terça-feira, 9 de novembro de 2021

Mario de Andrade (Será o Benedito!)

A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde aguentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:

— O hôme da cidade, chi!...

Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.

***
Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:

— Mas será o Benedito! Não é assim, moço!

Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.

***
Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."

— O que é isso?...

- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.

— Será o Benedito...

E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.

Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:

— Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.

E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.

Fonte:
ANDRADE, Mário de. Será o Benedito! SP: Ed. da PUC-SP, 1992.

Minha Estante de Livros (Tristão e Isolda)


Tristão e Isolda é a versão escrita de uma lenda celta cujas origens remontam ao século IX. Conta a história de um jovem casal que, após encontrar-se de forma inusitada, apaixona-se, mas se depara com diversos obstáculos políticos e sociais para permanecer juntos.

Os muitos estudos históricos discordam das origens reais de ‘Tristão e Isolda’, tornando impossível identificar uma origem em comum para a lenda. Porém, há ecos de sua narrativa em diversas culturas. As origens da lenda remetem ao início do século XII, e envolvem muitas fontes e versões, sendo as mais antigas do folclore celta do norte da França. Dois poetas da época, Thomas of Britain e Béroul detêm os primeiros textos mais conhecidos e, apesar de pequenas diferenças, ambos possuem a essência da história.

Versões

Na versão de Béroul, Tristão vai à Irlanda em busca de Isolda para que ela se case com seu tio Marke. Porém, no caminho de volta, os dois bebem uma poção mágica que faz com que se apaixonem perdidamente. Nesta versão, Tristão não é um nobre, apesar de ser um valente guerreiro.

Existem apenas 8 fragmentos da versão de Thomas of Britain, e que se referem à parte final da história. Historiadores acreditam que este trecho é somente um sexto da versão original. A história de Thomas é considerada pelos historiadores a primeira versão ‘nobre’ da lenda.

Na versão irlandesa, seus nomes são Grainne e Diarmat. No texto ‘A perseguição de Diarmat e Grainne’, o velho Rei irlandês Fionn mac Cumhail deseja se casar com a jovem Grainne, porém, na cerimônia de união, o guerreiro Diarmat se apaixona por ela. Grainne dá uma poção de sono aos presentes e foge com Diarmat. Há uma lenda persa do século XI, chamada ‘Vis and Ramon’ com estrutura similar.

Esta forma arquetípica de amor, honra e traição dentro da nobreza possui versões e pergaminhos em diversas línguas. A história de Tristão é popular na Itália, onde o guerreiro protagoniza diversas aventuras. Na Espanha, no século XIV, Arcipreste de Hita escreveu a sua versão da história de ‘Tristão e Isolda’. Na biblioteca nacional de Viena, há um fragmento de 130 linhas de uma versão em holandês da história de ‘Tristão e Isolda’ de Thomas of Britain.

No início a história de Tristão e Isolda não tinha relação alguma com a do Rei Artur. Porém, a partir do século XIII, este conto passa a se confundir com a literatura arturiana, que mostra o Rei Artur e o triângulo amoroso entre sua amada, Guinevere, e seu maior guerreiro, Lancelot. Em um texto chamado ‘vasta prosa de Tristão’, ele é um dos reis presentes à távola redonda, e participa da busca pelo santo Graal.

Influências

‘Romeu e Julieta’, a famosa obra de William Shakespeare, dramaturgo do século XVI, tem as suas origens em poemas como o de Arthur Brooke, de 1562, que, por sua vez, se inspirou em lendas e contos como o de ‘Tristão e Isolda’.

Entre 1857 e 1859, Richard Wagner, um dos maiores compositores alemães de todos os tempos, realizador entre outras da famosa ‘Cavalgada das Valquírias’, compõe ‘Tristão e Isolda’, ópera em 3 atos baseada na lenda Celta.

Em 1909, ‘Tristão e Isolda’ chega pela primeira vez ao cinema, no filme francês mudo ‘Tristan et Yseult’. Em 1948, Jean Delannoy dirige o filme francês "O Eterno Retorno", com Madeleine Sologne e Jean Marais nos papéis principais. Apesar de seguir as versões francesas, o filme foi adaptado aos tempos modernos, daí destoar algo do mito, uma vez que este está associado à cavalaria ou mesmo ao medievalismo, a despeito de ser um mito celta. Em 2006, mais de 100 anos depois das primeiras versões de ‘Tristão e Isolda’ serem registradas, chega aos cinemas a versão produzida por Ridley Scott e estrelada por James Franco. Este último é um filme rico historicamente, pois podemos averiguar no contexto entre invasões e heroicas batalhas a história de muitos povos e o surgimento de uma língua. Na história da língua inglesa encontramos muitas referências aos povos e locais citados no romance e que são bem nítidos e definidos no filme, direcionando-nos a uma visão o mais próxima possível do que possa ter acontecido durante a dita Idade das Trevas ou seja, a Idade Média, com suas sangrentas batalhas por disputas de terras.

UMA LEITURA DE TRISTÃO E ISOLDA
Por Celuy Roberta Hundzinski Damasio

A obra Tristão e Isolda é originária de uma tradição oral popular. Várias são as versões que daí surgiram, as mais conhecidas são Roman de Tristan, do normando Béroul, que data de 1170 et Tristan de Thomas d’Angleterre, datada de 1175. A tradução que utilizaremos é do original intitulado Le Roman de Tristan et Iseut, escrita em 1900, par Joseph Bédier.

Esse romance entra na história da literatura no século XII, quando esta deixava de ser exclusivamente em latim, que poucos compreendiam, e começava a ser escrita nas línguas ditas "vulgares". Nesse período tivemos um tipo de narração intitulada literatura cortês, caracterizada, entre outros, pelo "amor cortês" que, apesar da oposição, não deixava de possuir alguns traços do "amor dionisíaco".

Amor cortês foi um conceito europeu medieval de atitudes, mitos e etiqueta para enaltecer o amor, e que gerou vários gêneros de literatura medieval, incluindo o romance. Ele surgiu nas cortes ducais e principescas das regiões onde hoje se situa a França meridional, em fins do século XI. Em sua essência, o amor cortês era uma experiência contraditória entre o desejo erótico e a realização espiritual, "um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e auto-disciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente". (wikipedia)

Este tipo de amor representa a relação apaixonada, comumente, entre uma dama casada e um homem solteiro, dito "jovem" neste contexto literário. Aí, em seu ápice, este sentimento tornou-se o terreno onde todas as perfeições morais e culturais floresceram. Devido a este estilo, o amante é puro e virtuoso.

Na época, o Teocentrismo e a Igreja, que detinha o poder, tinham uma influência muito forte sobre os atos e pensamentos humanos, como podemos observar nesse livro. É mostrado como as pessoas, tanto a plebe quanto os poderosos, vêem a religião que muitas vezes, era focalizada através do ponto de vista de um "Falso Poder"; porém, outras vezes a crença era, realmente, fortíssima.

A Igreja passou, nessa época, a considerar o casamento como um sacramento equivalente à ordenação eclesiástica. Consequentemente, a separação passou a ser proibida, e o conceito de indissolubilidade do matrimônio foi adotado. Todavia, para que fosse contraído, era obrigatório o consentimento dos noivos. Assim sendo, a mulher poderia ter a liberdade de escolher quem mais lhe agradasse ou quem fosse digno de conquistá-la.

A história nos conta que um jovem, chamado Tristão, filho do rei Rivalino e Brancaflor, ficou órfão e foi servir ao Rei Marcos que, por sua vez, ficou sabendo que Tristão era seu sobrinho, somente, quando a corte precisou de um homem forte, de família nobre, para derrotar um gigante que, já há muito tempo, estava atormentando seu castelo.

Tempos passaram e Tristão encontrou uma linda mulher, chamada Isolda, para que seu tio pudesse se casar, ganhando-a, para ele, em uma luta e, como o combinado, levou-a para Cornualha. Havia uma poção mágica, que deveria ter sido dada a Isolda e seu futuro marido, todavia, foi Tristão quem, por engano, a tomou e os dois se apaixonaram. Como Isolda era esposa do rei, eles se encontravam às escondidas.

Brangia a serviçal de Isolda foi a culpada pelo ocorrido e, com a consciência pesada, criava oportunidades para que o casal adúltero pudesse se encontrar. Mesmo correndo perigo de serem pegos nas emboscadas feitas pelos homens da corte, Tristão e Isolda se amaram até a morte.

Visamos, aqui, verificar, de maneira concisa, algumas características dos personagens, e os aspectos que nos ajudam entender a estrutura e sua importância, tais como: Ordálio, amor cortês e erótico, a religião e o valor que têm, na obra, as três Isoldas que ocupam um papel fundamental no desenrolar das ações.

Personagens

Podemos observar uma mudança de personalidade em Isolda e Tristão conforme o desenrolar da narrativa.

Falaremos, primeiramente, de Tristão, que morava com seus pais em Tintagel, até que um dia, com a morte destes, foi para a Cornualha a procura de seu tio Rei Marcos. Chegando lá, não se identificou como seu sobrinho e, mesmo assim, ganhou-lhe a confiança.

Tristão possuía as características que o definem muito bem como personagem da literatura cortês: um rapaz forte, inteligente e deveras habilidoso. Era muito confiante em si mesmo e, para provar a sua lealdade ao soberano e ao seu povo, usava desta qualidade (ser forte) para mostrar que era honesto e que jamais seria desleal.

Sendo muito esperto, disse que traiu Marcos porque estava sob efeito da poção. Ele pode ser considerado como um homem "normal", ou seja, caracterizado como alguém que ama e um herói que luta. Entretanto, passou de fiel à infiel, coisa que era inadmissível para ele, no início da narração. A virtude, ocupando lugar de destaque nesse estilo literário, não permite que os protagonistas assumam sua culpa, direcionando-a sempre para fora de si. Enquanto herói, Tristão jamais foi traidor, tornando-se, desta forma, um mito adorado por todos.

É possível fazer uma analogia com o nome de Tristão, que seria o aumentativo de Tristeza, para assim designar a grandeza de seu sofrimento, na luta entre o amor cortês e dionisíaco, durante todo o romance.

Outra personagem central é Isolda, que morava na Irlanda, juntamente com seus pais, o Rei Gormond e Isolda (a mãe). Igualmente denotando particularidades do gênero literário cortês, era uma moça muito bonita, de cabelos loiros e, por isso, muito cobiçada por homens de todas as idades e posições sociais. Foi, juntamente com Tristão, para Cornualha, porque estava prometida a se casar com o Rei Marcos. Por causa de sua acompanhante, Brangia, que a colocou em um triângulo amoroso, a personalidade de Isolda, sofreu mudanças logo no início da história, assim prosseguindo até o final, onde já estava completamente diferente.

No começo do livro, ela era ingênua, não possuía a malícia de sair-se bem de certas situações; o convívio com sua serviçal, Brangia, e com a necessidade de ludibriar seu marido, acabou por tornar-se uma mulher sagaz, inteligente e por demais esperta, livrando-se da condenação, com grande astúcia.

