domingo, 13 de novembro de 2022

Sammis Reachers (A rapina bananal)


Uma fruta de apelo universal estava entre as mais cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira Rio: A banana.

A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes, portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo, dava com alguma abundância ao longo das margens do rio, compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra!

E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada – não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o barulho da queda daqueles reservatórios de potássio
sempre despertava os donos.

Desgraça pouca, reza o clichê, é sempre bobagem. Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos. Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era marinheiro.

A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa, dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo, claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou vadiando à esmo.

Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas – fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos oitenta!

Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar a molecada.

Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu (aprendido nos filmes da franquia American Ninja que lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o máximo de silêncio possível.

Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”? Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em nossa favelinha, quem iria nos impedir.

Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma solução foi encontrada.

A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e, sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do tronco, de preferência apenas um terço de sua circunferência.

Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho, aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre com grande estrondo.

O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres. O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.

A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos. Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo aquele butim e, segurando um de cada lado daquele pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos daquele campo minado.

Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O Pedágio de Dona Maria.

Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro de perceberem o que transportávamos. E, por cima, colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas. Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim dividíamos o fruto da rapina.

Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno, sempre que eu era repreendido pelos palavrões que vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”, me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não posso xingar?”

Além de brava e amedrontadora, dona Maria costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor, fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho, esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o lado dela...

Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos, nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:

“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar um saco de lata...”

Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava mole pra ninguém!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 15


A existência com leveza,
quando nos faz mais velhinhos,
comparo a uma vela acesa
que vai queimando aos pouquinhos!
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A infância o tempo desfaz!
Mas em meus sorrisos francos,
mantenho o riso da paz,
na paz dos cabelos brancos!
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Antes que o Sol se descubra,
rasgando o seu branco véu...
Deixa a alvorada mais rubra
e o rubro do amor no céu!
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Ecos, sussurros, gemidos,
mãos estendidas, sem nome...
São sinais dos excluídos
mastigando o pão da fome!
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É Deus que, quando entardece,
em silêncio e sem alarde,
põe reticências na prece
das vozes do fim da tarde!
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Enquanto o fogo, na dança,
mata da planta as raízes,
a gente planta esperança
nas cinzas das cicatrizes!
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Entre o poeta e os passarinhos,
há semelhanças demais...
Quanto mais longe dos ninhos
mais tristes cantam seus ais!
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Eu só conquistei na vida,
em meio a tanto cansaço,
essa fronte embranquecida
por tudo, que fiz e faço!
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Famintas e de almas nuas,
na mendicância e sem teto,
de crianças, enchem-se as ruas
entre os monstros de concreto!
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Mãos trêmulas, passo incerto,
que exemplo, o do bom velhinho;
e há gente com o passo certo
que nunca acerta o caminho!
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Meu destino é feito um rio,
que entre escarpas e rochedos,
revela seu desafio
mas não conta os seus segredos!
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Na estação de trem antiga,
há o fantasma de um vagão
que à noite, assusta e castiga
quem volta à velha estação!
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Na igrejinha abandonada,
toda tarde um velho sino
tange em cada badalada
o planger do seu destino!
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Não me esqueço!... E, ao descrevê-la,
praça de minha ilusão!...
Seu chão forrado de estrela
era a esteira do meu chão!
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Na vida, tudo se alcança.
Se é verdade ou se é mentira...
Quanto mais a idade avança,
mais o poeta se inspira!
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No meu baú de lembranças,
revendo antigos folguedos,
encontrei muitas crianças
em meio aos velhos brinquedos!!!
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Numa luta merencória
entre um crente e um incréu...
Um leva o troféu da glória
e o outro, a cruz por troféu!
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O amor, é qual detetive
que, quando a intriga descobre,
troca o castelo onde vive
pelo barraco mais pobre!
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O mar, ao romper da aurora,
aos meus olhos, se assemelha,
a um mar que em silêncio chora
lágrimas de cor vermelha!
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O olhar mais triste e profundo,
vi no olhar de uma criança;
nossa esperança do mundo,
num mundo sem esperança!
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O poeta em seu caminhar,
é qual profeta andarilho,
que vê nos passos, no andar,
os passos do andar do filho!
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Peço que guardem meus versos
longe da traça e cupim,
que há muitos sonhos imersos
nesses pedaços de mim!
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Se acaso, o mar, ante a bruma,
perde a ternura ao se expor...
Sacode a saia de espuma
vestindo a praia de amor!
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Quando a noite de alma nua,
desperta e põe-se a vogar...
No mar, navega uma lua,
no céu, há outra a vagar!
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Se alguém, na aridez do amor,
fizer o bem que é preciso,
vai sim, brotar uma flor,
na fonte seca do riso!
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Se a mágoa te embaça a vista,
ante alguém que te magoa,
não há mágoa que resista
na vida de quem perdoa!
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Se a ti, meu pai, me assemelho,
eis o meu maior desgosto:
Não sentir mais teu conselho
nem o suor do teu rosto!
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Tapera!... Por teus lamentos,
teu pranto!... E, neste abandono...
Até no sopro dos ventos,
ouve-se a voz do teu dono!
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Tempo ingrato, ó quem me dera
tornar mais lentos teus passos,
deixando que a primavera
fique mais tempo em meus braços!
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Três letras, palavra breve,
no mundo de qualquer um;
sem as três, ninguém escreve
mãe - de outro jeito nenhum!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

sábado, 12 de novembro de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 6

 

Raymundo de Salles Brasil (Não é para sentir saudade?)


Acordei hoje, eram 5 horas da manhã, mas ainda embalado por um desses sonhos gostosos, tão gostosos que a gente nem abre os olhos, pedindo para não acordar e, quem sabe, continuar sonhando. Mas aí não tem mais jeito, o sonho já foi embora (que pena!) e a gente se levanta para a realidade, às vezes dura, do agora, do presente, do cotidiano.

Eu era entre adolescente e jovem e morava na casa número 14 da Praça da Purificação, em Santo Amaro, onde passei parte da minha adolescência e toda minha mocidade, enquanto solteiro. Morava com meu pai e minha madrasta, D. Dete, ambos de saudosa memória. Aquele lugar foi o cenário do meu sonho neste finzinho de madrugada.

O passeio lá de nossa casa era a sala de estar, onde se reuniam os amigos e os irmãos de meu pai, para maravilhosos bate-papos, mormente nas épocas de festa quando estavam presentes alguns que moravam em Salvador e religiosamente visitavam Santo Amaro nessas épocas.

Para mim aquelas reuniões eram o melhor da festa. Meu pai era um homem inteligente, bem informado, um excelente epigramista, amante da palavra escrita e falada, atraía para sua porta a nossa elite intelectual. Para mim verdadeiros monstros sagrados.

Se eu, que até hoje sou mais de ouvir do que de falar, frequentador assíduo daquelas reuniões, eu era somente ouvidos, mas encantados. Eu era um componente da plateia e eles os meus atores prediletos:

Juca Salles, (José Gabriel de Salles Brasil) um ator genial, fazia rir e chorar, ora representando as suas personagens cômicas, ora contando os episódios dramáticos de São Bento do Inhatá, e da Vila de São Francisco, todos criados ou recriados por ele. Com seu jeitão descuidado de ser, cabelos por cortar, barba por fazer, e aquele corpo franzino, andando como quem pisa em ovos em virtude dos muitos calos que tinha nos pés, ele usava a sua voz de baixo profundo, os seus gestos, e as suas mãos esguias para nos fazer chorar de rir;

Professor Raimundo Salles, (Raimundo Nonato de Salles Brasil) o lirismo à flor da pele, sua poesia era de rara beleza, estava sempre a nos encantar com os seus versos, as suas trovas, os seus repentes, era um poeta de alma pura.

João Moniz Barreto de Aragão, outro grande poeta, (Santo Amaro é incrível!) o orador, mas, sobretudo o poeta, o declamador. Ainda o recordo e me deleito, ouvindo-o recitar Arthur de Salles em Subumbra, Praia em Festa, Ocaso no mar, amaciando a sua voz e dando mais colorido aos versos, como se, possível fosse, dar mais colorido aos versos do velho Arthur.

Souza Castro, (Antônio Benedito de Souza Castro) comedido, falava baixinho, mas todos nós tínhamos ouvidos atentos porque não queríamos perder uma só palavra do que ele dizia. Brilhante, o velho Souza Castro, o talento dele não se media pelos discursos, mas por uma palavra, um dito, uma frase. Um grande amigo, eu o amava como se fora meu tio.

