domingo, 30 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 363

 


Emílio de Meneses (O Último Corvo de César)


Estes "Salpicos", em geral são rimados, mas a rima, coisa de poeta, participa da natureza deste. É inconstante e indolente. Até a última hora, não nos chegaram os versos esperados e resolvemos preencher a seção de qualquer maneira. Há sempre numa redação coisas inúteis, insultas e malvernaculizadas, que ficam a entulhar gavetas e armários para os dias fatais de falta de matéria. (Falta rara, felizmente, cá por casa). São colaborações anônimas e gratuitas de vários gêneros e sabores vários.

Numa devassa pelos móveis, com todos os rigores de busca e apreensão com que Aurelino costuma arranjar as provas de uma conspirata (conspiração), resolvemos tudo e demos com essas tiras que aí vão, em súmula, já amarelentas, como as faces semitapuias do Sr. Pires Ferreira. O que aí segue perdeu em graça o que julgou ganhar em filosofia e perdeu em filosofia o mesmo que deixou de ganhar em graça. É uma velha anedota de cunho autenticamente histórico e que, apesar da falta de graça e ausência de filosofia, talvez possa, com retoques, ter uma aplicação de atualidade.

Vamos resumí-la. Como sabem, o corvo, na Europa, só tem de comum com o nosso urubu, malandro ou não-malandro, a cor. É um conirostro palrador que, dentro da plumagem hemeterícamente escura, e sem os tons verde-amarelos da alma jacobina do Sr. Lopes Trovão e do nosso papagaio, fala como este e como este aprende coisas.

Quando César voltava triunfalmente das Gálias, um patriota qualquer, desses que amam o oportuno fio da espada, conseguiu ensinar o seu corvo predileto que, por sinal, não era de todo negro, a dizer esta frase: "Eu te saúdo, César vencedor!" César, ao passar ficou maravilhado ante o prodígio e fez imediatamente adquirir o plumitivo exaltador da sua onipotência e da sua vaidade. Foi uma praga. Quem tivesse corvo à mão, entrava logo a ensinar-lhe aquelas palavras excelentemente glorificadoras. E César começou a comprar corvos, mas tantos comprou que já se lhe entupiam as oiças com o coro infernal das glorificações.

Um mísero sapateiro, cuja vida lhe corria pior que a do Sr. Cunha Vasconcelos nos tempos de hoje, concentrou todas as esperanças de salvação financeira, tal qual Pernambuco, num corvo que filha amorosa lhe mandara de longes terras. Todos os dias, por vinte ou cem vezes, pacientemente repetia as palavras sagradas e o corvo moita (mudo). Mantinha-se fúnebre, no seu crocitar primitivo, sem mostras de entender patavina daquilo, na mesma pirronice com que o Bezerra não quer entender de agricultura.

De todas as vezes, o velho sapateiro se erguia desolado, abandonava a sovela (instrumento para fazer furo no couro) e o cerol e exclamava: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" e o corvo moita. Passam-se as semanas, correm os meses. "Eu te saúdo, César vencedor!" - "Perdi meu tempo e meu trabalho!

Acontece, porém, que César, passando certo dia pela tenda do gaspeador de botas, com o ruído das aclamações, o corvo, até então mudo como o índio no Senado, despertou e, por singular coincidência, pronunciou inconscientemente a saudação por tanto tempo ouvida.

César, já cansado de comprar corvos, não ligou. Mas o corvo tinha decorado também o resto e grasnou: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" 0 vencedor das Gálias retrocedeu e foi esse o último corvo que adquiriu.

Quem será o último corvo de César?
- - - - - -
Gazeta de Notícias, seção Salpicos.

Fonte:
Emílio de Meneses. Prosa de Circunstância. in Obra Reunida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XIX


CIDADANIA

MOTE:
Cidadania é civismo;
sobretudo é comunhão:
É ajuda mútua, é altruísmo,
partilha justa do pão!
A. A. de Assis
Maringá/PR

GLOSA:
CIDADANIA É CIVISMO,
é muito amor à igualdade,
dizendo um "não", ao cinismo
e um "sim", à felicidade!

O civismo nos faz bem,
SOBRETUDO É COMUNHÃO:
é nunca magoar alguém,
que age só com o coração!

A semente do otimismo
plantada, assim, com carinho,
É AJUDA MÚTUA, É ALTRUÍSMO,
a iluminar o caminho!

É um sentimento profundo
poder sentir a emoção,
de poder ver pelo mundo:
PARTILHA JUSTA DO PÃO!
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NADA ALÉM...

MOTE:
Não tive ao teu lado a sorte
que a um grande amor se destina,
quem sonhou ser chuva forte
não foi além de neblina!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
NÃO TIVE AO TEU LADO A SORTE
que eu esperava na vida,
pois longe de ti, só morte
é o que eu encontro, querida!

Sonhava a felicidade
QUE A UM GRANDE AMOR SE DESTINA,
mas foi somente a saudade
a minha grande doutrina!

Só tive como consorte
essa triste solidão...
QUEM SONHOU SER CHUVA FORTE
foi estio de emoção!

Sou como a chuva fraquinha
respingando na campina,
que ao chegar a manhãzinha,
NÃO FOI ALÉM DE NEBLINA!
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DESPEDIDA

MOTE:
Adeus filho...Vive a vida!
Volta um dia, sem promessa...
Que a primeira despedida,
no ventre da mãe começa!
Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:
ADEUS FILHO...VIVE A VIDA!
Vive que os dias são teus;
escala a tua subida
e que te ampare o bom Deus!

Mas não esqueças de mim,
VOLTA UM DIA, SEM PROMESSA...
que essa saudade ruim
o meu peito já atravessa!

