segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Quadras de Autores Desconhecidos


Adeus, para sempre adeus!
Ingrata sem coração:
Tu és pia de água-benta
onde todos põem a mão.
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Encontrei o dá e toma
na rua do toma lá;
inda não vi dá sem toma,
nem toma sem deita cá.
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Eu já fui à sua casa
e já sei o que ela é.
A fartura que vi nela
foi pulga e bicho de pé.
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Eu jurei de nunca mais
dizer adeus a ninguém.
Quem parte leva saudades,
quem fica não vai no trem.
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Eu não quero, nem brincando,
dizer adeus a ninguém:
quem parte, leva saudades,
quem fica, saudades tem.
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Eu recuso mulher nova,
que é espelho dos enganos:
Quero uma velha bem velha
de vinte, ou vinte e dois anos
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O amor de um estudante
não dura mais que uma hora:
toca o sino, vai pra aula,
vêm as férias, vai-se embora.
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Os rapazes de hoje em dia
são falsos como melão:
tem de se partir um cento
para se encontrar um são.
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Quem é pobre, sempre é pobre,
quem é pobre, nada tem;
quem é rico sempre é nobre
e às vezes não é ninguém...
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Quem fala de mim, quem fala.
Quem fala de mim, quem é?
É algum chinelo velho
que não me serve no pé.
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Quem quiser ter vida longa
fuja sempre que puder
de médico, boticário,
melão, pepino e mulher!
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Quero cantar, ser alegre,
que a tristeza não faz bem;
Inda não via tristeza
dar de comer a ninguém.
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Se onde se mata um homem
pôr uma cruz é preceito
tu deves trazer, Maria,
um cemitério no peito.
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Tanto limão, tanta lima,
tanta silva, tanta amora,
tanta menina bonita...
Meu pai sem ter uma nora!
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Tenho tosse no cabelo,
dor de dentes no cachaço,
sinto canseira nas unhas,
não vejo nada de um braço.
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Todo sujeito sensato
sabe a verdade de cor:
A mulher bela, de fato,
sem fato fica melhor.
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Você diz que sabe muito,
há outros que sabem mais;
há outros que tiram pomba
do laço que você faz.
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Vou deitar a despedida,
por hoje não canto mais;
já me dói o céu da boca
e o coração inda mais.
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Vou-me embora, vou-me embora,
para aqui não volto mais,
que eu não sou bonde da Light,
que vai pra diante e pra trás.

Fonte:
Idel Becker. Humor e Humorismo. SP: Brasiliense, 1961. Disponível em Projeto Releituras
Acesso em 19 de fevereiro de 2008. 

Dorothy Jansson Moretti (Uma Historinha bem Antiga)


O Cambuci era balzaqueano (se posso usar essa palavra), pois o bairro tinha ainda trinta anos, na época em que se passa este fato.

Eu era menina pequena, morava em Itararé e estava de férias em São Paulo, na casa do juiz Dr. Oscar Martins de Mello, na rua que então se chamava Apiaí (nas placas a grafia era Apiahy). Hoje o nome é outro, que não me ocorre no momento.

A empregada da casa era Luzia, uma morena sarará muito prosa, de quem Floriza, filha do juiz, e eu, ouvíamos mirabolantes histórias em que ela, Luzia, figurava como estrela principal. Ela costumava guardar o dinheiro que economizava durante o ano, para gastá-lo todo no Carnaval em fantasias de luxo, caras e vistosas. Era uma foliona para Arlequim ou Pierrot nenhum, botar defeito.

E o Carnaval já se prenunciava. A marchinha “Seu China”, tocava o dia inteiro no rádio da casa e, naturalmente, no dos vizinhos. Eu acho oportuno aqui, gravar a letra da marchinha: Lá vem o Seu China na ponta do pé / ligui-liligui-liliguililé / dez tões, vinte pratos, banana e café / ligui-liligui-liliguililé. / Chinês come somente uma vez por mês / não vai mais a Shangai buscar a “butterfly” / Aqui com a morena fez a sua fé / ligui-ligui-liguilé. (Se alguém souber o que significa “dez tões”, agradeço pela ajuda. Seria por acaso “dez tostões”?)

Outra música que os rádios tocavam diariamente era uma valsinha que o palhaço de um circo cantava... E a gente também: Eu fui à cozinha fazer o café / a pulga malvada mordeu o meu pé./ Eu fui à cozinha fazer o almoço / a pulga malvada mordeu meu pescoço./ Eu fui à cozinha fazer o jantar / a pulga malvada mordeu meu calcanhar. / Como pula, como se agita / como é perversa essa pulga maldita! / (bis). Esse era o refrão que se repetia a cada “ida à cozinha”.

Era época de Natal e com Dona Rosinha, esposa do juiz, e a filha Floriza, íamos até a Vila Prudente, encomendar uma árvore viva, um pinheiro para enfeitar a nossa festa natalina. A rua paralela era a Muniz de Souza, que tinha uma caída íngreme para o que se poderia, mesmo, chamar de buraco. E no buraco havia uma fileira de cortiços que apesar de serem construídos de alvenaria, feios do jeito que eram, bem poderiam ser taxados de barracos.

Ao sairmos, atraiu nossa atenção um garoto subindo pela escada que vinha do buraco para a Rua Apiaí. Chegando, sorrateiro, ele olhou furtivamente para a direita e para a esquerda, com muita atenção. Depois, virando-se, deu um discreto assobio lá para o buraco. Curiosas, nós ficamos observando. De lá debaixo surgiu uma bonita moça muitíssimo bem vestida, com luvas, chapéu e bolsa de muito bom gosto. Deu uns trocados para o menino, e sentindo-se segura, calmamente seguiu até a parada de seu ônibus. Divertidas, nós percebemos o porquê da coisa. Ela não queria que alguém visse de onde assomava toda aquela elegância, e mandava o garoto espiar primeiro, para saber se o trecho estava “limpo”... Um bom expediente.

Esta é a minha “historinha antiga”.

Surpresos com a minha boa memória?

Ora essa! Afinal, não foi há tanto tempo assim... Apenas setenta anos!...

