sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Orlando Woczikosky (Outros Versos)


ALEGRIA BRASILEIRA
Mulata, linda mulata,
Você é um raro tesouro:
- Se outras têm brilho de prata,
Você brilha mais do que ouro.
.
Mulata, mulata linda,
Você é flor maravilhosa:
- Você é mil vezes, ainda,
Mais linda que a própria rosa.
.
Eu gosto da cor mulata
Da mulata brasileira,
Da mistura de ouro e prata
Dessa mulata faceira.
.
Quando vejo no terreiro
A mulata requebrando,
Meu coração brasileiro
Por ela bate sambando.
.
Nossa mulata querida
No samba não tem rival:
- Se há mulata na Avenida,
Tem mais vida o carnaval.
.
Salve, salve essa mulata,
Essa mulata matreira,
Que em seus requebros retrata
A alegria brasileira.
.
VÍCIO
.
O vício é mais uma das desgraças que se somam ao infortúnio dos miseráveis.
.
CIGARRO II
.
Fumar, pra fazer fumaça,
quem o faz é quase louco:
– Quem assim a vida passa,
gasta muito e vive pouco.
.
Cigarro é um troço gozado,
gozado pra mais da conta,
por ter fogo numa ponta
e um imbecil do outro lado.
.
Quem tem seu cigarro fuma,
quem não tem cheira fumaça
e eu não vi pessoa alguma
ser feliz com essa desgraça.
.
Disse o cigarro ao fumante:
– Eu sei que você me adora,
que me acende a todo instante,
mas o apago a qualquer hora.
.
Eu não sou contra quem fuma,
nem dou conselho de graça,
porque não há lei nenhuma
que proíba quem o faça.
.
Quem diz que fumar distrai,
vive apenas de ilusão:
– quem assim vivendo vai,
contrai câncer de pulmão.
.
MAL MENOR
.
Fiz tudo para ela, antigamente,
Fiz tudo pra lhe dar felicidade,
Mas ela, por repúdio, por maldade,
Fazia-me sofrer, amargamente.
.
E agora que por ela, simplesmente,
não sinto nem a falta de amizade,
Ela diz de mim sente saudade,
Pedindo-me que volte, novamente.
.
Não fui e não serei, também, ingrato,
Não volto, simplesmente, pelo fato
De ter medo querê-la mais que a quis,
.
Quando a doença não nos rouba a vida,
O melhor é evitar-se a recaída,
Cortando, assim, o mal pela raiz.

Orlando Woczikosky



Entrevista realizada pela Revista “Falando de Trovas e de Trovadores” , do Portal CEN,  pelo trovador delegado de Pinhalão/PR,  Lairton Trovão de Andrade.

 O grande poeta e trovador Orlando Woczikosky, Príncipe dos Trovadores do Paraná, o único remanescente vivo dos fundadores da UBT-Paraná (União Brasileira de Trovadores do Paraná), e por sua vasta obra trovadoresca, faz-lhe homenagem com o título singular de “O Mais Ilustre Membro da UBT-Paraná da Atualidade”.

Lairton: Qual o seu nome completo? Onde e quando nasceu? Reside em que cidade?

Orlando: Meu nome completo é Orlando Woczikosky. Nasci no bairro Xaxim, em Curitiba, a 08 de maio de 1927, onde resido.

Lairton: Voltando aos tempos da adolescência, como era a sua cidade natal?

Orlando: Curitiba era pequena, com 110 mil habitantes.

 Lairton: Qual a sua formação profissional?

Orlando: Ginásio Industrial e Técnico Industrial, pela Escola Técnica de Curitiba; Faculdade de Educação da Universidade Federal do Paraná; C.P.O.R. de Curitiba; etc..

Lairton: O Senhor foi, com certeza, um professor bem sucedido, hoje merecidamente aposentado. Em que estabelecimentos de ensino lecionou e que boas lembranças tem das suas atividades docentes?

Orlando: Minha principal atividade foi lecionar Desenho no Senai de Curitiba, por mais de 30 anos. Na Escola Técnica de Comércio de Plácido e Silva, lecionei Desenho e Caligrafia. No Colégio Parthenon, lecionei Desenho e Educação Artística. No Ministério do trabalho, lecionei Leitura e Interpretação de Desenho no Curso de Segurança do Trabalho.

Lairton: Sabemos que é poeta e trovador de méritos inquestionáveis. Como foi seu início na arte de fazer trovas?

Orlando: Minha mãe ao se casar ficou morando com meus avós maternos, onde nasci. Minha avó, Carolina Krumann, gostava muito de quadras populares, declamando-as e me ensinando a declamá-las, nos meus primeiros anos, antes de nos mudar da casa dela.

Quando tive os primeiros contactos com a poesia, principalmente as de versos setissilábicos, notei a grande facilidade em compor meus primeiros versos, mesmo desconhecendo as regras da metrificação.

Em 06 de junho de 1948, escalando o Pico do Marumbi, na Serra do Mar, diante de tal beleza, escrevi a minha primeira poesia de algum valor: Marumbi. Dias depois, mostrando essa poesia ao meu professor de Português, Rosário Farani Mansur Guérios, quando ele me perguntou se eu havia estudado metrificação, respondi-lhe que nunca ouvi falar em metrificação. Ele, veementemente, me disse: “Ou você é mentiroso, ou nasceu Poeta!” Mandou-me procurar o livro Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, por meio do qual aprendi outros metros da poesia acadêmica.

Diante do que me disse o saudoso Professor Mansur Guérios, eu deduzi que não era mentiroso nem nasci poeta, escrevi pela cadência dos versos que aprendi com as quadrinhas ensinadas pela minha avó e que ficaram no meu subconsciente.

Após me casar, deixei de escrever por catorze anos.

Numa festa de fim de ano, meu colega de escola e de caçadas na Serra do Mar, o Professor Oswaldo Ormianin, a quem eu havia declamado muitas das minhas poesias do passado, solicitado a falar, declinou do convite, indicando-me para, em vez de discurso, declamar o “Marumbi”.

Para não decepcioná-lo, o fiz, para espanto de todos que não me sabiam poeta. O Diretor Regional do Senai do Paraná, Dr. Antonio Theolindo Trevizan, incumbiu o Professor Aluízio Plombon, Diretor da Escola de Curitiba, a me solicitar todas as minhas poesias para publicar um livro pelo Senai.