Aceito, filho, a partida,
diz o meu amor profundo,
QUE A PRIMEIRA DESPEDIDA,
é quando chegas ao mundo!

Eu sei que a vida te chama,
vai filho, mas vai sem pressa,
pois esse adeus de quem ama,
NO VENTRE DA MÃE COMEÇA!
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VÍCIO DE ABRAÇAR-TE

MOTE:
Meu coração se reparte
no mais gostoso dos vícios;
o de poder abraçar-te
em todos os natalícios!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:
MEU CORAÇÃO SE REPARTE
para estar junto de ti,
faz um trabalho, com arte,
se desdobra e chega aí!

E feliz, se delicia
NO MAIS GOSTOSO DOS VÍCIOS;
pois ver a tua alegria
compensa os seus sacrifícios!

Dessa história, a melhor parte
é esse vício risonho:
O DE PODER ABRAÇAR-TE
e envolver-te com meu sonho!

Felicidade, querida,
são meus maiores auspícios,
que sejas feliz na vida,
EM TODOS OS NATALÍCIOS!
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FAZER DA VIDA... UM POEMA!

MOTE:
Poeta não é somente
quem escreve sobre um tema.
Poeta é, principalmente,
quem faz da vida um poema!
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:
POETA NÃO É SOMENTE
saber versejar bonito
usando a rima excelente...
Ser poeta é quase um mito!

Possui sensibilidade
QUEM FAZ VERSOS SOBRE UM TEMA,
mas pra falar a verdade
isto não é nenhum lema!

Com sua palavra ardente
poetiza a emoção...
POETA É PRINCIPALMENTE,
quem ama de coração!

Não há de morrer jamais
numa poesia suprema,
sabendo viver, demais,
QUEM FAZ DA VIDA UM POEMA!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Humberto de Campos (O Nababo)



De regresso de uma excursão pelos subterrâneos da alma humana, um escritor louvava, certa vez, entre as virtudes que lá descobrira, o pecado da Vaidade. Esse defeito, na sua opinião, era o mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi pela vaidade de possuir um nome ressoante que Colombo descobriu a América. E é a Vaidade, ainda, que dá de comer aos humildes, utilizando nas oficinas milhões de operários, que tecem a seda, fabricam os leques, esculpem as jóias. Tudo, na terra, é Vaidade, e só Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de tal maneira inveterada em nosso coração, que os próprios filósofos não lhe fogem ao império: aqueles que escrevem contra a glória, querem a glória de haver bem escrito; e aqueles que lêem, querem a glória de ter lido.

Há, entretanto, um gênero de Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante: é a do pavão que se espaneja sem cauda, a que repousa na mentira, na falsidade, no ridículo, a que procura, em suma, viver dos juros sem um risco evidente do capital, e da qual é sacerdote, no Rio de janeiro, o conhecido "gentleman" Dr. Alfredo Pereira da Cunha.

Modesto de posses, vivendo de um emprego que lhe dá dificilmente para as despesas imprescindíveis, esse meu jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao número dos cavalheiros irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes aos do Dr. Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos do Dr. Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus ternos aos do desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto Gotuzzo, e, até o seu monóculo de vidro ordinário, ao monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão Velloso. E tudo isso com a circunstância de atribuir-se tudo - coletes, gravatas, colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, - em quantidades verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma demonstração curiosa, em que eu funcionei, há dias, como testemunha involuntária.

Sentados um diante do outro, tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das cinco horas. quando me chamaram a atenção, na elegância americana do meu amigo, uns arabescos em linha branca, traçados no cós da sua calça de flanela, no intervalo dos botões destinados ao suspensório. Curioso, apliquei melhor os óculos, e vi: era o número 846, em algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos na roupa ao recebe-la da tinturaria.

- Que é isso, doutor? - indaguei.

O jovem advogado baixou os grandes olhos negros sobre o seu busto sem colete, em que a camisa de zefir se desfiava em alguns pontos com uma elegância de varanda de rede, e explicou, com um sorriso superior:

- É o número da calça.

- Você tem oitocentas e quarenta e seis calças? - estranhei, arregalando os olhos e parando a xícara a meio caminho da boca.

O Dr. Alfredo olhou-me com irreprimível piedade, e, lamentando intimamente a modéstia dos meus recursos, respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha pobreza:

- Das de flanela...

E continuou, solene, a tomar o meu chá.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Concurso Literário Piquete Chama Nativa – 15 anos (Prazo: 7 de setembro)

 


REGULAMENTO

O Piquete Chama Nativa, da Associação Dos Servidores do GHC – Aserghc, informa que estão abertas ao público em geral as inscrições para o Concurso Cultural Literário, em comemoração aos seus 15 anos normatizado pelo seguinte

1) As inscrições são gratuitas e estão abertas até a data de 07 de Setembro de 2020;

2) As inscrições serão apenas via internet, pelo e-mail: piquetechamanativa@gmail.com  

3) As modalidades do Concurso são: Poesia, Causo e Trova Literária (A/B/A/B);

4) O tema do concurso é livre para as modalidades Poesia e Causo Gauchesco, porém, deverá abordar a história, lendas, tradições, usos, costumes e vocabulário do Rio Grande do Sul.  A Trova Literária terá como tema: Saúde 100%SUS.

5) Os trabalhos deverão ser inéditos, com limite de 120 versos para poesia e duas páginas para o causo;

6) Nos trabalhos deverá constar apenas o pseudônimo do autor e a modalidade concorrente. Em anexo deve ser enviado documento constando: Nome do autor e foto para posterior divulgação, endereço, telefone, celular e e-mail;

7) Cada autor poderá concorrer com até três trabalhos em cada modalidade, ou seja, três poemas e três causos, mas somente um trabalho poderá vir a ser premiado;

 8) Os trabalhos serão julgados por comissões especializadas, indicadas pelo Piquete Chama Nativa;

9) PREMIAÇÃO: Os trabalhos classificados em 1º lugar receberão Troféu e Medalha. Os trabalhos selecionados do 2º ao 15º lugar receberão Medalha.