Passaremos ao terceiro personagem: Marcos, o Rei de Cornualha. Vivia rodeado pelos membros da sua corte e nada fazia sem a aprovação deles. Talvez, por isso, tenha passado ao leitor, a ideia de não possuir personalidade própria. Deixava-se levar, sempre, pelas opiniões dos seus aliados. Por causa das ideias alheias, foi induzido, principalmente pelos barões, a desconfiar de sua esposa e sobrinho.

Seus conselheiros eram pessoas invejosas, calculistas e queriam ver Tristão longe da amada. Armavam todas as emboscadas para que o rei pudesse ver "com que tipo de mulher ele casara" e que seu sobrinho não era tão fiel quanto ele pensava. No entanto, a valentia destes "traidores" não durava muito quando eram postos à luta, pois eram os primeiros a darem desculpas para livrarem-se da situação.

Quanto a Brangia, possuía características psicológicas marcantes, porém, o que a distinguiu dos outros foi, justamente, seu caráter ter continuado forte desde o início até o final da história.

Serviçal de Isolda, era fiel à sua senhora e nunca demonstrou ser desleal. Causadora do triângulo amoroso, desde o ocorrido, nunca mais abandonou sua patroa. Querendo compensar sua negligência, sempre fez com que Isolda matasse seu desejo encobrindo o "pecado". Uma das provas de fidelidade que Brangia deu à sua senhora, foi quando se deitou com Rei Marcos para fazer as vezes de sua esposa, sendo que ela ainda era virgem.

Assim como Brangia, temos Jorvenal que, também, foi fiel até a morte de seu senhor, Tristão. Ele nunca fez nada para que Tristão desconfiasse de sua lealdade. Por isso, sua personalidade se manteve estável durante toda a narração.

Ordálio

O Ordálio consistia a fazer o acusado passar diversas provas físicas com o objetivo de mostrar sua inocência. Isso acontecia diante da divindade tutelar da justiça que, por definição, não podia deixar o inocente sucumbir ou a injustiça triunfar.

Há quem afirme, por causa do caráter religioso e místico marcante, que era uma espécie de mandamento que a Igreja possuía para punir as pessoas que pudessem, naquela época, vir a cometer o adultério. Não obstante, sendo associado a uma violência extrema, representa, do ponto de vista teológico, um teste à bondade divina, o que é condenado claramente pela bíblia e pela Igreja Católica.

Tristão e Isolda viviam em constantes "provações e emboscadas" e, era através delas que o Rei Marcos passou a desconfiar da lealdade dois. A cada aproximação dos amantes, havia um "invejoso" que tentava mostrar a falta de Tristão, para que o tio visse, com seus próprios olhos, que estava sendo traído.

Sempre no momento em que os amantes estavam sendo emboscados, estes encontravam uma grande saída e, geralmente, eram obrigados a usar da mentira para que se livrassem dos apuros e, assim, do Ordálio.

Após a noite de núpcias, Kariado, fiel de Marcos, com inveja dos amantes e desejando o lugar de Tristão perante o soberano, começou a lhe mostrar que estava sendo enganado pela própria mulher e sobrinho. O rei pôs em prova a lealdade da esposa, simulando uma viagem, onde Isolda se traiu pedindo que ficasse protegida pelo amado.

A estratégia, entretanto, não deu resultado porque Brangia os alertara sobre o perigo que corriam, avisando-os que Kariado maquinara tudo para que ela se entregasse. Quando o esposo veio testá-la pela segunda vez, ela já estava preparada para que não deixasse que as suspeitas levantadas pelo vassalo prosseguissem, e quando ele diz: "Bela amiga – disse -, nada me é tão profundamente caro como vós, e o pensamento de que nos vamos separar, ...(p. 61). Isolda, em sua perspicácia, responde: "Em nome de Deus, ficai ou deixai-me, cativa, ir convosco"! (p. 61).

O rei achou esquisito a esposa ter mudado de ideia quanto a ficar sob a guarda de Tristão, mas, como ela sabia que estava sendo provada, prosseguiu a conversa citando-o:... Finge ser meu amigo porque matou o meu tio e lisonjeia-me para que não me vingue dele, pode no entanto ter isto por certo: todos os seus belos semblantes não me podem consolar da grande dor, da vergonha e do mal que causou a mim e a minha família. Se não fosse vosso sobrinho, há já muito tempo que o teria feito sentir a minha cólera. Queria nunca mais o ver, nunca mais lhe falar.(p. 61).

Kariado não se convenceu e pediu ao rei para experimentá-la pela terceira vez. Isolda, novamente, traiu-se, pois não queria que Tristão fosse embora. Tentou defender a ida do amante. Contudo, quando percebeu que estava, mais uma vez, sendo provada, soube persuadi-lo de que Tristão nada representava para ela.

As dúvidas de Marcos se foram. No entanto, a inveja que os homens da corte sentiam dos amantes não permitiu que os deixassem em paz. Assim, nova estratégia foi providenciada. Audret, outro vassalo, fez com que o soberano fosse testemunhar o encontro dos dois sob um grande pinheiro. Todavia, como Tristão era uma pessoa muito esperta, não se intimidou quando percebeu que estava em uma armadilha, soube sair-se sem deixar nenhuma dúvida de sua lealdade.

Foi armada uma quinta emboscada, em que colocaram farinha no chão pra que deixassem rastros. Tristão, tendo a característica cortês de jovem deveras astucioso, quase escapou, mas foi apanhado pelo seu próprio sangue. Desta vez, não houve saída e seu tio acabou presenciando o ocorrido.

O fato fez com que o casal amedrontado fugisse, desaparecendo por dois anos, quando o rei os encontrou deitados numa cabana na floresta e, ainda assim, mesmo depois de tudo, convenceu-se que não havia sido traído, pois os encontrou juntos, deitados como irmãos, com a espada de Tristão desembainhada entre os dois. Este ato significava "respeito" e, por consequência, acreditou na lealdade dos dois.

Desta forma, Isolda teve a permissão de permanecer no castelo, entretanto, Tristão teria que partir. Para que o esposo voltasse a confiar plenamente em Isolda, esta armou uma situação, onde jurou, perante o rei Arthur e a Deus, que nunca traíra seu marido. Porém, consciente de que este falso juramento seria pecaminoso, e demonstrando sua crença, usou de dúbias palavras para que não mentisse a Deus e, como sempre, saiu-se bem.

Tristão voltou a encontrar-se com Isolda, mas o rei desconfiou de sua presença e foi persuadido, pelos seus "fiéis", a colocar lanças no chão, para mais uma tentativa de emboscada. Não obstante, a astúcia de Tristão foi maior e não se deixou pegar.

Podemos dizer que a maneira como é mostrado o Ordálio, foi feita uma crítica a um dos mandamentos da lei de Deus ou, mais especificamente, ao modo como se tentava impor e conservar o sacramento da Igreja Católica; pois, como já foi dito, sua finalidade era de punir os amantes em caso de adultério e traição.

Todo o desenrolar da obra, marcado pelas tentativas de desmascaramento e pela vitória dos "pecadores" quer mostrar que a punição não vem de Deus e este "mandamento" era a amostra de um "falso poder": para os que mandavam (governavam) era mais fácil manter o poder fazendo com que as outras pessoas acreditassem que o Poderoso iria puni-los aqui mesmo, na terra. Este castigo, entre outros, era a fogueira. Uma vez que "Deus" fosse o responsável, a culpa deixava de ser humana.

Por outro lado, além de ser mostrado que existiam pessoas que se utilizavam da fé como uma simples forma de provar que era a lei de Deus que punia e não os homens, é apontado, também, que a fé que as pessoas desta época possuíam podia ser uma crença verdadeira ou, apenas, uma educação religiosa recebida dos pais.

A Religião e a Trindade das Isoldas

Observamos que a religião tem lugar de destaque, demonstrando a crença e o misticismo da época. Várias vezes é mencionado o nome de Deus ou falado claramente sobre a Igreja, santos, sinais religiosos ou, ainda, há muitas alusões a termos ou fatos bíblicos.

Disso, queremos destacar a trindade das Isoldas. São três mulheres de caráter bastante diferentes, mas com o mesmo objetivo: o "amor verdadeiro". As características de cada uma destas personagens estão marcadas pelas suas ações e anseios. Poderia ser uma analogia ao Pai, Filho, Espírito Santo, cada um com suas características, todos chamados "Deus", em busca de um mesmo alvo: não o amor verdadeiro, mas fazer conhecer esse AMOR que são eles próprios.

Tudo começou com Isolda, mãe, representando um ser mitológico que acreditava que, através da poção mágica, a sua filha iria se apaixonar pelo prometido e ser feliz. Ela estava preocupada com a preservação da família que a sua filha iria adquirir casando-se com o Rei Marcos.

Desejava, além disso, defender a moral de sua filha, pois se caso Isolda não viesse a gostar do soberano, seu casamento não iria dar certo, terminando, possivelmente, por um adultério e, consequentemente, pela separação. Naquela época isso seria inadmissível, escandaloso e imoral. Além do mais, Isolda, a mãe, queria a união das famílias nobres, ou seja, a união do reino Gormond com o reino de Marcos.

Isolda Loira (filha) era a imagem da sedução, sendo que todos os homens não conseguiam resistir à tal beldade. Era considerada como o símbolo da beleza. Uma mulher movida pelo amor carnal e pela paixão (o amor erótico). Amante e amada. Fiel a Tristão, pois por nada deixou de amá-lo, contudo, infiel ao Rei Marcos, porque jamais deixou de amar Tristão.

Tudo isto teve início por causa da poção mágica feita por Isolda mãe. Antes da poção, Isolda Loira possuía um amor cortês, que foi transformado no amor erótico, ou seja, o amor dionisíaco que é conduzido, não pela razão, mas por um feitiço. Um amor que se transforma numa louca paixão, onde os amantes estão sempre correndo riscos por causa dela. Assim era o sentimento entre os personagens principais. Todavia, veremos que, depois do efeito da poção, eles voltam ao estado inicial recuperando, racionalmente, o amor cortês.

Com o fim do sortilégio teve início o predomínio da razão. Tristão e Isolda Loira agora conscientes dos seus atos, não deixaram de se amar, mas sabiam que não poderiam continuar juntos ocorrendo, então, a separação.

Algum tempo depois que acabou o efeito da poção, Tristão conheceu outra Isolda, a das mãos brancas, e com ela, viveu um amor cortês. Esta Isolda era uma mulher bonita, ingênua, pura, leal e honesta. Foi iludida e aceitou a viver apenas com os carinhos de Tristão. O amor vivido por esses dois foi movido pela razão e eles acabaram se casando. Para ele, este casamento foi uma fuga, onde esperava esquecer a Isolda Loira. O amor carnal não foi concretizado e deu-se o amor cortês. Mas, esta união não deu em nada, fracassando.

Isolda das mãos brancas descobriu que estava sendo enganada e, impulsionada pelo ciúme, mentiu. A mentira levou Tristão e, em seguida, Isolda Loira à morte. A concretização do amor em Tristão e Isolda Loira só foi possível acontecer logo depois de suas mortes, sendo evidente, assim, que precisaram da terceira Isolda para que o amor perdurasse eternamente.

No túmulo de Isolda, a loira, plantou uma roseira vermelha e no de Tristão um cepo de nobre vinha. Os dois arbustos cresceram juntos e os seus ramos entrelaçaram-se tão intimamente que foi impossível separá-los; de cada vez que os podavam, tornavam a crescer com todo o vigor e confundiam a sua folhagem. (p. 175).