Como eu não escrevia há muito tempo, mas sabia muitas, ainda de cor, fui obrigado a escrever novas poesias, que foram enfeixadas no meu primeiro livro, “Crepúsculo da Minha Aurora”.

Nessa época, apresentado ao Escritor Vasco José Taborda Ribas, pelo seu primo, Dr. Apollo Taborda França, que fora meu colega na Escola Técnica e no C.P.O.R. de Curitiba, o Vasco me convidou para sócio do Grêmio Brasileiro de Trovadores, quando tive os primeiros contactos com a arte de trovar.

Lairton: Suas inspirações poéticas o levaram a escrever mais poesias ou trovas?

Orlando: No ínicio, escrevia só poesias, atualmente, com os movimentos trovadorescos surgidos no Brasil, tenho me dedicado mais às trovas.

Lairton: Muitos trovadores têm preferência sobre determinados temas. Alguns falam mais do amor; outros, do sofrimento; outros preferem motivos religiosos... E o Senhor? Qual foi o tema que mais o levou a trovar?

Orlando: Eu sempre fui saudosista, mas aconteceu um fato curioso na minha vida: Minha filha, com nove anos, na época, ouviu na Rádio Clube Paranaense, a instituição de um concurso de trovas de saudade e me pediu que participasse. Escrevi e enviei algumas trovas, despretensiosamente. Minha filha ouviu, no programa seguinte, que eu havia sido contemplado com vários gêneros alimentícios, oferecidos pelo patrocinador do programa. Quis recusar em receber tais prêmios, mas minha filha argumentou que seria indelicado não recebê-los, então eu fui. Ao receber os prêmios, o Dr. Ubiratã Lustosa, apresentador do programa de saudade e Diretor Superintendente da PRB2, Rádio Clube Paranaense, perguntou-me o nome do livro que eu havia copiado tais trovas, dizendo que conhecia a maior parte das melhores trovas de saudade do Brasil e de Portugal e nunca teria ouvido nenhuma das enviadas por mim. Ao lhe afirmar que eu mesmo as escrevi, ele me pediu que continuasse a colaborar, enviando trovas de saudade, ao que concordei em enviá-las, com a condição de não mais como concorrente, mas como mero colaborador. Tempo depois, o Dr. Ubiratã me chamou, perguntando-me quantas trovas eu já havia enviado ao seu programa. Disse-lhe que mais de duzentas. Sugeriu-me que as publicasse em livros de 100 (cem) trovas, como estavam fazendo no Rio de Janeiro, por muitos trovadores. Então, publiquei uma série de livros de trovas alternando-os em saudade e não saudade. Eis aí o porquê de escrever tantas trovas de saudade e continuar a escrevê-las ainda, embora há vinte e cinco anos não tenha mais publicado livros. O Dr. Ubiratã Lustosa, já aposentado, continua, ainda, apresentando o programa “Revivendo”, na Rádio Educativa AM 630, todos os domingos, das sete às oito horas da manhã, quando declama três trovas minhas, de saudade.

Lairton: Pelo visto, o gosto pela trova é universal. Em sua opinião, o que faz com que a trova seja tão fascinante?

Orlando: Na minha opinião, o que faz com que a trova seja tão fascinante é a sua versatilidade. A trova, pelo seu poder de sintetizar, presta-se, como nenhuma outra forma poética, para exaltar qualquer acontecimento, tais como aniversário, nascimento, formatura, pessoas, falecimento etc.. Um dos melhores exemplos do que afirmo é a “Missa em Trovas”, do grande trovador Antonio Augusto de Assis, nascido em São Fidélis, no Estado do Rio de Janeiro, residente na cidade de Maringá, no Estado do Paraná, onde, com sua brilhante inteligência, enaltece aquela cidade.

Lairton: A UBT - Paraná foi fundada numa época de grande efervescência trovadoresca, e o Senhor é um dos seus fundadores. Cite-nos os outros trovadores que participaram da fundação da UBT- Paraná.

Orlando: A União Brasileira de Trovadores, no Estado do Paraná, foi fundada a 10 de setembro de 1966, com a presença da Embaixatriz da Trova, Magdalena Léia, do Rio de Janeiro. Fomos seus fundadores: Vasco José Taborda Ribas, Vera Vargas, Orlando Woczikosky, Ermírio Barreto Coutinho da Silveira, José Augusto Gumy e Oswaldo Portugal Lobato, dos quais, somente eu ainda vivo.

Lairton: O grande valor de uma instituição encontra-se nas suas finalidades. Quando da sua fundação, quais os objetivos da UBT – Paraná?

Orlando: Um dos principais objetivos da fundação da nossa UBT é cultuar e divulgar a trova, bem como promover e formar novos trovadores, o que se comprova pelo grande número de novos trovadores nas escolas e nas cidades do Paraná.

Lairton: Pelos memoráveis anos de duração da UBT- Paraná, sem dúvida, a Entidade obteve sucessos. Que sucessos foram esses?

Orlando: Um dos maiores sucessos, como disse na resposta anterior, foi o grande número de novos trovadores, de novas seções e novas delegacias. Outros grandes sucessos foram os vários concursos, os jogos florais, em várias cidades, como por exemplo, os Jogos Florais de Curitiba, que neste ano realizou a XIV festa dos seus Jogos Florais.

Lairton: O seu primeiro livro editado de poesia tem o título de “Crepúsculo da Minha Aurora”. Onde encontrou inspiração para este título de excelente sugestão poética?

Orlando: Foi numa tarde, quando vi um maravilhoso pôr-do-sol, aliei esse quadro ao alvorecer e formei essa antítese para nominar o meu primeiro livro.

Lairton: O seu repertório trovadoresco é extenso e consistente. Quantos livros de trovas editou? Pretende editar outros?

Orlando: Dez livros de trovas somente minhas e duas Antologias de Trovadores do Paraná. Uma com 10 trovadores e 100 (cem) trovas e outra, com 25 trovadores com 250 (duzentas e cinqüenta) trovas, ambas em colaboração com o meu grande amigo, o Professor Vasco José Taborda. Todos os meus livros foram editados nas oficinas de Artes Gráficas do Senai, quando eu só pagava as custas do material. Publicar novos livros, já não tenho o mesmo entusiasmo nem condições financeiras para novas publicações.