Fonte:
Texto enviado pela autora. Disponível em Sorocult.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Adega de Versos 100: Elisa Alderani

 

Humberto de Campos (Elas...)

O relógio da igreja próxima havia acabado de anunciar as dez horas da manhã quando a encantadora mundana Suzete Latour penetrou, nervosa e célere, na risonha "garçonniére" do jovem advogado Silvestre Lobato, que envergava, ainda, àquela hora, o seu felpudo roupão de banho.

- Isto é certo? - indagou a rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão esquerda, enquanto atirava para uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de palha da Itália, florido como uma campina pela primavera.

A notícia do jornal era, nada mais, nada menos, do que o noivado do ilustre bacharel com uma senhorita de família distintíssima, chegada recentemente de São Paulo. Sem tocar na folha que a amante lhe estendia, o rapaz respondeu, simplesmente, acendendo um cigarro:

- É.

Essa resposta fria, seca, brutal, desnorteara Suzete. Aquela afirmativa, embora esperada, fora, para ela, um golpe no coração. Fulminada por esse monossílabo, a rapariga segurou-se ao espelho da cama, para não cair. De súbito, porém, subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, e foi vermelha, rubra de cólera, com os olhos brilhantes e os dentes cerrados, que ela, amassando na mão o jornal, rugiu, num desespero de leoa ferida:

- São assim, os homens! Nascem, dizem eles, para o amor, para sorverem, altivos e alegres, todos os gozos da vida. Encontram no seu caminho uma mulher cheia do mesmo sentimento, disposta a conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que eles experimentem, até o êxtase, a glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-se a eles; dando-lhes venturas que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a taça do prazer, da alegria, da felicidade livre, para que a esvaziem, até o último gole. E, no entanto, eles têm vergonha, têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que não esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu coração, a mulher-mentira, a mulher-falsidade, a mulher-simulação, que lhes não entrega nem a alma, nem o corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a exigências sociais! À mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento preferem eles, covardes diante do mundo, aquelas que não têm coragem para vencer, para atirar longe, em nome do seu amor, a grilheta das conveniências!...

Cabisbaixo, olhos pregados no tapete semeado de flores de seda, o rapaz ouvia, sem um protesto, a explosão daquele cofre de jóias malditas, daquela criatura venenosa, mas admirável, que o guiava, há três anos, pelo complexo labirinto da vida boêmia. E a rapariga continuava a andar, agitada, de um lado para outro do compartimento, passando, nervosa, as mãos finas, alvas, esguias, pelos finos cabelos dourados:

- É bom, mesmo, que eu seja punida. A virtude, para os homens, é a falsidade, é a simulação, é a mentira. Eles não sabem que o amor é incompatível com o pudor, com o receio, com o respeito às convenções, e que ele está, só ele, acima da vida e acima da morte!

E, numa onda de soluços mal sufocados, crispando os dedos:

- Infelizes! Buscam o amor, e onde o encontram, puro e selvagem, fogem dele! Procuram a sinceridade, a lealdade feminina, a mulher que não mente, nem com a sua boca, nem com o seu coração, nem com a sua carne, e, quando querem amparar diante da lei uma criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem imaginar que a timidez é, nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as mulheres que amam não calculam nem pensam!...

Arrebatada pelas próprias palavras, Suzete limpou os olhos no lencinho de seda, já ensopado de lágrimas, e, na mesma agitação, tomou o chapéu, disposta a partir.

- É a última vez, sabes? Nunca mais me verás no teu caminho. Adeus!

E ia já no rumo da porta, quando ouviu uma voz, que era um gemido:

- Suzete!...

A rapariga voltou-se, imperativa. Sentado na cama, com o rosto molhado de pranto, o rapaz a fitava, olhos implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e ouviu, então, esta súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma capitulação para a vida e para a morte:

- Suzete... Fica!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Livro em Domínio Público.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 19


Ainda senti a fragrância
do suor da primavera,
e o cheiro de minha infância
sobre as cinzas da tapera!
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A lua, sobre a cascata,
beijando as águas, decreta
que a noite, é de serenata,
dos bandolins, do poeta!
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A música que conforta,
que cura mágoas e dor...
às vezes, também transporta
falsas promessas de amor!
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A natureza distinta
cora pinceladas extremas,
ao por do sol, põe mais tinta
de saudade, em meus poemas!
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Ao ver na poça uma lua,
olho o céu, paro e medito,
aos pés da poça da rua,
fotografando o infinito!
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A saudade e a solidão,
em nada são desiguais.
São feras sem coração
e sem doçura em seus ais!
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Crê nos reveses da vida,
não nas promessas servis;
que a ambição vive escondida
por trás de falsos perfis!
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Da ternura, peregrinas;
do amor, grandes construtoras...
As mães, também são divinas,
mesmo sendo pecadoras!
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Enquanto há mãos escondidas,
fechadas entre os irmãos...
Há muitas mãos excluídas
à procura de outras mãos!
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Ergue o braço, estende a mão,
acolhe os mais oprimidos,
que Deus inclui na inclusão,
quem acolhe os excluídos!
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Eu sei que no amor se exprime,
do choro ao canto da fonte;
mas o amor é mais sublime
no regaço do horizonte!
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Lembrando canções antigas,
de volta ao meu velho chão...
Vi muitas sombras amigas
na orquestra da solidão!
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Mãe preta, de olhar sem brilho,
presa às algemas, no chão...
Dava o leite de seu filho
aos filhos do seu patrão!
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Medindo as forças, parece
por mais que eu possa supor,
que igual a força da prece
só mesmo a força do amor!
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Mesmo nas horas mais graves,
quando em silêncio, eu medito...
Ouço os conselhos suaves
das confissões do infinito!
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Na dor da mãe, tão sofrida,
ao ver o filho, eu confesso,
ter visto a dor da partida
pelo abraço do regresso!
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Não se curve ante o cansaço
das horas do entardecer!...
Espera o novo regaço
da aurora que vai nascer!
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Nas cinzas de uma coivara,
que gesto de amor sublime;
Uma flor da cor mais rara,
perfuma as mãos desse crime!
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Nossa trova se assemelha,
seja aqui, seja onde for...
a nossa Rosa Vermelha,
símbolo eterno do amor!
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Ó, velho mar, quem vós sois?
eu percebo em vossos ais,
que o entardecer de nós dois,
tem sentimentos iguais!
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Por não temer nada disso,
vim descobrir bem depois,
cigana, que teu feitiço
pôs mais feitiço em nós dois!
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Quem me dera que essa voz
que escuto, mesmo à distância,
fosse do amor, que entre nós,
vem desde do tempo da infância!
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Se a solidão, eu descarto
e, entre os véus da noite avança,
apago a luz do meu quarto
e acendo a luz da esperança!
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Se ofertas flores, se ofertas,
a quem te fere e magoa,
tu terás portas abertas,
no Reino de quem perdoa!
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Um livro velho, sem cor,
mudo, num canto da sala,
guarda um bilhete de amor
que de nós dois, tudo fala!