10) Os resultados serão proclamados e os prêmios conferidos, dia 20 de setembro de 2020, na página do Piquete Chama Nativa, no Facebook.
 

OBS: Na mesma página serão publicados os 15 trabalhos premiados em cada categoria, com foto do autor (a).

Porto Alegre, 10 de Agosto de 2020.

   Cândido Brasil
   Diretor Cultural

Jessu Silva
Patrão

sábado, 29 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 362

 


Aparecido Raimundo de Souza (A Lampadazinha Voadora)


Para Luana Aparecida Melo de Souza (Minha “Lulu”)

NUM DOMINGO À TARDE, eu passeava com a minha filha Luana,  de seis anos, pelo sítio imenso de meu avô João, em Sorocaba,  interior de São Paulo, quando, de repente, a minha princesinha se deparou com uma espécie de luz muito pequena, quase imperceptível, piscando continuamente em meio as enormes  árvores frondosas que enfeitavam a quinta:

— Pai, pai,  — observou ela, espantada e atônita. — Veja  aquela luzinha que está fazendo um monte de pisca-pisca e fica voando pra lá e pra cá no meio do matagal!

Olhei apressado para a minha criança e indaguei:

— Onde, filha? Não estou vendo nada. Mostra para o papai.

— Ali, pai, ali... É uma lampadazinha voadora...

Ao desviar as vistas para onde o indicador apontava, e então mais atentamente prescrutar o ponto nevrálgico do tal achado, percebi que se tratava de um simples e solitário vagalume. Tentei explicar dizendo à minha menina, que aquilo estava longe de ser uma luzinha piscando; se tratava de um animalzinho invertebrado conhecido como lanterninha, ou pirífora.

Em palavras simples e sem rebusques,  pontuei que por obra do Criador da natureza, Deus, tinha aquele pequenino ser, a capacidade mágica de produzir, no escuro, uma ínfima e contínua luminosidade, graças a uma substância que carregava no corpo, conhecida como luciferase.  

Todavia, apesar dessa explicação, a minha mocinha insistiu na ideia da lampadazinha voadora. Bateu pé, o que de certa forma achei de bom alvitre concordar. A garotinha tinha, logicamente, uma visão diferente da que eu expusera. Em outras palavras: via inspiração e ardor em uma coisa bucólica, onde criaturas comuns (como eu) simplesmente não enxergavam nada além da ponta do nariz.  

Por outro ângulo, Luana pequena demais, inocente aos extremos, incapaz, eu sabia, para entender o que significava um vagalume, ou pior, o que vinha ser essa tal de luciferase. Quando se tornasse adulta, certamente o dom que lhe era nato, fluiria. Ela seria uma poetisa, quem sabe uma escritora brilhante, a engendrar versos e textos bonitos e maviosos para enfeitar e colorir a vida das pessoas que encontrasse pelos seus caminhos.

Ainda um pouco espantada com a minha explicação (animalzinho invertebrado, lanterninha, pirífora, vagalume, luciferase...) senti que tudo o que falei entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Sem mais delongas, e batendo na tecla da lampadazinha voadora, inquiriu  com um sorriso maroto nos olhos castanhos claros que refletiam toda a ternura meiga que emanava de dentro da sua alma literalmente em festa:

— Papai, e à noite, na hora de dormir?

— O que tem minha linda?

— Ele, o vagalume?!

— Eu sei, gatinha! O que tem o vagalume à noite, na hora de dormir? Fala...

— Ele fica no claro ou prefere ir pra caminha no escuro?!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 2


BOLHAS

Olha a bolha d’água
no galho!
Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinho
na rolha!
Olha a bolha!

Olha a bolha na mão
Que trabalha!

Olha a bolha de sabão
na ponta da palha:
brilha, espelha
e se espalha.
Olha a bolha!

Olha a bolha
que molha
a mão do menino:

A bolha da chuva da calha!
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LEILÃO DE JARDIM!

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas
cores,

lavadeiras e
passarinhos,

ovos verde e azuis
nos ninhos?

Quem me compra este
caracol?

Quem compra um raio
de sol?

Um lagarto entre o muro
e a hera,

Uma estátua da
Primavera?

Quem me compra este
formigueiro?

E este sapo, que é
jardineiro?

E a cigarra e a sua
canção?

E o grilinho dentro
do chão?

(Este é o meu leilão!)
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O CAVALINHO BRANCO

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:
mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida
e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos
a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!
Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
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PESCARIA

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.
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TANTA TINTA

Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
Com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpa a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta...

Ah! A menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.

Vilma Medina (O Coelhinho Pirracento)

Vivia no bosque verde um coelhinho doce, meigo e macio, mas pirracento. Sempre que via algum animal do bosque tirava sarro dele. Um dia, quando estava sentado à sombra de uma árvore, aproximou-se dele um esquilo, e disse: “Olá senhor coelho!”  O coelho não respondeu.

Olhou, mostrou a língua e saiu correndo. Que mal educado! Pensou o esquilo. A caminho da sua toca, o coelho encontrou um cervo, que também quis saudá-lo. “Bom dia, senhor coelho!” De novo o coelho mostrou a língua ao cervo e saiu correndo.

Assim aconteceram várias vezes com todos os animais do bosque que o coelho encontrava pelo caminho.

Um dia todos os animais decidiram dar uma boa lição no coelho mal educado, e fizeram um acordo para que, quando algum deles visse o pirracento coelho, não o cumprimentasse. Iriam fazer como se não o tivessem visto.