Lairton: Como se pode concluir, brilhante foi sua participação no mundo da Literatura. Seus poemas e trovas foram lidos por centenas e centenas de pessoas. Fazendo uma retrospectiva, valeu a pena ter sido poeta e, principalmente, trovador?

Orlando: Valeu plenamente, porque ser poeta e trovador, principalmente no fim da vida, é muito mais
gratificantes do que possuir qualquer outro título.

Lairton: Fale-nos a respeito da sua grande descoberta sobre “quem nasceu primeiro: O ovo ou a galinha”?

Orlando: O Vasco Taborda me fez aquela pergunta clássica: “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?” Respondi-lhe de imediato: “Nenhum dos dois! Foi o galo!”

Eu deduzi que não descende o maior do menor e, como analogia, se Deus fez por primeiro o homem, certamente, fez por primeiro o galo.

Alguns dias depois, entreguei ao Vasco minha PROVA CONVINCENTE.

Gente sábia ou adivinha,
me responda bem ligeiro:
Quem foi que nasceu primeiro,
foi o ovo ou foi a galinha?

- Deixa comigo que eu falo:
Pela experiência minha,
não foi ovo nem galinha,
Deus fez por primeiro o galo.

Ao ver o galo sem tanga
botando no mundo a goela,
tirou dele uma costela
fazendo dela uma franga.

Depois de uma conversinha
e de uma boa “cantada”
que o galo deu na coitada,
a franga virou galinha.

Assim o casal distinto
caiu na boca do povo:
nascendo o primeiro ovo
e, do ovo, o primeiro pinto.

Esclareci num repente,
essa polêmica antiga.
Quem não gostou que me diga
se há prova mais convincente!

Lairton: Para finalizar, agradecemos ao Prof. Orlando a honra que nos proporcionou. Esta entrevista será divulgada, através do Portal CEN (Cá Estamos nós), para mais de 23.000 endereços eletrônicos de países do mundo que falam a Língua Portuguesa. O Portal CEN, cujo presidente é o grande escritor português Carlos Leite Ribeiro, representa eficiente ponte literária e cultural entre o Brasil e Portugal, prestando indescritível benefício à nossa Literatura. Diante disso, poderia dizer algumas palavras de apreço ao nosso querido PORTAL CEN?

Orlando:

Não tenho computador,
mas pelo valor que tem,
minha nota ao Portal CEN
é nota cem: Com louvor!

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel) (Sonetos Escolhidos 4)

OCEÂNICA
-
Na partida, um oceano de revolta
cala meu peito em descontentamento.
– Vais aonde? – eu pergunto – onda tão solta?
E ela me corta o coração por dentro.

Sou areia, sou rocha e, em meu tormento,
choro e declamo, e o fogo me devora;
qual vulcão que nos mostra o epicentro,
outro vulcão me nasce aqui por fora.

Na partida, eu prometo consolar-me
do vácuo que me tolhe. E, sem alarme,
no amor a Deus apenas me concentro.

Meu mundo é solidão, é só saudade
de quem levou minha tranqüilidade,
de quem partiu meu coração por dentro.
-
SOMBRA
-
Minha sombra soçobra no que flui,
No horizonte de um deus fendido em dois:
– O futuro, do qual se foge em “ui”!
E o passado das noites e dos sóis.

Aquele vem de pé, mas tão veloz
Quanto o outro não foge – e como influi!
Um é terrível santo e tão sem voz,
O outro, deus e o diabo... E a carne rui.

Já não banco o santinho nem o herói,
Embora herde, dos dois, olhos azuis
E haja chorado à treva e à cor que dói.

Já não tenho esperança numa foz
De doçura e de amor que a amor conduz.
Minha sombra soçobra em caracóis.
-
SENSITIVA
-
Nasci para sentir o mundo... E vivo
pelo meu, como as cores que resguardo.
Ai, flor sem nome, que à memória foge!
Tudo o que sinto é pele, estranho agrado.

Quanto mais me retraio mais me ativo,
quanto mais me esconder ou for me embora,
mais eu me amo por tudo o que em mim gosta
de sentir perto-e-longe e ser mais livre.

Sou como a sensitiva na floresta,
não fujo às agressões, me fecho e durmo,
os pirilampos que me façam festa.

Não é que eu sofra o sofrimento em calma,
é que conheço irônicas ternuras
das quais a vida nos consola ou salva.
-
SINGULAR
-
É singular criatura. Das pequenas
E grandes porque reina (não são teses),
A conduzir, no bucho, longos meses,
O filho – em seu olhar, carícias plenas.

Mais do que isto: a mãe limpa-lhe as fezes,
Ganha de tudo onde sofrer é estima,
Deusa, abaixo de Deus ela só rima
Na proteção do infante. E morre às vezes.

Pois que ela rege, em templo tão fecundo,
Um musical no ventre, o gineceu,
De onde viemos nós, não me confundo.

Depois de minha mãe, só eu, sou eu...
Mãe, o’ mães, porque há tantas neste mundo
Resiste a humanidade, e não morreu.
-
TERNURA MIÚDA
-
Pelas coisas serenas me contenho
se ternamente nasçam da vontade,
do amor e do carinho, da bondade
daquilo que mais prezo e pouco tenho.

Venham doces carícias pelo vento,
beijar-me a sutil nuca que me impele
a estremecer e subir do imo à pele,
e bem voar pelo espaço em movimento.

Os pequeninos vidros mais perfume
têm – que a filosofia não resume,
pois lhe falta ternura e tentação.

Nas invisíveis coisas me retiro,
nelas canto e me encanto e mais suspiro...
Todo o meu corpo é todo um coração.
-
ÚLTIMO OLHAR
-
Hora, afinal, de reconciliação
com os inimigos e os perseguidores,
sem alívio nenhum, trespassam dores...
Dos amigos? – O amor e a oração.

Como esquecer os gozos e a canção
da vida, o tempo em que teceu amores?
Vão colegas, vizinhos! Vãos clamores,
diante do horror dessa consternação.