Constatamos que a reunião destas três Isoldas resultou na formação da "mulher comum", que é a verdadeira deusa. Aquela que tudo faz pelos filhos e pelo amor quando se sente traída. As ações são causadas pelas três, e cada uma delas teve fundamental importância no romance. Importância que, até então, as mulheres não tinham nas obras literárias.

Temos, no livro, a ação proveniente dos atos heroicos de Tristão. Nota-se, claramente, que todo o desencadeamento das ações teve o seu início, propriamente dito, com a vitória de Tristão sobre o Norholt. O narrador procurou mostrar todo um mundo de ficção e magia, com intuito de deixar transparecer, claramente, o sentido e a capacidade heroica de Tristão.

Esta obra foi fundamental, para a época, por retratar mudanças ideológicas, culturais e sociais que estavam ocorrendo. A mulher começava a ter um papel mais relevante na literatura e isso influenciava em todo contexto. O papel da religião, também, estava sendo questionado. Podemos, consequentemente, afirmar que a obra foi um grande passo para os posteriores. A inovação, a partir dela, foi constante, sobretudo, no que se refere ao lugar que a mulher, a religião e o poder passam a ocupar, literariamente, daí em diante.

Fontes:
Wikipedia
DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Uma leitura de Tristão e Isolda. In: Revista Espaço Acadêmico, Ano VII. no. 78 – Novembro de 2007. Maringá: UEM.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Adega de Versos 55: Divenei Boseli

Fonte da Imagem: Revista Contemporartes

Lima Barreto (Na janela)

— Você sabe: o Alfredo não me trouxe o broche.

— Que desculpa ele deu?

— Que o sete não tinha dado a noite toda...

— Vai ver, Mercedes, que ele foi gastar com a Candinha... Ah! Os homens! São uns malandros!

— Não sei, mas... enfim todos eles são iguais.

— No começo é aquilo, parece que a gente é pouca ou que eles são muito mais. Vivem atrás de nós, descobrem, adivinham os nossos pensamentos; depois... não sei o que dá neles... esfriam, esfriam...

— Meu marido foi assim. No tempo de noivo, nem sabia falar quando estava perto de mim; olhava-me só e o seu olhar parecia que me vestia, que me beijava, que me ameigava... Meses depois de casada, deixou-me só, sem dinheiro, sem parentes, nesta cidade tão grande... Bem fez você que não se casou!

— Mas namorei...

— Muitos?

— Sem conta!

— Você não amou nenhum?

— Não sei... Creio que todos me agradavam o bastante para casar.

— É difícil compreender.

— Ora, é fácil... Eu fui sempre engraçada. Aos treze anos, quando saía com meu pai, todos na rua me olhavam. Um dia até, no bonde, uma senhora de aparência rica, muito grande, muito alta, perguntou a meu pai: é sua filha? Sim, respondeu ele. A senhora olhou-nos muito, a mim e a ele, virou a cara e sorriu duvidosa. Aos quatorze, tive o primeiro namorado. Era o caixeiro da venda... Um portuguesinho louro, que dizia "binho", "benda", mas com uns olhos azuis cor do céu pelas bonitas manhã. E daí não parei mais. Tive um segundo, um terceiro... quando cheguei ao quinto já escrevia cartas. Minha mãe pegou uma e deu-me uma surra; mas não me emendei — continuei. Não sabia resistir... Eles choravam, juravam.., e eu namorava quase ao mesmo tempo. Era como se — em grande riqueza inesgotável — não negasse esmolas. Você sabe: quando se tem muito vai se dando.

Parece que não acaba; mas acaba e então chora-se pitanga. Fui assim: pediam-me beijos, abraços, cabelos; e eu dava por pena, unicamente. Se eu tivesse sido mais sovina, não estava "nesta vida"... E a sorte, que se há de fazer?

— Mas, e o “tal”?

— É verdade! Um dia fui a um baile, como sempre, tinha lá uma chusma de adoradores; mas apareceu um novo. Não sabia quem era, muito diferente de todos. Educado, parecia doutor ou estudante de verdade, de estudos difíceis. Olhou-me e eu olhei, e namorei-o. Não troquei palavra. Dancei com ele e o ouvi falar a um outro. Que voz! Antes da meia-noite saiu. No outro ano, em dia de festa na mesma casa, já não pude ir lá mais; tinha vindo a tal encrenca... corpo de delito... Você sabe... Não deu em nada; ou antes: deu "nisto".

— Nunca mais você viu “ele"?

— O "tal"? Há dois anos que sempre o vejo na rua do Ouvidor, nos teatros...

— Ele não fala com você?

— Não. Olha-me um instante e baixa a cabeça.

— Engraçado! Outro qualquer...

— É verdade! Perguntei quem era, disseram é um doutor fulano de tal e é solteiro.

— Mas nunca você procurou falar com ele?

— Só uma vez. Cheguei-me e sem mais aquela sentei-me à mesa em que estava. Perguntei-lhe se não me conhecia. De vista, respondeu. Se não tinha ido a um baile assim, assim. Nunca! afirmou. Contei-lhe então a história e indaguei-lhe se, de fato, fosse ele não se daria a conhecer. Hesitou e, por fim, respondeu-me umas coisas embrulhadas que, afinal, me pareceu quererem dizer que eu, a menina do baile, era outra coisa que não sou eu mesma atualmente; e quem me tinha visto no baile não me via ali, num jardim de teatro.

— Era um tolo; um...

— Não. Eu o vi, mais tarde, muito alegre, com uma outra no automóvel...

Nos elétricos que passavam, os passageiros que olhavam aquelas duas mulheres com olhares cheios de desejos não seriam capazes de adivinhar a inocência de sua conversa, na janela de uma casa suspeita.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXII

 “Do seu longínquo reino cor-de-rosa”

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e , cobrindo
Seu  corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia  -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
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“Doura o dia. Silente, o vento dura”
 
Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.
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“Doze signos do céu o Sol percorre”
 
Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
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“Durmo, cheio de nada, e amanhã”
 
Durmo, cheio de nada, e amanhã
é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.

O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.

O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz?!
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“Durmo. Regresso ou espero?”
 
Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
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“É boa! Se fossem malmequeres!”
 
É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de "queres?"
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por  ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão  o meu intuito.
Caminharei sem regressar.
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É Inda Quente
 
É inda quente o fim do dia...
Meu coração tem tédio e nada...
Da vida sobe maresia...
Uma luz azulada e fria
Para nas pedras da calçada...
Uma luz azulada e vaga
Um resto anônimo do dia...
Meu coração não se embriaga
Vejo como quem vê e divaga...
E uma luz azulada e fria.
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O Louco
 
 E fala aos constelados céus  
De trás das mágoas e das grades  
Talvez com sonhos como os meus ...  
Talvez, meu Deus!, com que verdades!  

As grades de uma cela estreita  
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita  
E com voz não humana berra...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Raul Pompéia (Dia de gala)

Era duplamente dotada de fibra e de imaginação; com este aparelho arma-se uma criatura terrível; terrível ou deliciosa: pontos de vista. Para completar, moça e viúva.

A viuvinha sofria, assim, de uma viuvez carnal, saudade orgânica do esposo (esposo aqui em gênero, não em caso) como deve padecer a roda dentada, da ausência absurda da engrenagem conjugante.

Era religiosa. No êxtase da crença, oferecia aos numes do oratório o sacrifício difícil dos seus desgostos.

Na restrita pobreza dos recursos de costureira, por meio de vida, faltavam-lhe divertimentos. Ela morava ali, no largo do Paço, naquela casa de perspectiva secular que parece como uma boa velha antiquíssima a debruçar-se para a gente a contar histórias do Sr. D. João VI, que Deus tenha. Valia-lhe de prazer o panorama do mar e por exceção, na monotonia da vida, as procissões do Carmo e as paradas de grande gala

As procissões produziam-lhe um meio enlevo beato, agradável como uma baforada de incenso, mas triste no fundo: como em geral nas solenidades eclesiásticas parecidas todas com um funeral. O seu melhor prazer eram as paradas. Fazia-lhe gosto à viuvez solitária ver em massa tantos homens fortes.

As dragonas, sacudindo ouro aos ombros de alta patente, as baionetas cintilando à grande gala do sol, percorridas de frêmitos incertos, como uma seara metálica, os penachos cor-de-rosa da oficialidade, arrufando as penas como aves guerreiras sobre as barretinas e a temerosa cavalaria, mascando impaciência, transpirando espuma sob os arreios, os possantes corcéis apeados de estátuas equestres. E o tinir seco das bainhas contra as esporas e as vozes nervosas impertinentes de comando, na boca de capitães obesos e as salvas à hora do beija-mão, na marinha de guerra e nas fortalezas. O rumor, o espetáculo produziam-lhe estranho abalo. Ela pensava em combates, multidões armadas atropelando-se, desaparecendo em fumo, surgindo em sangue; pensava nos acampamentos cobertos de tendas e marmitas; deixava-se levar na meditação imaginadora a conceber a reação de amor selvagem dessas populações nômades sem família, depois de uma jornada de morticínio; pensava nas mulheres do campo dos lugares por onde passa um exército e nas vivandeiras moças; pensava com terror lascivo nas cidades entregues ao saque, em que os soldados acham que vale a pena poupar a vida às mulheres; ocorria-lhe um episódio da campanha russo-turca, citado no Jornal do Comércio: quarenta mulheres vitimadas por um batalhão inteiro, num paiol abandonado, entre elas uma de doze anos apenas... a medida que passeava ao longo das filas um binóculo de teatro, visitando a infinidade de caras, bronze fundidos na soalheira das marchas.

Não foi, porém, na predisposição comum que a surpreendeu aquela data: dois de dezembro. Sentia-se presa de um mal-estar indefinido, um alvoroço no organismo que a inquietava como a iminência de uma crise, um desassossego de espírito que lhe tolhia a atenção para o trabalho, impossibilitando mesmo que lhe morasse no cérebro por dois segundos a mesma ideia, ímpetos de choro sem causa, vontade louca de rolar no chão em assomos de convulsões.

Dois de dezembro, cortejo no Paço da cidade.

Era um presente de céu aquela data, pensava ela desfolhando o calendário à parede. Pertencia-lhe a grande gala. O que em outra ocasião fora um divertimento, naquele dia era uma necessidade; naquele dia, distrair-se era um curativo.

Às onze e meia já lá estavam os pelotões em forma. Pelas objetivas do binóculo começou a passar a tropa sucessivamente, em revista sui generis da curiosidade feminina. Uma por uma sucediam-se as caras da soldadesca em cerrada continuidade de galeria numismática. E do sótão ignorado caíam, chuva de rosas sobre as fileiras, olhares de simpatia tão bons, tão expansivos que fariam esquecer o serra-fila ao galucho basbaque que os colhesse no ar.