E assim aconteceu. Nos dias seguintes todo mundo ignorou o coelho. Ninguém falava com ele, nem o saudava. Um dia, todos os animais do bosque organizaram uma festa e o coelho ouviu onde iriam celebrar e pensou em ir, mesmo não sendo convidado.

Naquela tarde, enquanto todos os animais se divertiam, apareceu o coelho no meio da festa. Todos fizeram de conta que não o tinham visto. O coelho, constrangido pela falta de atenção dos seus companheiros, decidiu ir embora com as orelhas baixas.

Os animais, com pena do coelho, decidiram ir até a sua toca e convidá-lo para a festa. Não sem antes fazê-lo prometer que nunca mais faria pirraça a nenhum dos animais do bosque.

O coelho, muito contente, prometeu nunca mais pirraçar dos seus amiguinhos do bosque, e todos se divertiram muito na festa e viveram felizes para sempre.

FIM

Moral da estória: Procure nunca pirraçar seus pais, seus irmãos, nem amiguinhos.

Fonte:
Guia Infantil

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 361

 


Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 2

O Indianópolis, 17 de fevereiro de 1979

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Hiran, do latim ao clarinete


Na Rua do Rosário, em Ponte Nova de Minas, acabara de nascer uma criança. Menino ou menina? Professor. De quê? De tudo. Um nome chique lhe deram: José Hiran Salée.

No Departamento de Letras da UEM, onde fomos colegas durante uns bons anos, minha mesa ficava ao lado da dele na sala dos professores. Ali, de papo em papo, em meio a intermináveis discussões sobre sinédoques e anaptixes, acabei conhecendo tintim por tintim sua movimentada biografia. Um dos personagens mais queridos da história de Maringá.

O menino foi crescendo, concluiu o grupo escolar na terra natal, fez o ginásio em Lorena, até que de repente um estalo lhe disse que sua vocação era para o sacerdócio. No seminário salesiano (não me lembro se em São João Del Rei ou Cachoeira do Campo), fez o clássico, depois Filosofia e Pedagogia. Um currículo da pesada: português, francês, inglês, espanhol, grego, latim, além de várias outras disciplinas – e os padres professores não davam moleza. Mas havia tempo também para curtir música e praticar esportes. E foi pelo seu amor à música que o garoto de Ponte Nova tornou-se logo uma grande atração, tocando flauta, saxofone e clarinete nos eventos festivos do seminário. Chegou a tocar harmônica em missas solenes.

Já na Teologia, próximo da ordenação, deu-se, porém, um fato que o obrigou a mudar os planos. Seu pai morreu e ele precisou deixar o seminário para ajudar no sustento da família. Nesse período deu aulas em vários colégios no Rio, Niterói e em outros lugares. Em Goiânia, fez concurso num colégio para ser professor de latim. Foi aprovado com louvor, porém ao se apresentar ficou sabendo que de início teria que dar aulas de desenho e trabalhos manuais. O jeito foi aceitar, mas acabou fazendo sucesso mesmo foi como instrutor da fanfarra.

Numa das férias de verão passou um mês no Rio de Janeiro. Por força do seu ideal, deu aulas de catecismo numa favela. Para ganhar uma graninha, fez bicos desenhando cenários em teatros de revista e trabalhando como ajudante na pintura de carros alegóricos para o carnaval. Foi nessa ocasião que ouviu falar de Maringá. Decidiu arriscar. Valeu o risco. Veio, ficou.

Era o ano de 1955. Com pouco dinheiro, antes de vir comprou uma rede para o caso de não poder pagar hotel. Chegando, preferiu ficar no hotel mesmo e vendeu a rede para pagar as diárias. Por indicação de um dos hóspedes, passou a fazer refeições na Cantina do Zitão, onde o conheci.

Daí para a frente todo maringaense conhece a bela história do inesquecível mestre José Hiran Sallée. Pilotando seu famoso DKV-Vemag, lecionou português e latim em quase todos os colégios da cidade, foi diretor do Gastão Vidigal, secretário municipal da Educação, organizador e regente de fanfarras, músico de banda e orquestra, desenhista e pintor nas horas vagas. Aposentou-se aos 70 anos, como professor da UEM. Mora no céu desde 2009. Aqui deixou saudade à beça.

Fonte:
texto enviado pelo autor

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos) IV


FLORESCER
Para Flaubert Brutus

Estou aqui!
Não dobrei a esquina!
Não desapareci por completo,
Não sangrei até morrer...
Em praça pública,
Como alguns bem queriam.

Estou aqui...
Não evanesci mata adentro!
Não fugi para o Quilombo...
Não ouvi os cães ladrarem.

Ainda estou aqui!
Florescendo a cada dia...
Que passa!
Cada vez mais belo...
Cada vez mais forte...
Não desapareci completamente.
Não sumi das memórias das pessoas.
Floresci em pela luz do dia...
Não fui tragado!
Pelas areias do destino.

Ainda estou aqui...
Bem vivo!
Ainda não desapareci.
No meio da multidão resoluta...

Ainda estou aqui!
E não fui embora...
O tumbeiro não me levou.

Ainda estou aqui!
Negro como a noite...
Mas puro como o dia.
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NÃO! EU NÃO PLANTEI FLORES

Eu não plantei flores!
E nunca vou plantá-las!
Para não vê-las morrerem...
Abruptamente!
Pisoteadas cruelmente,
Pelas botas asseadas...
E lustradas.
Dos soldados desumanizados!
Fortemente armados,
Que em descompassados...
E uniformizados!
Passam em marcha.