Nestor e Aloísio Oliveira, dois irmãos de talento fulgurante, dois poetas, se o primeiro brilhava com a palavra escrita, o outro era formidável no discurso improvisado, palavra fácil, fluente e bela.

Participavam daquelas tertúlias, uns, de forma mais assídua, outros esporadicamente, meu tio Adaucto, quando de férias, trazendo o seu entusiasmo, a sua maneira inteligente e simpática de ser e de dizer as coisas; o Pe.Salles Brasil, esquecia um pouco o papa e, espirituoso que era, deixava escapar a sua verve, o seu talento, a sua cultura, enriquecendo os nossos informais bate-papos; Adroaldo Ribeiro Costa, um artista, usava como poucos a palavra, a voz e as mãos. Passaram por aquela assembleia, Eliezer e Heráclio Salles, o Maestro Gomes e tantos e tantos outros dessa mesma estirpe. Até o poeta Eurícledes Formiga, a quinta memória do mundo, e repentista fantástico, que passou por aqui esbanjando talento, participou das nossas reuniões na porta da casa de meu pai.

O Professor Édio Souza, ainda bem jovem, frequentava com assiduidade os nossos saraus e já deixava brilhar o seu talento. Ele não me deixa mentir.

Quando eu acordei hoje às 5 da manhã eu estava sonhando, exatamente, com uma dessas reuniões.

Não é para sentir saudade?

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/265150

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 9 =

CANTIGA


Ai! A manhã primorosa
do pensamento...
Minha vida é uma pobre rosa
ao vento.

Passam arroios de cores
sobre a paisagem.
Mas tu eras a flor das flores,
Imagem!

Vinde ver asas e ramos,
na luz sonora!
Ninguém sabe para onde vamos
agora.

Os jardins têm vida e morte,
noite e dia...
Quem conhecesse a sua sorte,
morria.

E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!
= = = = = = = = = = = = =

HORÓSCOPO

Deviam ser Vênus
e Júpiter, sim,
que ao menos, ao menos,
olhassem por mim,
gerando caminhos
claros e serenos
por onde passar
quem vinha nutrida
de secretos vinhos,
perdida, perdida,
de amor e pensar.

Saturno, porém,
Saturno, o sombrio,
se precipitou.
Não sabe ninguém
que rio, que rio
de luto circunda
a terra profunda
que piso e que sou;

que noite reveste
o mundo em que passo
e os mundos que penso...
Que longo, alto, imenso,
calado cipreste
sobe, ramo a ramo,
entre o meu abraço
e o abraço que amo!
= = = = = = = = = = = = =

PRAIA

Nuvem, caravela branca
no ar azul do meio dia:
— quem te viu como eu te via?

Rolaram trovões escuros
pela vertente dos montes.
Tremeram súbitas fontes.

Depois, ficou tudo triste
como o nome dos defuntos:
mar e céu morreram juntos.

Vinha o vento do mar alto
e levantava as areias,
sem ver como estavam cheias

de tanta coisa esquecida,
pisada por tantos passos,
quebrada em tantos pedaços!

Por onde ficou teu corpo,
— ilusão de claridade —
quando se fez tempestade?

Nuvem, caravela branca,
nunca mais há meio dia?
(Já nem sei como te via!)
= = = = = = = = = = = = =

REALEJO

Minha vida bela,
Minha vida bela,
nada mais adianta
se não há janela
para a voz que canta...

Preparei um verso
com a melhor medida:
rosto do universo,
boca da minha vida.

Ah! mas nada adianta,
olhos de luar,
quando se planta
hera no mar,

nem quando se inventa
um colar sem fio,
ou se experimenta
abraçar um rio...

Alucinação
da cabeça tonta!

Tudo se desmonta
em cores e vento
e velocidade.
Tudo: coração,
olhos de luar,
noites de saudade.

Aprendi comigo.
Por isso, te digo,
minha vida bela,
nada mais adianta,
se não há janela
para a voz que canta...
= = = = = = = = = = = = =

SEREIA

Linda é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
— quem os pode enxugar
devagarinho com a boca,
ai!
com a boca, devagarinho...

Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
passuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios...

Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...

Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.
= = = = = = = = = = = = =

SERENATA

Permite que feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio
e a dor é de origem divina.

Permite que volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Whalmir Anna von Koenig (Menina no parque)


Domingo, não um daqueles ensolarados, mas um em que o frio o tornava cinzento. A Redenção aos poucos ia sendo preenchida por quem ainda confiava que a previsão do tempo estivesse, pelo menos, meio equivocada. Havia esperança de que uns raios de sol ultrapassassem as nuvens. Espalhados pelo canteiro central da José Bonifácio, entre a Oswaldo Aranha e a João Pessoa, os expositores tentavam vender seus produtos no Mercado das Pulgas, o inspirado e similar ao de Buenos Aires. As mercadorias, antigas ou nem tanto, custavam a sair, eles reclamavam, mesmo assim insistiam e seguiam em lenta espera.

Em frente ao Monumento do Expedicionário, do outro lado da calçada, aos poucos os caminhos de areia iam sendo preenchidos. O tempo passava e eu sentei em um dos bancos, explorava o movimento. Era um domingo especial. Comecei a contar as pessoas 1, 2, 3, 4, 5 e parei, eram várias e todas vinham acompanhadas. Uns empurravam bicicletas tentando manter seus pequenos ocupantes equilibrados. Outros compravam balões que acabavam subindo e subindo em direção ao céu pela inabilidade de quem os segurava. Alguns jogavam bola, dividiam e faziam piruetas com bolas de futebol estilizadas, compravam algodão doce, tentavam pular corda, carregavam bonecas sem muita intimidade, empurravam carrinhos de bebe. No ar sorrisos e choros.

Ontem, dia 12, foi o Dia das Crianças. Pais e mães, orgulhosos, comemoravam com seus descendentes na certeza que são imortais. Seus filhos garantiram a sequência dos seus genes, terão continuidade. Enquanto eles desfrutavam a companhia uns dos outros, de longe, aquela menina observava. Imaginei que teria uns dez anos, no máximo. Mal vestida e suja. Descabelada. Só. Uma das tantas crianças abandonadas, sem futuro, sem perspectiva. Eu vigiava e não me contive a uma proximidade. Com um pacote de pipoca nas mãos a seduzi para uma conversa que, na verdade, eram interrogações que eu queria ver respondidas. Me lançou um olhar desacreditado. Depois, se entregou a esses minutos de atenção. Pouco sorria. Agarrou com força e cobiça a embalagem oferecida.

Imersa em sua timidez, contemplava e parecia que nenhum sentimento a emocionava. Apenas olhava o que desconhecia, o que nunca teve no passado, nem no presente e nem terá no futuro. Sequer entende o significado de saudade. Me disse não saber o que é ter um pai, pois nunca teve um, nem conhece bem o significado dessa palavra. Às vezes alguns homens apareciam pelo barraco dividido com sua mãe e vários irmãos, mas eles meramente passavam. Nunca recebeu um afago ou palavra de carinho. Lembra tão somente de momentos tristes e demasiada violência. Entende o sofrimento. Irmãos? Cinco mas desconhece a idade, como não sabe a dela.

A menina olhava interrogativa inundada pelo que desconhecia. Quem sabe aquele seria seu dia de felicidade? Experimentar ser feliz. Afinal ser criança é acreditar que tudo é possível. Talvez alguém segurasse sua mão e a levasse até o parquinho, uma volta no carrossel ou no carrinho de choque. Nunca ganhou um presente sequer simples muito menos bem bonito, bem embalado em folhas coloridas, arrematado com um grande laço de fita. Dia da criança? O que é isso, tia? Ela estava ali, quase morava naquele local onde tentava a compaixão dos passantes para ter algo que comer. Gestos ansiosos.