Tinham decidida preferência as fisionomias duras, viris, douradas a fogo pelo verão das campanhas, riscadas de preto no vinco das rugas, indelével gravura do ritos de severidade marcial que é como o uniforme dos rostos. Mas, que interessante variedade! as faces deformadas por um gilvaz glorioso e devastador, outras picadas de varíola em caprichosas granulações de carne; cá, um semblante de criança grandes olhos negros sobre malares proeminentes do Norte, nadando em candura, ao lado da baioneta feroz; mais além, uma cara branca, crivada de sardas, sobrancelhas louras ásperas; algumas reclamando a baixa do serviço ativo na expressão mórbida; em compensação, algumas apopléticas, sufocadas na gravata de couro como no laço de uma forca.

A viúva olhava como se aspirasse de longe a emanação do pano grosso das fardas suarentas, úmidas às axilas e na constrição dos talins.

Depois o binóculo visitava os oficiais. Era outra coisa. A rudez militar suavizava-se geralmente em fisionomias elegantes, peles aristocráticas amaciadas na sinecura das comissões de paz, carinhas guardadas em algodão e perfumadas para a ostentação oportuna das paradas, altivas, sobre a plebe do exército, como lambrequins de luxo sobre uma torre de ferro, militares de salão meigos e amáveis que possuem palas de tartaruga para a rua do Ouvidor e frascos de brilhantina para a perpétua frescura do bigode; soldados queridos de outras mulheres, não dela, dessas mulheres masculinas que desejam no homem o desconto do que no próprio caráter há de mais. Ela preferia os oficiais de grosso trato, que lembravam o marido, um bravo do Paraguai, que lhe morrera nos braços não sei por que, talvez mesmo porque ela o amara muito.

Ia por estas conjunturas quando o binóculo parou sobre o rosto do capitão Mauro, do 13.o, formado ali, sob as janelas do Paço.

Fazia um tempo admirável. A pobre solitária bebia tentações no ambiente da praça, sobre a florescência de sangue dos flamboyants.

Formosa era ela. Não achava segundo marido por muitas razões, a primeira: por essa desconfiança que persegue as belas viúvas, muito razoável em teoria, mas injusta de fato. Muitas razões ou, pode ser, simplesmente para dar assunto a esta narrativa.

Foi um relâmpago.

— Emília!

Emília era a criada, trefegazinha e esperta. Discreta ou não, no momento convinha que fosse. Foi-lhe confiado este bilhete em letra miúda e nervosa, este lacônico bilhete:

"Hoje, às quatro horas, sr. capitão, espera-o alguém na rua... numero... para dizer-lhe duas palavras amáveis."

O lugar do encontro era a casa de uma amiga ausente, de que tinha a chave a viuvinha.

A nossa heroína esperou que a carta tivesse partido para arrepender-se, mas o arrependimento foi vivíssimo. Aterrou-se com a imagem da temeridade a que se arrojara. Ela conhecia o capitão Mauro, frequentador da casa nos tempos do marido. Um homem atirado, audaz para todas as empresas, na sua construção de aço e saúde. Estava sinceramente arrependida. Tranquilizou-a, felizmente, o alea jacta dos supremos apertos, acolitado pela ponderação de que não custava nada deixar o capitão bater com o nariz na porta.

Emília tinha ordem de acompanhar o batalhão no fim do cortejo e entregar a missiva no quartel.

A viúva avistou no largo a criada insinuando-se pela multidão. Viu sair o imperador, no coche de ouro, para S. Cristóvão, com os seus Polichinelos sovados de libré verde e galões largos à traseira e os empoeirados jóqueis, dirigindo a atrelagem, de corpete curto, camisa a mostra, sobre o cós dos calções e a cavalaria lascando a calçada com a violência do galope; viu afinal desfilar a tropa música à frente Nunca lhe pareceram tão verdes as bandeiras cobrindo os pelotões, abertas amplas ao vento do mar.

Depois, distraidamente foi ao guarda-roupa e tirou uma pequena máscara que lá estava, velha lembrança de um baile Com a tesourinha pôs-se a cortar o veludo, alargando o rasgão dos olhos o mais possível; deixando bastante pano, contudo, para que não a reconhecesse o capitão Mauro. Pobrezinha! Como se já não estivesse decidida a afogar brutalmente no peito mais aquele sonho culpado...

Apesar dos impedimentos possíveis da disciplina, o nosso oficial à noitinha, mandava apalpar as dragonas perguntando se não sentiam ainda o metal quente - da insolação do cortejo, é possível, mas provavelmente de um colar de braços nus que o haviam estrangulado. Agora é que sei, notava mais, o que é ter amor à farda.

E muito tempo depois, entre outras boas histórias de sacristia, um padre do Carmo contava, sem violação do sigilo, o que certa confissão lhe dissera de um dia de gala na monotonia triste da viuvez.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

domingo, 7 de novembro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 8

 

Oscar Nakasato (Menino na árvore)

Num domingo — era bem cedinho —, o menino subiu na mangueira e não quis descer mais. Era dia de missa, e a obrigação era vestir a melhor roupa — o que se traduzia em calça azul-marinho com pregas e camisa branca de mangas compridas e com botões até o pescoço — e ir à igreja cantar e ouvir o padre Lourenço. O menino cumpria a obrigação em parte, já que quase não prestava atenção às palavras do padre, tão interessado estava sempre nas meninas, que também vestiam as suas melhores roupas.

Um pouco antes das sete horas, a avó viu o menino passar pela cozinha e ir para o quintal sem dizer nada, mas não deu importância. Após preparar a mesa para o café da manhã, chamou o menino e o pai do menino — seu filho —, que estava no quarto vestindo também a sua melhor roupa. O pai respondeu que esperasse só mais um minutinho. O menino não respondeu.

— Onde se meteu esse menino?

Quando o pai foi à cozinha, a avó já estava nervosa.

— O menino desapareceu.

— Como desapareceu?

— Eu já procurei pela casa inteira e não o encontrei.

O pai sabia que o menino detestava ir à missa. Mas era assim: não tinha querer ou não querer. Então a avó viu aquela expressão de ódio, ultimamente tão frequente, embrutecer e enfear o rosto do pai.

— Esse menino precisa é de uma boa surra.

E foi o pai procurar pelo menino, gritando ameaças. Deu uma volta ao redor da casa, procurou nos quartos, olhou até debaixo das camas. Por fim, desistiu.

A avó já estava quase chorando:

— O que aconteceu ao menino?

— Tá na rua. Fugiu pra não ir à missa. Mas ele que me espere!

E foram os dois à igreja.

Era assim: a mãe era bonita e meiga e morreu de câncer após meses de sofrimento. O pai chorou como uma criança, envelheceu e foi morar com a avó porque precisava de alguém que tomasse conta do menino. A culpa, então, era sempre da avó, que precisava tomar conta da criança e não tomava.

No caminho de volta da igreja, ela, resignada, ouviu o que sabia que iria ouvir:

— A culpa é da senhora, mamãe. Não sabe dar bronca, não sabe bater. Em mim a senhora batia.

É claro que batia! Era mãe! E ele que não pensasse que mãe e avó são a mesma coisa. Jamais! Mas ele, que se equilibrava no papel de pai da própria mãe, o que tornava irmãos a avó e o neto, não poderia compreender. Por isso ela se calava, ainda que soubesse que consentia ao ficar quieta.

O pai esperava, ao voltar da missa, encontrar o menino em casa lendo uma revista do Super-homem ou assistindo à televisão. Não o encontrou. Deu uma volta pelas ruas do bairro, foi até o campinho de futebol, procurou nas casas dos amigos do menino. Nada. Quando retornou à casa, agora mais preocupado que bravo, encontrou a avó sorrindo.

— Imagina que o menino estava todo o tempo lá em cima, na mangueira.

Que o menino gostava de subir na mangueira, todos sabiam. Mas em tempo de manga madura, não agora, no meio de agosto, o tempo ainda assim, meio frio. Quem iria imaginar?

— Desce já daí!

O menino estava com os pés apoiados no tronco e encostado em um galho grosso, meio deitado. Nas mãos, uma revista do herói que voa. O pai, embaixo, segurando uma cinta, ameaçava com palavras e gestos. Mas os olhos do menino não eram medrosos. Por que, então, não descia?

A avó não compreendia.

— Você, com essa cara e esse cinto, você acha que o menino vai descer?

— A senhora fique quieta, mãe! Ele é quem sabe. Tá ouvindo? É ele quem sabe! Quanto mais demorar mais vai apanhar!

Se pudesse, se não fosse o problema na coluna, subiria e desceria com o menino à força. Mas não podia. Então continuou gritando:

— Ah, quando eu te pegar!

Mas desistiu. Confiou que o menino logo ficaria com fome e desceria. Então acertaria as contas com o filho.

Quando ficou sozinha embaixo da árvore, a avó, a voz mais mansa que a de costume, perguntou:

— O que você fez de errado? Quebrou alguma coisa do seu pai?

— Eu não fiz nada, vovó.

— Então por que não desce daí?

— Eu gosto de ficar aqui.

Mais cinco minutos de conversa, e a avó também desistiu.

Na hora do almoço, o menino desceu. O pai o esperou na porta da cozinha, com a cinta na mão. O menino não correu. A avó se fechou no quarto para não ver o menino apanhar. E como apanhou! Mas aguentou firme, sem reclamar, sem chorar. Depois foi consolado pela avó, almoçou e voltou à mangueira.

Quando o pai soube, teve um ataque de nervos e quase não conseguiu falar. Não podia entender por que o menino o estava afrontando. Foi até a mangueira e novamente gritou insultos e ameaças.

— Ele que fique por lá — disse, enfim.

No final da tarde, apareceu um amigo, que chamou o menino para jogar bola no campinho.

— Não tô com vontade.

— Mas todo mundo vai.

— Hoje não tô com vontade de jogar bola. Eu vou outro dia.

O amigo não insistiu.

No dia seguinte, após ter passado a noite em sua cama, o menino voltou à árvore e não quis ir à escola.

E se passaram dias. O menino descia para comer, ir ao banheiro e dormir. Às vezes, tomava banho. O pai, um dia, trancou o menino no quarto. Que não fosse à escola, mas também não subiria na árvore. O menino ficou o dia inteiro trancado, sem dizer nada, sem pedir à avó que o libertasse. E ele sabia que se pedisse com jeitinho a avó desobedeceria ao filho e abriria a porta. À noite, quando retornou, o pai perguntou ao menino se iria à escola no dia seguinte, e ele respondeu que não. Assim o menino ficou uma semana trancado no quarto.

Numa segunda-feira, o pai desistiu e deixou a porta do quarto aberta. O menino disparou para o quintal e subiu na mangueira. Os vizinhos ficaram sabendo e foram ver o que estava acontecendo, uns por solidariedade, para ajudar, outros por curiosidade, nunca tinham visto algo assim. Vieram os tios, os primos. Começaram a falar em macumba, em inveja de algum conhecido. Por isso chamaram o padre Lourenço, que ficou dez minutos tentando conversar com o menino. Foi embora prometendo que rezaria muito por ele. Depois, sem que o pai soubesse — Deus me livre se ele ficasse sabendo —, chamaram um curandeiro, que pedia como pagamento da visita o que a família quisesse dar. Não adiantou. Falaram em loucura e chamaram um psiquiatra.

Nada. Vieram os amigos da escola, a professora. Até que o pai decidiu:

— Vou cortar essa maldita árvore!

