domingo, 9 de agosto de 2020

Jane Tutikian (O Acordeão e a Bicicleta de Motor)


Difícil de saber exatamente o que passou pela cabeça do pai, quando tomou aquela decisão. Talvez porque já tivesse tentado outras coisas. Talvez porque acreditasse que a educação devia mesmo passar por isso. Eu não sei. Mas estava decidido: teria, sim, que estudar música. Desta vez, estava decidido, seria acordeão. Por mais que tentasse — ou pensasse, melhor diria se dissesse — por mais que pensasse em explicar, dizer que não queria, que não gostava, por mais que pensasse em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, por mais que pensasse em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre - eu sabia, minha mãe sabia, minhas irmãs sabiam o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim.

Tínhamos tentado o piano, mas aqueles pedais que me colocavam em um carro de alta velocidade eram muito mais sedutores do que o teclado e. Aquelas partituras não eram mais do que esboços de pistas em que as curvas e os obstáculos se desenhavam pelas claves, pelas notas cheias e vazias. Era de tirar o fôlego de qualquer sujeito! Não aprendi música inteira. Uma que fosse, só para que meu pai se orgulhasse de mim. Não aprendi. Agora, entretanto, era o que passava pela sua cabeça, não haveria mais os pedais a distrair minha atenção. E, no final de tarde do final de semana, seria bonito, minhas irmãs sentariam ao piano e eu estaria ao lado delas, no acordeão. Pensei que sempre poderia deixar de comer ou deixar de falar. Mas. Minha intuição também não me deixava saída. Corri para o quarto. Bati a porta e fiquei longo tempo assim: em silêncio. Já sabia que, com ele, não adiantava discutir nem nada. Poderia, quem sabe, levar uma surra, mas isso não me assustava, me assustava o olhar pequeno, fechado, pensativo. Fizesse o que fizesse e teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida, com toda a turma da rua andando de bicicleta! ou trocando figurinha de carros de corrida! ou montando carrinho de lomba com rolimã de aço e tudo!, teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida a longos e intermináveis solfejos. Isso é de arrasar qualquer sujeito de quase 11 anos!

Quando a campainha tocou, me apresentaram dona Conceição. Ela era gorda, baixa, usava uma saia justa que avolumava ainda mais a barriga, onde acomodava, mesmo de pé, acomodava o acordeão. Usava uns óculos pretos, de aros redondos, que aparavam uns olhinhos pequenos e sempre sorridentes. Pensava que estava ali para me ajudar e foi o mais simpática possível. Essas coisas de mulher. Ela me chamou de querido, assim que me viu, e eu odiava que me chamassem de querido assim que me viam, sobretudo uma professora, sobretudo sobretudo uma professora de acordeão. Passamos para o escritório e começou o martírio. Primeiro a mão direita. Sem olhar para as teclas, queridinho. Odiava mais ainda que me chamassem de queridinho! Teria sido uma tarde inteira de dórémifásollásidódósilasolfámirédó, se minha mãe não tivesse entrado com uma limonada e uma fatia de bolo de milho. Vamos de novo, amor. Amor era absolutamente insuportável! Não esquece de abrir o instrumento, aqui, o fole. Muito bem. Assim. Ele precisa cantar. Não. Não olha. dórémifásollásidódósilasolfámirédó.

Ficou combinado: as aulas seriam às segundas, quartas e sextas, às quatro horas da tarde. Antes disso, eu faria os temas da escola. Não me parecia nem um pouco justo! Quando eu pudesse sair para a rua, a tarde já teria quase passado, e, quando fosse noite, eu teria de entrar. Pensei em falar com a minha mãe sobre isso, mas ela diria que o meu pai. Pensei .em falar com o meu pai sobre isso, mas. Se o assunto fosse aquele, como das outras vezes, ele não queria falar. Então, me conformei. Eu ia crescer, mesmo, um dia.

Tentamos a outra mão e ela batia palmas rápidas para que eu pudesse acompanhar. Tã -tã,tã-tã-tã,tã-tã. Depois, depois era questão de juntar tudo, mas. Só depois, porque em todos os agora que tentamos não conseguimos e, algumas vezes, os querido, queridinho, amor e amado eram acompanhados de uma visível irritação. Eu até que tentava me concentrar, mas sabia quando as bicicletas passavam, porque a gente prendia uma papeleta com prendedor de roupa, na roda, ela pegava nos raios e dava um barulho parecido com motor. É verdade! Eu até que tentava me concentrar, mas aí ouvia, ao longe, o barulho de um carrinho de lomba. E, então, eu ia, sentado no banquinho do escritório, com um acordeão vermelho e preto, imenso e pesado, muito maior do que eu, eu ia junto e sentia o vento na cara e tudo. E foi muito, muito tempo assim.

Agora, tentávamos uma música: Ó Minas Gerais! Ó Minas Gerais! Quem já te viu não te esquece jamais. Ó Minas Gerais! Eu não sabia por que tinha que tocar Ó Minas Gerais, não sabia, não queria saber e, mais do que tudo, não queria tocar. Agora, o desafio era tocar uma música inteira.

Passado um ano, meu pai achou que as aulas não estavam rendendo e decidiu dispensar dona Conceição que saiu com o coração pesado, porque, apesar de tudo, ela sabia que eu tinha certo talento, era só uma questão de tempo e de treino!, argumentou.

Eu? Fiquei entre o que se pode dizer de um homem feliz e um homem meio culpado. Dona Conceição não era tão ruim assim, pensei olhando as miniaturas de carros que tinha nas prateleiras do meu quarto, eu é que era, mas. Nada que durasse muito tempo, e meu pai anunciou que as aulas seriam, a partir de então, com o professor Clóvis.

Pensei, de novo, em explicar, dizer que não queria, que não gostava, em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre — mas. Não podia. Já tinha quase doze anos e sabia, de novo, minha mãe sabia, de novo, minhas irmãs sabiam, de novo, o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida e, desta vez, com o professor Clóvis. Além disso, agora, me dava certo prazer, quase físico, ficar tentando, uma hora inteira, três vezes por semana, tocar Ó Minas Gerais. Minha mãe trazia um olhar desesperançado, junto com cada fatia de bolo de milho com limonada, mas. Minhas irmãs, aos poucos, foram trocando os olhares debochados de risos furtivos por olhares desesperados, e disso eu gostava e imaginava que, um dia, os vizinhos viriam tocar à porta e pedir, por amor de Deus que. Só meu pai não mudava o olhar.

Soube que o professor tinha chegado, quando uma bicicleta de motor parou diante da porta da minha casa. Eu nunca tinha visto uma! Embora aquele homem alto, magro, curvado, de cabelos muito compridos, de olhos grandes num rosto encovado dissesse que era o professor Clóvis, e embora eu achasse um tipo muito engraçado, eu não conseguia responder nada, queria ver inteiro 0 que havia atrás dele: e o que havia atrás dele era uma bicicleta azulzinha, de guidão prateado e tudo, ali, na minha frente, atrás dele, tão na minha frente que parecia sonho e tudo.

Minha mãe disse-lhe que entrasse, fomos direto para o escritório e, enquanto ele queria explicar que aquele era um instrumento de sopro muito antigo, inventado em Viena, no século 19, eu queria falar daquela máquina maravilhosa que estava estacionada na frente da minha casa e da potência daquele motor, e da velocidade que andava e de como funcionava a correia. Ele, então, riu um sorriso magro e decidiu que, sim, certo, era do que falaríamos, e começou a me explicar o funcionamento. Quando minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim — enfim, alguém cúmplice que não me chamaria nem de querido, nem de queridinho, nem de amor, nem de amoreco! — quando a minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim e continuou a história do instrumento, que quando a conversa é para ser só entre homens é assim mesmo. Quando minha mãe saiu, quis fazer, de homem para homem, uma aposta. Pediu que eu mostrasse o que sabia e eu, rindo, de homem para homem, disse-lhe que não sabia nada, só o começo de Ó Minas Gerais, mas que nunca tinha tocado música inteira, o que ele, evidentemente, podia entender entendido. Foi quando o professor fez a proposta: quando tu tocares uma música inteira, pode até ser este Ó Minas Gerais, eu te deixo andar na minha bicicleta de motor, mas só uma volta na quadra.