Falava pouco e mal, as palavras saíam erradamente soletradas. Não conhece bem o linguajar. Em tempo algum frequentou escola. Seu olhar meigo, apesar da vivência, é triste e longo, perdido na imagem de um extenso abraço que um pai dava no seu filho retribuído com um beijo estalado. Desses que só as crianças sabem dar. Ela viveu mais um dia, simplesmente, como tantos outros, apenas passando. Permaneceu em seu interior o silêncio de todos os seus segredos. Os que não compartilha. Talvez o sigilo do que nunca começou, da tristeza por nunca ter vivido.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro Alto


Ruas antigas e sinuosas onde se cruzam velhos moradores e as gerações mais novas, frequentadoras da noite. Os bares modernos, as lojas de roupa e de artesanato foram substituindo as “boites” e os “dancings”. E, apesar do ar tradicional, o bairro ganhou nova vida.

Em 1515, a Companhia de Jesus construiu uma ermida dedicada a São Roque, intercessor contra a peste. Era este o nome inicial do Bairro Alto. Nessas terras, as casas eram poucas ou nenhuma. O terreno servia, essencialmente, para a agricultura. Mas, em 1528, nasceu uma urbanização diferente das existentes até então na cidade. Vila Nova de Andrade era composta por ruas e quarteirões com traçado retilíneo. O nome deve-se ao fato de ter sido erguida na Herdade da Cotovia. O espaço dava lugar a hortas e vinhedos pertencentes a Nicolau de Andrade. Só dois séculos e meio mais tarde é que este tipo de urbanização começou a aparecer na baixa.

Nessa altura, são edificadas duas capelas: a das Chagas e a do Loreto. A primeira, foi construída, sobretudo, para os navegadores; a segunda para os italianos que visitavam ou moravam em Lisboa. Com o terremoto de 1755, parte do bairro ficou destruído. A reconstrução foi feita de acordo com a arquitetura Pombalina e obedeceu a um esquema geométrico e retilíneo.

 Devido a esta intensa modernização, o local cativou a nobreza e foram construídas residências de luxo e palácios. Em 1768, ergueu-se, no Bairro Alto, o edifício da Santa Casa da Misericórdia. A primeira Escola de Artes Marítimas e o Conservatório Nacional, a atual Escola Superior de Arte, Teatro e Cinema, também nasceram nesta zona.

Atualmente, o Bairro Alto divide-se em três freguesias: a de Santa Catarina, a das Mercês e a da Encarnação. Esta última, antiga freguesia do Loreto, viu nascer a maioria dos jornais lisboetas. Aliás, em quase todas as ruas do Bairro Alto existia um órgão de imprensa. A influência foi tal que alterou a própria toponímia da cidade. A Rua dos Calafates, por exemplo, passou a chamar-se Rua do Diário de Notícias e a Rua Paiva de Andrade era a antiga Rua da Luta.

Aqui surgiram e persistiram alguns jornais, como o “Diário de Notícias”, o “Diário de Lisboa”, o “Diário Ilustrado” e o “Jornal da Tarde”. O Lisboa Clube Rio de Janeiro resultou da fusão de outras duas coletividades existentes no bairro, em 1938. O Lisboa Clube focava as suas atividades principais nos campos cultural e recreativo.

O União Clube Rio de Janeiro estava mais vocacionado para a vertente desportiva, principalmente, para o ciclismo. Talvez por isso, a primeira atividade a ser fortemente impulsionada pelo clube foi, precisamente, a desportiva, mas dando maior destaque à luta, ao boxe, ao tênis de mesa, ao basquetebol, à ginástica e ao futebol de cinco. Na luta, a coletividade já tem cerca de quarenta atletas praticantes que competem a nível internacional e conseguem, quase sempre, excelentes resultados. Porém, o ciclismo continua a ser “a menina bonita dos olhos” da coletividade. Sem esquecer a atenção que depositam nas marchas populares do bairro, e no arraial, que são de âmbito cultural.

MARCHA DO BAIRRO ALTO
(Olhem bem o Bairro Alto)


“O Bairro Alto
Vistoso e com “Gajé”*
Mora tão alto
para mostrar quem é.

Bairro de artistas
Que colhe tanto gênio
Quer dar nas vistas
Ao chegar ao milênio!

E com vaidade
Dizer que é alguém
Nesta cidade
A quem quer tanto bem.

Bairrismo eterno
Vive em seu coração
Está mais moderno
Mas honra a tradição.

(Refrão)

Olhem bem o Bairro Alto
Cantando
Bailando
Com garbo e alegria
Olhem bem o bairro Alto
Que a “Estranja”
É canja !
Visita noite e dia.

Olhem bem o Bairro Alto
Artista
Fadista
Que mostra ter bom gosto.
Ó Lisboa que és amiga
Aceita esta cantiga
E vem cantar conosco.

No Bairro Alto
Com tascas nas vielas
Ouve-se o fado
Cantado à luz de velas.

E a juventude
Em noites de lazer
Vem amiúde
Ciosa de aprender.

No Bairro Alto
Altar desta cidade
Há sempre um beco
Onde mora a saudade.

Gente modesta
Mas sempre aberta ao gênio
Já está em festa
Sonhando com o milênio.”
===============
* Gajé = elegância, graça
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 21: Avareza

 

Aparecido Raimundo de Souza (Sono pra lá de heteróclito)


ARMÊNIO FOI FLAGRADO enquanto dormia e roncava na sala de aula. A professora, furiosa, em vista daquela falta de atenção de seu aluno, achou por bem mandá-lo para casa. Como fora a primeira cochilada, apesar de muitíssimo chateada com a desatenção do garoto e a gozação dos demais que compunham a maioria dos presentes, daria uma chance. Perdoaria o moleque e não tomaria nenhuma decisão mais drástica junto à diretoria da escola, tampouco mandaria bilhete (via caderno) advertindo os pais para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido.

Em face desse ocorrido, dona Ximanga vendo o filho mais cedo em casa ficou com a pulga atrás da orelha, além de muito cabreira. Resolveu tirar a história a limpo. Interpelou o piá sem mais delongas:

— Ar, por que chegou antes do horário previsto em casa?

— Não cheguei mãe!

— Como não? Seu horário é cinco e meia da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso repentino? Vamos, deixa ver se existe alguma observação enviada por algum de seus professores.

— Estou dentro do meu horário, mãe.

— Não minta.

— Seu relógio é que está errado.

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

— Não estou tirando...

— Como não? Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

— Não senhora!

— O Caderno. Quero ele aqui em minhas mãos. AGORA...

Armênio procurava de todas as formas ganhar tempo:

— A professora não mandou nenhum recado para a senhora.

— Armênio, sua mãe é loira?

— Até ontem a senhora era... não sei porque pintou o cabelo de vermelho!

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em continuar querendo se fazer de idiota. Você não é. Seu nariz vai crescer. Lembra daquele menino do livro, um tal do Timóteo?

Armênio tentou se abrir numa boa e gostosa gargalhada com o nome errado do personagem, mas a mãe se manteve de semblante fechado, mais séria que lagartixa em parede:

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Eu não tenho nada para desembuchar, mãe. Já disse.

— OK. Se prepare. Vou tirar aquilo que você mais gosta...

Do quase riso, o menino fez cara de quem se abriria num berreiro medonho:

— Não, mãe, isso não. Aí a senhora está jogando sujo.

— Está resolvido. A partir de agora, você está proibido de...

Antes que a mãe completasse o que pretendia dizer, Armênio, de fato, começou a chorar copiosamente:

— Não, mãe, tudo, menos isso...

— Está decidido. Fim de papo. Vou pegar o telefone e ligar para seu amiguinho Pimpolho...

Diante da austeridade incomplacente (*) da genitora, Armênio danou a bater com a cabeça na quina dos móveis:

— Para o Pimpolho não, mãe. Nãooooooo!...

— Pode quebrar tudo... não estou nem aí. Só cuidado com a parede da sala, se resolver se machucar de verdade com alguma coisa mais pesada que a mesa e os armários aqui da cozinha.

— O que tem ela?

— Esqueceu?

— Sim...

— A parede da sala está segurando o resto da casa.

O pranto sentido do moleque se fez mais pontiagudo e contundente:

— Pelo amor de Deus, mãe. Não liga paro o Pimpolho.

— Então conte a verdade. Por que chegou mais cedo em casa?

— Está bem, mãe. Eu conto.

— Sou toda ouvidos em alerta... desembucha.

— Promete que não vai ligar para o Pimpolho.

— Canta logo o motivo, seu cachorro. Se eu não me convencer...

Armênio abriu o jogo:

— Dormi na sala de aula. A professora ficou uma arara.

— Qual matéria?