Alguns aprovaram, outros foram contra. A avó consultou o psiquiatra, que achou absurda a ideia. Mas estava decidido. Um dia, ao tomar o café da manhã e correr para o quintal, o menino não encontrou a árvore. Ele ficou dez minutos parado, olhando o vazio que restara no lugar da velha mangueira.

Depois nunca mais se soube do menino. Um inquérito policial foi instaurado, e o pai disse que no dia do corte da árvore foi trabalhar e, ao voltar para o almoço, não encontrou mais o filho. A avó, com os olhos perdidos em algum ponto da parede da delegacia, afirmou que o neto desaparecera enquanto estava no banheiro. O inquérito foi arquivado.

O pai e a avó não falam mais sobre o assunto. Uns dizem que o menino enlouqueceu de vez e foi internado pelo pai num sanatório, na capital. Outros dizem tê-lo visto com uma mochila na rodoviária, tomando um ônibus. Há aqueles que acreditam que quando a nova mangueira — plantada pelo pai no lugar da outra — crescer, o menino voltará.

Fonte:
Luiz Ruffato (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXIII

 
MOCIDADE! NOVAMENTE!

MOTE:
Se eu, por milagre ou magia,
retornasse à flor da idade,
agora, sim, saberia
desfrutar a mocidade!

José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN


GLOSA:
Se eu, por milagre ou magia,

pudesse fazer voltar
o tempo, o que eu faria?
- Faria somente amar!

No tempo, voltando, então,
retornasse à flor da idade,
faria do coração
o templo dessa verdade!

Viagens! Muita alegria!
Muita paixão! Muito amor!
Agora, sim, saberia
degustar-lhes o sabor!

Viver! Sonhar! Nada mais!
Meu Deus! Que felicidade,
e poder, como jamais,
desfrutar a mocidade!
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REGANDO A FELICIDADE

MOTE:
Esquece o triste passado
que te deixa descontente...
Se o teu "ontem" foi nublado,
põe um sol no teu "presente"!

José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG


GLOSA:
Esquece o triste passado

não lembres o que é ruim,
mesmo se, muito malvado,
agora chegou ao fim!

Esse passado tão triste
que te deixa descontente...
agora, não mais existe,
está, para sempre, ausente!

Faze o teu dia encantado,
cultiva sempre a alegria,
se o teu "ontem" foi nublado,
transforma-o em poesia!

A poesia, com carinho,
é sempre a boa semente...
Dando um brilho ao teu caminho,
põe um sol no teu "presente"!

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LIBERDADE...

MOTE:
Pisar na areia molhada,
navegar mares sem fim,
voar como a passarada...
A liberdade é assim!!!

Lisete Johnson de Oliveira
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS


GLOSA:
Pisar na areia molhada,

caminhando devagar,
com mil espumas, bordada,
é sinônimo de amar!

Realizar uma utopia,
navegar mares sem fim,
e um porto só de alegria
decerto, encontrará, sim!

Ver o nascer da alvorada
faz feliz a todos nós,
voar como a passarada...
não nos deixa nunca a sós!

Ao vivenciar tudo isto
eu sinto dentro de mim,
está muito mais que visto:
A liberdade é assim!!!
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MURMÚRIOS

MOTE:
Os murmúrios das gaivotas,
em noites de lua cheia,
são canções deixando as notas
nas pautas brancas da areia.

Miguel Russowsky
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC


GLOSA:
Os murmúrios das gaivotas,
com grande sonoridade
parecem preces devotas
respingadas de saudade!

O luar lindo, prateado,
em noites de lua cheia,
voa junto, lado a lado,
numa iluminada teia.

E superando as derrotas,
vão cantando, assim, ao léu,
são canções deixando as notas
gravadas no azul do céu!

Os murmúrios e o luar
em delicada cadeia,
vão sua marca deixar
nas pautas brancas da areia.
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A SOMBRINHA

MOTE:
Você sozinho... Eu sozinha!...
Por sorte, a chuva caiu
e, sob a mesma sombrinha,
o destino nos uniu!

Therezinha D. Brisolla
(São Paulo/SP)


GLOSA:
Você sozinho... Eu sozinha!...

o dia quase findando...
lusco fusco – já noitinha,
fomos nos aproximando!

Mas como ficar contigo?
por sorte, a chuva caiu,
me ofereceste um abrigo,
e a dúvida, então, sumiu!

Me senti uma rainha.
Lado a lado, assim, ficamos
e, sob a mesma sombrinha,
juntinhos, nós caminhamos!...

Sentindo imensa alegria
o meu coração sorriu.
Com a sombrinha, esse dia
o destino nos uniu!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Nilto Maciel (Muito Antes Disso)

Joana plantava e colhia verduras no quintal. Comprava estrume e sementes e organizava canteiros, cercados de pedras. Erigiu também canteiros suspensos em estacas, para preservar as plantas da fome de gatos, ratos e galinhas. Convocava os filhos a ajudá-la no revolver a terra e aguar as verduras. As minhocas, retorcendo-se, davam nojo nos meninos. Sobretudo em Juvêncio. Para aumentar o sacrifício, foram obrigados a fazer entregas em domicílios e levar o produto da safra à feira da cidade. Uma vergonha!

Muito antes disso, Joana se escondia na cozinha ou no quintal, a lavar roupas. Juvêncio se arreliava quando ela o impedia de brincar na calçada. Escondia-se de si mesmo durante horas. Parecia dormir em pé ou sentado. Despertava assustado. Não sabia mais por onde andava a mãe. Talvez dormisse também, sofrida. E onde se achavam os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.

De noite, no quarto, havia sempre uma lamparina acesa. Joana dormia numa rede, junto às dos filhos. O pai noutro quarto. Sem sono, ela saía da rede e se punha a matar muriçocas. Não demorou muito, apareceram em seu corpo eczemas. Ela se maldizia continuamente. Coçava-se sem parar. E mandava Juvêncio comprar pomada Minâncora. Fosse à mercearia pedir dinheiro ao pai. O caminho mais curto, uma ruazinha estreita, parecia ao menino o pior dos caminhos, porque de repente saíam dos quintais manadas de bois. Antes de dormir, o menino rezava e pedia a Deus e a todos os santos pela saúde da mãe. Não por medo dos bois, mas para não ver Joana sofrer.

Mais do que dos animais, Ju tinha pavor de tomar banho. Não da água fria, mas da grande caixa d’água suspensa abaixo do telhado. Às vezes a água saía pelo ladrão. Ju olhava para cima e imaginava a caixa a desabar. Banhava-se às pressas. Joana se irritava: fosse tomar banho direito, tirar a rabugem. Ou queria virar porco?

Chegada a noite, outro medo maior se apossava dele: do escuro, da escuridão. Ir à cozinha, nem pensar. Ao lado dela a despensa cheia de baratas e assombrações. Ir à sala de jantar somente enquanto a mãe por lá estivesse, na cozinha, lavando panelas e pratos, ajeitando uma coisa ou outra, fechando portas e janelas. Se queria beber água, aguentava a sede. Se queria urinar, deixava para mais tarde, na rede, embora o castigo por isso fosse horrível. Almas e outras entidades habitavam as trevas.

Joana também precisava cozinhar. E novamente mandava Juvêncio à mercearia. Tarefa penosa essa de conduzir, nos braços, achas para o fogão. Não somente pelo peso delas, mas, sobretudo, pelo incômodo que causavam. Ora, da mercearia até a casa ia uma distância de mais de quinhentos metros, no mínimo. Os braços se feriam, se enchiam de calombos. E a vergonha de andar pelas ruas feito um burro de carga? Vergonha de que, se você não está roubando?

O pior se dava, porém, quando as baratas, aninhadas entre as madeiras, resolviam passear por seus braços. Não havia outra alternativa senão arremessar tudo ao chão. O pior momento ainda não seria esse, mas o anterior – quando descia ao porão da mercearia, pelos fundos, onde a lenha se amontoava. Uma descida aos infernos! Primeiro um portão de madeira, depois a treva. No meio dela, os paus arrumados horizontalmente junto à parede e, entre eles, toda a sorte de insetos e bichos: sapos, ratos, lagartas, aranhas, lacraias, formigas e as terríveis baratas. Todas enormes, pretas e fedorentas.

Antes de dormir, o menino pedia a bênção à mãe, fechava os olhos e suplicava a Deus e a todos os santos o prêmio maior da loteria para o pai e, para a mãe, a cura das eczemas. Acordava sobressaltado, quando a mãe batia em suas pernas na vã tentativa de livrá-lo dos insetos. O pai roncava no quarto ao lado. Durma, meu filho. Estou matando muriçocas. E ele dormia de novo.

Muito antes disso, porém, Juvêncio apenas brincava e via nos olhos de Joana um sorriso de quem era feliz.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 6 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 532

 


Solange Colombara (No meu tempo...)

"Seu Abílio" gostava muito de contar histórias (algumas pura ficção, mas nós acreditávamos em todas!) e adorávamos ouvir, fazer perguntas... Eu viajava no tempo... Quase podia me imaginar "pegando o bonde andando".

Lembro que meu avô (é, "Seu Abílio" é meu avô materno), além de pegar o bonde andando, frequentava os bailes, confeitarias, cinemas, todos no centro de São Paulo.

Era um boêmio, bon vivant e apreciador de tudo de bom que a vida lhe proporcionava. Mas de vez em quando levava minha avó para o "chá das cinco" na Confeitaria Vienense ou para fazer compras no Mappin, onde também havia o famoso chá londrino.

E com quem fui ao cinema pela primeira vez? Sim! Com meu querido e amado avô Abílio. Fomos assistir Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, eu com seis ou sete anos de idade. Não lembro em qual cinema, mas com certeza foi no centro da cidade de São Paulo.

Todos os nossos passeios eram no centro de São Paulo, fosse para lanchar, fazer compras ou simplesmente ficarmos em cima do Viaduto do Chá olhando o movimento lá embaixo. Ficávamos também na escadaria do Theatro Municipal, minha irmã e eu brincando e meu avô, todo majestoso, conversando com seus colegas, como ele dizia.

Quantos finais de tarde íamos na Praça da Sé dar milho aos pombos e nos sentávamos na escada da Catedral. E íamos a pé, pois meu avô morava no Cambuci, pertinho do centro.

Eu dizia ao meu avô que quando crescesse iria trabalhar naquele prédio enorme, onde, olhando da calçada, parecíamos formiguinhas. Sim, estou falando dele mesmo, o Banespa, um dos cartões postais do centro de São Paulo e ponto turístico. Nunca trabalhei ali, mas meu primeiro emprego foi na OAB, também no centro de São Paulo.

Voltávamos para a casa do meu avô depois desses passeios maravilhosos, onde minha avó nos esperava com um delicioso bolo de pão de ló e meu avô contava pela enésima, centésima ou milésima vez de quando ele foi cozinheiro na II Guerra Mundial,

Mas essa, é uma outra história...