Quero ligar-me a Deus, já na partida,
pra suportar o triste dos presentes,
numa clara humildade aborrecida...

Ah, recebo os divinos, santos óleos
e o pesar da mamãe e dos parentes,
com teu olhar por dentro dos meus olhos.
-
VELHAS PRAIAS
-
As velhas praias... Que saudade delas,
Do nosso idílio em dias juvenis:
- Uma moça e um rapaz banhando nelas,
Sem roupas, sem segredos, sem ardis.

Almas voando... Ai, como o tempo voa
Nas palmeiras cantando... Porque o vento
Entre arrepios no horizonte ecoa
Atento ao som, à luz, ao movimento.

Almas e corpos que amam tudo aquece,
São a chama, a pureza, são a prece
Que se eleva do mundo ao Criador.

No sul, no norte, as praias são lembranças
Do tempo em que conosco as esperanças
Eram certezas como o nosso Amor.
-
O ÚLTIMO BEIJO
-
Uma deusa te pega pela mão
contra inimigos e perseguidores,
abre o seio do leite dos amores,
e começa a tua fé no coração.

Os olhos dela encantam, na canção
da vida é tempo de tecer as cores,
e os amigos, e os campos e as flores,
diante dum palco de contradição.

O tempo vai passando em grande lida,
te envelheces, te cansas na subida,
e a glória alcançarás entre os escolhos.

A hora, enfim lhe chega, da partida,
banhado em pranto e d’alma recolhida,
um rosto de mulher beija teus olhos.
-
PERFUME E COR
-
Subi às ribanceiras desta via
sem nenhum fruto ou flor, uma que fosse,
mas fui andando e meu dia clareou-se,
e então me deslumbrei com o que via.

Era um jardim com flores tantas, belas,
de olores que não pude compreender.
E havia as donas desse alvorecer,
regando as outras flores, quais estrelas.

Cheiro de gente, de suor, de beijos,
das duas moças ouviam-se os solfejos,
e delas vinha um mundo de fragrância.

Ah, como é lindo se subir às ribas!
E é disto que se nutrem os escribas,
e que os poetas cantam sua infância.
-
MINHA LUZ
-
Muito gastei chorando... Eu era infante,
mas sorria também na idade mágica;
infância triste, sim, porém não trágica,
que me fazia um forte a cada instante.

Quando acordei do choro ante a verdade
e, enfim, por ver-me amado e não perdido,
risos mil fui construindo... E requerido
a subir, eu subi a tempestade

adolescente!.. E então rindo constante,
mudei de forma, alimentando a mente...
Eis-me, por fim, conquistador e amante.

E agora, bem melhor que antigamente,
sem sorrir nem chorar, vivo contente
a refletir-me em luz como um diamante.
-
LINGUAGEM VIVA
-
Tudo neste universo se transforma,
Já dizia Camões, poeta da gente;
O frio se derrete pelo quente,
O calor sobe, esfria e toma forma.

Os homens fazem guerra pela paz
Porque n’alma resfria o sentimento,
Como na dor se aplaca o sofrimento
Pelos remédios que a ciência faz.

O rio seca, a mata é só fumaça,
O verde se reduz à luz do dia,
Eis que assim tudo passa, tudo passa.

Mas não passa o caminho de quem ama
Na lembrança do amado, pois é chama
Como a linguagem viva da poesia.

Fonte:
O Autor

Lenda Indiana (O Elefante Furioso)

Na floresta de Shaiva, na Índia, vivia um sábio que tinha vários discípulos, aos quais falava sempre sobre pontos obscuros de doutrinas e religiões.

Certo dia este sábio ensinou palavras que provinham das escrituras sagradas:

"Deus reside em tudo do universo. Tanto no homem quanto na víbora. Tanto no elefante quanto na pedra solta na estrada."

Ajamila, o mais jovem dos discípulos, guardou fielmente os ensinamentos, profundos e filosóficos, ensinados pelo mestre.

E um dia, quando voltara de um monte onde fora buscar lenha, encontrou um homem que conduzia um elefante furioso.

O homem, que percebeu que não estava conseguindo dominar o animal, começou a gritar:

- Hei! Você, saia do caminho, o elefante está furioso!!

Em vez de fugir, o discípulo lembrou dos ensinamentos de seu mestre e pensou:

"Deus está naquele elefante.

Logo, não poderá me fazer mal, afinal, Deus não faz mal a ninguém." Então não se afastou. O elefante então atacou o imprudente e deixou-o atirado ao solo, ferido e sem sentidos.

Dois lenhadores que passavam por ali levaram o jovem até onde vivia o sábio. Quando recuperou os sentidos, Ajamila contou ao sábio o ocorrido e o motivo pelo qual ele não se afastou do elefante.

- Meu filho - explicou o sábio - é verdade que Deus está em todas as coisas, inclusive num elefante furioso.

Mas se estava manifestado no elefante, não deixava de estar igualmente em seu condutor. Por que não prestastes atenção nos conselhos cautelosos do homem, então?

Fonte:
http://contosencantar.blogspot.com.br/2012/01/o-elefante-furioso.html

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) XV, final

foi mantida a grafia original.
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OS NOVOS LEVIATÃS

Dos antigos Titãs, o mar — fera indomável,
Agora verga o dorso ao peso colossal
Dos novos leviatãs que em bando formidável,
Nas grandes explosões da cólera insondável,
Já levam de vencida o abismo e o vendaval!

Eles seguem no mar, altivos no seu rumo,
Em hálitos de fogo, à nossa voz fiéis,
E como o combatente erguendo a lança a prumo,
Em turbilhões rompendo, as flâmulas de fumo
Ostentam sem cessar correndo entre os parcéis!

Que sopro criador, que força omnipotente
Os fez surgir do nada, os monstros colossais?
O novos leviatãs provindes tão-somente
Do fecundo himeneu, deste conúbio ardente
Do Génio e do Trabalho, amantes imortais!

Correis de mar em mar, altivos, triunfantes,
Levando a toda a parte a vida, a nova luz,
E as sereias gentis não fazem como dantes,
Ao som da sua voz, perder os navegantes;
O dorso dos delfins, no mar, já não reluz!