Eu mal podia respirar de tanta excitação. Bastava tocar uma música inteira e eu subiria naquela máquina e daria a volta na quadra! Decerto toda a turma ia ficar me fazendo perguntas: de quem é? é tua? posso dar uma voltinha? E eu diria que sim e que não. Seria minha, como mulher que se ama de verdade, aquela bicicleta de motor de verdade, por toda uma volta na quadra.

— Fechado? - ele perguntou.

— Fechado - respondi, falando com um igual. Apertamos as mãos, a minha pequena e a dele enorme, quase seca, e ele foi embora.

Ninguém me perguntou sobre a operação do milagre e, se perguntasse, também não responderia. Acabada a aula, não fui para a rua e comecei a me exercitar: dórémifásollásidódósilasolfámirédó, era o aquecimento. Depois, a outra mão, e eu tinha no ouvido as batidas das mãos de dona Conceição: Tã-tã, tã-tã-tã, tã-tã. E foram muitas vezes seguidas, vezes repetidas, monótonas, enlouquecedoras. Minha mãe chamou para jantar, mas, embora a fome de sempre, eu não podia. Meu coração estava acelerado em uma bicicleta de motor azul, minha respiração estava difícil, o que me separava dela era só uma Ó Minas Gerais inteira. Às dez horas, meu pai disse que tinha que terminar com aquele barulho. Fiquei muito brabo, bem quando eu queria tocar ninguém me apoiava! Ninguém me apóia, resmunguei, sem resposta. Passei a noite tocando sem som, sem deixar que o instrumento cantasse, apenas tocando, levemente, tocando as teclas e os botões, enquanto imaginava Ó Minas Gerais.

De manhã, não pude ir ao colégio, e foi fácil fazer com que acreditassem no enjoo porque estava abatido por uma noite não dormida. Até minhas irmãs ficaram preocupadas! Quando o enjoo acalmou um pouco, pude voltar ao acordeão e voltei o dia inteiro.

Ninguém dizia nada, mas eu sabia — e até era engraçado saber — que todos estavam achando tudo aquilo muito estranho. Era um pacto e, de pacto, homem não fala, pensava, embora meu pai firmasse e reafirmasse como era bom aquele professor, tinha, enfim, achado a pessoa certa para lidar comigo.

Quando o professor Clóvis chegou — soube que ele havia chegado desde que dobrara a esquina, pelo ronco do motor — fui eu a abrir a porta, levei-o ao escritório e toquei, cheio de orgulho, toquei toda a Ó Minas Gerais, soltei o acordeão e perguntei: agora posso? Acho que o professor não entendeu muito, ou não esperava que o progresso fosse tão rápido. Disse que sim, claro, decerto profundamente arrependido, que tem coisas na vida, como as grande paixões, que a gente não empresta nunca — isso eu só descobri muito mais tarde — mas só uma volta na quadra, hein?, e me entregou uma chave pequeninha, a que guardava toda a minha felicidade.

Subi na máquina e fui para o lado oposto do que estava a turma. Não queria nada nem ninguém que pudesse atrapalhar aquele momento que me valera todo o sacrifício que havia por trás de uma Ó Minas Gerais inteira e andei. Difícil dizer o que eu estava sentindo porque, algumas vezes, o que se sente ainda e sempre é maior. Estava sentindo ainda e sempre maior A máquina, eu, a liberdade, as ruas o barulho do motor meu pai, eu, a liberdade, eu, grande a liberdade, a máquina meu pai, o motor acelerador, a máquina, as outras ruas, o professor que tinha ficado para trás gostava dele, a bicicleta de motor, aquele era meu amigo sim, a liberdade, eu de verdade, meu pai, as ruas, a minha casa lá atrás, a noite caindo, o chão andando, ruas desconhecidas, liberdade. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ou talvez só mais tarde, teria de voltar. Sabia que encontraria o professor, contrariado, na calçada, e o meu pai furioso, de olho apertado e faiscante, e a minha mãe chorando, e as minhas irmãs caladas de tanto susto. Sabia, mas tinha que arriscar, porque aquele isso dentro de mim me dizia que tinha de arriscar e arrisquei.

Quando voltei, o professor Clóvis disse que eu não sabia cumprir um acordo, pegou a bicicleta e não disse mais nada. Senti uma coisa, assim, forte, no peito, dessas que parecem dor e que a gente sente quando se dá conta de que está perdendo um amigo. Um amigo de duas aulas, mas amigo. Minha mãe me abraçou chorando. Minhas irmãs, pulando, nervosas, só diziam pulando, nervosas, que eu ia apanhar. Meu pai me mandou para o quarto e as vizinhas diziam, nas minhas costas, graças a Deus!, não aconteceu nada.

Tinha acontecido, sim, mas talvez ainda não fosse visível. Meu pai entrou no quarto, os cabelos grisalhos despenteados faziam com que ficasse arrumando com a mão a toda a hora, e me olhava como se quisesse dizer alguma coisa enquanto ia e vinha, e acho que, desta vez, quase conversamos. Tinha o olhar pequeno, fechado, decidido, o meu pai. Só não falamos porque ele estava ocupado: colocou o acordeão dentro da caixa e levou embora. Eu era um homem de 12 anos e, na linguagem dos homens e seus imponderáveis, ele começava a me enxergar.

Fonte:
Jane Tutikian. A rua dos secretos amores. Porto Alegre/RS: WS, 2003.

Jane Tutikian (1952)

Jane Tutikian nasce em Porto Alegre/RS, em 1952. Em 1970, é eleita Miss Porto Alegre e Primeira Princesa do Rio Grande do Sul. Ingressa no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Em 1974, casa-se com o advogado Edemar Morel Tutikian. Neste mesmo ano publica seu primeiro texto, "Batalha naval", no "Caderno de Sábado" do Correio do Povo, passando a colaboradora. Conclui o curso de Graduação em Letras.  Ingressa no Mestrado em Literatura, na UFRGS. Em 1976 passa a colaboradora do suplemento "Mulher", da Folha da Tarde. Em 1977 obtém o título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Em 1978, recebe o "Destaque - Prêmio Apesul Revelação Literária. Em 1980, ingressa na Rede Pública Estadual como professora.

Em 1981 publica Batalha Naval, e em 1984, A cor do azul, recebendo neste ano o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Em 1986, é finalista da Bienal Nestlé de Literatura Brasileira - categoria conto - SP. Em 1987 recebe o Prêmio Érico Veríssimo da Câmara Municipal de Porto Alegre.

Em 1990 publica Geração Traída. Recebe o Prêmio Gralha Azul de Literatura Brasileira da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. 1994  publica Um time muito especial.

Em 1995, ingressa no Curso de Doutorado em Literatura Comparada na UFRGS, obtendo o título em 1998.

Em 1999 publica O sentido das Estações e Inquietos Olhares. Em 2000, publica Alê, Marcelo, Ju & eu.

Em 2001 ocupa a cadeira nº 39 na Academia Literária Feminina do RS. Em 2002, publica A rua dos secretos amores e também Aconteceu também comigo. Assume a Vice-presidência da Associação Gaúcha de Escritores. É patrona da Feira do Livro de Gramado.  Dá nome à Biblioteca da Escola Edvino Bervian, de Morro Reuter. E em 2003 publica JF e a conquista de "Niu Ei".

Em 2005 publica Entre Mulheres (contos de amor aprendiz). Em 2006 lança Olhos azuis coração vermelho (novela infanto-juvenil) e Velhas identidades novas (ensaios), resultado de seu Pós- Doutorado em Literatura, realizado na PUCRS.

Em 2005 inicia a organização das obras completas de Fernando Pessoa pela L&PM, tendo editado, neste ano: Mensagem, a obra de Caeiro, Campos e Ricardo Reis. É Patrona da  XVII Feira do Livro de Dois Irmãos.