— A de português.

— Eu sabia. Também pudera! Fica grudado na frente da televisão jogando até tarde da noite com o irresponsável do Pimpolho. Ontem você foi se deitar, passava das quatro da manhã.

— Estamos num campeonato, mãe. Se a gente perder...

— Como é mesmo o nome dessa porcaria de jogo?

— CBLOL, ou “League of legends”, mãe. Hoje acontece a grande final. A gente vai acompanhar pelo canal do YouTube e votar no Craque.

— Tudo bem. Mas fica o aviso: se o senhor voltar a dormir, diga adeus à essa porcaria que não leva você à coisa alguma. Estamos entendidos?

— Sim, mãe.

— Outra coisa: se eu souber que o senhor saiu do ar na sala de aula de novo, não importa de qual professora. Corto a sua amizade com o Pimpolho e pior: vendo a televisão.
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* Incomplacente – Aquele que não tem complacência ou que não é benevolente, flexível ou obsequioso.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) VIII


CARROÇÃO DE BOIS

{antiga transportadora de toras)

Meu serviçal, meu carroção vetusto
Puxado a bois, de cabeçalho ereto,
E meu parceiro que dá renda e custo
Para a família de labor completo.

Passou o tempo... meu trabalho injusto
Traçou o dano de perverso aspecto.
E a natureza me pregou um susto
Pelo confronto sem nenhum afeto.

Meu pesadelo; pinheiral caído
Que me atormenta o coração doído
Servindo ao néscio, sem ganhar dinheiro.

Desatrelei os animais da canga
E, arrependido, debelei a zanga
E de castigo fui plantar pinheiro.
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NOVAS VIRTUDES

Vou procurar na madrugada estranha
Novos enfeites para a minha musa.
Sempre distante de qualquer barganha
Ante oferenda de formal recusa.

O gesto rude e vil, realmente, assanha
E invade espaço sem pedir escusa.
Porém a glória impede a audaz façanha
Que o gênio expulsa como nódoa intrusa,

E o dever diz; olhai o irmão carente
Onde não chega o amor e o abraço ausente
Do repudiado e visionário ateu,

Atiça a brasa do fogão antigo,
Enche a panela de feijão amigo
Sem precisar dizer porque acendeu.
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PLANTA! PLANTA!

Reclama a vida por um ar mais puro,
E a natureza a repetir: Urgente!
Carece o humano, do pensar maduro,
Tomar a terra a natural semente.

Olho à distância e já não mais aturo
Este negrume pela mata ausente,
A derrubada ao florestal maduro
Devasta o mundo que se toma quente.

Tenha piedade do pequeno arbusto...
Quanto à floresta não sejais injusto,
Pois quem a cuida o nosso Mestre ajuda.

Estenda a mão ao sofredor que implora,
E a seu irmão que arrependido chora,
Rogando ao Céu que a humanidade acuda.
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SOMBRA DO AMOR

Sofrida espera no saguão deserto,
Mirando a porta de chegada sua;
Não sei do horário, nem o dia certo,
Por isto ansioso meu pensar flutua.

Na despedida não agi esperto,
Pois meu sentido devagar atua,
Assim estou com todo espaço aberto
Sempre vigiando seu chegar da rua.

Não queira nunca se ausentar de mim
Não deixe mais o meu amor assim
Possuído e triste deste mal do anseio.

Agora sei como tornar-me vivo:
Longe outra vez vou me tornar ativo,
Serei à sombra deste seu passeio.
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TELEFONE INGRATO

Quase destruo o telefone mudo,
Velho caduco que jamais me fala.
Ele bem sabe - de aflição acudo -
Ouvir a voz que o coração regala.

Esperto não usa o tom agudo,
Quando me vê transfere toda escala.
O baixo tom é o seu tenaz escudo,
Mais a esperteza da vilã cabala.

Como viver neste cruel negrume
Quando demonstra sobre mim ciúme,
De forma vil e que jamais me apraza.

Um jeito existe e bem assim não brigo:
Eu vou trazê-la a residir comigo
E colocá-lo no porão de casa.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 06

 

Artur de Azevedo (Paga ou morre!)


O ano de 1864 foi assinalado no Rio de Janeiro por duas calamidades notáveis: a chuva de pedras e a quebra do Souto.

O Souto era o mais acreditado e o mais popular dos banqueiros havidos e por haver no Brasil; a sua casa inspirava uma confiança absoluta, e não havia homem do trabalho que, avisado e previdente, não houvesse lá depositado as suas economias.

Quando começaram a aparecer os primeiros rumores sobre o mau estado das finanças do Souto, ninguém se importou com isso: toda a gente encolheu os ombros. Supor naquele tempo que o Souto quebrasse era o mesmo que acreditar na quebra do Pão de Açúcar. O banqueiro na sua casa da Rua Direita não estava menos seguro que o famoso rochedo.

Mas os rumores sinistros foram num crescendo inquietador, até que os mais incrédulos começaram a acreditar no que se dizia: o Souto estava falido! Houve então a inevitável corrida.

A invasão dos franceses, a chegada do príncipe regente, as águas do monte, a declaração da guerra do Paraguai, a proclamação da República, a revolta de 6 de setembro, talvez não alvoroçassem tanto o espírito dos cariocas. Não se falava noutra coisa, a consternação era geral, todos se lamentavam, choravam todos o seu dinheiro perdido, e a ninguém aproveitava o ditado de que o mal de muitos consolo é.

Havia então nesta cidade um moço entre vinte e cinco e trinta anos, que, sem pai, nem mãe, sem ter tido a proteção de ninguém, levado apenas por uma grande força de vontade e por um talento ainda maior, conseguira formar-se em medicina, e sair da escola com um nome feito.

Pouco depois de formado casou-se, e a sua união foi logo abençoada, como se dizia naquele tempo: nasceram-lhe dois filhos de seguida.

Veio então ao médico o desejo natural de possuir uma casa, e, para isso, começou a economizar quanto podia, conseguindo, em 1864, ter reunidos vinte contos de réis na casa do Souto. Absorvido pela sua clínica e pelos seus estudos, ele ignorava os boatos que corriam acerca da insolvabilidade do banqueiro, de sorte que só veio ao conhecimento do fato quando a bomba estava prestes a estourar.

O seu desgosto foi profundo. Aqueles vinte contos representavam um sacrifício tremendo, porque, para ajuntá-los, ele se privara de tudo, a si e a sua família.

Desesperado, correu ao Souto, que o mandou entrar para um escritório onde trabalhava sozinho. Quando o banqueiro declarou que não lhe era possível restituir os vinte contos, ele correu à porta, fechou-a, guardou a chave na algibeira e, puxando um revólver, apontou-o contra o outro, dizendo:

- Se não me dá imediatamente o meu dinheiro, faço-lhe saltar os miolos! Paga ou morre!.

E aí está porque o Dr.... (com certeza muitos leitores lhe sabem o nome) foi o único credor do Souto que em 1864 recebeu integralmente a importância da sua dívida. Perdeu apenas os juros.

Ele nunca mais fez uso do seu revólver; mas o seu bisturi tornou-se ilustre.

