem positiva revelada a partir do negativo de uma página, vão para outros especialistas para colocação na prensa. Este processo é denominado offset porque as chapas de metal não encostam no papel que entra na máquina. Em vez disso, as chapas transferem a imagem feita com tinta para um rolo de borracha que imprime a página.

Embora as máquinas para impressão de jornais sejam grandes e barulhentas, são delicadas com o papel de imprensa, o papel de que é feito o jornal. Estas máquinas precisam ser delicadas pois o papel de imprensa é caro e deve passar por esses rolos enormes sem serem rasgados. Estas complexas máquinas de três andares, que podem custar mais de US$ 40 milhões, são chamadas de prensas rotativas, pois usam papel contínuo em vez de folhas individuais.

Além de colocar tinta no papel, a prensa também monta as páginas do jornal na sequência correta. Tudo ocorre tão rápido que uma prensa em offset consegue produzir 70 mil cópias por hora na correia transportadora, que por sua vez manda as cópias para o setor de distribuição que já está aguardando.

Como são distribuídos os jornais?

A responsabilidade de levar o jornal da gráfica até o leitor é do setor de distribuição. Jornais grandes publicam dois, três ou até quatro edições, todas devendo estar prontas para deixar a gráfica em um horário determinado. A primeira edição, às vezes chamada de edição "buldogue", vai até os locais mais distantes da área de circulação. Isto pode significar vários municípios ou até mesmo um estado inteiro. As edições posteriores contêm notícias mais frescas e chegam até áreas menores. A edição final, que vai para impressão depois da meia-noite, contêm as notícias mais recentes, mas cobre uma área geográfica menor, normalmente uma cidade.

Qualquer assinante de um jornal diário sabe que ele é jogado em sua porta ainda de madrugada. Empresas terceirizadas chamadas de transportadoras compram os jornais com desconto e fazem a entrega, usando veículos próprios. Quando jornais vespertinos eram comuns, os veículos usados eram bicicletas. O primeiro emprego de muitos jovens americanos era como entregador de jornais pela vizinhança.

O departamento de circulação determina as rotas que os entregadores devem seguir. Este departamento também é responsável pelas vendas em máquinas de moedas. Ele mantém um registro de faturamento dos assinantes, interrompe e inicia as entregas mediante solicitação e usa mensageiros para entregar jornais que possam ter sido esquecidos.

Devido à circulação do jornal, o número de pessoas que o recebem tem grande impacto nos índices de anúncios. A Audit Bureau of Circulations, agência independente de aferição de tiragens, examina e autoriza as quantidades para circulação. Isto assegura ao setor de anúncios e aos anunciantes que a demanda de circulação é válida.

Em 18 horas de trabalho bem coordenado, realizado por vários setores, o que as pessoas que trabalham em jornais chamam de "um rascunho da história" passa por sistemas de computador, máquinas de tratamento de imagens e impressões (que deixariam Gutenberg perplexo) indo até seu destino final, os leitores. Depois das 3h30 da manhã, poucas pessoas ficam na gráfica. Os funcionários de todos os outros setores já foram para casa. As prensas ficam silenciosas, talvez em manutenção pelo restante da noite. O silêncio repentino não dura muito. Em menos de quatro horas, o jornal desperta e começa tudo de novo.

Fonte:
Julia Layton & Bob Wilson "Como funcionam os jornais" 1 de abril de 2000.
HowStuffWorks.com.  27 de maio de 2022