Em 2007, publica Fica Ficando (novela infanto-juvenil). Recebe o prêmio Nacional O Sul por incentivo à literatura. É homenageada pela Feira do Livro de Caçapava do Sul. É Patrona da Feira do Livro de Triunfo.

Em 2008, é Patrona da Feira do Livro de Camaquã. Organiza para a L&PM a leitura comentada de Os Lusíadas.

Em 2009, assume a Direção do Instituto de Letras da Univeraidade Federal do Rio Grande do Sul e a cadeira n. 35 da Academia Rio-grandense de letras. Participa da antologia The Brazilian Short  Story in The Late Twentieth Century, publicada nos EUA pela The Edwin Mellen Press. Lança  Por que não agora? , novela Infanto-juvenil.

Em 2010 é eleita Vice-Presidente da Associação Internacional de Professores de Literaturas Africanas. Patrona da Feira do Livro de Guaíba.

Em 2011, primeira mulher  do séc. XXI e quarta dos 57 anos de história a ser escolhida  Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre. Lança antologia de contos comemorativa aos 30 anos de carreira: Coisa Viva, pela Território das Letras. Eleita Vice-Presidente da Associação Internacional de Literaturas e Culturas Africanas – AFROLIC – em Ouro Preto. Passa a ser editora da Revista Conexão Letras do PPG-Letras

Em 2012, Recebe o Prêmio  Joaquim Felizardo por obra, concedido pela Secretaria Municipal de Cultura – Porto Alegre, Patrona da Feira do Livro de Caçapava do Sul e da Feira do Livro de Capão da Canoa. Assume a Direção do Instituto Confúcio da UFRGS.

Em 2014, organiza o livro: Fernando Pessoa – Obra poética VII – pela L&PM. Patrona da Feira do Livro de Esteio.

Tem participação em dezenas de antologias e livros organizados e traduzidos para o inglês e o espanhol.

Atual vice-reitora da UFRGS.

Fontes:
Jane Tutikian
Wikipedia

Célia de Cássia (Poemas Avulsos)


CARTA-SONETO

"Escrevo pra dizer-te", meu amor,
que minhas já não são as tuas cartas.
De folheá-las — velhas, já sem cor —
as minhas mãos nunca ficaram fartas!

As tuas cartas! Doces e amargas...
Luar iluminando com fulgor
a minha escura estrada! Portas largas,
abrindo pra jardins plenos de flor!

Vão publicá-las. Dei-as de presente
(perdoa, amado, essas ideias loucas
que a meu viver já deram mil escolhos...)

Quero, dando-as a ler a toda gente,
que o amor que morreu em nossas bocas
possa ressuscitar em outros olhos...
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CONFISSÃO NO CÉU


Um dia eu contarei a Deus
tudo que tive de bom
quando vivi na Terra:

Fui bonita!
E a beleza é uma coroa
deliciosa de se usar!

Fui rica!
E o dinheiro é um cetro
valioso de se empunhar!

Fui artista!
E a Arte é uma graça
maravilhosa de se desfrutar!

Fui... Não será melhor
fazer das coisas resumo?
Deus deve ser muito ocupado!

Direi, então, apenas que Amei...
E terei dito tudo, porque o Amor
é parcela maior que o todo!
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LOUCURA


Eu não creio em mais nada sobre a Terra!
Eu nego a luz que o sol gera e derrama!
Nego a virtude: todo mundo erra!
Nego a felicidade de quem ama!

Nego a bondade! Altruísmo? Não existe!
Nego a esperança! Fé? Que fantasia!
Nego a beleza que há na lua triste…
Nego o consolo sem par da poesia...

Eu nego tudo! Até o último esteio;
Eu nego Deus! Do nada o homem veio...
Eu nego o Céu, o Inferno e suas chamas!

Mas... por ironia do destino cego,
existe uma só coisa que eu não nego;
Eu creio, meu amor, que tu me amas…
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SÚPLICA

Tira-me — por piedade! — agulha e linhas,
tira-me da prisão desta cadeira,
que essas mãos não são as de uma freira,
são mãos de pecadora, são as minhas!

Tarefa! Estas paredes! Oh, tormento!
Não nasci pra fazer dessas fazendas,
bordados raros, preciosas rendas,
não tenho tempo! A vida é um momento...

Quero vivê-lo presa nos teus braços,
tecendo sonhos em teus olhos garços,
bordando beijos em teu lábio quente.

Tu és a plenitude em meu caminho,
eu me completarei com teu carinho,
em ti, por teu amor, unicamente!
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VIVESTE


Passaram… Uns ligeiros como o vento,
outros tão lentos como as agonias...
Trezentos e sessenta e cinco dias!
E em todos eles, no meu pensamento,

uma única imagem floresceu;
Tua imagem! Lembrança que o passado
plantou no meu Destino — doce amado —,
flor, sempre-viva, que nunca morreu;

em todos os instantes que hei vivido,
viveste, como eco em meu ouvido,
viveste no sabor da minha boca.

Por toda minha vida só de abrolhos,
viveste na retina dos meus olhos,
viveste sempre em meus sonhos de louca!
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VOCÊ QUE ME ENSINOU. . .


Você que me ensinou a ouvir do mar o canto...
a descobrir na lua feiticeira encanto…
a despertar bem cedo para ver a aurora...
a acreditar que a noite pelo orvalho chora…

Você que me ensinou que o Amor é um momento
que devemos viver com pureza de prece
para relembrar com saudade e encantamento!...
Você que me ensinou tanta coisa, querido,
por que não me ensinou também como se esquece?

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Dinah Silveira de Queiroz (Casa para Alugar)


Ontem fui ver uma casa vazia, que espera seus inquilinos. Onde fica, qual o seu aluguel, isto não são coisas contidas no ofício da cronista. Estava toda escancarada para um sol que lampejava enviesado, desconcertando pelo seu absurdo de má pintura. Já era quase noite num canto do céu. E havia um rasgão azul cintilante, feito para clarear a casinha, que se oferecia, toda branca e nova, para quem quisesse e pudesse. Quando entrei — um operário cantava, outro metia a cabeça pintalgada de branco sob a torneira do jardim. Havia água, espaço, terra em torno, muros cercando o pequeno domínio. Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia. As mulheres ficam perturbadas por um amontoado de sonhos que se desencadeiam, mal elas põem os pés no pequeno terraço. "Aqui fecharei com persianas; será quase um jardim, para que o neném não saia. E mandarei pintar da mesma cor da parede essa tremenda barra de cor verde, na sala de jantar, fingindo mármore". Depois de uma pausa, talvez ainda acrescentem:

"Este quarto será transformado em escritório, porque tem muita parede, e bem se pode nele instalar a grande estante de dois metros e oitenta. E neste canto do quarto cabe a cama de casal".

A casinha será medida, considerada por uma respeitável quantidade de pessoas. Alguém se alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o galinheiro. Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios.

Gostei de ver a casinha desalugada. Ainda não se sabe de quem será! É um palco pequeno e adornado, esperando por seus atores. Até a música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio, seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os fornecedores. Um gato morrerá, quase, de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas. A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana. 0 pai, vindo de uma era de casas mais enfestadas, defenderá aquela aparência de suntuosidade com o calor que só as discussões domésticas podem ter. Haverá um filho estudando, brigas sobre o horário do almoço, objetos perdidos na mudança, e o martirológio da dona da casa entoado por ela própria, sem que ninguém se importe com seu drama. Pode ser que a moça se case, que haja na salinha de barra verde uma mesa com comes e bebes. Acontecerá, quem sabe, em certa madrugada, riscar o escuro o choro de uma criancinha recém-nascida pungentemente cantando dos difíceis começos, doloridos começos de qualquer vida. Haverá alegria, haverá dívidas de dar nó na garganta, e festa de formatura, e discussões políticas. A casinha nova, então, terá paredes riscadas, gordura sobre o forro da cozinha, portas sem chave, torneiras escorrendo. Na ex-cobiçada pequena casa pessoas baterão portas com raiva:

— "Esta casa é um inferno!"