Baú de Trovas LVIII


Irmanemos nossas vidas
numa união generosa,
tal como vivem unidas
as pétalas de uma rosa!
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
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Para não ver meu amor
vagar no mundo tristonho.
resguardei-o com primor
numa redoma de sonho!
ANA MARIA NASCIMENTO
Aracoiaba/CE
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Recebeu tanta coroa
o coitado do defunto,
que eu quase empurro a patroa,
para ver se ela ia junto...
ANTÔNIO CARLOS TEIXEIRA PINTO
Brasília/DF
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Sendo tão chata, a Constância
tem mesmo um nome batata,
já que desde a sua infância
constantemente ela é chata...
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ
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Quem faz o bem não concebe
que a ingratidão seja ofensa,
pois de Deus é que recebe
verdadeira recompensa.
ARCHIMIMO LAPAGESSE
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ
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Não queiram me avaliar,
que apenas eu mesmo sei
quanto me custou dobrar
as esquinas que dobrei.
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG
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Eu creio em Deus, porque creio
que tudo d'Ele provém.
— do Mal não guarda receio
quem crê na força do Bem!
ATHOS    FERNANDES

Itaperuna/RJ, 1920 – 1979, Bom Jesus do Itabapoana/RJ
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Aos nubentes bato palmas
e um conselho deixo aos dois:
primeiro casem as almas,
casem os corpos depois...
BELMIRO BRAGA
Vargem Grande/MG, 1872 – 1937, Juiz de Fora/MG
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Este vazio em meu peito,
dói tanto... é dor que não finda!
...Dor da saudade... que aceito,
sem ela... dói mais ainda!
CAROLINA RAMOS
Santos/SP
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Décimo oitavo casório
de uma noiva conhecida.
No seu encanto ilusório,
diz que é pro resto da vida
CESAR AUGUSTO RIBAS SOVINSKI
Curitiba/PR
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Toda sogra faz lembrar
um monjolo impertinente:
— se não tem o que socar,
soca a paciência da gente...
CESÍDIO AMBROGI

Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP
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De “mau jeito” o Zé Baleia,
pescador de sorte estranha,
noivou com uma sereia,
casou com uma piranha..
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP
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Nossa divergência é clara,
embora eu te guarde estima,
tu és muro que separa,
eu sou ponte que aproxima.
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo/RJ
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Pecando assim, me condeno,
porém a ambição se expande:
santo — eu seria pequeno;
demônio — eu posso ser grande!
ÉLTON DE CARVALHO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994
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Trova! Trova abençoada!
Nesta dura escuridão,
és a porta escancarada
para a minha salvação!
ERCY M. MARQUES DE FARIA
Bauru/SP
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Eu, que não tenho certeza
de ser amado na vida,
quero viver na incerteza
das incertezas da vida.
EUCLIDES DA CUNHA
Cantagalo/RJ, 1866 – 1909, Piedade/RJ
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Sê bondoso e destemido,
vigilante em teus caminhos.
— Se não queres ser ferido,
evita plantar espinhos.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI
Porto Alegre/RS
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As carícias em meu rosto,
tu finges não perceber
os sinais que, de mau gosto,
o tempo brinca em fazer,
GIVA DA ROCHA
São Paulo/SP
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À tardinha, junto ao cais
no meu porto de Ilusão,
como dói amar demais
a quem não tem coração !
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS
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Debruçado na lagoa,
qual Narciso a se mirar,
pescador jamais enjoa
de sonhar e de pescar…
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/RS
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A vida — uma onda que avança
e volta — vaivém do mar...
Quando vai, quanta esperança!
Quanta amargura, ao voltar!
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC, 1914 – 1987, Rio de Janeiro/RJ
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Enfrentando a adversidade,
caminho sem direção…
Mãos dadas com a saudade,
a tristeza e a solidão…
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR
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Fugir poeta, não queiras,
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba/SP
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Cumpro o meu fado inclemente,
no museu dos meus fracassos,
vendo a saudade insistente
rondando sempre os meus passos.
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba/SP
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De todas as despedidas,
esta é a mais triste, suponho:
— duas almas comovidas,
chorando a morte de um sonho!...
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA
Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1915 - 1993, Rio de Janeiro/RJ
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Num açougue não se assanha
quem comprar carne sem osso,
pois se não quiser picanha
tem costela e tem pescoço.
LUIZ DAMO
Caxias do Sul/RS
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Com retalhos de lembrança
eu costurei, sem maldade,
meus amores de criança
com suspiros de saudade...
MARIA HELENA URURAHY C. DA FONSECA
Angra dos Reis/RJ
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Morreu coroa e donzela...
foi ao céu, mas deu azar:
sentindo as pretensões dela,
disseram: — Não pode entrar!
MARIA NASCIMENTO SANTOS
Rio de Janeiro/RJ
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Não me assustam as fogueiras
das noites de Santo Antônio;
tenho medo é das solteiras
que procuram matrimônio...
ORLANDO BRITO
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA
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Lendo sobre camisinha,
Joaquim logo gargalhou.
Em peça pequenininha
de agasalho ele pensou!
PAULO ROBERTO O. CARUSO
Niterói/RJ
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Tem dez filhos o ceguinho...
E a cada filho que nasce,
explode sempre o vizinho:
— Calculem se ele enxergasse!
P. DE PETRUS
São Paulo/SP, 1920-1999
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Rompeste um antigo laço,
contudo mantenho aceso
este amor que não desfaço.
mas disfarço com desprezo.
RELVA DO EGYPTO RESENDE SILVEIRA
Belo Horizonte/MG
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A semente pequenina,
sob a terra, protegida,
é assinatura divina
no grande livro da vida.
SELMA PATTI SPINELLI
São Paulo/SP
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Disse adeus... sorri, sem jeito...
cruzei a ponte, por fim...
... Nunca um rio tão estreito
foi tão largo para mim!...
SÉRGIO BERNARDO
Nova Friburgo/RJ
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Faço trova e, divertida,
em humor "me saio'' bem;
- Eu só quis mostrar à vida,
como eu sei brincar... também!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP
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Eu sempre lutei sentindo,
nesta arena em que se vive,
a mão de Deus dirigindo
cada conquista que eu tive.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR
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Os teus vestidos, Vitória,
e os lindos sapatos altos,
representam promissória
pela qual dou muitos saltos!
VASQUES FILHO
Teresina/PI, 1921 – 1992, Fortaleza/CE
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Se tu não gostas de mim,
não fiques me perseguindo.
— Coincidência tanta assim
não pode estar existindo...
WANDISLEY GARCIA
General Salgado/SP, 1945 – 2020, Jales/SP
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Entendo as pessoas calmas
e de corações profundos.
— Quando a fé levanta as almas,
as almas levantam mundos!
ZÁLKIND PIATIGORSKY
Rio de Janeiro/RJ, 1935 – 1979

George Abrão (A jabuticabeira do enforcado)


Onde hoje está construído o prédio do novo Grupo Escolar “Isabel Branco”, na Cidade Alta, existia um grande terreno baldio. No meio do mesmo passava uma ruela que embora não fosse oficial, era de domínio público: por ela passavam, no dia a dia, pessoas a pé ou a cavalo, carroças e até pequenos caminhões.

Nesse terreno havia algumas jabuticabeiras bem antigas. Numa delas, à beira do caminho, que tinha seus galhos bem baixos, numa manhã, foi encontrado o corpo de um senhor idoso que lá havia se enforcado. Dizia-se que o galho era tão baixo e a vontade de morrer era tanta, que o mesmo precisou ficar de joelhos para alcançar seu intento.

Muito embora para nós, moradores nas imediações, aquela rua encurtasse bastante o trajeto em direção à Cidade Baixa, quando caia à tarde nem em sonhos passávamos por lá, com medo de assombração. Apavorávamo-nos com a ideia de encontrar o velhinho enforcado.

Isso acontecia sempre comigo, tinha tanto medo que até de dia evitava passar por lá. Até que numa noite, quando brincávamos na rua e na brincadeira quem perdia era obrigado a pagar um castigo, perdi, e o meu era correr pela ruela até a fatídica jabuticabeira e ficar parado lá até que me dessem ordem para voltar. Pedi para trocarem até por dois ou mais castigos, mas em vão, meus algozes irredutíveis, confirmaram que eu teria mesmo que ir até lá.

Como a noite era de lua cheia e o caminho estava claro, enchi-me de coragem e parti preparado para o pior.

Quando cheguei ao local minhas pernas tremiam e eu transpirava por todos os poros.

Mas, enquanto esperava a chamada dos meus amigos comecei a rezar e só vi, na minha frente, a jabuticabeira iluminada pelo luar. Nada de extraordinário aconteceu, perdi o medo e, depois de chamado, voltei feliz, pois daquele dia em diante nunca mais acreditei em assombrações.

Fonte:
George Abrão. Jaguariaíva e seus 172 causos, Maringá/PR, 2009.
Ebook enviado pelo autor.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro do Alto do Pina


Com o passar do tempo, as antigas quintas do senhor Pina transformaram-se. Agora, restam as lembranças das hortas e dos espaços abertos de outrora, ficou a Alameda D. Afonso Henriques com a sua Fonte Luminosa.

Alto do Pina era formado por um conjunto de quintas, outrora os grandes jardins da Capital. Verdadeiros exemplares da harmonia entre o Homem e a Natureza, propriedades das famílias abastadas de Lisboa, era nestes espaços privilegiados que trabalhava grande parte da população que residia na encosta que desce até Santa Apolónia. A maioria ganhava o seu sustento nas terras altas, as quais eram atravessadas por grandes artérias que ligavam a cidade ao interior. Eram propriedades do senhor Pina, um familiar de Pina Manique, Intendente da Polícia nos tempos de Marquês de Pombal e da rainha D. Maria l.