Não! Eu não vou semear!
Flores algumas...
Para não vê-las...
Serem arrancadas...
Tiranicamente!
Da floresta negra em chamas.
Pelas mãos inumanas,
Para suprir um mercado em fúria.
Para serem vendidas...
A posteriori!
Em um ávido mercadejo qualquer!

Não! Eu não vou plantar flores!
Para não me desumanizar...
Em demasiado...
Para não ter que levá-las!
No campo-santo...
Em homenagem sepulcral.
Para aqueles que partiram,
Para o além vida...
E nunca mais voltarão!
****************************************

AO NASCER DE UM NOVÍSSIMO DIA
(Da série o amor em vermelho)

Ao nascer de um novo dia
Vamos nós dois
Sacrossanta negra musa
Até o vergel das almas perdidas
Sagrar o nosso etéreo amor

No alvor
Ao nascer de um novíssimo dia
Minha musa de ébano
Consagramos
O nosso hialino amor
À beira do místico lago encantado

No amanhecer
Na alvorada nova
Ao nascer de um novo dia
Sagrarmos o nosso divinal amor
Consorte minha
No cósmico altar
Dos deuses e deusas imortais
****************************************

DA ÁRVORE DOS ACONTECIMENTOS
(Da série o amor em vermelho)

Não se arvores negra ninfa
Dos nevoentos bosques
Eu fiz as minhas próprias escolhas
Alheias as tuas ignotas vontades

São mãos invisíveis do destino
A te guiar na celestial escuridão
Para longe de mim

Não se arvores aedo de ébano
Tu fizeste as tuas próprias escolhas
Alheias as minhas próprias vontades
Alheias as tuas sibilinas ambições
De ficar ao lado meu

Não se arvores poeta de ébano
Pois são as mãos impossíveis
A me guiar pelas álgidas
Imensidões cósmicas sem fim
Para longe do teu ebúrneo palácio
Das memórias perdidas

Não nós arvoremos negra ninfa
Somos nós dois
Flanando livremente para o além
Das imensidões astrais do hiperespaço

Somos nós dois
Enclausurados no hipertexto
Para todo o sempre
****************************************

O EQUILÍBRIO EQUIDISTANTE ENTRE NÓS
(Da série o amor em vermelho)

Pergunte-me tudo
Eu não vou me esquivar de nada
Só não me pergunte
De ontem à noite

Pergunte-me
Tudo o que quiseres
Para mim
Só não me pergunte o que fiz
Ontem à noite
Quando eu tentei em vão
Esquecer-te por completamente

Sobre o ontem à noite
Refugiei-me em mim
Eu não queria te ver novamente
Nem ouvir a tua eufêmica voz
Eu não queria rever a cena dantesca
De nós dois dançando
Na minha mente outra vez

Ontem à noite eu fugi
De nós dois
Não queria ser uma sibilina imagem
Presa em uma moldura digital
Nos teus estribilhos

Ontem à noite
Ao som de músicas impossíveis
Ao sabor do destino
Eu fugi de nós dois
*************************************

A MEDIDA DE TODAS AS COISAS
(Da série o amor em vermelho)

Nas medidas de todas as coisas
De todos os inaudíveis sons
Ao redor
De todas as abstratas cores
E de todas negras múltiplas
Escuridões ao meu redor

Nas medidas de todas as coisas
De todos os sintéticos sons
Ao redor
De todas as cores e as não-cores
Ao meu redor
Um simples bom dia teu
Para mim
Já não me basta
Mussulinosa negra ninfa

Nas medidas de todas as coisas
Do meu multiverso apoplético
Minha dulcíssima negra musa
Eu espero que tenhas venerado
Profundamente
De todos os vagos versos agrafos
Que a ti eu dediquei
A beira da fossa abissal

Nas medidas de todas as coisas
Eu espero que tu vás até as janelas
Do ebúrneo palácio das memórias perdidas
E contemple todos os ruidosos ruídos
E todos os silêncios profundos
Ao teu redor
De todas as cores e as escuridões
Ao teu redor

Nas medidas de todas as coisas
Espero que mergulhes
Os teus delicados pés
Nas ebúrneas áreas da praia desolada
Que esvoaces o trigal dos teus cabelos
Ao sabor dos ventos outonais atlântico

Nas medidas de todas as coisas
Espero que não interrompas
As tuas nevoentas quimeras
Nunca mais divina Luna

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Nelson Rodrigues (Quem Morre Descansa)


Ela batia à máquina quando Norberto apareceu. Fez a pergunta:

— Pode-se bater um papinho contigo?

— Quando?

— Depois do serviço?

— OK. E onde?

Ele vacilou: “Olha, eu te espero naquele bar da esquina”. Julinha, com o coração disparado, balbuciou: “Eu estarei lá. Batata”. E não trabalhou mais direito. Findo o expediente, correu no reservado das moças, e espiou-se no espelho; retocou a pintura dos lábios e passou pó no nariz; muito lustroso. Norberto a esperava, num canto do bar, com uma garrafa na frente. Deu-lhe a cadeira e requisitou o garçom. Perguntou à pequena:

— Você toma o quê?

Julinha, que não estava passando bem do estômago, pediu: — “Água tônica”. Enquanto o garçom ia e vinha, Norberto foi direto ao assunto: — “Você sabe, não sabe, que eu sou casado?”. Suspirou:

— Sei.

E ele:

— Muito bem. Sabe, também, que eu gosto muito de você?

Disse que não tinha certeza, mas desconfiava. Ele insistiu: — “Pois gosto e muito, mais do que você pensa”. E, súbito, fez-lhe a pergunta que a surpreendeu e deixou sem fala: — “Quer casar comigo?”.

A ESPOSA

Durante alguns momentos, ela não soube o que dizer, não soube o que pensar. Balbuciou:

— Quer dizer, queria. Mas como? E sua mulher?