Outras chegarão nela, já toda sabida e experimentada, como amante sem segredo, e irão diretamente a um canto mais fresco do terraço, ou para a profundeza de um quarto.

— "Eu estava morrendo de calor (ou de cansaço). Não aguentava mais a rua."

Terá a casinha tão perfeitamente pura, hoje, pregos caídos da parede, ladrilhos que faltam, como dentadura incompleta. Se passar algum tempo mais — talvez que o velho morra, e se enterre com a roupa feita ainda para o casamento da filha em seu caixão, que no alto será levantado, quando atravessar o portãozinho.

Ah, casinha que espera seus donos, branca e bonita como uma noiva menina! Estás preparada para teu destino. E, antes dos moradores — compactos fantasmas de vida e de morte já te povoam, eu sei.

Fonte:
Dinah S. de Queiroz. Quadrante 2. RJ: Ed. do Autor, 1963.

sábado, 8 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 342

 

Baú de Trovas XII


Pelo destino ligados
enfrentando as mesmas lidas,
ainda somos namorados
no final de nossas vidas!
ADALBERTO DUTRA DE REZENDE
- - - - - -
Alguém, com mão distraída,
te prende os louros cabelos,
— e eu dava um terço da vida
pela emoção de prendê-los!
ADELINO MOREIRA MARQUES
- - - - - -
Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
— E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo.
ADELMAR TAVARES
- - - - - -
Alma gêmea de minha alma,
não me tortures assim,
pois, de toda a sua calma,
não tenho a metade em mim!
ADOLFO MACEDO
- - - - - -
Não quero mais os teus beijos
assim dados por favor,
— Eles matam meus desejos,
mas ofendem meu amor...
AGMAR MURGEL DUTRA
- - - - - -
Não lastimo, não deploro
minha vida acidentada;
tu me queres, eu te adoro,
não preciso de mais nada.
ALBANO LOPES DE ALMEIDA
- - - - - -
Se saber te fosse dado
a razão da minha dor,
talvez    houvesses deixado
na ilusão do meu amor!
ALBERTO NAVARRO DE MIRANDA
- - - - - -
Tu és o eterno motivo
do meu sonho embriagador:
se por teu amor eu vivo,
vivo morrendo de amor!
ALTEVIR ALENCAR
- - - - - -
Amor! Como dói lembrá-lo,
esse tempo em que te amei!
— Como é triste ser vassalo
na terra em que se foi rei!
ALTINO MORAES
- - - - - -
Tal como o sol aparece
dissipando a cerração,
um grande amor desvanece
mágoas do coração.
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Ao seu amado não ande
cobrando mínimas penas...
— O amor verdadeiro é grande
até nas coisas pequenas!
BALTHAZAR DE GODOY MOREIRA
- - - - - -
A morte passou por mim,
maldade assim ninguém diz!
— Não me levou, mas levou
quem me fazia feliz.
CELINA FERREIRA
- - - - - -
Surges entre grandes almas
E deslumbras, meu amor!
Quando te vi, bati palmas,
aplaudindo o Criador!
GABRIEL VANDÔNI DE BARROS
- - - - - -
Eu choro a ilusão perdida,
com infinito amargor.
— De que me vale esta vida,
se não tenho o teu amor?
HILDA KOLLER
- - - - - -
Tua ternura, criança,
contagia o meu viver.
Parece até que a esperança
vai parar meu padecer…
MARIA FONSECA
- - - - - -
Que grande surpresa eu tive,
dos teus carinhos no ardor,
sentindo quanto se vive
quando se morre de amor!
MÁRIO BRAGA
- - - - - -
O tempo tudo consome:
— tristeza, queixume e dor…
Só não desfaz o teu nome
da minha história de amor!
MÁRIO R. BARRETO
- - - - - -
Não é o mistério da morte
que me envolve de pavor.
Ê a grande falta de sorte
de não possuir teu amor!
NOEL BERGAMINI
- - - - - -
De esperar a minha amada
a minha alma não se cansa,
pois até quem não tem nada
tem ainda a esperança...
NOEL ROSA
- - - - - -
Quem cai também se levanta,
diz assim velho ditado.
— Deixe eu cair, minha santa,
no seu colo perfumado…
ORILO DANTAS
- - - - - -
Menina, pelo que vejo,
não podes avaliar
o tresloucado desejo
que eu tenho de te beijar!
PEDRO PEIXOTO DE AGUIAR
- - - - - -
O mar é triste — eu sou triste.
Ele soluça – eu também.
Por ele um dia partiste
e eu nunca mais quis ninguém!...
RENÉ CHAMUSCA
- - - - - -
Falo de amor, achas graça
e ris da minha paixão.
Sempre rirás da desgraça
que aflige o meu coração?
ROBERTO BELO DE PAULA
- - - - - -
Fui buscar felicidade
Tão longe,,. não sei porque!
Hoje eu sei que, na verdade,
felicidade é você!
ROSE GAMA
- - - - - -
Toda ventura é pequena,
Neste mundo enganador.
E a vida só vale a pena
pelos momentos de amor!
RUBENS DE CASTRO
- - - - - -
Que ando de amores contigo
Dizem s!, na cidade;
e eu guardo a mágoa comigo
de não ser isto verdade...
SADY MAURENTE
- - - - - -
Fecha bem tua janela
quando te fores deitar.
— No quarto de uma donzela
nem a lua deve entrar!
SALOMÃO JORGE
- - - - - -
No deserto que me oprime,
— beduíno da ilusão —
és a miragem sublime
que me deslumbra a visão.
ULYSSES LINS
- - - - - -
Tanto tempo a mendigar
um pouco de sentimento,
e sem poder alcançar
o que pede o pensamento!...
VIRGÍNIA MADEIRA
- - - - - -
Amo-te tanto, querida,
que estremeço ao imaginar:
que será de minha vida,
se você me abandonar?
WALMIR COELHO
- - - - - -
Amor, és mago sagrado.
escravo e dominador!...
E eu te amando e sendo amado
sou teu escravo e senhor!
ZÉLIO BENEVIDES
- - - - - -
Eu canto em trovas, Senhor,
a festa que trago em mim,
porque só quem sente o amor
é feliz e canta assim…
ZOLACHIO DINIZ
- - - - - -
Nas minhas horas de enlevo,
a desfilar emoções,
invejo as folhas de trevo,
feitas com três corações.
ZULEIKA HALLAIS WALSH

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

E. Campel (A Lenda da Pedra Azul)


O menino dormia sozinho, como sempre vivia. Naquele    lugar tudo era diferente. O céu estava sempre estrelado, que fazia a noite parecer dia. De repente tudo era um paraíso. As crianças viviam felizes e sorrindo, contagiadas pelo lindo azul do céu e encantadas diante da aurora boreal.

A noite tinha sempre um brilho como o dourado do sol. Naquele lugar fascinante, como de costume, aquele menino sempre sonhava. De repente uma porta se abriu! Ao mesmo tempo uma folha voava! O ar transformava suas palavras ao tentar se expressar. Na direção em que o vento soprava, um montinho de terra se formava, muito brilhante.

O menino, mesmo de olhos fechados, quase dormindo, queria se levantar e caminhar, para onde o vento levava aquela folha mais distante. O vento ressoava fazendo um zumbido que o assustava. E também ouvia um sussurro que entoava diferente. Parecia um assobio, mas na verdade era alguém chamando pelo seu nome. Pietrus! Pietrus! Pietrus da pedra azul! E ao mesmo tempo dizia: abra os olhos e olhe na direção daquela intensa luz! O menino não conseguia enxergar diante dos feixes de luz do espectro azul.

Logo em seguida, o menino percebeu que estava sonhando. Acordou assustado procurando pela pedra azul do sonho. Recordou-se que antes de dormir, teria prometido aos seus amiguinhos, que acharia a pedra azul em um lago próximo a sua casa.