Assim, o nome deste bairro deve-se, essencialmente, à população que batizou as terras altas por Alto do Pina. Esta era a zona escolhida para o lazer dos habitantes, nos dias de festas, domingos e feriados, que aproveitando a sombra das árvores, cantavam fado e modinhas, acompanhados à viola e à guitarra. Ao longo dos caminhos, ficavam os “famosos retiros”, locais de boemia, de apreciadores da “boa mesa”, da Literatura e do Fado.

Estes eram tão apreciados pelo povo como pelos fidalgos residentes no Areeiro. Atualmente, este bairro representa grande parte da freguesia de São João e vai até à freguesia do Beato. Hoje, o Alto do Pina é um bairro de contrastes, onde se misturam arquiteturas da Lisboa doutros tempos com as deste fim de século, como por exemplo, as Olarias e a Fonte Monumental da Alameda D. Afonso Henriques.

Este ainda é o local de lazer escolhido pelos mais novos para brincarem e jogarem bola, e pelos mais idosos que aproveitam a sombra para descansarem e jogarem cartas. É na Rua Barão de Sabrosa que se situa o Ginásio do Alto do Pina, fundado a 11 de Novembro de 1911. Esta coletividade promove o desporto, especialmente junto das camadas mais jovens, tendo os seus sócios a oportunidade de praticar modalidades como tênis de mesa, futebol de cinco, atletismo e ginástica, entre outras. Ainda têm à disposição uma biblioteca, uma oficina de artesanato e uma seção de teatro.

Desde 1932 que durante os primeiros seis meses do ano, o Ginásio do Alto do Pina deposita grande parte das suas energias na organização da sua Marcha.
 

MARCHA DO ALTO DO PINA
(Aguarela de Lisboa)


“A marcha do Alto do Pina
Vem manter a tradição
De saudar na Avenida
Santo António e São João.
Tem o cheiro de Lisboa
Traz a chalaça brejeira
São mangericos, ai são
Perfumando Lisboa inteira.

(Refrão)
Meu bairro, é Alto Pina
É uma aguarela
Sobre Lisboa
Pintado em tela fina
Pois Santo António
Virou “Malhoa”!

As cores vieram do céu
Foi São João
Que as foi buscar
Quando do alto desceu
Ficou pra sempre
Lá a morar !

Santo António tão feliz
Como a tela que pintou
Foi ao velho chafariz
Bebeu água, descansou.
Na “Manuel dos Passarinhos”
Sentiu Lisboa num fado
Para a moça mais formosa
Arranjou-lhe um namorado.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

sábado, 5 de novembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 15


 

Leandro Bertoldo Silva (Pois é…)


— Oi, amiga! Vi que você está on-line. Está podendo falar?

— Oi, amiga! Claro, está tudo bem?

— Mais ou menos… Eu vou ter que digitar* porque o meu filho, o Artuzinho, está perto de mim e eu não quero que ele ouça. Nossa, menina… Estou muito preocupada com ele.

—O que ele tem?  Está doente?

— Não, bem, eu acho que não…

— Então o que foi?

— Você acredita que o Artuzinho agora deu para perder tempo com bobagens?

— Perder tempo com quê?

— Bobagens! Perder tempo com bobagens.

— Que bobagens?

— O Artuzinho está lendo. Livros!

— Jesus!

— Pois é… Você sabe que desde pequenininho ele sempre foi assim meio diferente… Mas agora deu pra isso! Passa o dia inteiro com um livro pra cima e pra baixo lendo. Até na escola!

— Até na escola?! E você procurou a diretora pra ver o que está acontecendo?

— Pensei nisso sim. Mas quando cheguei lá, nem foi preciso conversar. Estava tudo absolutamente normal.

— Normal como?

— Todos os alunos estavam com seus celulares conectados, antenados no mundo.

— E o Artuzinho?

— Na biblioteca.

— Misericórdia! E você ainda fala que estava normal?

— Normal com todo mundo, menos com o Artuzinho. Como ele pode perder tanto tempo?

— Pois é…

— Coloquei a melhor internet em casa, assinei vários canais de filme, futebol, tudo que os meninos da idade dele gostam e nada.

— Não só os meninos, não é amiga? Todo mundo.

— Por isso estou preocupada. Ele tem tudo e está deixando a vida passar. Só fica com aquele livro na mão. Sabe, estou pensando em procurar um psicólogo.

— Por isso não. Tem um aplicativo ótimo que resolve esse problema. É só você baixar e colocar todos os dados da pessoa e digitar no campo “assunto” o que está ocorrendo que ele dá o diagnóstico e indica o tratamento. E o melhor é que a pessoa, no caso o Artuzinho, nem precisa saber de nada.

— Mas isso é maravilhoso!! Ai, amiga… Eu sabia que seria ótimo falar com você. Sempre tão antenada, bem diferente do Artuzinho. Tá vendo as coisas maravilhosas que ele perde?

— Pois é…

— Ai, Nossa!

— Que foi?

— Ele está fazendo caras e bocas!

— Caras e bocas?

— Sim! Lendo o livro e fazendo caras e bocas.

— Isso tá ficando sério…

— Ai, ai, ai!!

— Que foi, que foi?

— Ele colocou a mão no rosto, balançou a cabeça e não tira os olhos do livro.

— Amiga, baixa logo o aplicativo e começa o tratamento.

— Vou fazer isso assim que terminar de falar com você.

— Você consegue ver o que está escrito na capa do livro?

— Daqui está um pouco difícil, mas… deixa ver… Ai, não!

— O quê?

— Tem a palavra “crime” escrita lá.

— Minha nossa! Consegue ver mais alguma coisa?

— Espera um pouco… “castigo”… Crime e castigo… É o que está escrito: “Crime e castigo”.

— Hummm…. Isso não é nada bom. Consegue ver o nome de quem escreveu essa coisa?

— Olha… Nem se eu tentar acho que consigo decifrar.

— Digita aqui letra por letra.

— Boa ideia. D-O-S-T-O-I-É-V-S-K-I.

— Misericórdia! Nunca vi isso em lugar nenhum. Parece um código.  Olha direito. Deve ter um nome lá.

— “Fiódor”.

— O quê?

— É o que está escrito: “Fiódor”. Em cima do código.

— Nunca ouvi falar.

— Nem eu e nem quero, Deus me livre.

— Tem mais alguma coisa?

— Um desenho. Ai, que coisa horrível! Tem um desenho lá.

— Desenho de quê?

— De um rosto com olhos enormes.

— Amiga, a coisa tá muito séria.

— Oh, meu Deus! Por que esse menino não é normal igual aos outros?

— Calma, calma… Não faça movimentos bruscos. Finja que está tudo bem e vai saindo de fininho.

— Mas é o Artuzinho, meu filho!

— Eu sei, amiga. Mas pode ser perigoso. Ele tem feito algo estranho ultimamente, além de ler livros?

— Não sei. Você sabe como é, não tiro os olhos do celular.

— Claro que não! Você é como todo mundo! Tem uma vida normal. Ele ainda está fazendo caras e bocas?

— Ai, não amiga! Ele está fazendo algo pior!

— Pior? O quê?!

— Ele colocou o livro do lado, sacou um caderninho e começou a…. Meu Deus!

— Fala, fala!!

— Escrever! O Artuzinho está escrevendo!!

– Amiga, esquece o tratamento do aplicativo. Fique aí e não se mexa. Vou acionar a viatura e chamar o SAMU.
= = = = = = = = = = = = =
* Para melhor compreensão, as mensagens desse texto foram cuidadosamente traduzidas do internetês para a linguagem coloquial.

Fonte:
https://arvoredasletras.com.br/2022/06/04/pois-e/

Silmar Böhrer (Croniquinha) 66


Tarde plena no trecho, descendo a conversar com o riacho viandante, companheiro de águas e pensares, esgueirando na mata. Cronista dos quase nadas com olhares atentos, observando, auscultando pássaros e animais que fazem daqui o seu habitat - curucacas, saracuras, nambus e quero-queros - a bebericar algum sustento no banhadinho.