Mas Norberto estava preparado para a pergunta: — “O negócio é o seguinte, meu anjo: minha mulher está muito mal”. E era verdade. A mulher de Norberto era muito franzina, um peito cavado, asmática, tinha uma vida de sacrifício. No inverno, pagava todos os pecados, qualquer resfriado bobo a deixava sem ar e tinha sufocações tremendas. Vivia em casa, estiolando-se, cada dia pior. Há coisa de oito meses, fizera uma radiografia do estômago. Constatara-se a úlcera; e, depois, uma do pulmão que revelara a tuberculose. Chocada com essas variedades de doenças, de provações, Julinha deixou escapar a exclamação: — “Que horror!”. Norberto prosseguiu:

— Queres ver uma coisa? Hoje eu a deixei pondo sangue pela boca. E não se sabe se a hemorragia é da úlcera do estômago ou do pulmão.

— Coitada!

— O médico já avisou que ela não dura muito. Uns três ou quatro meses. E talvez morra antes, de um colapso. Uma calamidade. Mas o que eu queria te dizer era o seguinte: tu gostas de mim e eu de ti; e te dou minha palavra que, logo que possa, me casarei contigo. Tu esperas?

Julinha ergueu o rosto e disse, com muita doçura:

— Espero.

O OUTRO

A partir de então, sua vida foi uma espera de todos os dias, horas e minutos. Havia no escritório um outro companheiro interessado em conquistá-la. Era o Queiroz. Tomara-se de amores pela menina e, muito obstinado, não a deixava em paz. Não fosse a súbita declaração de Norberto, que ela preferia, e talvez tivesse admitido um namoro, a título experimental, com o Queiroz. Mas Norberto, vendo o assédio do outro, se antecipara. E, no dia seguinte, quando o Queiroz reiterou um antigo convite para um “cineminha”, a garota pôs as cartas na mesa:

— Tem santíssima paciência, mas não pode ser. Eu gosto de outro.

— Não acredito!

E ela: “Te juro”. Como o rapaz teimasse na incredulidade, fez o juramento extremo: “Quero ver minha mãe morta, se não é verdade”.

Atônito, ele balbuciou a pergunta: “Mas quem é o cara?”.

— Segredo.

— Ué!

Julinha acabou se irritando: “Além disso, eu não tenho que dar satisfação de minha vida”. O rapaz saiu dali amargo, depois de rosnar: “Esse negócio está me cheirando a homem casado”. E o fato é que, desde então, ele passou a vigiar ferozmente a pequena. Soube que Norberto e Julinha tinham sido vistos, depois do serviço, no bar da esquina.

Esbravejou:

— Cachorro!

O MARTÍRIO

Sempre que chegava ao emprego, Julinha olhava para a mesa de Norberto. Quando ele não vinha, perguntava a si mesma: “Será que ele não veio porque a mulher dele morreu?”. Corria ao contínuo:

— Quedê seu Norberto?

— Foi tomar café.

Ela sabia então que a outra estava viva. Por causa do controle do Queiroz, os dois procuravam disfarçar tanto quanto possível. Com sua lógica de mulher, Julinha ponderava: “Afinal de contas, você é um homem casado e eu sou uma moça de família”. Por outro lado, o sigilo que era obrigada a manter constituía um elemento de mistério, interesse, excitação. E assim, dias após dias, Julinha acompanhava à distância o martírio da outra. Às vezes, Norberto ia à rua telefonar para ela e dramatizava: “Minha mulher está que é só pele e osso. Não sei como ainda vive”. A princípio, Julinha tinha escrúpulos de esperar e mesmo desejar a morte da infeliz. Mas, com o correr dos dias, o hábito de falar no assunto a sensibilizou. E, um dia, surpreendeu-se a si mesma: “No duro, no duro, me responde. Ela vai até quando, mais ou menos?”. Norberto fez os cálculos:

— Uns quinze dias.

Em casa, no quarto, Julinha pôs-se a imaginar: ”Quinze dias. Mais uns seis meses etc. Daqui a um ano posso estar casada”. Mas os quinze dias se passaram. E nada. No telefone, ela perguntou, com uma irritação que procurava dissimular: “Como é, fulano? Você disse quinze dias e quando acaba...”. Do outro lado do fio ele desabafava:

— Pois é. Que espeto! Sabe que eu estou besta com a resistência? O médico disse hoje que, assim, nunca viu.

Julinha suspirou: “Paciência. Paciência”. Mas já começava a admitir mesmo que o estado da outra não fosse tão grave assim. E, por fim, interpelou Norberto: “Quem sabe se você não está me tapeando?”. Ele jurou que não, deu a palavra de honra. Julinha, deprimida, fez a revelação:

— Olha que eu já estou fazendo despesas com o enxoval. Comprei muita coisa. Veja lá!

Ele, seguro de si e do destino, foi categórico: “Ótimo, ótimo. Pode ir comprando tudo. É bom, sim. E o vestido de noiva eu faço questão de te dar. Quero um bacana”.

AGONIA


Mais quinze dias e a esposa de Norberto, apesar da úlcera, da tuberculose e da asma, resistia. Ele, desesperado e sentindo que a pequena duvidava, propôs-lhe: “Vamos fazer o seguinte: vou arranjar um pretexto do serviço e te levo lá em casa. Queres?”. Julinha, que já se julgava vítima de uma mistificação, disse: “Pois quero”. No dia seguinte, entrava na casa da rival. E seu estômago se contraiu quando viu a outra no fundo da cama. Era, de fato, um esqueleto. Um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Parecia incrível que aquela criatura ainda estivesse respirando, ainda vivesse. Na primeira oportunidade, Norberto soprou-lhe:

— Não te disse? Batata, meu anjo. É um fenômeno de resistência. Qualquer dia, morre.