Na realidade era a pedra azul de uma lenda, que um dia ele teria ouvido alguém contar. Na imaginação de Pietrus, recordava-se de outros sonhos de criança. Vinha numa lembrança que o contagiava, motivando-lhe a cumprir o que teria prometido em dias anteriores. Algo lhe cobrava encontrar a pedra azul, que segundo a lenda, quem a encontrasse teria um grande poder.

Como um despertar diferente!

O poder pelo encontro ou achado capaz de transformar tudo que desejasse. Assim, Pietrus ficou sentindo-se irradiado com tantas energias de encanto que não sabia explicar. Na verdade, não deveria nada temer e sim ser sempre corajoso.

Foi então que decidiu procurar a pedra azul do seu sonho, tomou coragem e seguiu o rio. em direção da forte luz. Lá chegando, recordou-se que era o lugar que sonhava. Onde somente existia alegria radiante pelo brilho do sol.    

Depois de muito dormir naquele lindo lugar, depois de muito sonhar, um novo dia começava diferente para o menino que desejava achar a pedra azul. Só existiam certeza e coragem para aquele menino, mesmo ainda, tão jovem. Desde o dia que sonhara caminhando na direção do espectro azul, os pássaros cantavam uma melodia suave. Cuidavam dos seus ninhos com muito amor. A alegria franzia a testa do menino admirado. Como conseguia avançar na direção dessa luz? O que mais seria um sonho, agora se tornava realidade.

Era o lugar do sonho que ele tanto esperava encontrar. Aos poucos, o ar ficava rarefeito, caíam granizos e fazia muito frio. Ao mesmo tempo, a temperatura tornava-se mais amena. Um clima aconchegante modificava aquele novo lugar. Tudo se confundia como uma magia de encanto, que até parecia que nada era de verdade. E um medo começava a arrepiar Pietrus, que pensava em voz alta.

- Estou sentindo a força de um pássaro. E agora, terei de voar para ultrapassar a corrente do rio!

Na mente de Pietrus parecia existir um poder diferente! Ter toda a coragem que pensava sem nada hesitar.

Mais uma vez, o vento soprava diferente. Embora na direção de Pietrus os granizos não lhe atingiam. Estava agora diante de uma correnteza muito forte, mas avistava no fundo do rio a linda pedra azul. A pedra azul do sonho!

Tinha um brilho tão especial que sinalizava como um ponto mágico! Uma corrente circular se formava transformando-se num redemoinho! Pietrus ficou sem se mexer por alguns instantes! Não sabia se deveria seguir. Ao mesmo tempo, tinha a certeza da sua coragem. Sentia ter um poder em suas mãos. Um poder tão imenso que não imaginava, ao pegar na pedra azul. Lembrou-se que a sua coragem e persistência no que seu sonho trazia, resplandecia numa imensa beleza e satisfação, ao ter a esperança de realizá-lo.

Trazendo um novo encanto com aquela história, vinda da lenda da pedra azul, contava que a coragem deveria existir para certeza da vida. Ensinou para aquele menino que, com o amor, tudo de bom poderia acontecer.

Assim, com muita alegria foi com a pedra azul levar para os seus amiguinhos, a mensagem trazida pela lenda da pedra azul. Este enigma da lenda da pedra azul lhe concedeu desde o seu nascer o título de nobreza, trazido em seu próprio nome sem mesmo, querer.

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 341

 

Francisca Júlia (O Maníaco)


Viam-no sempre por montes e vales, exposto à chuva que lhe encharcava as roupas, ou ao sol que lhe queimava a pele, curvado, com os olhos fixos no chão, como quem procura um objeto perdido.

Na primavera, quando os rosais da cerca estavam floridos, os campos verdes e os passarinhos alegres, cruzando-se no ar numa revoada feliz, o pobre rapaz passava, atravessava as campinas, subia as montanhas, indiferente à beleza da paisagem, os cabelos voando ao vento.

Quando se sentia muito fatigado, sentava-se na ponta de uma pedra e adormecia.

Alimentava-se de frutas silvestres, bebia água á nascente dos ribeiros, e, à noite, abrigava-se debaixo de uma árvore ou no fundo de uma gruta, como um animal selvagem.

Um camponês, que o conhecia, chamou-o um dia e perguntou- lhe com curiosidade:

— Ó rapaz! que é que andas fazendo pelos campos e bosques, todos os dias, exposto ao sol e à chuva?

— Procurando tesouros.

— E tens alguma esperança de acha-los?

— Sim, afirmou o moço com convicção, correndo os olhos pela extensão das campinas.

— É melhor, disse o campônio em tom de conselho, que mudes de vida; tu, nesta faina de procurar tesouros, tornas-te um homem completamente inútil, inapto para o trabalho. É melhor, pois, que te esqueças dos tesouros, que os não há, e procures outro gênero de vida em que aproveites a tua inteligência e o teu trabalho.

— Não, disse o maníaco, se há muitos anos dediquei minha existência à procura de tesouros, é porque tenho certeza de encontrá-los.

— Mas como?

— Uma noite, era eu pequeno ainda, estando adormecido em meu leito, apareceu-me uma fada em sonho, que me falou mais ou menos assim: "Tu estás destinado pela sorte a ser o homem mais rico do mundo, e cuja fortuna te facilitará os meios de vencer os maiores soberanos da terra, de conquistar reinos e mares e dominar sobre tudo com o poder do teu cetro. Legiões inteiras de soldados, vestidos de couraças e armados de lanças, te acompanharão nas conquistas; sobre os mares terás navios embandeirados, infindáveis domínios em terra, e um exército de lacaios, ricamente vestidos, que se hão de curvar, submissos, á voz do teu mando. Para isso, porém, é necessário que, logo que fiques homem, vás por campos e montanhas, planícies e vales, sem medo às tempestades nem às noites, em procura de um incalculável tesouro que a sorte destinou para enriquecer-te". Assim me disse a boa fada, com uma voz firme e segura, inspirada pela fatalidade do Destino.

Hoje sou um homem; cumpre-me obedecer-lhe; e, enquanto não encontrar a fortuna que se acumulou para o meu gozo, irei caminhando sempre, mundo fora, os olhos no chão, as roupas apodrecidas de uso, como um mendigo de estrada.

Dito isto, levantou-se, passeou a vista em torno, curvou a cabeça e partiu.

A noite tinha cabido. A lua, muito clara, apareceu entre as nuvens e inundou os campos com sua luz argêntea.

O maníaco foi seguindo.

"Infeliz rapaz!" pensou piedoso o camponês, acompanhando-o com os olhos. Quantos também não há no mundo que atravessam uma existência inútil, tão inútil talvez como esta, incapazes de trabalhar, esperando que a felicidade os venha procurar no sonho, como este louco que pensa encontrá-la no solo.

Fonte:
O Poeteiro

Manuel de Arriaga (Poemas Avulsos)

A CRUZ E O PARA-RAIOS

      Da velha catedral, esbelta e rendilhada,
      Votada a ser mansão do Deus, autor do mundo,
      Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
      A cruz do Redentor, da Galileia o oriundo!

      Nos ímpetos da fé, cortantes como a espada,
      O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo,
      Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
      Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!

      Em nome dela exalta a fé porque a aviventa,
      E diz mal da razão que tenta, em vãos ensaios,
      Dos céus arrebatar a luz, de que é sedenta!

      Mas do alto onde ela está, que causa até desmaios,
      Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
      Em nome da Razão lhe põe um para-raios!...
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ALVORADA


      Algures brilha o sol no azul do firmamento,
      E expõe com resplendor das coisas o espetáculo!
      Aqui, na escuridão, o mundo é tabernáculo
      Onde os frágeis mortais descansam um momento!...

      Além, o Sol incita o mundo ao movimento,
      Á luta pela Vida, o esteio e o sustentáculo
      Desde o ser da Razão ao mínimo animáculo,
      Aqui, o sono esparsa em todos novo alento!

      Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida,
      A essência do meu Ser, a minha própria Ideia,
      O próprio Deus, talvez!... Beleza, Amor, Verdade!