Somos dois, dois somos, eu e o rio  juntos à mata ciliar, um a correr, outro a divagar. Este a conduzir a folha que já foi verde um dia, e agora navega sua crônica de vida entre pedras e redemoinhos. O outro, a observar os torvelinhos que agitam o pocinho, onde as águas não só descem, sobem também, pondo a navegar em círculos, em retorno, os pequenos arbustos e as folhas que se vão na planície.

Seria esse o retrato dos verdissecos, galhinhos e pequenas folhas que fazem a viagem final rio a baixo no rumo do mar? Crônica de já, não vidas, em pura mansidão, pelos meandros do insólito caminho que leva ao fim?

A magia da vida caminha, rasteja, navega pelas veredas do insondável, como bem nos mostram os mestres, não é mesmo Braguinha ? E quem escreveria com maestria a crônica dos sertões, senão Guimarães Rosa ? Mundinhos dentro deste vasto mundo, mundo vasto cantado pelo outro mineirinho, Drummond.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lucília Alzira Trindade Decarli (Inquietude) 1


Penso até que água tem alma…
da fonte lança o seu véu,
chega ao rio e, então, se espalma,
dá-se ao mar… e sobe ao céu!


ALMA... E CORAÇÃO!

Há quem afirme que água não tem alma...
Provo o contrário sem qualquer receio;
no copo, embora esteja sempre calma,
vou revelar, agora, porquê veio...

Brota na fonte e vai buscar a palma,
dos vitoriosos ela traz o anseio,
“a intrepidez da flor que ao vento espalma
as delicadas pétalas do seio.”

Precipitada ao chão, torrencialmente,
servindo a tudo e a todos, plenamente,
refaz seu ciclo sem jamais parar.

E liquefeita é quando mais resiste:
é fonte, é riacho, é rio, e não desiste;
só sobe ao céu depois que abraça o mar!
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O tempo, marcas deitou
entalhadas em meu rosto,
mas o amor, que perdurou,
minimiza o meu desgosto!


MARCAS DO TEMPO

Do escuro túnel de um tempo passado,
ressurge, audaz, o amor adormecido!
Relembro alguém sorrindo, e do meu lado,
mas que perdi sem querer ter perdido.

Em transe está meu ego e, arrebatado,
canta o passado em ode, destemido,
indo aportar num tempo afortunado
que conheci, porém, sem ter vivido.

Ao desalento o meu amor resiste,
tento esquecer reminiscência triste,
marcas do tempo em minha pele impressas...

O meu viver, repleto de saudade,
exige agora: vem felicidade,
liberta o meu destino das avessas!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Contendo temas diversos,
lirismo a se sobrepor,
deixo claro os meus versos,
muito mais, falam de amor!...


MEUS VERSOS

Meus simples versos surgem, de repente,
sem revelar-me a nítida intenção...
Parecem ser um sussurrar na mente,
que toca o ouvido e, ali, ganha expansão.

Pego papel, caneta e, fielmente,
sem preocupar-me com erudição,
vou encadeando-os feito uma corrente,
um elo das palavras em vazão...

Métrica e rima, às vezes lhes imponho,
sem deturpar a realidade ou sonho
daquela inspiração, com muita calma,

pois, mais do que um capricho de momento,
ou atitude vã do pensamento,
sei que os meus versos partem de minha alma!
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Nas lágrimas derramadas,
transbordantes de emoção,
essas águas são chamadas
torrentes do coração!…


MURALHAS DA RAZÃO

Às vezes nem sabemos como nasce
tamanha angústia vinda, de repente,
e ao deslizarem lágrimas na face,
nos surpreende a súbita vertente.

Encurralados diante deste impasse:
— ver descoberto o nosso ser carente!...
Dentro de nós, talvez, algo ultrapasse
o escrúpulo insalubre e prepotente.

Lágrimas brotam, soltas, sem disfarce,
e o coração consegue apoderar-se
de um sentimento sufocado em vão.

Mas quando o pranto silencia um grito
pronto a lançar seu eco no infinito,
não derrubou muralhas... da razão!
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O joão-de-barro, a paineira,
e a casinha, ali construída...
Na infância, sobremaneira,
deram-me exemplo de vida!


REMINISCÊNCIA

"São Carlos"... Era o nome da fazenda,
com primaveras, pássaros, paineira...
O cafezal em flor, cena estupenda:
— recordação para uma vida inteira!

No terreirão, na grama em verde renda
- eu com dez anos quanta brincadeira!
Na casa simples, mesa com merenda;
dali se via o véu da cachoeira!...

Lembro o balanço no chorão... — Saudade!
Naquele pasto o gado em liberdade;
farto pomar, coqueiro carregado...

Apenas meses e eu nunca esqueci,
da infância a fase que passei ali:
— um tempo mágico do meu passado!

Fonte:
Lucília Alzira Trindade Decarli. Inquietude. Bandeirantes/PR: Sthampa, 2008.
Livro entregue pela poetisa.

Bruno Antonio Picoli (Memória escolar)


1992, classe do pré-escolar da professora Cleusa. Eram duas turmas no Colégio Estadual Gomes Carneiro: os da “Tia Cleusa” e os da “Tia Neiva”. Eventualmente as turmas eram reunidas e nessas ocasiões o desconforto tinha até cheiro, algo como casca de ovo misturado com cola tenaz.

No espaço contíguo a sala fazíamos o recreio. Era um terreno acidentando, um barranco inclinado o bastante para não ser possível ficar parado muito tempo, mas que permitia uso por aquelas crianças que não podiam desfrutar das quadras esportivas logo acima, tomadas pelos maiores que praticavam um futebol criativo em que tudo podia ser bola.

No recreio não monitorado a brincadeira consistia num desenho complexo em que cada turma formava um reino, com rei, generais e todo o resto. O objetivo era capturar os membros da outra casa real. Eu, é claro, era um soldadinho. O “nosso” rei era sempre o mesmo menino, até um dia que ele cansou da brincadeira. Como todos queriam ser rei e não chegamos a nenhum consenso, decidimos revezar no cargo: cada dia seria um rei diferente, para que fosse justo.

A coisa parecia promissora. Um dia o Rei regressou, queria brincar de novo, e, lógico, na condição de rei. Foi aclamado pelos demais. Menos por mim, aquele era o meu dia de ser o rei.

“Tia” Cleusa tinha um método próprio de avaliar as atividades de seus alunos: simpáticos carimbos que mantinha sobre sua mesa e pomposamente afagava na almofada. As figuras dos carimbos eram simples, bonecos palitos que portavam em seus finos braços figuras: o quadrado para um trabalho regular, o triângulo para um bom e uma estrela de cinco pontas para um ótimo.

Naquele dia entreguei meu desenho à profe Cleusa. Ela o mediu com os olhos, me fitou, deteve-se novamente sobre o papel. Abriu a gaveta e de lá retirou um carimbo. Senti um frio que começou nos meus calcanhares e instantaneamente se apoderou de minha coluna. Ela, mantendo o ritual pomposo, descansou o carimbo sobre a almofada. Não sei se por mais tempo que o normal ou se foi o próprio tempo que para zombar de mim passou mais devagar, mas aquilo não tinha fim. Eu, de pé, ao lado de sua mesa, esperando o veredito.

Sem dizer uma palavra e sem olhar para mim, ela levantou o carimbo, marcou o papel e o entregou em minhas mãos suadas. Respirei fundo, pronto para pedir uma nova chance, garantindo que iria me esforçar mais na próxima oportunidade, se me fosse concedida. Pousei meus olhos sobre a folha e vi um boneco de palito segurando uma estrela de seis pontas. Pálido olhei para ela que sorriu e me disse para ir me sentar em meu lugar.

No dia seguinte mudei de escola, e isso em nada tem a ver com os fatos narrados, é que uma aluna maior tinha o hábito de me bater no trajeto de volta para casa. Não sei se houve rebelião no reino, se o rei caiu, foi decapitado ou permaneceu intocável. Não sei se o carimbo novamente foi retirado de seu descanso gavetal. Mas essas duas experiências me atravessam até hoje e fazem parte da pessoa que sou. Desde 1992 sei que a injustiça viceja onde quer que não se mantenha firme a disposição pelo que é justo. Sei também da importância de uma professora justa para a autoestima de um menino que nunca pôde ser rei.