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 7

A JANELA ENTREABERTA

O Vento deixou
A janela  entreaberta,
E o Tempo tentou fechá-la,
Mas, não conseguiu
O Vento sorriu, enquanto
A noite trouxe a chuva,
Deslizaram gotas d’água
Em meu rosto,
E em cada gota, senti  uma carícia
Repleta  de Saudade,
Beijos em movimento…
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CHUVA FORTE

Uma pétala de rosa
E uma pequena folha,
Quase cobertas de granizo,
Ainda sobrevivem…
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ESQUINA

Fim de tarde,
Dilui-se tua imagem na esquina
Tento chamá-lo, mas minha voz se dispersa
Na chuva que começa...
Dilui-se tua imagem na esquina
E, em gotas d’água
A saudade  cintila.
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LAMBREQUINS

O tempo passeia sem pressa
Impresso nos antigos  lambrequins,
Enquanto uma saudade azul
Toca os sinos-de-vento,
Uma borboleta pousa em minha mão…
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PÉTALAS DOURADAS

O toque suave
E intenso das tuas mãos,
Desenha poemas,
Pincelando sonhos
E tingindo de dourado
As pétalas de rosas,
Do meu jardim...
O toque suave
E intenso das tuas mãos
Envolve meus dias,
E a noite aconchega-se
Às minhas lembranças,
E aquece-me com tuas carícias.
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SILÊNCIO E SAUDADE

Na pausa da chuva
A Lua  brinca de esconde-esconde,
Enquanto fecho o livro de poesias,
Ah, tanto silêncio e saudade...
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TECENDO O DESTINO

De dia ela tece,
E a noite, ponto por ponto
Ela destece...
À espera do seu Amor,
Tecendo o Destino…

Sammis Reachers (A gravata solucionadora de tretas)

Nos idos de 2016, quando a empresa Rosana, pertencente à Ingá, resolveu acabar com os cobradores, alguns deles, os mais antigos, foram realocados para a Ingá.

Nessa leva de cobradores, veio um irmãozinho muito sério e de pouquíssimas palavras. Negro de raiz nordestina, ele estava sempre com sua camisa de manga fechada na gola e de gravata por cima, mesmo trabalhando em carros sem ar condicionado, situação em que a empresa não requisitava o uso de camisa de manga longa, e muito menos da gravata.

Acontece que um velho e sacana cobrador da Ingá, o controvertido dinossauro Joair, cismou de ficar manjando o tal cidadão. E assim os dias se passavam e Joair se espantava vendo o bitelo, num calor des-gra-ça-do, trabalhando com aquela gravata apertando-lhe o pescoço, gravata que ele não tirava nem mesmo após largar do trabalho. Além do Joair, a galera toda já estava com medo:

"Vai que essa moda pega? Vai que o homem decide que todos devem usar gravata, mesmo no ônibus 'quentão'?"

Num belo dia de terrível calor, sufocante, Joair, após sair do trabalho e ver que o indivíduo largara ao mesmo tempo que ele, e se dirigia para o ponto de ônibus, sempre encapado até o gargalo, não aguentou mais e perguntou:

- Ô, ô meu irmão, com licença. Querido, um calor desses... porque você não tira ao menos essa gravata?

- Eu vou resolver um problema - respondeu o irmão, pego de surpresa.

Joair, que nunca foi de perdoar um mole, concluiu:

– Ué? Mas quem vai resolver o problema? É você ou a gravata?

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós)


Eça de Queirós nasceu em Portugal, em 1845, e morreu em Paris, em 1900. Eça é considerado o melhor ficcionista do Realismo português e, também, enquadrado como naturalista pela ênfase às teses cientificistas da época. Sua ficção fecunda procurou fazer um verdadeiro estudo da sociedade portuguesa de seu tempo. Adotou o Realismo no que este tem de análise da sociedade. Sem sair dessa orientação, demonstrou desencanto com a civilização técnica que evoluía. Foi quando criou o personagem Fradique Mendes, um gozador da vida, completamente desligado de preocupações coletivas. À medida que foi amadurecendo em sua arte literária, Eça se aperfeiçoou na apresentação de tipos e grupos típicos, exatamente linha de Flaubert, realista, e Zola, naturalista.

O denominador comum de toda a sua ficção foi a crítica dos princípios burgueses que dominavam seu país. A família e a Igreja, por exemplo, foram duramente atacadas por ele, não por si mesmas, mas pela mentalidade burguesa que as dominava. Para isso, serviu-se dos fatos observados tanto no relacionamento diário dos compatriotas, quanto nos acontecimentos nacionais e internacionais que ele soube interpretar com lucidez. Além de descomplicar a sintaxe, tornou os diálogos bem naturais, recorrendo a termos populares. Muitas vezes usou o discurso indireto livre, no qual o autor reproduz a fala dos personagens com fidelidade, sem a forma do diálogo direto.

Para quebrar a monotonia do estilo documental, introduziu situações meio fantásticas, caricaturas de tipos, personagens com ar de aparições, cenas melodramáticas, mas sempre com moderação. Além de tudo isso, sua ficção se revela não propriamente como realidade, mas como humor, como subjetividade desmascarada. É o toque da ironia.

Principais romances: Os Maias – O crime do Padre Amaro – O Primo Basílio – A Capital – A ilustre Casa de Ramires – A Cidade e as Serras – Correspondência de Fradique Mendes.

PERSONAGENS

PADRE AMARO VIEIRA: de origem pobre, aos 6 anos órfão de pai e de mãe, foi educado na casa de uma marquesa viúva, de quem seus pais tinham sido empregados domésticos; como padre muito jovem, nomearam-no vigário de Leiria, sede de bispado, por ser protegido do Ministro da Justiça.

CÔNEGO DIAS: padre idoso, rico, influente, morador de Leiria, conselheiro e confidente do Pe. Amaro, de quem tinha sido professor de Moral no seminário; amante não declarado de D. Augusta Caminha, conhecida como S. Joaneira.

S. JOANEIRA: viúva pobre, cuja residência era um ponto de encontro de padres para se divertirem; alugava quartos de sua casa para hóspedes.

AMÉLIA: filha única da S. Joaneira, bonita, solteira, morava com a mãe; desde menina era muito ligada aos padres freqüentadores da sua casa.

JOÃO EDUARDO: rapaz humilde, solteiro, escrevente de tabelião, apaixonado por Amélia, de quem chegou a ser noivo.

D. JOSEFA
: solteirona, irmã do Côn. Dias, com quem morava.

D. MARIA ASSUNÇÃO
: beata rica.

CONDE DE RIBAMAR: pessoa influente junto ao governo, casado com uma das filhas da marquesa que criou Amaro.

LIBANINHO
: beato fofoqueiro, efeminado.

ENREDO

Por decisão da marquesa que o educara na infância, Amaro seria padre. Dois anos antes de ir para o seminário, ele passou a morar na casa de um tio pobre, que o punha para trabalhar. Não desagradava àquele adolescente de educação desfibrada a ideia de vir a se tornar padre, embora não tivesse sido consultado. O período sofrido na casa do tio o animou a ingressar no seminário, ainda que fosse somente para ficar livre daquela vida.

Às vésperas, porém, de mudar-se para o seminário, já não estimava tanto a ideia: tinha vontade de estar com as mulheres, de abraçar alguém, de não se sentir só. Julgava-se infeliz e pensava em matar-se. Às escondidas, na companhia de colegas, fumava cigarros. Emagrecia, andava meio amarelo. Começava a sentir desânimo pela vida de padre, porque não poderia casar-se.

No seminário, isolados da cidade e da convivência com estranhos, Amaro e seus colegas, na maioria não vocacionados para o sacerdócio, viviam tristemente. Como se fossem prisioneiros, eles invejavam os que viviam fora, com a imaginação aguçada pela diligência que viam passar todas as tardes numa curva da estrada.

Amaro não deixara muita lembrança boa para trás. Mesmo assim, tinha saudades dos passeios, da volta da escola, das vitrines das lojas, onde parava para apreciar a nudez das bonecas.

Lentamente, com sua personalidade fraca, adaptou-se ao seminário como uma ovelha conformada do rebanho. Os colegas eram de vários tipos, todos com o ideal de, saindo do seminário como padres ou não, comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.

Amaro não desejava nada, mas, influenciado pelos que queriam até fugir do seminário, ficava nervoso, perdia o sono e desejava as mulheres. Na imagem de Nossa Senhora que havia em sua cela via apenas uma linda moça loura, desejada sexualmente, pecado que ele nunca contou no confessionário. A disciplina do seminário deu-lhe hábitos maquinais; interiormente, porém, os desejos sensuais moviam-se como um ninho de serpentes imperturbadas. Ele quase invejava os colegas estudiosos: ao menos eles estavam contentes e eram respeitados. No entanto, nunca conseguiu ser um deles. Era piedoso, rezava, tinha fé ilimitada em certos santos e um terror angustioso de Deus; mas odiava a clausura do seminário.

Logo depois de ordenado padre, Amaro ficou sabendo que a marquesa havia morrido e não deixara herança nenhuma para ele.

O novo padre foi nomeado para Feirão, região muito pobre, de pastores, quase desabitada. Ficou lá um tempo, cheio de tédio. Indo a Lisboa, procurou a Condessa de Ribamar, uma das filhas da marquesa que o educara. Ela lhe prometeu interceder por ele junto a ministro amigo do conde, seu marido. Uma semana depois, Amaro estava nomeado para Leiria, sede de bispado, apesar de ser padre novo – o ministro intercedera junto ao bispo.

Orientado pelo Cônego Dias, o novo pároco foi morar na casa da S. Joaneira, contrariando a opinião do coadjutor – padre auxiliar, pessoa de respeito, mas sem influência – o qual havia ponderado que isso seria imprudente por causa de Amélia, poderia haver comentários maliciosos. O quarto do Pe. Amaro ficava no térreo, exatamente embaixo do quarto de Amélia, cuja movimentação ele podia ouvir nitidamente.

Na noite do primeiro dia de Amaro na casa da S.Joaneira, ela reuniu algumas velhas, João Eduardo e o Cônego Dias. Jogaram o lote. Por coincidência, Amaro e Amélia, sentados lado a lado, quinaram. O jovem padre ficou impressionado com a moça. Depois que todos saíram e os de casa se deitaram, Amaro foi buscar água na cozinha e viu Amélia de camisola. Ela se escondeu, mas não o censurou. No quarto, nervoso, atormentado pela visão de Amélia, Amaro não conseguiu rezar nem dormir.

Amélia também não dormiu logo e ficou recordando sua vida. Não chegou a conhecer o pai, militar, que morreu novo. Com 15 anos de idade, ela teve a primeira experiência de ser amada e de amar, quando passou umas férias na praia. Na véspera de o rapaz partir, ele a beijou sofregamente, às escondidas. Algum tempo depois, já em Leiria, ela soube que ele ia se casar com outra. Triste e acreditando não voltar mais a ter alegria, Amélia tornou-se uma beata e pensou em se fazer freira. Por esse tempo, o Côn. Dias e sua irmã Josefa começaram a frequentar a casa em que Amélia morava. Falava-se muito da ligação do cônego com a mãe dela. Aos 23 anos, a moça conheceu João Eduardo, que chegou a falar em casamento, mas ela quis esperar até que o rapaz obtivesse o lugar de amanuense, a ele prometido.

Amaro estava se sentindo bem em sua rotina: celebrava a missa cedo para um grupo de devotas; à tarde e à noite deliciava-se na companhia doméstica da S. Joaneira e, sobretudo, de Amélia. Atraídos um pelo outro, estavam liberando os sentimentos. Na presença do noivo, porém, a moça nem olhava para o padre, o que lhe causava ciúmes.