Ó alma antiga dorme inerte no regaço
Dos velhos deuses vãos, que o homem criador
Agora ri de ti, prostrada de cansaço,
Enquanto vai soprando em mil gigantes de aço
Outra alma inda mais larga — o novo Deus-Vapor!

Sua alteza real o pequenino infante
Matou, dum tiro só, dois gamos na carreira:
Um hino mais ao céu, pois era a vez primeira
Que sua alteza vinha à diversão galante!

O vergôntea gentil! Quando um tropel distante
De súbito acordar os ecos da clareira
E uma presa cansada, em rolos de poeira,
Varada, a nossos pés, cair agonizante,

Acercai-vos então da pobre fera exangue
Que estrebucha de dor num mar de lama e sangue
Sem que uni grito de dó nos corações acorde!

No entanto não fiqueis na doce glória absorto:
O velho javali parece às vezes morto
Mas surge da agonia e os seus algozes morde!

VERSOS A *

Eu sou, mulher suave, aquele antigo louco,
O triste sonhador que o teu olhar cantou,
E que hoje vai sentindo, o sonho, a pouco e pouco,
Fugir como o luar dum astro que expirou!

Que morra, porque, enfim, bem longo ele tem sido
E tempo é já, talvez, da Morte desposar
O sonho que em minha alma entrou como um bandido
E só da vida sai depois de me roubar!

Eu devera amarrá-lo à braga do forçado,
Como a Justiça faz aos desprezíveis réus,
E lançá-lo depois à vala do passado
Aonde o fulminasse a cólera dos céus.

Mas não; quero embalar-lhe os últimos momentos
Ao som duma canção das quadras juvenis,
E amortalhar depois — em doces pensamentos -
No manto da saudade, os seus restos gentis.

E quando ele seguir às regiões saudosas,
Aonde todos nós iremos repousar,
Ao esquife hei de atirar-lhe as derradeiras rosas
Que dentro da minha alma houver por desfolhar!

Ninguém profanará seus restos adorados,
Que em paz irão dormir num fundo mausoléu;
E quando alguma vez já hirtos, regelados,
Acordem, porventura, à luz que vem do céu;

Em vão tu baterás, ó sonho, à fria porta
Que em breve hás de sentir fechada sobre ti,
Porque a tua Memória, enfim, já estará morta,
E não te escutarei... Porque também morri!

Ó pobres versos meus, lançai-vos pela estrada
Agreste e pedregosa, aonde os companheiros
Da luta, encontrareis, meus ínfimos guerreiros,
Formando os batalhões da bélica avançada!

E o trajo em desalinho, a face iluminada,
Transponde, sem demora, os fossos derradeiros
Que separam de nós os braços justiceiros
Da serena Verdade, a deusa idolatrada.

Vencidos no combate, ou pouco ou nada importa,
Ao chão vergai sem pena a face semimorta,
Mordendo, inda a lutar, o pó da enorme liça:

E tudo, enfim, esquecendo: os ódios e os desprezos;
Que de entre vós alguns, ao menos, fiquem presos
Como fios de luz, ao manto da Justiça!

Carlos Leite Ribeiro (Casa de Fantasmas) Parte 3, final

Comédia Teatral
 
Ouve-se um barulho de queda de um corpo e o Capitão reentra no salão…

Capitão: Pouca sorte... Pouca sorte a minha... Não encontrei as calças e...

Sargento: Não me diga que o Capitão não encontrou nenhum Fantasma!

Capitão: Infelizmente acertou. Não encontrei nenhum Fantasma, nem sequer o espectro dele.

Coronel: Se não encontrou nenhum Fantasma, então o que é que fez ao martelo de orelhas? Sim, porque eu não o estou a ver...

Capitão: Pois claro que não o está ver... Nem o poderá ver... Pois os Fantasmas roubaram-mo!

Alferes: A situação cada vez está a tornar-se mais complicada e mais perigosa. Os Fantasmas já não se limitam a atacar a cozinha, como também já roubam martelos de orelhas, isto, acreditando naquilo que o Capitão nos conta e que eu, pessoalmente, acredito.

Capitão: Mas eu quero as minhas calças, as minhas riquinhas calças novas! Não quero, e não posso, nem devo, passar a noite em cuecas. Ai, a minha reputação!

Coronel: Estou plenamente de acordo com aquilo que o Capitão diz, o que nem sempre acontece. Por isso, digamos que estou de acordo com ele, pelo menos, momentaneamente.

Sargento: Caro Capitão, conte-nos cá como é que os Fantasmas lhe tiraram o martelo de orelhas... Eles devem ser muito atrevidos, não são? Para lhe fazerem uma patifaria dessas.

Capitão: É simples. Subi as escadas que vão dar ao sótão e, quando já me encontrava lá em cima, empurraram-me e tiraram-me o martelo. Eu ainda resisti, e olhem, tenho esta mão toda esfolada...

Alferes: E com isto tudo, não conseguiu encontrar as suas riquinhas calças novas, como você diz!

Capitão: Pois é como diz, não as encontrei, não... Mas eu quero as minhas calças, as minhas riquinhas calças!... As minhas calcinhas!

Coronel: Meus caros amigos e convivas, escutem com muita atenção: esta estranha situação exige da nossa parte, uma acção activa e decidida, pois nesta casa, que por sinal é minha, estão a acontecer coisas muito estranhas. Assim, proponho que todos nós, homens valentes e destemidos, vamo-nos armar com unhas e dentes, para que possamos combater o nosso perigosíssimo e comum inimigo: os Fantasmas!

Augusta: Que horror, homem! Tu és um grande exagerado. Por favor, nem tentes matar nenhum Fantasma. Olha que eles são muito perigosos...

Coronel: Mulher! Lamento muito, mas o teu pedido não poderá ser aceite, pois, a partir deste momento, decreto aqui em casa, a Lei Marcial!

Capitão: Meu caro Coronel, decrete o que entender, mas por favor, não se esqueça que eu quero as minhas calças... As minhas riquinhas calças. Isto que fizeram comigo é uma grande indignidade!

Coronel: Meu caro Capitão, o desaparecimento das suas calças, pertencem já a um conjunto de circunstâncias. Não vamos, nem podemos, individualizar a questão!

Alferes: Muito bem, muito bem... Apoiado, apoiado... Uma grande salva de palmas ao nosso caro Coronel!