      Atrás de Ti caminha a Terra, mãe querida!
      Bendito caminhar! Por Ti minha alma anseia!...
      Bem vinda sejas, pois, oh doce claridade!
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AMOR E PROVIDÊNCIA


      Enquanto eu, alta noite, velo e lido,
      Por vós mantendo inúmeros cuidados,
      Dormis, caros filhinhos, sossegados
      Em torno a mim o sonho apetecido!

      Dormis?! sonhais de certo... e eu pai envido
      Meus esforços por ver realizados
      Vossos sonhos gentis e perfumados:
      Ampara-vos um peito estremecido.

      Outro Alguém faz por nós o que eu vos faço:
      Com suprema bondade e sapiência,
      Rege os mundos que rolam pelo espaço!

      Esse Alguém é o Amor por excelência,
      O formidável e invisível braço,
      E o olhar que nunca dorme – a Providência!
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MUNDO INTERIOR

      Matéria ou Força, Lei ou Divindade
      Quem quer que seja que dirige o mundo,
      Esparsa em tudo o espírito fecundo
      Do Sumo Bem – Beleza, Amor, Verdade.

      À luz desta Santíssima Trindade,
      Cercado d'esplendor, clamo e jucundo,
      Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
      Por síntese Suprema, a Humanidade!

      Dos homens rujam temporais medonhos...
      Que em mim, no meu labor, do Bem sedento,
      Meus dias correm límpidos, risonhos!

      Estrelas que brilhais no firmamento!
      É menos bela a vossa luz que os sonhos
      Que gera na minha alma o Pensamento!
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O QUE EU VI


Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trêmulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!

Fonte:
Manoel D'Arriaga. Cantos Sagrados. Lisboa/Portugal: Manoel Gomes, 1899.

Manuel de Arriaga (1840 – 1917)

Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue nasceu em Horta, Açores, Portugal, 8 de julho de 1840 e faleceu em Lisboa, 5 de março de 1917.

Manuel de Arriaga nasceu na casa do Arco, na freguesia da Matriz, cidade da Horta, ilha do Faial, filho de Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira e da sua esposa Maria Cristina Pardal Ramos Caldeira. Pertencente à melhor sociedade faialense, o pai era um dos mais ricos comerciantes da cidade, último administrador do morgadio familiar e grande proprietário. Foi neto do general Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira, que se distinguira na Guerra Peninsular, e sobrinho-neto do desembargador Manuel José de Arriaga Brum da Silveira, que em 1821 e 1822 fora deputado pelos Açores às Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa.

Depois de concluídos os estudos preparatórios na cidade da Horta, em 1860 matriculou-se no curso de direito da Universidade de Coimbra. Em Coimbra cedo se revelou um aluno brilhante e um orador notável. Aderiu ao positivismo filosófico e ao republicanismo democrático, passando a ser frequentador assíduo das tertúlias filosóficas e políticas, onde se destacava pela sua verve e capacidade argumentativa.

Esta adesão ao ideário republicano, então considerado subversivo, levou a que o pai, monárquico conservador com laivos miguelistas, cortasse relações com o filho, proibindo-lhe o regresso a casa. Nessas circunstâncias foi obrigado a trabalhar para sustentar os seus estudos, e os do irmão, igualmente proscrito pelo pai por adesão a ideologias subversivas. Lecionava inglês como professor particular, aproveitando os bons conhecimentos daquela língua que adquirira na Horta com a preceptora americana contratada pela sua família.

Formou-se no ano de 1865 e no ano seguinte abriu um escritório de advocacia em Lisboa, cidade onde se fixou. Não tendo conseguido ingressar na docência, rapidamente se notabilizou como advogado, ganhando uma carteira de clientes que lhe permitia segurança financeira e os meios para ajudar o irmão a terminar os seus estudos.

Também se revelou, desde os seus tempos de Coimbra, cultor da poesia e da literatura, tendo mantido até ao fim da sua vida uma atividade literária e interesses culturais que o integram claramente na Geração de 70.

Já advogado de renome em Lisboa, em 18 de maio de 1871 foi um dos doze signatários do programa das conferências democráticas do casino Lisbonense. Tornou-se membro destacado da geração doutrinária do republicanismo português, afirmando-se como um dos seus principais ideólogos. Afirmava-se partidário entusiasta da democracia, tendo sempre militado no republicanismo unitário e democrático, rejeitando o anticlericalismo e o jacobinismo que marcavam a corrente dominante do republicanismo português daquela época.

Casou em Valença com Lucrécia Augusta Brito de Berredo Furtado de Melo, filha do general Roque Francisco Furtado de Melo, natural da ilha do Pico, que fora comandante da sub-divisão militar da Horta e governador do Castelo de São João Baptista do Monte Brasil em Angra do Heroísmo. Deste casamento nasceram quatro filhas e dois filhos.

Em 26 de agosto de 1876 foi nomeado para a Comissão para a Reforma da Instrução Secundária, sendo este o primeiro cargo público que exerceu.

Em 1878 concorreu para o lugar de professor de História Universal e Pátria do Curso Superior de Letras, mas voltou a ser preterido, apesar do brilhantismo da dissertação que apresentou a concurso. Apesar de ser considerado um gentleman e de vestir à melhor moda da aristocracia do tempo, a sua fama de revolucionário não deixou certamente de influir sobre o júri. Acabaria por conseguir um lugar de professor de inglês do Liceu de Lisboa, cargo que manteria por largos anos.

Nesse mesmo ano de 1878, concorreu pela primeira vez a um lugar de deputado nas Cortes, integrando a lista republicana candidata a um dos círculo eleitorais da cidade de Lisboa (o círculo n.º 96). Apesar da forte campanha que conduziu, foi largamente derrotado, obtendo apenas 456 votos, contra os 1 086 sufrágios do vencedor.

Em 1881 faleceu o seu pai, herdando os bens familiares no Faial e no Pico, já que o seu irmão mais velho, Sebastião de Arriaga, falecera precocemente em 1875. Nesse mesmo ano empenhou-se novamente na campanha republicana para as eleições gerais de 21 de Agosto (24.ª legislatura), sendo novamente candidato por um dos círculos de Lisboa, no qual voltou a ser derrotado.

Em 26 de novembro de 1882, numas eleições suplementares, foi finalmente eleito deputado republicano pelo círculo da Madeira. Esta vitória eleitoral deveu-se a um conjunto de circunstâncias que beneficiaram a sua candidatura: apresentara-se a convite de uma comissão de comerciantes e industriais funchalenses, desiludidos com os partidos do rotativismo, beneficiando da ausência de um candidato do Partido Regenerador. Foi proclamado deputado a 8 de Janeiro de 1883, prestando juramento dois dias depois. Foi o segundo republicano a tomar assento no parlamento português, juntando-se no parlamento a José Elias Garcia, que ali tinha assento desde 1881.

Manuel de Arriaga iniciou o seu percurso parlamentar apresentando de imediato uma proposta que visava eliminar o juramento de fidelidade ao rei e à Carta Constitucional a que estavam obrigados os parlamentares, proposta que obviamente foi de imediato rejeitada. Apresentou durante o ano de 1883 diversas propostas legislativas, todas sem sucesso. Durante estes dois anos no Parlamento renunciou ao seu vencimento como professor liceal, recebendo apenas o subsídio parlamentar a que tinham direito os deputados. Terminado o mandato, não foi reeleito.

Na sua ação como deputado, e mesmo não conseguindo fazer parte de qualquer comissão parlamentar, distinguiu-se pela pertinência das suas intervenções e posições e pela fineza do seu trato. Demonstrando elevados dotes intelectuais e uma cultura superior, aliava a uma oratória brilhante uma grande combatividade política e um elevado rigor ético.

No Partido Republicano Português, o prestígio que conquistara nas Cortes e a sua capacidade intelectual guindaram-no para uma posição preponderante, que manteve entre 1883 e 1892. Revelando-se um orador distinto e tendo dado um forte contributo para a estruturação do partido, foi autor de algumas das suas normas estatutárias e doutrinárias. A partir de 31 de Dezembro de 1891 integrou, com Jacinto Nunes, Azevedo e Silva, Bernardino Pinheiro, Teófilo Braga e Francisco Homem Cristo, o diretório do partidário durante o período da sua estruturação.