Numa tarde, Amaro chegou sem ser esperado e flagrou o Cônego Dias na cama com a S. Joaneira. Ficou surpreso e saiu sem ser notado. Em contato com outros padres, ficou sabendo que eles tinham casos com mulheres.

Aos poucos, Amaro e Amélia começaram a demonstrar, um para o outro, seu envolvimento emocional. Ela se tornou totalmente apaixonada: acompanhava-o com os olhos sempre e, quando ele não estava em casa, ia ao quarto dele, colecionava os fios de cabelo que tinham ficado no pente, beijava o travesseiro. Tinha ciúmes dele ao saber que alguma mulher o escolhera como confessor.

Amedrontado com a evolução de seus sentimentos e temendo se deixar dominar pela paixão, Amaro pediu ao Cônego Dias que lhe arrumasse outra moradia, onde vivesse sozinho. Assim se fez. Sua vida solitária era muito monótona. Não visitava ninguém e só recebia a visita do coadjutor, servil, sem assunto. Sentia-se muito pouco padre, longe da “panelinha” eclesiástica.

Por sua vez, Amélia se sentia desconsolada pelo afastamento de Amaro. Depois de algum tempo, ele voltou a frequentar a casa da S. Joaneira. Os dois não estavam conseguindo mais esconder a paixão recíproca. Enciumado, João Eduardo tentou apressar o casamento. Amélia estava enfastiada dele, mas tentou fingir-se apaixonada, para evitar escândalo. Mesmo assim, a paixão pelo padre falava mais forte.

Certa noite, indignado por ver Amaro segredar algo no ouvido de Amélia, João Eduardo redigiu e fez publicar no jornal de Leiria um artigo: “Os modernos fariseus”, no qual ele contava as imoralidades de alguns padres da cidade, inclusive do Cônego Dias e do Pe. Amaro, a quem chamou de sedutor de donzelas inexperientes. O artigo saiu como um comunicado e assinado por “um liberal”. Os padres mencionados se enfureceram e passaram a investigar quem seria o autor.

Abalada com as possíveis repercussões do artigo e magoada com o que ela achou covardia de Amaro (depois do artigo ele sumiu da casa dela), Amélia aceitou marcar o casamento com João Eduardo.

De fato, Amaro se retraíra. Seus sentimentos estavam confusos; não teria mesmo coragem de assumir o amor de Amélia e abandonar o sacerdócio, mas crescia sua raiva contra João Eduardo.

Através da confissão da mulher do responsável pelo jornal, os padres vieram a saber quem havia redigido o artigo maldito. A vingança foi cruel: João Eduardo perdeu o emprego, por influência deles. Ao contar para Amélia quem fora o articulista, Amaro afirmou que não deixaria, em nome de Deus, que ela se casasse com um ateu. Ao dizer isso, pela primeira vez os dois se beijaram com paixão.

Com aprovação da família, Amaro se tornou o confessor de Amélia, a fim de orientá-la melhor.

A moça desfez o noivado. Desolado, João Eduardo procurou apoio e não recebeu: ninguém queria manifestar-se claramente contra o clero. Certa noite, completamente embriagado, o rapaz passou por Amaro na rua e deu-lhe um soco, sem feri-lo gravemente. Armou-se uma enorme confusão. A polícia levou João Eduardo para a Administração. No entanto, atendendo a um pedido do Pe. Amaro, o administrador retirou a ocorrência. Na reunião da noite na casa da S. Joaneira, o jovem padre foi considerado um santo. A atração de Amélia por ele aumentou e o desejo de Amaro por ela também.

A empregada do Pe. Amaro ficou doente e foi substituída pela irmã, Dionísia, famosa por ser alcoviteira. Essa contratação contrariou a opinião das beatas que achavam conveniente o padre voltar para a casa da S. Joaneira. Ele quis continuar só, sem deixar, é claro, de frequentar as reuniões noturnas junto de Amélia.

Um dia, voltando os dois sozinhos, sob forte chuva, da casa do Cônego Dias, que passara mal, Amaro levou Amélia para a casa dele, enquanto esperavam o tempo melhorar. Por meia hora, o padre dispensou Dionísia. Naquele momento, os dois apaixonados tiveram sua primeira relação sexual.

No dia seguinte, Dionísia falou ao padre que era perigoso a moça ir lá daquele jeito. Insinuando-se como protetora da união dos dois, sugeriu que se encontrassem na casa do sineiro, o tio Esguelhas, ao lado da igreja. Relutante a princípio, Amaro aceitou e até gratificou a empregada com meia libra. Tio Esguelhas, viúvo e sem uma perna, morava naquela casa com uma filha paralítica, Antônia, que ele chamava de Totó.

Inteligentemente, o padre convenceu o sineiro da seguinte história: Amélia queria ser freira – o que devia ser mantido em segredo – e aquela casa era o lugar ideal para ele conversar com a moça, orientá-la espiritualmente, longe dos olhos de todos.

Amélia concordou com o plano. Para a família e para os amigos, contudo, ela iria uma ou duas vezes por semana à casa do sineiro para ensinar leitura e religião à Totó. Isso seria sigiloso por se tratar de um ato de caridade, que não deveria ser divulgado para não favorecer a vaidade.

Assim, Amaro e Amélia passaram a se encontrar regularmente na maior discrição. A paralítica, sentindo-se alvo de atenções, apaixonou-se pelo padre, sem o declarar, evidentemente; com a mesma intensidade, odiava Amélia. Esta dava um pouquinho de atenção à doente e depois ia se deitar com o padre no quarto de cima, do pai, que naquela hora sagrada saía de casa. Amaro ia direto para o quarto, nem olhava para Totó.

Aquele foi o período mais feliz da vida de Amaro. Ele se achava na graça de Deus. Tudo dava certo. Amélia cada vez mais se tornava cativa dele. Nada lhe interessava a não ser Amaro. Ele, por sua vez, afirmava crescentemente sua dominação. Compensava com ela toda a subserviência do passado. Ciumento, procurava controlar até os pensamentos da moça. Amélia se entregava inteiramente a esse domínio. E ninguém parecia estar notando tudo isso; pelo menos, não havia qualquer insinuação.

Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs na casa do sineiro: Totó agora não suportava Amélia. Quando ela chegava, Totó parecia ter um surto de fúria. Tanto que Amélia deixou de vê-la, subia direto para o quarto com Amaro. Mas foi pior; assim que a doente percebia que os dois haviam passado, começava a gritar: “Estão a pegar-se os cães!” A partir de então, Amélia começou a ter crises de remorso. Nos braços de Amaro, esquecia tudo; mas, depois, a crise lhe vinha. A perturbação atingiu o máximo de intensidade na ocasião em que Amaro, na sacristia, experimentou nela um manto rico que haviam doado para a imagem de Nossa Senhora. Nesse dia, não conseguiu se encontrar com Amaro de tão desnorteada.

A S. Joaneira pediu que o cônego verificasse o que estava acontecendo com a filha que, à noite principalmente, tinha surtos de nervosismo, empalidecia, gritava... Dias ficou de espreita e acompanhou Amélia, sem se fazer notar, até a casa do sineiro. Pelas palavras de Totó, percebeu o que estava acontecendo. Depois que Amélia saiu, conversou com a paralítica e se certificou de tudo. Indignado, procurou Amaro na sacristia e o censurou com violência. O outro revidou e quase bateu no velho. Mas depois acalmaram-se quando Amaro declarou saber que o cônego se encontrava com a S.Joaneira. No final, reconciliados, fizeram um pacto de silêncio. O cônego chegou a elogiar Amaro pela escolha da devota mais bonita de Leiria. Os dois concordaram: “é o melhor que se leva desta vida!”

A partir de então, Amaro ficou tranqüilo. Chegava a chamar o cônego de sogro. Insistia em que Amélia andasse bonita, para saborear intimamente o prazer da conquista. A moça, entretanto, depois de um início de total submissão, passou a ter consciência crítica: era concubina de um padre! Temia, então, o castigo de Deus. Amaro se enervava com estes escrúpulos e a censurava. Ele estava mais seguro porque o médico fora ver Totó e lhe dera pouco tempo de vida.

Amélia ficou grávida. Já no primeiro mês, a gravidez foi detectada. Amaro entrou em pânico. Foi pedir a ajuda do Cônego Dias. A solução seria casar a moça com João Eduardo o mais depressa possível. Amaro convenceu Amélia a casar-se com o ex-noivo. Ela, a princípio, revoltou-se com ele, vendo-se objeto na sua mão. Mas acabou aceitando a idéia; Amaro é que ficou enciumado com a situação que ele próprio criara. Os dois combinaram que continuariam amantes após o casamento, o que acalmou os ciúmes do padre.

Tudo daria certo se João Eduardo, depois de tudo o que aconteceu, não tivesse ido para o Brasil, em lugar ignorado. Ele só foi descoberto quando a gravidez atingiu o terceiro mês! E nada estava resolvido, para desespero dos padres.

As piores semanas da vida de Amélia foram aquelas em que se aguardavam notícias do ex-noivo. Os encontros na casa do sineiro se espaçavam. Amaro a considerava agora uma “beata histérica”, porque ela se julgava castigada por Deus e tinha crises constantes.

Nessa ocasião, D. Josefa ficou doente. Para se restabelecer, aconselharam-na a ir passar uma temporada na roça. Amaro teve, então, uma idéia brilhante. Enquanto o Cônego Dias e a S. Joaneira iriam para a praia, Amélia ficaria na propriedade rural do Côn. Dias, na Ricoça, região vizinha a Leiria, acompanhando D. Josefa em sua convalescença. Para que a irmã do cônego aceitasse a moça com ela, Pe. Amaro lhe segredou – e pediu sigilo – que Amélia fora engravidada por um homem casado. Para evitar escândalo, a moça daria à luz no período em que estivesse na roça sob a proteção de D. Josefa. A velha senhora acreditou na história e resolveu cooperar. Amélia se sentiu infeliz de ir para a roça, pois gostava muito da praia. Sua mãe sofreu por separar-se da filha.

Nesse ínterim, Totó morreu. Tio Esguelhas lamentou o fato de Amaro não ter chegado a tempo para a Unção dos Enfermos, pois a filha tinha pedido muito a presença dele.

Amaro, solitário em Leiria, se enfastiava da monotonia. Ocioso, as ocupações do sacerdócio o aborreciam ainda mais. Abandonou todas as orações e meditações pessoais. Amélia na Ricoça sofria muito. D. Josefa a desprezava por ser uma pecadora. Atormentada, a pobre infeliz passou a ouvir, à noite, vozes de condenação. O que a confortava eram as visitas que o abade Ferrão lhes fazia. Homem esclarecido na fé, preferia conversar com Amélia, desgastado com os escrúpulos absurdos da velha doente. Ele disse à desorientada grávida que suas perturbações não vinham de Deus, que Ele não fica a falar para as pessoas; o problema dela estava na consciência. Se ela quisesse, a confessaria para aliviar-se. Animada, a moça procurou-o para a confissão.