Coincidiu que o médico aparecesse e, falando com Norberto e Julinha, foi terminante: “É um milagre, sua mulher já devia estar morta”. Julinha, impressionada, sugeriu: “Deve ser um sacrifício a vida dessa criatura. Um martírio”. O médico admitiu com a voz cava:

— Natural.

E continuou a espera. Então, pouco a pouco, Julinha se desesperou. Começava a admitir na sua meditação que a outra não morresse nunca, que se tornasse definitivamente uma múmia. O Queiroz, teimoso, não cessava o assédio. E, sem querer, ela já o tratava de outra maneira, quase com afeto. Ele era positivo: “Eu me caso contigo em dois meses”. Julinha adotou uma atitude que não deixava de ser um estímulo. Disse: “Deixa o barco correr”. Dias depois, foi mais longe:

— Te dou a resposta dentro de um mês.

A MORTE

Esperava que, dentro desse prazo, a outra morresse. Pois bem. Passou-se o mês e nada. Perdeu a paciência: “Não interessa. Estou bancando a palhaça”. O Queiroz, que contava os dias na folhinha, esperou-a sôfrego: “Como é? Já decidiste?”. Julinha teve um fundo suspiro:

— Já.

— E então?

— Sim.

Combinaram ali mesmo, em voz baixa, tudo. Ele, agitado, queria o máximo de rapidez, e batia sobretudo numa tecla: “Dois meses, no máximo”. Esfregou a mão, feliz, quando soube que Julinha já preparara muita coisa do enxoval. Acabou soprando: “Vem cá um instantinho”.

Levou-a ao corredor e deu-lhe um beijo na boca. Voltando ao escritório, saiu de mesa em mesa, anunciando: “Estamos noivos”. Foi uma farra entre os colegas. De repente, bate o telefone: Julinha atende e... Teve um choque, quando reconheceu a voz de Norberto. Falando baixo, com a boca encostada no telefone, Norberto anunciava:

— Minha mulher entrou em agonia. Agora é batata. Questão de minutos. Um beijo pra ti. — E desligou.

Por alguns instantes ela não soube o que fazer. Numa alegria lancinante, tinha os olhos marejados, já esquecida do compromisso com o Queiroz. E, quando este veio lhe falar, ela não teve o mínimo tato. Disse-lhe à queima-roupa: — “Olha, nada feito. Você me desculpa” etc. etc.

Ele, branco, ainda insistiu: — “Você não pode fazer isso comigo. Eu não sou nenhum moleque”. Mas quando se convenceu que a tinha perdido, não teve dúvidas. Era nortista, afundou-lhe o punhal num dos seios. Julinha expirou, ali mesmo, antes que a assistência chegasse.

Pouco depois, batia o telefone. Era de novo Norberto, que vinha avisar que a esposa morrera, afinal. Mas ninguém, ali, teve cabeça para atender. Norberto acabou desistindo. Voltou para junto da esposa morta, com a natural compostura de um viúvo. E fez, para os presentes, o seguinte comentário:

— Quem morre descansa.

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 360

 


Luís da Câmara Cascudo (Barba Ruiva)



Aqui está a lagoa de Paranaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.
 

Espraia-se em quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens.

Nas Salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.

Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste e pensativa. Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.

Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa.

O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe-d'Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava, e mergulhou.

As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua.

Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d'água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar.

Ano vai e ano vem, o choro parou e, vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio-dia e barbado de branco ao anoitecer.

Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.

Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. Homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho da-Mãe-d'Água, e perde o uso de razão, horas e horas.

Mas o Barba Ruiva não ofende a ninguém.

Corre sua sina nas águas da lagoa de Paranaguá, perseguindo mulheres e fugindo dos homens. Um dia desencantará, se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.

Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba Ruiva. Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Paranaguá.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

SPINA – Nova Forma Poética (Antologia Poética) 2


Ana Cláudia Gonçalves

DO BRILHO QUE TRAGO NOS OLHOS

Menina tecendo sonhos
Em cada giro
De um cata-vento...

Ainda tenho brilho nos olhos.
Ainda acredito em minha magia.
Sigo projetando fantasias no firmamento.
Tenho poeira de estrelas, guardadas
Impregnadas em cada bom sentimento.

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Ana Meireles

SENSAÇÕES!

Transbordo, a vida
Me faz transbordar.
Sou tristezas, alegrias!

A conta dos dias pesa
Subtraído desejos, subtraído os sonhos
Tudo passa envolto em melancolias
Sem cores , dores pulsam, acinzentam
Entornam sensações, disparam emoções, agonias.
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Antonio Queiroz

ABNEGADO CALOR


Ensope meu mundo
com seu abnegado
calor, fazendo-me inflamar.

Alague minha alma com ondas
quentes, espumosas suas, regando com
salgadas chuvas meu desmedido mar.
Detenha sol abrasador, repondo-me lua
cintilante, noites a lhe amar.
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Carla Bueno Oliveira

UM NOVO AMANHECER

Contemplo novo dia
Observando sol radiante
com muito esmero!

Converto minha tristeza em alegria,
sentindo nova esperança no amanhã!
De repente, chega sorriso sincero,
um ânimo dizendo para lutar
repetindo: terei futuro que espero.
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Edith Vargas

ABUSO INFANTIL


Criança abusada, triste
A pensar. Segredos
Doloridos, para guardar.