Fonte:
Enviado pelo trovador: Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Fernando Campanella (Conversa de Compadres)

Conta-se que lá pelas bandas do Curralinho, a umas boas léguas de Santana de Caldas, vivia um homem, chamado por Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar os grãos, para gerar maior lucro e evitar dissipação.

Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Possuía tal homem uma azenha, onde transformava o milho em fubá ou quirera. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo parte de sua safra de milho para a troca com a farinha ou o fubá. E o Sr. Bastião sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.

Se era hora do café, às crianças, cujos pais até seu sítio chegavam para uma visita, de amizade ou a negócio, era dada apenas a metade de um bolinho de chuva que a esposa fazia; se hora do almoço, uma lasquinha cozida do imenso castrado que abatera…Tudo calculado, medido, regulado.

Seus cavalos eram os mais belos e mais possantes, seu milharal o mais viçoso, seu gado o mais gordo da região.

Conta-se , também, que Bastião Medonho era um caloteiro de primeira, mau pagador, embora houvesse amealhado uma pequena fortuna, que esquentava o único banco da pequena Santana de Caldas. Acertava suas dívidas só quando não havia mais jeito e pesava contra ele a ameaça de um processo na comarca da região.

Ora, havia um compadre seu, o Sr. Maneco da Lua, um homem de caráter íntegro, pródigo, uma ‘candura de pessoa’ , como se dizia por lá. Conheciam-se os dois desde que nasceram. Brincaram juntos, as famílias tinham um laço de compadrio que remontava há várias gerações, embora morassem distantes.

Acontece que, certa vez, o Sr. Maneco vendera um belo cavalo para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que os unia desde o berço. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era ‘cumpadi’, amigo dos ‘bão’ um ‘irmãu’. E se o companheiro não pagava era porque devia estar em situação ‘das pior’, como este sempre lhe dizia, chorando as mágoas, prometendo saldar a dívida logo que se recuperasse.

O tempo passou e Bastião nunca mais deu as caras no sítio do compadre, mais por safadeza que por vergonha de encarar o bobo do compadre.

O Sr. Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Colocava os valores do sentimento acima de tudo, a fidelidade, a integridade eram seus bens maiores, embora fosse constantemente acusado de ingenuidade pela esposa e familiares.

E certa feita, em regresso de uma viagem de vários dias, Bastião passou em um armarinho de Santana para a compra de alguma peça de vestuário. E viu que lá estava o Maneco. Tentou disfarçar, evitar o encontro, um certo mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma. Mas o bom compadre dele se aproximou, em sua aura de cordialidade, sempre discreto em sua elegância, o chapéu bem limpo, os óculos, a calça mais curta, deixando ver as botas sem meia, o embornalzinho a tiracolo.

– Salvi, Cumpadi Bastião. Comu tem passado a famia? E ocê, irmãu, já tá melhozinho lá nu sítiu? Miorô as coisa por lá?

– Vigi, cumpadi, a situação tá ruim, mais tá ruim… tô penano dimais, doença no gado, praga no milhu, perdi tudinhu, Deus tenha dó….

E continuou a ladainha, tentando despertar piedade no amigo, evitando tocar no assunto da dívida contraída.

Porém, o Maneco também nem referência a tal dívida fez. Só lembrou para o Bastião os bons tempos em que nadavam nas enchentes, lá no Lava-Cavalos, bons tempos da infância em comum dos dois. E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece.

Meio encolhido pela grandeza do amigo, disse então Bastião ao dono da loja -Bom sujeitinhu este Manequinhu – Pareci até um espíritu di tão levezinhu …. E riu, meio a contragosto.

– O senhor tá bem? – perguntou o proprietário do armarinho. – Tava falando sozinhu… Tá passandu bem?

– Tava proseanu aqui com meu Cumpadi, ora, o Maneco da Lua, irmão dos báum…..

– O Sô Maneco lá da Juruaia? – indagou o dono da loja, espantado?

– Sim, meu cumpadi….

– Ele faleceu esta manhãzinha … O corpo tá lá na igreja agora…

Diz a lenda que Bastião, após confirmar falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, se arrepiou dos fios do cabelo às unhas do pé, e disparou da loja, como se o Maldito, o Coisa-ruim, a Besta-de-Barba-de-Bode, o tivesse atacado.

Seu sítio foi vendido, a família dali se foi. De Bastião Medonho não mais se ouviu falar.

Se honrou as dívidas, se continuou medonho, não se sabe…Se morreu ninguém sentiu.

Fonte:
Palavreares. Acesso em 13 novembro 2011.

Aparecido Raimundo de Souza (Cotidiano número um)


DURANTE TODA A MINHA VIDA, nunca pensei confesso, nunca me passou pela cachola, sinceramente falando, que um dia fosse me cansar. E pior, cansar de viver. Hoje, aos sessenta e nove, compreendo, a gente se cansa sim, de tudo. De todos. Se melindra, se farta, se enraivece, se desgasta, com bobagens, a ponto de se incomodar com uma coisa banal procurada ao acaso, tipo (uma caneta, uma camisa, um par de meias) que por algum motivo não estava no lugar onde deveria ser encontrada.