Foi também vereador republicano da Câmara Municipal de Lisboa.

Nas eleições gerais de 20 de Outubro de 1889 voltou a candidatar-se a deputado, desta feita pelo círculo da sua cidade natal, a Horta. Apesar das ligações familiares, o meio conservador das ilhas não lhe era favorável, pelo que ficou em quarto lugar, num círculo que elegia três deputados.

No ano seguinte, depois de cinco anos fora do Parlamento, a reação popular ao ultimato britânico de 1890, que levara à dissolução do recém-eleito parlamento, veio abrir uma nova oportunidade para os republicanos. Manuel de Arriaga voltou à ribalta política nacional ao liderar a manifestação organizada a 11 de Fevereiro de 1890 em repúdio ao ultimato britânico e à cedência do governo português. Foi preso durante o evento e conduzido a bordo de um navio de guerra, onde ficou retido até ser libertado por uma anistia régia.

Aproveitado a indignação popular contra o rei e os partidos do rotativismo, nas eleições gerais realizadas a 30 de Março de 1890 (28.ª legislatura) concorreu novamente pelo círculo de Lisboa, sendo eleito folgadamente, em conjunto com outros dois republicanos (Elias Garcia e Latino Coelho). Foi proclamado deputado a 30 de Abril de 1890, prestando juramento, novamente sob protesto, a 3 de Maio. Nesta segunda passagem pelo Parlamento, com um grupo republicano substancialmente alargado, tendo passado dos dois de 1883 para seis, teve um papel bastante mais interventivo, recusando novamente a acumulação de vencimentos. Apesar de não fazer parte de qualquer comissão parlamentar, começou por reapresentar a sua proposta de eliminação da obrigatoriedade de juramento, proposta obviamente rejeitada, passando depois a utilizar as Cortes como uma plataforma privilegiada para a sua atividade político-partidária. Considerando-se eleito pelo voto popular, passou a defender acerrimamente a teoria da soberania popular, recusando qualquer solução política que não resultasse diretamente da vontade dos cidadãos. A defesa da liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de associação esteve sempre entre os tópicos da sua acção parlamentar.

Outra temática constante da sua ação parlamentar foi a defesa dos interesses do povo, por ele entendido como todos os cidadão. Nessa defesa dava grande importância à dignificação das classes menos favorecidas, tendo sido notável o empenho que colocou em 1883 na defesa dos camponeses e operários da Madeira, o círculo que o elegera, então a braços com uma profunda crise frumentária que condenava muitos deles à fome.

Foi um dos principais autores do programa do PRP apresentado ao público no dia 11 de Fevereiro de 1891. A partir daí participou frequentemente nos comícios de propaganda republicana, onde a sua capacidade oratória e a sua retórica rica e inflamada era muito apreciada pelas camadas populares. Aliás essa sua presença em comícios já vinha desde longe, já que em 1883 já participara num comício dissolvido pela força, razão que o levara depois a protestar veementemente nas Cortes.

Apesar da forte atividade e da pertinência das suas intervenções parlamentares, desencantou-se com a atividade parlamentar, declarando, no termo do mandato que não voltaria às Cortes enquanto novas leis ou melhores condições não investissem os representante do povo de melhores garantias. Desencantado com a política, dedicou-se gradualmente às suas obras literárias, com forte pendor filosófico, publicando, entre 1899 e 1907, dois livros de poesia e um de prosa.


Após a implantação da República Portuguesa, a 17 de Outubro de 1910 foi nomeado reitor da Universidade de Coimbra. Pouco depois, a 17 de Novembro de 1910, foi nomeado Procurador-Geral da República.

A 28 de Abril de 1911 foi eleito novamente deputado constituinte pelo círculo da Madeira. Na Assembleia Nacional Constituinte revelou-se um orador notável, tendo muitos dos seus discursos dado um impulso não negligenciável à causa republicana. Não partilhava, porém, o anticlericalismo próprio dos primeiros republicanos portugueses.

Perante um Partido Republicano Português dividido em facções crescentemente radicalizadas, a 24 de Agosto de 1911 foi eleito Presidente da República Portuguesa, por proposta de António José de Almeida. Sem o apoio da facção dos democráticos de Afonso Costa, tendo como apoiantes toda a ala moderada do republicanismo português. Com 71 anos de idade, foi o primeiro Chefe do Estado eleito do novo regime.

O seu mandato foi atribulado devido a incursões monárquicas movidas por Paiva Couceiro e à crescente instabilidade política resultante da desagregação do PRP. Nesse ambiente, tentou, sem êxito, reunificar o partido que, entretanto, se desmembrava em diferentes facções.

Adversário da hegemonia afonsista da ala radical do PRP, após o Movimento das Espadas, em Janeiro de 1915 Manuel de Arriaga convidou o general Pimenta de Castro a formar governo, dando origem à instauração de uma ditadura, com dissolução inconstitucional do Congresso da República. A decisão deu origem ao descontentamento generalizado dos republicanos, com os parlamentares, reunidos secretamente a 4 de Maio, no Palácio da Mitra, a declararem Manuel de Arriaga e Pimenta de Castro fora da lei e os seus atos nulos. Esta declaração levou a uma revolta, a Revolta de 14 de Maio de 1915.

Desencadeada pelos republicanos democráticos, derrubou o governo do general Pimenta de Castro. Perante a formação de uma junta militar que reclamava a reposição da ordem_presidente constitucional, o bondoso e pacifista Manuel de Arriaga deixou o cargo a 26 de Maio, abandonando em definitivo a vida política, acusado de trair os ideais republicanos democráticos que defendera toda a sua vida. Foi então substituído na Presidência da República por outro açoriano, o professor Teófilo Braga.

Embora amargurado e sentindo-se incompreendido e injustiçado pelos vitupérios de que era vítima por parte dos seus próprios correlegionários republicanos, publicou, em 1916, um livro intitulado Na Primeira Presidência da República Portuguesa, um verdadeiro testamento da sua ação política.

Morreu em Lisboa a 5 de Março de 1917, dois anos depois de ter abandonado a Presidência da República. Foi sepultado em jazigo de família no Cemitério dos Prazeres.

Manuel de Arriaga é patrono da Escola Secundária Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, e é recordado em centenas de nomes de ruas e praças. A 19 de Novembro de 2011 foi inaugurada a Casa/Museu Manuel de Arriaga na cidade da Horta, Faial, onde se poderá encontrar a sua história de vida como político, alguns artigos pessoais bem como os seus ideais e valores republicanos.

Conhece-se colaboração da sua autoria nas revistas A Arte Musical (1898-1915) e Brasil-Portugal (1899-1914).

Fonte:
Wikipedia

Luís da Câmara Cascudo (Os Rins da Ovelha)

 Quando Nosso Senhor andava no mundo ia, de uma feita, com São Pedro e São João, comer uma ovelha que recebera de presente. São Pedro encarregou-se de assar mas, ao tratar, provou os rins e achou-os tão gostosos que os comeu. Na hora do almoço, Nosso Senhor pediu os rins e São Pedro procurou, procurou, e acabou dizendo:

- Esta ovelha não tem rins!

- Não pode ser, Pedro. Todos os animais têm rins!

- Eu sei, mas essa ovelha não os tinha.

Por mais que Nosso Senhor perguntasse, São Pedro teimou em dizer que a ovelha não tinha rins. Nosso Senhor não quis discutir e seguiram viagem.

Lá adiante encontraram um rio e não havia ponte. Nosso Senhor meteu o pé em cima d’água e saiu como se pisasse em terra firme. São João fez o mesmo. São Pedro deu os primeiros passos mas foi-se afundando. Começou a gritar.

- Acode-me, Senhor!

Nosso Senhor dizia:

- Quem comeu os rins da ovelha?

- Sei lá quem os comeu! A ovelha não os tinha!