Sua infância despirá a fantasia,
Soturno, nebuloso, será seu viver.
Momentos servís, sempre a lembrar,
Sobras de infância então  viverá.
Abuso infantil, ciranda a  castigar.
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Ronnaldo de Andrade

SÓ A MORTE SILENCIA MEU GRITO

Renego o poder
se exclui aquilo
que tenho direito;

se anula minhas condignas conquistas
alcançadas com muitas lutas, sangue;
fere-me, ignora o secular preconceito.
Eu esconjuro firmemente o retrocesso,
toda, qualquer, violência – Não aceito!
****************************************

Symone Elyas

SOBREVIVI


Armada... Sem pistolas
Nem munições. Encaro
A emboscada revestida.

Enjeito seu amor lancinante. Recuso
Migalhas do que intitula sentimento.
Alto lá... Insignificância não intimida!
Blindei mente, corpo, coração contra
Seu contempto. Pronta, bem resolvida.
****************************************

Valéria Gurgel

ESPERANÇA


Aurora Boreal cintila,
Verde no firmamento,
Cor da esperança.

Doce expectativa, o céu espelha.
Sentimento último que se morre,
Porque quem espera tudo alcança.
Quem bem semeia, planta, colhe.
Acredite nos frutos da bonança.

Fonte:
Facebook – Spina, Nova forma poética

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Onze


FETO DE ÚTERO RESSENTIDO

O AVÔ DE JULINHO, SEU LISBÓRIO, é um homem na casa dos sessenta anos. Possui os cabelos grisalhos e o rosto bastante enrugado. Viaja de ônibus leito, do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhado de seu inseparável neto, um guri de  seis anos, esperto e tremendamente traquinas.

Em face do pequeno ser muito levado e extremamente desobediente, ninguém aguenta ficar com ele. Em razão disso, para onde seu Lisbório precise se locomover, leva a tira colo, o alegre ganapo (garoto).

Órfão da mãe, que morreu com seu nascimento, desde então o cacafelho (pirralho) passou a ser criado e cuidado por esse avô. O pai da criança, com o óbito repentino da mulher (filha de seu Lisbório), se mandou, tomando lugar incerto e não sabido. Nunca mais deu as caras, sequer para saber se o pirralho precisava de alguma coisa.

Dona Geringonçinha, a esposa de seu Lisbório, mais nova que ele três anos, ajuda no que pode. A mulher ama o menino como se filho de seu sangue fosse. Todavia, como o moleque se mostra levado da breca e apronta todas, ela não lhe dá muita trela.

Seu Lisbório, maquinista aposentado da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, em face de possuir algumas propriedades de aluguel em Santíssimo, bairro situado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, todo mês carece estar presente na cidade maravilhosa e, claro, com ele vem o infante sapeca de contrapeso.

Na verdade, apesar do avanço e da disparidade dos anos, igualmente o espevitado ama o avô, gosta dele de coração e, dentro das suas limitações de criança, ajuda o velho quando o mesmo necessita de ajuda.

Ocupando as poltronas um e dois, tardão da noite, enquanto o Tribus segue seu destino, o párvulo (criança) passa o tempo sem pregar os olhos, se entretendo com seus joguinhos preferidos no celular do avô. O longevo dorme a sono solto, roncando e babando.  

No meio da estrada, seu Lisbório acorda com sede. Espia pela janela e percebe, estar o ônibus relativamente um pouco distanciado da parada Graal Alemão, em Queluz. Para variar, aquela noite, em face de um acidente envolvendo duas carretas, a Via Dutra se faz morosa e lenta, com ambas as vias bastante congestionadas.

—  Julinho, acha aqui na bolsa a caneca do seu avô e vai pegar água. Estou com uma sede danada.

Obediente, o petiz sobe na poltrona, alcança o bagageiro e dele retira a caneca acondicionada numa sacola de plástico e corre até os fundos, buscar o líquido precioso para o avô.

Dois ou três minutos depois, retorna com o recipiente cheio, até a boca:

— Toma, vô.

Seu Lisbório passa a mão na caneca e toma tudo de uma só golada:

— Meu lindo, volta lá e enche de novo...

O pequerrucho não espera segunda ordem. Sai tropeçando corredor adentro, se segurando entre as poltronas, sumindo em direção ao banheiro. Não imprime delongas em retornar. Da mesma forma que a primeira, o pequerrucho vira tudo de uma só vez:

— Chega, vô?

— Ainda não, meu gatinho lindo. Sem fazer muito barulho, me arranja mais um pouquinho. Cuidado para não perturbar os demais passageiros, ou cair e se machucar, ou pior, dar um banho em alguém:

— Tá bom, vô.

Julinho reaparece, e novamente entrega a caneca ao senhorzinho que bebe com gosto e sofregamente:

— Se eu falar pra você que ainda sou capaz de beber umas dez... Você faria a gentileza de ir lá, de novo, e atender seu velho avô chato?

O miúdo ralha com o abrandecido fazendo um gesto de contrariedade a estas palavras:

— O senhor não é chato, vovô. Eu vou buscar quantas canecas o senhor quiser...

Julinho volta a desaparecer por mais alguns minutos, todavia, desta vez, retorna ao ponto de partida com a caneca vazia. O avô indaga o que aconteceu:

— O que houve, meu piá?  Não me diga que a água acabou?

O rapazinho vacila antes de responder.

— Fale, Julinho, a fonte secou?

Julinho, então, faz a revelação surpreendente e imprecisa, o que deixa o avô literalmente furioso e descontroladamente fora de si:

— Acabou não, vô!

— Então, por que não me trouxe a água?

— Quando eu abri a porta do banheiro, topei com uma moça sentada no poço!

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 4

 


A ESTRELA

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Porque da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Porque tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
****************************************

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
****************************************

BELO BELO (1)

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
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BELO BELO (2)

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
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CHAMA E FUMO

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima... O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Teresópolis, 1911.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.