De tudo é possível se cansar. Mas, de viver, de viver é quase surreal, inimaginável e, de certa forma, desatinadamente insano. Fui pego para Cristo. Aconteceu comigo. Talvez um dia, não sei, idêntico fato ocorra com alguém do meu convívio. Cansar de viver. Cansar de estar sem fazer nada, é a mesma coisa que viver, ou melhor, vegetar num lugar distante como num útero acolhedor. Viver é como estar respirando por obrigação, por dever de ofício.

É levar uma vida estranha, imprópria, misteriosa, uma existência que não era minha, como se, em algum lugar do passado, eu a tivesse roubado de alguém. Geralmente a gente se sente fatigado e exausto, pelo árduo rotineiro do trabalho, de pegar a condução com pessoas saindo pelo ladrão, de criaturas sobrecarregadas, tanto para ir, como para voltar, de segunda a sexta, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

Rotina estressante, é bem verdade. Todavia, se contínua, se avança, se desembesta, segue em frente, aos trancos e barrancos, sem parar, sem dar tréguas. A gente se aperreia dos elos que nos une. Nosso ser se agasta da casa, se desgosta da mulher, se enerva com os filhos, se entoja dos problemas que eles arranjam na escola, com os coleguinhas.

A certa altura da corrida contra o tempo, bate uma fadiga de todo santo dia ver as mesmas caras, os mesmos amigos. Aborrece parar no boteco da esquina, de almoçar sempre no restaurante mantido pela empresa... igual mesa, idêntico prato de comida, mesma garçonete (apesar da sainha curta que ela usa e do rostinho com um sorriso encantador).

Dá uma leseira mórbida dos companheiros que recontam as velhas e surradas piadas ou, expõem, incansavelmente, as tarefas postas sob as suas responsabilidades. A gente se abomba (1) dos parentes, dos irmãos chatos, das brincadeiras sem graça e repetitivas, das fofocas, do quadro sistêmico que não se altera nunca.

A gente procura se esquivar da mediocridade que carregamos para baixo e para cima, como um fardo extremamente pesado e danoso à saúde. A gente se esfalfa (2) de olhar sempre pela mesma janela, ver a rua, respirar as casas, dar bom dia ou boa noite aos vizinhos, e as vistas miúdas pelo contemplar do mesmo quintal, os mesmos vasos de plantas, o mesmo lixo acumulado produzindo moscas a bel prazer na calçada suja da rua.

Na garagem o possante dos tempos do ronca. A lata velha caindo aos pedaços, os pneus gastos, o infeliz serve apenas para os finais de semana, ainda assim se sobrar uma merreca para a gasolina, o que nunca passa de uma volta na praia com a família. A gente se esbandalha (3) de respirar, de deitar todas as noites, levantar às cinco horas da matina, tomar o café correndo, e à noite, sentar o cansaço arreliado (4) no sofá sujo da sala.

Estou por aqui a alguns passos de jogar tudo para o alto. Me vejo cheio por ver o jornal maquiado, com tudo dando certinho. Passou dos limites assistir as propagandas maçantes, onde cada anunciante tem a solução milagrosa e na dose certa para fazer com que a gente compre o produto e aumente a conta da próxima fatura do cartão de crédito.  

Depois o mais degradante. Engolir a novela. Sempre a titica repetitiva. A gente se abodega (5) até os ossos dos filmes que, igualmente, se reincidem numa continuidade irritante e doentia. A mente se enraivece e se sobrecarrega da inconstância das mesmas coisas, sempre, sempre. Observo que nada muda. Tudo é sempre igual, como um caminhão abarrotado de japoneses, embora alguém viva anunciando por aí, que “nenhum dia é igual ao que passou...”. Pode até ser. Particularmente acho quem disse tremenda asneira, deveria se enforcar sem mais delongas, num pé de alface.

O fato é que chega uma hora, bate uma sensação de impotência, de sofrimento reprimido, de sonhos desfeitos, de planos não realizados. Do nada, aparece uma impressão tétrica de causa perdida, de tempo vivido à esmo, sem futuro, sem hoje e sem amanhã. É como se o próprio ceticismo pirrônico (6) que alimentamos no peito houvesse sido atingido por uma lança afiada e sangrasse pelas veias a derradeira gota do “eu” espúrio (7) que habita dentro de cada um de nós.

Sinto que estou prestes a engolfar a alma e me remeter às profundezas de um nada negro e sem volta. Nessas horas, a gente se pega abalado, se vê emocionalmente tolhido, amarrado, de pés e mãos, os olhos vendados, garganta apertada, indefeso, como se o mundo tivesse despencado do alto de um penhasco imenso e escolhesse cair exatamente sobre a nossa cabeça.

Tenho a impressão de que o medo me bate à porta com um estrondoso ruído, ao tempo em que o receio do que poderei encontrar lá fora (se abrir a guarda), me desassossegará o espírito e o porá em frangalhos. A gente, de uma forma ou de outra, se amofina das músicas, do romantismo, do amor, do amar, de como amar, de como renovar, a cada novo segundo, o carinho pela companheira de tantos janeiros sob o mesmo teto.

Mesmo caminho, a afeição pelos filhos. O aconchego pelos consanguíneos (pai, mãe, avô, bisavô) a turminha antiga e amarrotada que faz parte do esteio familiar cheio de pelancas. A gente se amua de tudo. Um sinistro prognóstico me lança à cova do abismo, e não só dela, da depressão e do terror. À linha disso, me invade uma vontade quase mórbida de não querer mais acordar.

De contrapeso, de colocar um basta definitivo, um ponto final, no meu viver, enfim, é difícil, complicado, inexplicável, inexorável. Não sei por que cargas d’água, esse vento de giro rápido resolveu embaralhar meus cabelos, levar para longe os meus planos para formalizar uma vida mais digna. Pois é: aconteceu comigo. Literalmente entediei. Grosso modo, me enfadei de... vejam se é possível uma coisa dessa natureza. Cansar de viver. EU CANSEI!