Amaro foi visitá-la algumas vezes. Sabendo da confissão que Amélia fizera com o abade, enciumou-se, ficou furioso e evitava conversar com ela. Arrependido e mais apaixonado ainda, escreveu-lhe uma carta. A resposta da moça, entregue por um rapazinho, foi: “Peço-lhe que me deixe em paz com meus pecados.” Amaro chegou a desconfiar de que ela estivesse de “homem novo”. Mas não desistiu, continuou as visitas freqüentes; a moça evitava vê-lo.

Quem reapareceu morando perto da Ricoça foi João Eduardo. Permanecia apaixonado por Amélia. Ficou conhecido do abade Ferrão, que simpatizou com ele e teve a idéia de fazê-lo casar-se com Amélia, a qual também o via com bons olhos. O abade tinha pensado em induzir Amélia a ser freira. Desistiu, todavia, porque percebeu que, embora a paixão por Amaro houvesse acabado, o desejo do prazer sexual ainda existia nela.

Amaro resolveu “dar um gelo” em Amélia: foi passar um tempo na praia. Ela se enfureceu com a frieza dele, pois a época do parto estava se aproximando e ele não tomava nenhuma providência. Por orgulho, ela não quis escrever-lhe pedindo ajuda. Na verdade, essa viagem de Amaro era estratégica. Ele aprendera que, se fugirmos da mulher que nos interessa, ela nos procura. Várias vezes, quando retornou da praia, visitou D. Josefa e se retirou sem nem olhar para Amélia. Numa dessas visitas, ela não agüentou mais: cercou-o, impediu-o de sair sem lhe dar satisfação. Estavam sós e acabaram indo para a cama. Combinaram encontrar-se à noite. Amaro foi, mas os cães latiram e o afugentaram.

O padre sondou de Dionísia a indicação de uma ama para ficar com a criança logo após o nascimento. Havia duas possíveis: uma seria a aconselhável pelo bom senso; a outra, Carlota, era uma “tecedeira de anjos”, pois matava os recém-nascidos. Ele saiu para procurar a primeira; como dispunha de tempo, contudo, foi conhecer Carlota e resolveu optar por esta (seria mais conveniente que a criança desaparecesse).

Amélia estava em permanente sobressalto, à medida que se aproximava o dia do parto: às vezes, queria o filho; outras vezes, se horrorizava, tinha pressentimentos ruins. Uma ideia passou a animá-la: casar-se com João Eduardo e, quem sabe, conseguir que ele aceitasse a criança. Pediu ao abade Ferrão que realizasse esse seu desejo.

Chegou o momento do parto. Amélia foi assistida por Dionísia e pelo Dr. Gouveia, velho e discreto médico, que cuidava de D. Josefa. O menino nasceu bem. Dionísia o entregou ao Pe.Amaro, que aguardava fora de casa e o levou para Carlota, recomendando que o mantivesse vivo, já arrependido de não ter contratado a outra ama. Em seguida, o padre voltou para Leiria, certo de que tudo correra bem com a amante. Na verdade, entretanto, Amélia, depois de dar à luz, teve convulsões e, apesar do esforço intenso do médico e de Dionísia para salvá-la, não resistiu, morreu, deixando desolado o abade Ferrão.

Na manhã seguinte, Amaro teve um choque enorme ao saber da morte através de Dionísia. Passado o primeiro impacto, partiu imediatamente em busca de Carlota, na esperança de tirar o filho da guarda dela e levá-lo para a outra ama. Infelizmente, a criança já havia morrido.

Completamente desnorteado, o Pe. Amaro resolveu sair de Leiria. Sob o pretexto de que sua irmã estava doente em Lisboa, conseguiu licença e viajou.

Amélia foi enterrada na Ricoça, enterro oficiado pelo abade Ferrão, com acompanhamento de algumas pessoas do lugar e de João Eduardo, que chorou muito aquela morte.

Pe. Amaro foi removido de Leiria e passou muito tempo sem ver ninguém de lá. Certa feita, encontraram-se casualmente no Largo do Loreto, em Lisboa, junto à estátua de Camões, o Côn. Dias e o Pe. Amaro. Este estava procurando transferência para uma boa paróquia e procurava a influência do Conde de Ribamar.

Os dois padres conversaram sobre Leiria, onde o cônego ainda morava. Amaro lhe disse que as primeiras sensações após a morte de Amélia – remorso, tristeza, depressão... – estavam superadas definitivamente. “Tudo passa”, disse e o cônego confirmou: “Tudo passa”.

A eles juntou-se o Conde de Ribamar. Os três comentaram o horror da situação: estava-se nos fins de maio de 1872 e em Lisboa havia alvoroço com as notícias vindas da França, do massacre da Comuna de Paris, quando foram mortos pelo governo francês, em uma semana, cerca de 25.000 operários rebeldes. O Conde de Ribamar deu uma lição de política aos dois padres que ouviam e apoiavam seu discurso inflamado contra os rebeldes e elogioso a Portugal que mantinha a ordem e a paz.

“Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa! E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta essa certeza gloriosa da grandeza do seu país – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado de cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!”

COMENTÁRIO

Paralelamente ao enredo, Eça de Queirós desenvolveu algumas ideias, por exemplo:

Política e clero

No diálogo do Conde de Ribamar com um ministro do Governo, ficou patenteado que os homens públicos contavam com os padres para influenciarem o povo na aceitação pacífica das medidas que as autoridades impusessem, sempre tomadas a favor dos interesses dos poderosos, inclusive fazendo estes ganharem as eleições.

O autor fez menção de explicitar a subserviência dos membros do clero às autoridades governamentais como forma de ser mantida uma situação que era confortável para ambos.

A confissão


Num almoço que reuniu vários padres na casa de um deles, mostrou-se a confissão como sendo um recurso que usavam para manipular as consciências e tirar proveito pessoal. Na verdade, os padres não acreditavam que Deus estivesse perdoando através deles.

Está clara a intenção do autor de dessacralizar o sagrado: nem os próprios padres acreditavam no poder sacramental.

O celibato dos padres

Impaciente por não poder ter uma vida sexual como a das pessoas comuns, Pe. Amaro se revoltava interiormente, dizendo para si mesmo que não abrira mão de sua virilidade: “Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!” Nesses momentos, ele repassava na memória o que lhe haviam ensinado no seminário a favor do celibato, que quem o abraçasse evitaria o assédio dos três inimigos da alma: o Mundo, o Diabo, a Carne: o diabo ele nunca tinha visto; como evitaria o mundo (riquezas, cavalos, palacete...) e a carne (uma mulher bonita que o amava e era a consolação de sua vida)? Só se fugisse para o deserto! Então, ele justificava seu amor com exemplos da Bíblia que se referiam a casamentos. O celibato, afirmava o Pe. Amaro em seu íntimo, foi inventado por um concílio de bispos velhos, inúteis como eunucos! Ele concluía que o seu amor era apenas uma infração ao Direito Canônico, isto é, às normas da Igreja, mas não uma ofensa a Deus.

O autor, ao propor essa situação de conflito interior em um padre não vocacionado para o sacerdócio, evidenciava forte questionamento quanto à formação do clero burguês, a quem não se dava formação convincente, mas se impunham regulamentos sob a forma repressora.

A opinião da “ciência” sobre a Igreja

Carlos, personagem secundário e ridículo, dono de uma farmácia, se dizia liberal e adepto da ciência; não era um homem de Igreja, é claro. Contudo ficou indignado com o artigo de João Eduardo contra os padres. Afirmava o “adepto da ciência” que a religião é a base da sociedade. Ele não considerava os padres uns santos, mas os ateus republicanos deveriam ser eliminados do convívio social sadio.

Eça mostrou, nesse episódio, a visão reacionária dos falsos cientistas, pessoas medíocres, defensores de uma tradição conservadora e radical.

Redigido em terceira pessoa, o foco narrativo do livro é a visão onisciente do autor-narrador, que analisa os fatos de fora deles.

Publicado em 1876, foi o primeiro romance português de expressão que questionou o Romantismo feito de sonhos e idealizações.

O estilo descritivo não para na pura descrição, mas mostra o que está por trás dos fatos da realidade provinciana de Portugal. O clero, desvirtuado por uma defeituosa educação do seminário, serve à ordem estabelecida pelos poderosos dirigentes, representados pelo Conde de Ribamar.

Tendo como motivo inspirador uma história de sedução, Eça de Queirós pretendeu mostrar um clero decadente em Portugal. Aliás, essa mesma motivação o levou a documentar a decadência da família portuguesa em “O Primo Basílio”.

Como pano de fundo dessas obras, portanto, há uma constante: os indivíduos são vítimas de um sistema social degenerado – no caso, a burguesia.

Especificamente em “O Crime do Pe. Amaro”, o sistema social burguês formou uma religiosidade hipócrita, de aparência virtuosa e de realidade viciada. Era sintomático que o Côn. Dias – um homem conscientemente sem escrúpulos para manipular as pessoas – tivesse sido professor de Moral dos futuros padres. As beatas, orientadas pelos próprios sacerdotes a bajulá-los e a respeitá-los como “homens de Deus”, tornaram-se vítimas dos detentores do poder através da religão. Amélia foi a sacrificada; as mais velhas, porém, embora não houvessem sido levadas à morte física, tinham suas vidas tolhidas pelos padres egoístas e ilimitados na consecução de sus objetivos interesseiros.

O Pe. Amaro – representante maior do grupo de vilões da história – saiu ileso no final. O mesmo aconteceu com Basílio em “O Primo Basílio”. Eça delineia, assim, uma situação de clara ironia: é a sociedade burguesa a verdadeira vilã e ela está viva em sua trajetória deformadora de uns – as beatas – e destruidora de outros – Amélia. Algumas pessoas escapam dessa avalanche, como é o caso do abade Ferrão e do Dr. Gouveia, figuras positivas que se apresentam como exceções não afetadas pela podridão.

Trata-se de um romance de tese, em que o Determinismo sobressai: o momento histórico, o meio social e os instintos atuam nos indivíduos, que passam a agir impulsionados por essas forças irresistíveis. Amaro e Amélia são os protagonistas dessa situação: ele, padre sem vocação, incapaz de uma reação pessoal que demonstrasse personalidade forte; ela, totalmente identificada com a hipocrisia em que crescera; ambos se deixam arrastar, sem reagir, pela pura paixão carnal.

Portanto, o livro expressa a documentação crítica do Realismo e o avanço destrutivo das paixões, característica do Naturalismo.

Como é do feitio de Eça de Queirós, a cena final contém a dose definitiva de ironia: o olhar frio de Camões sobre os representantes do clero e da política estabelece o contraste entre o heroísmo ideal (o épico renascentista) e a cega mediocridade real (os três interlocutores), incapazes estes últimos de perceber que seu país estava decadente, pois, a seus olhos, a Europa invejava Portugal por sua paz e prosperidade! Essa “estabilidade” portuguesa era construída pelos hipócritas líderes da monarquia liberal conservadora e assimilada pelas pessoas simples, absolutamente desprovidas de visão crítica.

Apesar do aparente ceticismo do autor ao documentar a derrota do bem pelo mal, o livro é moralista, porque dá ao leitor a visão clara de que os vencedores aparentes são os vencidos na realidade, no sentido de se constituírem as pessoas erradas, os imorais dominadores.

É uma literatura que visa a contribuir para a transformação da sociedade, ao mostrar suas falhas.

Fonte:
Digerati. CEC 0004. (CD-Rom)