Fonte:
Revista LiteraLivre v. 6 - n. 32 – Jacareí/SP, março/abril de 2022.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Alfama


Fado é Alfama. Vadio e cantado ao desafio. Nos restaurantes minúsculos onde os turistas se deliciam com sardinha assada, ou nas rascas de pedra, nas escadinhas das ruelas íngremes, ou nos becos mais escondidos. Como se o tempo tivesse parado neste pedaço de Lisboa.

UM BAIRRO DE MARINHEIROS

Alfama, bairro velho da Capital, conserva ainda os traços característicos da Lisboa antes da conquista aos mouros. Nem o sismo de 1755, que devastou boa parte da Capital de Portugal, nem as exigências da evolução dos tempos modernos conseguiram alterar o seu estilo. Nascido fora da alcáçova* do castelo, o Bairro de Alfama, transformou-se, a partir do século XlV, num local marinheiro, frequentado por marinheiros, frequentado por pescadores, mareantes e trabalhadores das fainas do rio ou do mar.

No seu labirinto de escadinhas, becos e ruelas, Alfama possui grandes riquezas de uma arquitetura única, onde, ainda hoje, se encontram gravados nas pedras sinais que indicam as casas de pilotos e capitães do mar. Nestes sítios de traços singulares é possível tocar nos telhados através das janelas rendadas e dos estendais de roupa a enxugar, tantas vezes, retratados pelos homens das artes.

No “Chafariz de Dentro”, dono de um invejável caudal, recolhia-se a água que abastecia as naus que atracavam no Tejo. Toda a sua vida era feita em função do rio e do mar. Mesmo as práticas religiosas eram influenciadas pela atividade marítima. Assim foram surgindo capelas e irmandades, como a dos Remédios e do Espírito Santo.

Ninguém a descreveu melhor que o jornalista e olisipógrafo* Norberto de Araújo que tem o seu nome numa das ruas do bairro de Alfama. Este apaixonado por Alfama descrevia-a ao pormenor: “Labiríntica, confusa, aglomerada, polícroma, torturosa, contorcida, cheia de abraços de ruelas e de beijos, arcos, alfujas*, becos, escadarias e planos, serventias e pátios, um único Rossio: o “Chafariz de Dentro”; uma única Avenida: Os “Remédios”; um único Monumento: a “Torre de São Pedro”; postigos, quintas, cunhais, muros floridos, brasões, balcões, poiais*; cruzes de ermida, registros de azulejos, lápides foreiras, siglas, grades, portais esquecidos, colunas, pedras soltas, restos de muralha; em penas em bico, andares de ressalto, varões de apoio, frestas, balaústres, janelas arrendadas, janelas geminadas, janelas de reixa*; mil baiúcas*, exércitos de gatos, coros de pregões, tumulto e resignação, arraial perpétuo de roupas estendidas (...); gentes do mar, gentes das oficinas, vendilhões, nuvens de meninos (...)"

A Marcha de Alfama é promovida desde 1983 pelo Centro Cultural Dr. Magalhães de Lima. Já obteve resultados excelentes, entre eles, quatro primeiros lugares, dois segundos e dois terceiros. Fundada em 1975, esta coletividade pretende servir, sobretudo, os jovens do seu bairro, desenvolvendo várias atividades culturais e desportivas: A sua ação junto dos moradores do bairro mereceu o reconhecimento público com a distinção de Membro da Ordem da Liberdade, entregue por Mário Soares, na altura Presidente da República de Portugal.
 
MARCHA DE ALFAMA
Letra e Música de Amadeu do Vale e Carlos Dias

“Alfama não envelhece
E hoje parece
Mais nova ainda
Iluminou a janela
Reparem nela
Como está linda.

Vestiu a blusa clarinha
Que a da vizinha
É mais modesta
E pôs a saia garrida
Que é só vestida
Em dias
de festa.
(Refrão)

Becos escadinhas
Ruas estreitinhas
Onde em cada esquina
Há um bailarico.
Trovas tão singelas
E em todas elas
Perfume de mangerico.

Rios, gargalhadas,
Fados, desgarradas,
Hoje em Alfama é o demônio
E em cada canto,
O suave encanto,
Dum trono de Santo Antônio.

Já se não ouvem cantigas
E as raparigas
De olhos cansados
‘Inda aproveitam o ensejo
Pra mais um beijo
Dos namorados.

Já se ouvem sinos vibrando
Galos cantando
À desgarrada,
Mas mesmo assim dona Alfama
Não vai para a cama
Sem ser madrugada.
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NOTAS
Alcáçova – local fortificado; fortaleza.
Alfujas – lugares frequentados por gente desclassificada; antros.
Baiúcas – bodegas, tabernas
Olisipógrafo – estudante das temáticas culturais, históricas, sociais e económicas que versam sobre a cidade de Lisboa.
Poiais – assentos de pedra junto à parede, na entrada de uma casa.
Reixas – Grade para proteção de portas, janelas para barrar a passagem de folhas e outros detritos em água corrente.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 8: Saudade Intensa

 

Cecy Barbosa Campos (A Colheita)


A terra se abria com a face sulcada de anciã infértil. O homem ajoelhado, inutilmente, molhava com suas lágrimas aquele solo ressecado que fora, um dia, tão promissor.

Lembrava quando ali chegara, jovem e cheio de esperança. Trazia consigo a mulher-menina, sua companheira de infância, e que seria sua companheira por toda a vida.

Conseguira, com muito esforço e muita força dos braços e das pernas, juntar um dinheirinho para comprar o pequeno barraco e o pedaço de terra, onde pretendia viver com a sua princesa e criar os filhos que viriam no futuro.

Poderia, com o tempo, melhorar o barraco que, com a ajuda das mãos laboriosas da mulher, se transformaria num castelo.

Chegaram felizes e, em alguns meses, Jovina prenhe, cantava e cuidava de seu reino, enquanto a terra deixava que crescessem em seu útero, as sementes que o Tônico lançara. No momento certo, a terra fecundada traria à luz aquelas germinadas e, também, a semente plantada em Jovina surgiria em busca de vida e da luz do sol.

Assim aconteceu e, com a colheita, Tonico pode até comprar um berço para o bebê que ele não queria em caixote faz de conta.

O menino crescia, robusto e saudável, aproveitando bem do leite de Jovina, que ria e cantava, dando seu peito ao filho guloso, a cada vez que ele choramingava, mesmo que não fosse de fome.

Deitado na relva forrada com um pano limpinho, que Jovina estendia para não dar coceira no menino, ele brincava, movendo os bracinhos, sempre que uma borboleta passava ou um beija-flor se achegava, atraído pelas flores bem cuidadas que tinham sido plantadas à frente do barraco.

E Tonico chorava, pensando no dia em que seu menino fraquinho e doente, não teve remédio para se recuperar. Se foi a água, não sabia. Gente da redondeza falava que a água do açude fazia muita doença. O menino gordinho foi murchando e nada ficava em sua barriga que inchava apesar de vazia.

Chegar ao povoado, buscando ajuda levava tempo, mas Jovina e o marido foram andando com o filho nos braços, até que no posto falaram que não tinha mais jeito, e que o menino não voltaria com eles para casa.

Voltaram sozinhos com sua amargura, sem falar nem chorar. Depois de chegar, a dor silenciosa de Jovina ainda mais machucou o marido que, com o peito apertado, abraçou a mulher sem nada dizer.

Depois daquele dia, Jovina nunca mais falou. Olhava o vazio, sentava no banco em frente do barraco e ali ficava, como se estivesse pondo atenção no menino que brincava na relva.

A terra ressequida não mais germinou e nova colheita não mais existiu. Tonico tentou: Quem sabe a terra fecundada traria Jovina de volta pro mundo, tirava ela daquela paradeira e até trazia um outro menino pros dois?

Porém, a chuva não veio e a água do açude não era suficiente para molhar o solo e dar vida às sementes que o Tonico lançara. Nem o amor de Tonico foi bastante para fertilizar o útero ressecado de Jovina, que ficara estéril de tanta tristeza.

E Jovina foi sumindo, sumindo, magrinha e quieta, sem mais cantar, até que um dia. sentada no banco, olhando o lugar onde o menino ficava brincando na relva, morreu como um passarinho.

Tonico chorando, caiu de joelhos molhando com suas lágrimas, inutilmente, aquela terra que deixara de ser mãe.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.