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Vocabulário enviado pelo autor:
1 Abomba – O que cansa ou deixa exausto.
2 Esfalfa – Tudo o que esgota ou causa fadiga.
3 Esbandalho – Estragar, quebrar, tirar da ordem.
4 Arreliado – Irritado, incomodado.
5 Abodega – Aquilo que emporcalha ou produz zanga.  
6 Pirrônico – Rabugento e teimoso.
7 Espúrio – Adulterado, ilegal ou viciado.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Tertúlia da Saudade 01

 

André Carneiro (Do outro lado da janela)

Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados... Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. Alguns filmes terminavam por volta das três horas da manhã. O técnico foi chamado de novo, e tudo se repetiu, até que ele resolveu vender o aparelho por qualquer preço e comprar outro, com sacrifício, o melhor e o mais caro nos anúncios.

Até a meia-noite a imagem estava nítida, mas meia hora depois apareceu a sombra, vaga e móvel, como se fosse parte de outra transmissão. A mancha não era estática, tinha movimento, suas bordas modificavam-se, dissolviam-se como algo em crescimento, em evolução. É isso, em evolução. Ele notou que a mancha era uma coisa viva, às vezes tinha tanto interesse quanto os filmes. Ele se perturbava olhando para aquilo, tentando descobrir o que era, o que significava, enquanto se esforçava para não perder o que estava acontecendo atrás, no filme que acompanhava. Atrás? Por que atrás? A mancha não estava na frente, misturava-se à imagem do programa transmitido.

Ele já mudara a televisão de lugar, comprara filtros especiais, inutilmente. Embora não falasse com ninguém do prédio, um dia, no elevador, quando conversavam sobre novelas, criou coragem, perguntou se eles notaram um defeito, uma leve mancha na imagem. Não, ninguém vira nada parecido.

Aos poucos, desistiu de lutar contra a mancha. Não chamaria mais os técnicos, não tentaria eliminar o defeito. Estava aprendendo a conviver com ela. Entretanto, a mancha não era somente algo que tapava o que estava atrás. Ela vibrava e se mexia com tal sutileza que parecia um pequeno programa dentro do outro que ele via. Surpreeendeu-se, um dia, ao perceber que a mancha estava também aparecendo à tarde, nem se lembrava há quanto tempo. Agora, quando o programa não era de seu especial interesse, ele olhava para a mancha, acompanhava as suas bordas, tentava calcular quanto ela tinha crescido e até onde ia chegar.

Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreeendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

A mancha estava lá. Agora bem maior.

Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem , percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. Comia coisas frugais, olhando para o vídeo. Já não importava selecionar canais, procurar programas. A mancha estava ali e fixando-a com atenção revelava coisas, fisionomias que ele não identificava, mas lhe pareciam importantes. Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

Assistia aos programas até o fim. Quais programas? Não saberia descrever ou dar o título de nenhum. Ele via televisão e a mancha não existia mais. Era o próprio programa. O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram... o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas... não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 31 jan 2001. Disponível em CARNEIRO, André. A máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: EDUFSCar, 1997. p.21-23.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 11 – Madrigais

LAURÉIS

“Quanta razão há de te amar."
(Ct. 1.4)

Tua face é formosa,
É quente a tua mão,
Porém, muito mais
É o teu coração.

Teus lábios vermelhos
Só trazem saudade,
Porém, mais ainda
Traz tua bondade.

Teu timbre de voz,
Por si, tem alento,
Mas nada supera
Teu temperamento.

Cabelos em pluma
Qual véu de inocência,
Mas nada ao valor
Da tua consciência.

Teus olhos são virgens?
Teus seios - candura,
Mas quanto é maior
A tua alma pura.

Tua boca é preciosa
Como ouro de lavra,
E não se compara
Com tua palavra.

Teu ser é perfume
De mil manacás,
Mas é superior
O amor que me dás.

Teu ser, por inteiro,
É bela canção;
És letra de um hino,
És minha oração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERDOA-ME

"Volta, volta, ó Sulamita.”
(Ct.7.1)


Perdoa-me, Amor,
A intransigência;
Olha pra mim
Dá-me clemência;
Não vai deixar-me
Aqui sozinho;
Preciso muito
Do teu carinho!

Não me olhes mais
Com duros olhos!
- Olhos de águia
Nos meus escolhos!
No rosto lindo
Eu vi rancor,
Dilacerando
O meu amor.

Eu sou deserto
Perdido ao longe,
Que na oração
Medita o monge;
Eu sinto a brisa
Beijando a areia,
Teu doce hálito,
Linda Sereia!

Canta pra mim!
Sibila ao vento!
Ó Serenata,
És acalento!
Tens o amor
Que me inebria!
És meu manjar
- Minha ambrosia.

Oh, triste vida!
Oh, vida agreste!
Naquela escarpa
Há flor silvestre...
O sonho meu
É ter meu céu,
Quando provar
Teu doce mel...

Perdoa-me logo,
Se te feri,
Dá-me um presente:
Reza pra mim!
Fica comigo,
Se teu eu for!
Dá-me um sorriso!
- Eu quero amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERMUTA DE AMOR

"Tua voz é doce, e delicado o teu rosto”
(Ct. 2.14)


Permutarei contigo um bem precioso,
Façamos, em cartório, um bom negócio;
Que o digam a razão e o sentimento,
Porque serei de ti bem mais que sócio.

Que o poderoso cérebro, qual juiz,
Testemunhe também o nosso engenho;
Se me deres pra sempre o teu amor,
Dar-te-ei eternamente o amor que tenho.

Para não acontecer alguma dúvida,
Com tintas arteriais fiquem gravados
Os termos do contrato, ultra* "sui generis"**,
Em duas almas gêmeas registrados;

"Com ternura exclusiva visceral,
Quero que o teu amor sempre me ame;
E o véu da tua sombra bem me cubra,
Com puro pensamento, por mim, clame.

Irei viver - viver por teu amor,
Vencerei este mundo em torvelinho;
Serei gigante à frente das procelas,
Farei do leão um mero cordeirinho.

Quão milagrosa a força deste amor,
Que vai lançar o mal na sepultura;
Fará do vingador mundo perverso
Parnaso*** colorido de aventura.

= = = = = = = = =

* Ultra: Além.
** Sui generis: Locução adjetiva latina: Aquilo que não apresenta analogia com nenhuma outra (pessoa ou coisa). Inédito.
*** Parnaso: Fig. - Lugar de delícias.