Sargento: Assim é que eu gosto de ouvir. Vamos já planear uma forte acção militar, contra todos os Fantasmas, Fantasmazinhos e seus similares!

Coronel: E assim, chegou a hora da ação, neste glorioso dia em que vamos libertar o Mundo de Fantasmas. Este bacamarte, do glorioso tempo das Invasões Francesas, carrega-se pela boca. E oxalá que o tiro não saia pela culatra... É para si, Alferes. Utilize bem esta nobre arma, nesta guerra sem quartel, contra todos os Fantasmas de todo o Mundo, e sobretudo, os cá de casa!

Alferes: Comovidamente, aceito esta nobre arma e quero agradecer a honra que me deu. Contra os Fantasmas, lutar, lutar até à morte!

Coronel: Esta pistola, das Campanhas Africanas do tempo de D. Carlos Iº, é aqui para o caro amigo e senhor Sargento. Para disparar, basta premir o gatilho. Não se esqueça de matar todos os Fantasmas possíveis e até os impossíveis!

Sargento: Caro Coronel, uma pistola nesta guerra implacável contra um inimigo tão perigoso e tão poderoso, como são os Fantasmas, será uma arma, quase insignificante. Praticamente obsoleta!

Coronel: Meu caro Sargento, faço-lhe notar que em tempo de guerra, não se olha a armas. Um bom soldado, quando é mesmo bom, nem precisa de armas, pois só a sua figura consegue atemorizar o inimigo! Esta nobre espada, ou melhor, esta gloriosa espada, será usada pelo comandante do pelotão, que neste caso serei eu. Se por acaso eu morrer nesta gloriosa missão, quero que esta espada me acompanhe na mortalha, bem junto ao meu frio e mutilado corpo!

Alferes: O que quer dizer que o Coronel, mesmo depois de morto, pensa continuar a combater os Fantasmas! É, e não me envergonho de o dizer, um verdadeiro herói do nosso tempo!

Coronel: Assim será, meu caro Alferes. Um soldado, mesmo depois de morto, deverá ainda valer por quatro... Vivos!

Capitão: E mais uma vez, os meus amigos estão a esquecer-se de mim. Eu quero as minhas calças - as minhas riquinhas calças... Isto é uma indignidade!

Coronel: Vamos já tratar de si, ou melhor, vamos dar-lhe uma arma. Caro Capitão, tome lá esta catana (grande facalhão) da Guerra Colonial. Mas tome bem atenção ao que vai fazer com ela: procure matar só Fantasmas.

Alferes: Sr. Coronel, o pelotão já está formado. Queira fazer o favor de passar revista às tropas.

Coronel: Agradeço, mas recuso tal honra, pois, em tempo de guerra, não se deve passar revista às tropas! Soldados, não se esqueçam que nós fazemos parte dos melhores soldados do Mundo. Por isso, a nossa missão terá de ser um enorme êxito. Soldados! Vamos a eles, aos Fantasmas, como "tarzões", perdão, como comilões. Pelotão, em frente, marche... esquerdo...direito...opp...esquerdo...direito...opp...opp...

E o pelotão sai do salão a marchar. Passados poucos minutos…

Carmo: Dona Augusta, Dona Augusta, o Sr. Coronel e o seu pelotão, estão a regressar ao salão!

Augusta: Vamos a ver quantos Fantasmas conseguiram eles caçar...

Coronel: E assim, depois de uma grande sortida contra o inimigo, o nosso glorioso pelotão regressa à sua unidade. Alferes, o pelotão teve baixas?

Alferes: Saiba o meu Coronel que o pelotão não teve nenhuma baixa mortal nem sequer feridos.

Coronel: Soldados, direita volver - destroçar... Mas agora reparo: estamos às escuras, porque será? Ó Augusta, quem é que teve a infeliz ideia de tirar as lâmpadas dos candeeiros do salão?

Augusta: Não sei, homem, pois estou aqui no quarto, mas vou já sair.

Coronel: Sai depressa, e vem cá dizer-me quem é que se atreveu a tirar as lâmpadas dos candeeiros. Quando o pelotão saiu em missão, tive o cuidado de deixar as lâmpadas acesas para o nosso regresso, e agora está tudo às escuras!

Augusta: Olá, querido maridinho. Então os candeeiros não têm lâmpadas? Não sei, nem calculo quem as possa ter tirado... Não compreendo.

Coronel: Este candeeiro aqui ainda tem lâmpada. Também é o único...

Alferes: O que quer dizer que o inimigo atacou pela retaguarda. Cobardes!

Capitão: Mas eu quero as minhas calças... As minhas riquinhas calças novas!... Isto é uma indignidade... eu sou um Capitão!

Sargento: Tenho a sensação que falta aqui qualquer coisa... Já sei o que falta: onde é que está o baralho de cartas, assim como as nossas carteiras e porta-moedas? As nossas canetas, etc., que ficaram em cima desta mesa?

Coronel: Tem toda a razão, meu caro Sargento: quem roubou todas estas coisas? Mistério...

Alferes: Isto é uma prova evidente que, enquanto andávamos em missão, o inimigo, traiçoeiramente, atacou e roubou os nossos pertences!

Capitão: Eu só gostava de saber quem é que se atreveu a roubar as minhas calças... As minhas queridinhas calças novas...

Coronel: O Alferes ainda tem dúvidas de quem foi? Ainda não compreendeu que foram os Fantasmas? Os malditos Fantasmas!

Capitão: Isto é inacreditável!... Além das minhas queridas calcinhas, também me roubaram a minha caneta de ouro! Aonde é que isto vai parar? E eu que tinha tantas e tão boas recordações daquela caneta de ouro…

Alferes: Lamento muito, pois a caneta devia ser muito valiosa e, pelo que me diz, também de muita estimação. Permite-me uma pergunta indiscreta, meu caro Capitão, por acaso, a caneta foi alguma oferta especial que lhe fizeram?

Capitão: Sim, uma recordação da minha querida sogra.

A criada entra novamente de rompante no salão…

Carmo: Senhor Coronel!... Dona Augusta!... Ai que desgraça a minha... Acudam-me, acudam-me! Ai que vou desmaiar…

Augusta: Mas o que é que te aconteceu desta vez, Carmo?