E afundando, afundando. Nosso Senhor puxou-o pelos cabelos e continuaram a viagem.

Depois iam atravessando um tabuleiro comprido quando apareceu fogo por todos os lados. Estavam queimando para fundar os roçados e a queima pegara no pasto. As labaredas foram subindo e cercando os três homens. Nosso Senhor foi com o mesmo passo, pelo meio do fogo. São João acompanhou-o. São Pedro foi-se queimando todo e gritou:

- Senhor acode-me!

- Quem comeu os rins da ovelha?

- Sei lá? A ovelha não os tinha!

Nosso Senhor vendo que São Pedro ficava estorricado, afastou o fogo e seguiram o caminho.

Pela tarde deram numa casa rica onde o filho único estava morrendo, cercado de médicos. Nosso Senhor aproximou-se do doente, abençoou-o e ele levantou, bonzinho de saúde.

O fazendeiro, morrendo de alegria, deu um saco cheio de moedas de ouro a Nosso Senhor.

Depois da ceia, Nosso Senhor botou as moedas em cima da mesa e dividiu o dinheiro em quatro lotes.

- Para que dividistes o dinheiro em quatro partes? Somos três! perguntava São Pedro.

- Não se agonie, respondeu Nosso Senhor - uma parte é minha, outra de João, a terceira é tua e a quarta de quem comeu os rins da ovelha!

- Fui eu, Senhor, fui eu! gritou São Pedro.

E ficou com as duas partes.

O homem resiste mais à água e ao fogo do que ao dinheiro. O que o dinheiro não arrumar, não tem mais arrumação.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 340


Luiz Vilela (Fazendo a Barba)


O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:

- Ele está quente ainda...

- Que hora que foi? - perguntou o rapazinho.

O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.

- Que hora que ele morreu? - o rapazinho tornou a perguntar.

- De madrugada - disse o barbeiro; - ele morreu de madrugada.

Estendeu a mão:

- O pincel e o creme.

O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mesinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma.

O rapazinho era sempre rápido no serviço mas aquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama.

Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.

- Não foi nada - disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; - isso acontece...

O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida.

Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:

- Você acharia melhor esperar lá fora? - perguntou, de um modo muito educado.

– Não, senhor.

- A morte não é um espetáculo agradável para os jovens - disse. – Aliás, para ninguém...

Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada. Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.

O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel.

O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.

- É tão esquisito - disse o rapazinho.

- Esquisito? - o barbeiro parou de afiar.

- A gente fazer a barba dele...

O barbeiro olhou para o morto:

- O que não é esquisito? - disse. - Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito?

Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.

- Deus me ajude a morrer com a barba feita- disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. - Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...

O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto - mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.

- Será que ele está vendo a gente de algum lugar? - perguntou o rapazinho.

Olhou para o alto - o teto ainda de luz acesa -, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali.

A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto.

- Por que a gente morre? - perguntou. - Por que a gente tem de morrer?

O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.

- Me dá a outra toalha - pediu; - e molhe o paninho.

O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha.

O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.

- Por que será que a gente não acostuma com a morte? - perguntou o rapazinho. -A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?

O barbeiro fixou-o um segundo:

- É - disse, e se voltou para o morto.

Começou a fazer o bigode.

- Não é esquisito? - perguntou o rapazinho. - Eu não entendo.

- Há muita coisa que a gente não entende - disse o barbeiro.

Estendeu a mão:

- A tesourinha.

Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.

- O pente - disse o barbeiro. - Pode ir guardando as coisas.

Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.

- A tesourinha de novo - pediu.

O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.

O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode.

Os dois ficaram olhando.

- A morte é uma coisa muito estranha - disse o barbeiro.

Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.

Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:

- Vamos tomar uma pinguinha?

O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder.

- Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos - disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.

- Bem... - disse o rapaz.

O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.

Fonte:
Luiz Vilela. O Fim de Tudo. publicado em 1973.

Claudemiro Amaral (Poemas Avulsos)


ALMAS ENCARCERADAS

Velhas saudades dos meus tempos idos
repetem hoje, ao te fitar — Peti!
Lá do passado, sonhos esquecidos
cobrem de amor meu coração por ti!

No teu olhar mais divinal eu vi
partirem certos, para os meus sentidos,
laços de amor... e me desfaleci…
Pois somos ambos já comprometidos!...

Como explicar deste mistério o enredo?
se há pecado?... e no pecar faz medo?...
Mistério, pois... mas essas ondas passam!

Pois nosso amor, que é divinal, consola,
balsamizando sempre, por esmola,
as nossas almas quando se entrelaçam!
****************************************

BUSCANDO A VERDADE


Vale pensar maduramente e crer,
vendo a verdade em toda parte estar!
Vale buscar para depois saber
que quem procura sempre há de encontrar!

Mas o saber que em tudo faz vibrar
mostra a verdade a palpitar no ser!
Se na distância ela nos faz pensar,
dentro de nós ela nos faz crescer...

Pois o saber, como a estrela-guia,
mantém-se oculto; mas, pra quem confia,
sem ser preciso ele apalpar, nem ver,

ele perdura e sempre está presente,
vendo o passado a refletir na frente,
por luz suprema a palpitar no ser...
****************************************

EU SINTO


Eu sinto em mim uma saudade imensa!
Certo desejo, talvez sede ou fome!
Sinto minha alma em vibração suspensa!
Sinto a verdade me mudando o nome...

Sinto, não nego, que uma luz consome
a densa treva como recompensa,
mas o segredo social que tome
outro caminho onde há respeito e crença!

Eu sinto fome... fome de saber!
Eu sinto sede é de me ver crescer
no meu saber para matar a fome!.,.

Eu, vendo a treva a consumir quem erra,
vejo a virtude aproximar da terra,
como a verdade me mudando o nome!
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FRATERNIDADE


Quero falar sem atacar. Porém,
nunca fugi, falando a verdade.
Mostrar defeito em quem talvez não o tem
é sinal vivo de perversidade!...

Pra ser sincero, contra tal maldade,
o melhor mesmo é só fazer o bem...
mas, do abuso contra a liberdade,
é bom mostrar sem ofender ninguém!

Quem porventura pode ser isento
da sutileza, do sagaz fermento
que nos envolve, a toda humanidade?

Quem assim for que lave então a mão;
mas que respeite sempre o seu irmão
no doce afeto da fraternidade!...
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MAGIA DIVINA


A luz acende... E, sem mostrar aonde
fica o mistério em combustão no ser:
se em plena luz onde a virtude esconde,
se na magia que lhe faz nascer!...

Se no segredo que lhe faz crescer,
se na ciência que não me responde,
se dentro em mim me conduzindo a ver
no próprio éter, onde o mistério esconde!

Eu sou na carne um embrião movendo..
sou luz no éter devagar crescendo:
um vivo morto pra depois nascer...

Imerso em trevas sem achar saída!
como centelha a navegar perdida,
buscando a vida para à luz volver!
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OBRA-PRIMA


Do protoplasma até o corpo ereto
que dorme a vida em embrião latente:
transmuta a vida e vai nascer na frente
no ser sublime e já de amor repleto!...

É a própria vida que palpita e sente
necessidade de fazer completo,
no ser vivente, um embrião secreto
reproduzindo e transformando a gente!

Vivendo o corpo, em células reparte
deixando à vida uma função de amor
onde o saber vem revelando a arte...

Como oficina gera mais calor:
vem a função que multiplica e parte
a obra-prima para o CRIADOR!...
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O MEU RESPEITO


Do meu respeito vem felicidade
como ornamento do meu ser pensante!
Tudo eu respeito... a própria iniquidade,
Por um dever que encontrei distante...

Aqui, porém, como um farol brilhante
está a luz... a própria liberdade!
A decantada e como um astro errante,
mas que nos cobre de felicidade.

Mas do abuso nasce a anarquia:
nasce a vileza na "democracia",
o vitupério na "religião".

Nasce o fermento da sociedade...
Nasce o descaso — nasce a falsidade
e desrespeito por qualquer Nação!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.