Fonte:
Enviado pelo poeta. Disponível em Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Monteiro Lobato (Jeca Tatu: a ressurreição)

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.

Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha ideia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali murmuravam:

– Que grandíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.

– Por que não traz de uma vez um feixe grande? – perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:

– Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.

- Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.

- Bebo para esquecer.

- Esquecer o quê?

- Esquecer as desgraças da vida.

E os passantes murmuravam:

- Além de vadio, bêbado...

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça...

As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.

- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:

- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.

- Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?

- É que ele mata.

- E porque você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

- Quá! Não paga a pena...

- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.

- Amigo Jeca, o que você tem é doença.

- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.

- Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.

- Anqui... o quê?

- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.

- Essa tal maleita não é a sezão?

- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

VI

O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?"

- Ouvi, sim, senhor!

- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.

- Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras*.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

VII

Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.

- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota pra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.

Jeca abriu a boca, maravilhado.

- Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:

- Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.

- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.

- E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!...

- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.

- Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem pra remédio...

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.

- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano".

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a

- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira...

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...

XI

Ele, que antigamente só trazia três pauzinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.

- Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?

- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.

- Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!

- Quero mostrar a esta paulama (pauzada) quanto vale um homem que tomou remédio de Nhá Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.

- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!

XII

Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

- Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:

- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel...

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:

- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII

Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!

- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!

- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, veem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!...

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:

- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"...

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.

- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.

- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...

E ninguém duvidava de nada.

- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...

XVI

A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame...

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.

Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.

- Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.

O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..."

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.

Nota da redação:
Este conto foi adotado como peça publicitária do Laboratório Fontoura. Adaptado em história em quadrinhos ou na forma de folheto, ou ainda fazendo parte de almanaques, teve até os anos 60 uma tiragem de cerca de 18 milhões de exemplares. Há testemunhos de que sua leitura transformou a vida de muita gente.
==============
* Ringideira = o mesmo que rangedeira. Porção de couro ou de cortiça, que, colocada entre a palmilha e a sola do calçado, produz rangido quando se anda.
Fonte:
Projeto Memória. Conto em domínio público.

Jaqueline Machado (A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói)

Ivan Ilitch, este é o nome do cara, quer dizer, do personagem de Liev Tolstói, um juiz do interior que não vivia e cedia total confiança às normas da sociedade. Era um verdadeiro copiador de mentiras, um agradador de quem por ele não tinha amizade.

Tinha esposa e filhos, mas pouca estima pelo lar que, longe dos olhares externos, era conturbado. Ninguém se entendia. A casa e os móveis eram feitos conforme mandava as normas da época. A forma de trocar tratamentos uns com os outros, também. As mesmas roupas, os mesmos sorrisos, os mesmos vinhos. Nada podia fugir às regras.

Ivan nunca buscou realizar sonhos, encontrar o verdadeiro amor. Era um homem acomodado e de uma vida incolor, demasiadamente simples. Provavelmente suas células nunca sentiram a vibração prazerosa, que é dar uma boa gargalhada, e nem a emoção em realizar um sonho de infância.  

Levava uma vida sem emoções.  Até que, certo dia, ainda jovem, recebeu a notícia de que estava doente. E dali em diante, a situação foi piorando. Em seu leito, seu corpo se contorcia em dores de uma doença desconhecida.  Foi só então que se deu conta de que sua vida poderia ter sido totalmente diferente. E lamentou os amores não vividos, os sorrisos que ficaram presos, a liberdade de ser quem poderia ter sido e não foi. Só que o arrependimento veio tarde demais e Ivan Ilitch morreu abandonado, suplicando por um momento de felicidade, aos quarenta e cinco anos.

Essa história não é de romance, mas de vida real, faz pensar o que leva uma pessoa... Uma só não, a maioria, a ignorar sua personalidade, suas vontades, para viver de maneira pálida, fria, e segundo a vontade da falsa realidade pregada por uma sociedade inconsequente?

Eis uma boa questão para ser refletida...

A vida sem problemas é sem graça, mas sem momentos felizes, torna–se inexistente. Por isso, lute, caia, levante, ria das próprias desgraças, mas não deixe de viver! Independente de qualquer coisa não deixe de ser você.

Fonte:
Texto e capa do livro enviados pela autora.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 11

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 75

Tantas vezes vemos a alegria, o entusiasmo, a vibração dos outros, e ficamos contentes. Mas não há satisfação pessoal, porque o verdadeiro alimento do nosso bem-estar vem de nós mesmos - nossa visão de mundo, nossas realizações, nosso sucesso. E não enxergamos pequenos detalhes que são grandes insufladores de dias plenos de vida. Claro, gostamos de ver o que acontece na vida do próximo, mas a realização parte de nós mesmos, na convivência, no trabalho, no lazer.

Podemos fazer muito, realizamos pouco. E reclamamos. Não paramos para pensar que nada cai do céu graciosamente, a não ser chuva. Talvez devêssemos usar para nós a frase que Sócrates encontrou no templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". É simples, é profunda, é verdadeira.

Voltar-se para a intimidade, ocupando-se menos com as coisas materiais, povoando alguns vazios dentro de nós, cultivando as flores da estação e os frutos que surgem no caminho. Construir a alteridade, buscar a utopia que está no horizonte.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.


Sandoval Ferreira (O matuto e o fusca véio)

 

 
Havia recebido o livro do pernambucano de Iati, Sandoval Ferreira, “Meu Sertão em 12 Versos”, composto de vários “causos” em cordel, além de um DVD com o próprio autor declamando suas poesias. Já conhecia o trabalho deste escritor desde 2009, quando postei “Poesia da Água” com uma breve biografia. 

Sandoval (1983) mora em Guaranhuns/PE, é técnico agrícola e cursou a Faculdade de Marketing.

Transcrevo abaixo um “causo” que consta em seu livro, o primeiro que botei os olhos quando abri o seu livro.