Carmo: Fui roubada, minha senhora... Fui roubada... Que desgraça a minha!

Coronel: Mas... Foste roubada, como?

Carmo: Depois dos senhores terem descido do sótão, aproveitei e fui lá acima ao meu quarto. Qual o meu espanto quando vi que a minha mala tinha sido arrombada, e todos os valores que eu tinha dentro, roubados. Ai, ai que desgraça a minha, malditos Fantasmas!

Augusta: Carmo, diz-nos o que te roubaram.

Carmo: Ai, minha senhora, tiraram-me mais de setecentos euros que eu tinha no fundo da mala, assim como um fio e uma pulseira em ouro.

Augusta: Pois é, pois é... Então, mais de setecentos euros, mais o ouro... tudo somado, nem chega a metade para os dez mil e quinhentos euros…

Coronel: Olha lá, mulher, que conversa vem a ser essa de faltar "mais que metade"...

Augusta: Metade?! Eu disse metade? Ah! Já sei, mas não faças caso. Como deves calcular, ando muito nervosa com este caso dos Fantasmas cá em casa. É da minha cabeça!

Coronel: Mas tu falaste em “menos de metade”, e eu quero saber o que é "menos de metade" de quê. Confesso que já estou a achar isto muito estranho.

Augusta: Talvez eu quisesse referir-me a menos de metade... a cinquenta por cento... Do, do dinheiro e do ouro que roubaram à Carmo. Sei lá, quando uma pessoa está muito nervosa, não sabe muito bem o que faz e o que diz... Por favor, maridinho, tenta compreender.

Capitão: Mas eu quero as minhas calças... As minhas riquíssimas calças e a minha caneta... Isto é uma indignidade e uma desonra para quem se preze de ser Capitão.

Carmo: E eu quero de volta os meus ricos mais de setecentos euros, mais o fio e a pulseira em ouro!

Coronel: Camaradas de armas, temos de organizar outra expedição contra os Fantasmas. Pelotão, vamos formar na sala!

Alferes: Caros companheiros de armas, com certeza que ouviram o nosso comandante. Todos aos vossos lugares, todos em sentido, barrigas para dentro, peitos para fora, as orelhas e os olhos bem atentos, pois vamos partir novamente para outra importante missão de emergência, de capital importância para a nossa grande cruzada contra os Fantasmas!

Coronel: Como todos já verificámos, a situação terá de ser considerada de catastrófica e local. O inimigo não está a aceitar uma luta leal, uma luta frontal... Por isso, é um cobarde!

Sargento: O meu aplauso. Muito bem, muito bem! Queira continuar, meu Coronel.

Coronel: O nosso inimigo prefere a guerrilha, o que nos obriga a uma guerra total, sem quartel, sem local determinado e sem hora certa de atacar. O que deve merecer o nosso mais veemente repúdio.

Todos aplaudem e assobiam ao mesmo tempo ...

Coronel: Eu, como vosso Comandante, estou disposto a aceitar todas as vossas sugestões. Quem quer começar? Mas, claro, só boas sugestões...

Carmo: Eu, por mim, vou para a cozinha fazer um delicioso bolo...

Alferes: E neste momento tão grave para a Humanidade, com ataques sucessivos, cruéis e cobardes dos Fantasmas, meus caros companheiros de armas, a Carmo, a criada, só pensa em ir para a cozinha fazer ou cozinhar, um delicioso bolo. Só por esta atitude, podemos imaginar o que são as mulheres!

Coronel: A sorte delas (mulheres) é a nossa Lei Marcial as poupar, senão...

Alferes: Depois deste gravíssimo incidente, vamos então ao que nos interessa mais. A minha sugestão é esta: dinamitar toda esta casa, para assim podermos acabar com estes Fantasmas!

Coronel: Alto lá, alto lá! O meu caro companheiro de armas quer dinamitar a minha casa?! Você não deve estar é bom da cabecinha!

Sargento: Eu também estou de acordo com o nosso caro Coronel. Devem existir outros processos, por ventura mais eficientes e menos violentos, como por exemplo: insecticidas em spray...

Coronel: Insecticidas?! Só se os Fantasmas fossem insectos, o que não acredito, sinceramente. Mas, em todo o caso, será um caso a considerar. Mas tudo será preferível ao dinamitar a minha casa. E você, meu caro Capitão, diga-nos também a sua opinião.

Capitão: Como sabem, eu sou uma pessoa muito ponderada, e como não tenho aqui o meu staff... Mas sou uma pessoa muito ponderada.

Sargento: Sim, muito ponderado e muito apreciador de whisky!

Capitão: Meu caro Sargento, aconselho-o que tenha boa educação e que se deixe de insinuações, impróprias de uma pessoa da sua categoria. Mas, voltando aos Fantasmas, em minha opinião, nem oito nem oitenta... O que quer dizer que não estou de acordo em dinamitar esta casa e, muito menos em utilizar insecticida, pois considero-o uma arma perigosíssima, pela sua química, e proibida pela Convenção de Genebra, pois, eventualmente, poderia causar efeitos devastadores nos próprios Fantasmas. Para mim, a situação mais viável ainda seria a de demolir este andar! Mas acima de tudo, o que mais me interessa são as minhas calças... As minhas riquíssimas calças. O que eu estou a passar, é uma situação indigna.

Coronel: Com todo o respeito, você deve de estar é maluco! O quê? Demolir o meu andar? Nem pensar!

Alferes: Pois é, se o Sr. Capitão não aceita as nossas sugestões, diga-nos então como é que podemos resolver este problema dos Fantasmas. Criticar é sempre mais fácil do que fazer.

Capitão: E, com isto tudo, estou a ver que ninguém pensa no meu problema, e eu não posso ficar toda a noite p'ra aqui em cuecas. Eu quero as minhas calças novas... As minhas riquíssimas calças, mais a minha caneta. Isto que me está a acontecer, é uma desonra para qualquer Capitão que se preze.

Carmo: E não se esqueçam que eu também quero o meu rico dinheiro e o ouro. A propósito, quando os senhores foram lá acima ao sótão, por acaso, não notaram nada de estranho no meu quarto? Como se devem recordar, vocês foram os últimos a entrar no meu quarto…

Coronel: Mulher! Cala-te, não estejas p'ra aí a insinuar nada - ouviste? Pelotão, vamos reunir mais uma vez. Formar...