Comprei um fusca fiado
Em catorze prestação
A primeira eu já paguei
O resto no pago não
É que o peste do fusca
Só na base do empurrão
 
Foi essa a reclamação
Do matuto que comprou
Um fusca véio usado
Que um malandro lhe passou
E ele voltou arretado
Pra matar o vendedor

Ele disse ao doutor
Dentro da delegacia
Nunca mais eu vou pagar
Por aquela porcaria
E Se eu não matá-lo hoje
Mato ele no outro dia

Grande foi a gritaria
E tamanha confusão
O matuto já nervoso
O vendedor com queixão
E o delegado no meio
Pra resolver a questão

O matuto disse então
O fusca não tem amortecedor
Arranhão na lateral
Falta um retrovisor
O banco já tá rasgado
E o pneu já estourou

O vendedor reclamou
Dessa vez bem irritado
Não vendi o fusca novo
Te vendi um fusca usado
Agora quer devolver ?
Tu não pegou emprestado

Pra o azar do delegado
O matuto retrucou
Só comprei aquela peste
Porque você me empurrou
Fui subir a ladeira
Ele bateu o motor

Tá vendo o senhor doutor
Ele quer subir ladeira
Comprou um fusca 69
Não uma égua andadeira
Mande esse cabra ir embora
Mode deixar de besteira

Acabou a brincadeira
Podem parar a zoada
Isso aqui não é um circo
Pra ficar com palhaçada
Ficam os dois no xadrez
E a coisa tá encerrada

Isso não meu camarada
Retrucou o vendedor
Devolvo o dinheiro dele
Dou um trocado ao senhor
Faço o que você quiser
Mas pra cadeia eu não vou

Tá muito bem seu doutor
Do jeitinho que eu queria
Eu sou um home direito
Não gosto de ingrizia
Ele pega o meu fusca
E se acaba a agonia

Livres da delegacia
Dessa vez mais conformado
O vendedor foi buscar
O fusca véio quebrado
E pra se livrar da bomba
Deu de graça ao delegado.


Fontes:
FERREIRA, Sandoval. Meu sertão em 12 versos: causos nordestinos.
Enviado pelo autor.

Guerra Junqueiro (A Mãe)


Uma desventurada mãe, louca de dor, velava o berço de seu filhinho agonizante. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava ansiosa, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer. A mãe, no entanto, causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.
 
Nisto bateram à porta, e entrou um velho miserável embuçado numa manta de arrieiro. Era em Dezembro. Lá fora, no escuro, um lençol de neve, e o vento cortando que nem uma navalha.

O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se, a chegar as brasas uma caneca de cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, tomou-lhe a mãozinha descarnada e disse para o velho:

– Oh! Nosso Senhor não mo há de levar! Não é verdade?

E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de modo estranho, em ar de duvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas deslizavam-lhe em fio pelo rosto. Sentiu-se estonteada, com um grande peso na cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou levemente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.

– Que é isto?! exclamou, lançando em roda o olhar alucinado. No berço ninguém! O velho partira, roubando-lhe a criança.

E a triste mãe, soluçante, correu desgrenhada por montes e vales, à procura do filho. Encontrou uma mulher no meio da neve vestida de luto.

– A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Vi-a a sair muito ligeira, levando o teu filho. Anda mais do que o vento, e o que ela rouba não torna a dar.

– Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-me-o! Diz-me-o pelo amor de Deus!

– Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de negro. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes te ouvi cantar, debulhada em lágrimas.

– Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.

A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram ainda mais do que as palavras.

No fim disse-lhe a Noite:

– Toma a direita, pela floresta escura de pinheiros. Por ai e que a Morte seguiu com o teu filho.

A mãe correu para a floresta. No meio, porém, dividia-se o caminho, e não sabia que direção escolher. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.

– Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou a mãe.

– Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho sem me aqueceres primeiro no teu seio, porque estou gelado.

E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima; tal é o calor febril do selo de uma pobre mãe angustiosa.

E o matagal ensinou-lhe o caminho por onde ela devia ir. Foi andando, andando, até que chegou: à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era profundo de mais para o passar a vau. Contudo urgia atravessá-lo. Num ímpeto do seu amor, arrojou-se de bruços a ver se poderia beber-lhe toda a água. Impossível! Lembra-se que Deus, compadecido, faria talvez um milagre…

– Não! Não és capaz de me esgotar, disse-lhe o lago. Sossega, e entendamo-nos. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave que as pérolas mais ricas que tenho possuído. Querendo, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: aí habita a Morte; e, as flores e as arvores que estão lá dentro, é ela quem as trata; em cada flor e em cada árvore habita a vida de um coração humano.

– Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! soluçou a mãe.

E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.

O lago então, arrebatando-a numa onda, depositou-a na outra margem, onde se erguia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe ninguém discriminava se era um monumento de arte ou uma grande montanha cheia de cavernas, grutas e florestas. Mas a pobre mãe nada podia ver, porque tinha dado os seus olhos.

– Ah! como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.

– A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste, tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?

– Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Anda, compadece-te de mim, e diz-me onde está o meu filho.

– Eu não o conheço, e tu és cega, tornou a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as levar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sitio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e descobrirás talvez o coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?

– Já nada me resta, disse a pobre mãe suspirando. Mas iria até ao fim do mundo buscar o que tu quisesses.

– Fora daqui, não preciso de coisa alguma, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros. Agradam-me. Troca-los-ei pelos meus cabelos brancos, que têm mais de mil anos.

– Só isso? volveu a mãe. Ei-los, dou-vos de boa vontade.

E arrancou os esplêndidos cabelos, o seu orgulho na juventude, outrora, recebendo em volta os cabelos curtos e inteiramente brancos da corcovada feiticeira.

Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.

Viam-se debaixo de campânulas de cristal, jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas a estourar de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas. Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois, num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes.

Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, quase a rebentar; mias viam-se também florzinhas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, cuidadas com esmero delicadíssimo. Tudo isto representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.

A velha queria-lhe mostrar tantas e tantas coisas misteriosas, porém a mãe impacientada rogou-lhe que a levasse aonde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o arfar, e, depois de haver tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração de seu filho.

– É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.

– Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte ganhará medo porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem Ele o permitir.

Nisto zuniu um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte que se aproximava.

– Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?

– «Sou mãe», balbuciou ela.

E a Morte estendeu a mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.

A mãe, porém, defendia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não magoar uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados de Dezembro.

– Não podes nada comigo! disse a Morte.

– Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe.

– É verdade. mas eu não faço senão o que Ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as, para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.

– Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que eu o encontro!

Suplicava e gemia. Tudo inútil: a Morte, impassível. Agarrou então em duas flores lindíssimas e gritou a Morte:

– Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só estas, mas todas as flores que estão aqui!

– Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração das outras mães!

– Outras mães! balbuciou a infeliz mulher, largando logo as flores.

– Aqui tens os teus olhos, volveu a Morte. Brilhavam com tal esplendor que os extrai do lago. Não sabia que eram teus, Mete-os nas Orbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que destruías, arrancando as flores. Contemplarás na miragem da água a sorte destinada a essas duas flores, e a que teria o teu filho, se porventura vivesse.

Inclinando-se então sobre a cisterna, viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e trágicos, e logo depois cenas inefáveis de miséria, de angústias e desolação.

– Nisto que vejo, tornou a mãe aflitíssima, não distingo qual a sorte que Deus destinava ao meu filho.

– É me possível revelar-te, acrescentou a Morte. Porém no que viste podias ler o destino do teu filho.

A mãe, alucinada, caiu de joelhos, exclamando:

– Suplico-te, diz: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade? Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horrendas. O meu querido filho! Quero-lhe mais que à vida. As angústias que sejam todas minhas. Leva-o para o reino dos Céus. Esquece estas lágrimas, estas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que te disse.

– Não compreendo, respondeu a Morte: Queres o teu filho ou desejas que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te?

Então a mãe, alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos, e, dirigindo-se a Deus, exclamou:

– Não me atendas, Senhor, se reclamo no fundo do coração contra a tua vontade que é sempre boa e sempre justa! não me ouças, meu Deus!

E deixou cair a fronte sobre o peito, mergulhada numa alegria dilacerante.

E a Morte, arrancando o pequenino açafroeiro, lá o foi plantar nos jardins da luz do Paraíso.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância. Livro em Domínio Público

Tautologia (Vícios de Linguagem)


A tautologia (do grego “dizer o mesmo”) é , na retórica, um termo ou texto que expressa a mesma ideia de formas diferentes. Como um vício de linguagem pode ser considerada um sinônimo de pleonasmo ou redundância. A origem do termo vem de do grego tautó, que significa “o mesmo”, mais logos, que significa “assunto”. Portanto, tautologia é dizer sempre a mesma coisa em termos diferentes.

Em filosofia e outras áreas das ciências humanas, diz-se que um argumento é tautológico quando se explica por ele próprio, às vezes redundante ou falaciosamente. Por exemplo, dizer que “o mar é azul porque reflete a cor do céu e o céu é azul por causa do mar” é uma afirmativa tautológica. Um exemplo de dito popular tautológico é “tudo o que é demais sobra”. Da mesma forma, um sistema é caracterizado como tautológico quando não apresenta saídas à sua própria lógica interna, conforme os exemplos: exige-se de um trabalhador que tenha curso universitário para ser empregado, mas ele precisa ter um emprego para receber salário e assim custear as despesas do curso universitário; exige-se de um trabalhador que ele tenha experiência anterior em outros empregos, mas ele precisa do primeiro emprego para adquirir experiência.

Observe a lista abaixo, e se utiliza alguma, procure fugir deste vício:

A partir de agora;
A razão é porque;
A seu critério pessoal (se é a seu critério, só pode ser pessoal);
A última versão definitiva (se a versão é definitiva, claro que é a última)
Abertura inaugural;
Abusar demais;
Acabamento final;
Almirante da Marinha (Só existem almirantes na Marinha);
Amanhecer o dia (amanhecer a noite você já viu?);
Anexo (a) junto a carta (se está anexo, é claro que está junto);
Atrás da retaguarda;
Beco sem saída;
Brigadeiro da Aeronáutica (Só existem brigadeiros na Aeronáutica);
Certeza absoluta;
Colaborar com uma ajuda / auxílio;
Colocar algo em seu respectivo lugar;
Com absoluta correção/ exatidão;
Comparecer pessoalmente (em pessoa);
Compartilhar conosco;
Completamente vazio;
Comprovadamente certo;
Continua a permanecer;
Conviver junto;
Criação nova;
Criar novos empregos;
De comum acordo;
Descer pra baixo;
De sua livre escolha;
Demasiadamente excessivo;
Despesas com gastos;
Destaque excepcional;
Detalhes minuciosos;
Discussão tensa;
Elo de ligação;
Em caráter esporádico;
Em duas metades iguais;
Empréstimo temporário (todo empréstimo é temporário);
Encarar de frente;
Entrar pra dentro;
Erário público (erário é o tesouro público, por isso, basta dizer somente erário);
Escolha opcional;
Exceder em muito;
Expectativas, planos ou perspectivas para o futuro.
Expressamente proibido;
Exultar de alegria;
Fato real;
Ganhar grátis;
General do Exército (Só existem generais no Exército);
Goteira no teto;
Gritar/ Bradar bem alto;
Há anos atrás;
Habitat natural;
Imprensa escrita;
Individualidade inigualável;
Inovação recente;
Interromper de uma vez;
Juntamente com;
Labaredas de fogo;
Manter o mesmo time;
Matriz cambiante;
Medidas extremas de último caso;
Monopólio exclusivo;
Multidão de pessoas;
Nos dias … , inclusive (ex: nos dias 8, 9 e 10, inclusive);
Obra-prima principal;
Outra alternativa;
Países do mundo;
Palavra de honra;
Passatempo passageiro;
Pessoa humana
Planejar antecipadamente;
Pode possivelmente ocorrer;
Preconceito intolerante;
Propriedade característica;
Quantia exata;
Repetir outra vez / de novo;
Retornar de novo;
Sair para fora;
Sentido significativo;
Sintomas indicativos;
Sorriso nos lábios;
Sua autobiografia;
Subir pra cima;
Sugiro, conjecturalmente;
Superávit positivo;
Surpresa inesperada;
Terminantemente proibido;
Todos foram unânimes;
Última versão definitiva;
Um mês de mensalidade;
Vandalismo criminoso;
Velha tradição;
Vereador da cidade;
Viúva do falecido;
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