Alferes: Companheiros de armas, mais uma vez, sentido... Barriguinhas p’ra dentro, assim estão bem... Agora, prestem muita atenção ao que o nosso comandante nos vai dizer. Comandante, assim que o entender, pode começar.

Coronel: A acusação que a criada, a Carmo, nos fez, é muito grave, pois o nosso glorioso pelotão, passou durante a sua última missão, por um local onde foi praticado um furto. A nossa honra exige um reparo!

Alferes: Agora, confesso que não compreendi nada do que foi aqui dito. Caro comandante, que conversa vem a ser essa?

Sargento: Eu também não estou a gostar nada disto, pois, segundo me lembro, nunca roubei nada a ninguém, ou, pelo menos, ainda ninguém se queixou.

Capitão: Eu, pelo menos descaradamente, também nunca roubei nada a ninguém. Ai a minha vida... Eu só quero as minhas calças e a caneta de ouro. Que indignidade eu estar p'ra aqui nesta lamentável figura. E eu, um Capitão!

Coronel: Silêncio! Vamos fazer uma revista ao nosso equipamento, para ver se encontramos do que a Carmo nos pretende acusar. Armas no chão... Camisas de fora... Bolsos para fora... Calças para baixo...

Capitão: Mas, caro Coronel, como é que eu posso tirar as calças? Está bem, só se for as cuecas...

Coronel: Se não tem calças, como é óbvio, não as pode deitar a baixo. Alto lá, alto lá, já lhe disse que não era preciso tirar as cuecas, para mais, hoje já vimos muita miséria!

Carmo: Senhor Coronel, que fique muito bem claro que eu não desconfio de ninguém em particular, nem sequer do seu pelotão.

Coronel: Sendo assim, dou o inquérito por concluído. A honra do nosso glorioso pelotão, mais uma vez, ficou imaculada! Pelotão, calças p'ra cima... bolsos para dentro... vestir camisas... apertar cintos... agarrar nas armas... descansar... Destroçar!

Alferes: Então, agora vamos trabalhar num plano de ataque aos famigerados Fantasmas?

Coronel: Pois vamos. Como já verificámos, precisamos de reforços, pois, embora a nossa acção até a este momento possa ser considerada de muito positiva, e até heróica, temos de admitir que não temos efectivos para controlar todas as zonas infestadas pelo nosso perigoso e traiçoeiro inimigo: os Fantasmas!

Sargento: Estou plenamente de acordo. Por mim, até pedia auxílio aos pára-quedistas...

Coronel: Pára-quedistas? Para quê?

Sargento: Então os Fantasmas não andam por cima de nós, no sótão?

Alferes: Eu antes pedia auxílio à aviação, mas pensando melhor, talvez optasse em pedir auxílio a uma escola de Karaté. Como eles treinam "sombra", bem podiam acertar nos Fantasmas. Assim: zás... catrapás... zás...

Sargento: Olhe lá, cuidadinho com esses calcanhares no ar, meu caro Alferes!

Alferes: Sim, talvez o Karaté desse resultado...

A criada entra no salão toda eufórica ...

Carmo: Meus senhores, quero dizer-vos que já terminei!

Coronel: Mas... mas o que é que já terminaste, Carmo?

Alferes: Não me digas que conseguiste apanhar algum Fantasma...

Sargento: Confesso que também estou muito curioso por saber o que é que a Carmo terminou.

Carmo: Tenham calma. Não, não apanhei nenhum Fantasma. Só terminei de fazer um bolo. Um delicioso bolo de ananás.

Coronel: Oh, sua tolinha, então é com bolos que tu queres apanhar os Fantasmas! Tem mas é juizinho nessa cabeça, pois já tens idade para isso. E para já, ficas terminantemente proibida de interromperes reuniões, só para dizeres parvoíces, em que nós, os Homens, estamos a planear a melhor maneira de podermos salvar a Humanidade, dessa praga imunda que são os Fantasmas!

Capitão: Muito bem, muito bem, caro Coronel!

Coronel: Por favor, ninguém me interrompa. Mas, continuando: para que isso possa acontecer, será necessário derrotar todos os Fantasmas que existam na Terra e, principalmente, os que estão cá em casa!

Capitão: Com essa conversa toda, por favor, não se esqueçam das minhas calças, das minhas riquíssimas calças novas, e também da minha caneta de ouro. Isto é uma grande indignidade para um Capitão que se preze. Isto de ter que andar em cuecas…

Alferes: Companheiros de armas, temos de chegar a um consenso generalizado, para combinarmos qual será a estratégia ideal, que leve à completa e total destruição de todos os Fantasmas!

Sargento: Para já, proponho que não façamos prisioneiros.

Coronel: Como ficou amplamente demonstrado, para operarmos uma acção eficaz contra o inimigo, precisamos de mais efectivos.

Capitão: Então, não hesite, caro Coronel. Arranje efectivos, porque eu quero de volta as minhas calças, as minhas riquinhas calças novas e a caneta de ouro. Que indignação para um Capitão…

Coronel: Como devem calcular, estou a ponderar muito bem todas as vossas sugestões. A eventual vinda de reforços, poderá determinar a mudança de comando e, como devem calcular, não convém que a minha casa possa ser considerada zona militarizada.

Sargento: Estou a compreender perfeitamente o Coronel. Em nossas casas, quem deve mandar e comandar devemos ser sempre nós!

Capitão: Eu também compreendo muito bem os receios do Coronel. Mas eu quero, eu quero as minhas calças novas. Que indignação para um Capitão...

Alferes: Então, o que é que o caro Coronel sugere?

Coronel: Entre várias hipóteses, estou a pensar em dividir a casa em vários sectores, utilizando para o efeito, arame farpado.

Capitão: A ideia poderá não ser má de todo. Mas se os Fantasmas passarem por baixo do arame farpado, lá se vão as minhas ricas calcinhas!

Sargento: Temos de concordar que o Capitão não pode andar toda a noite em cuecas.

Coronel: Caros companheiros de armas, por favor, deixem-me continuar...

Alferes: Continue, continue caro Coronel, que nós até gostamos de o ouvir!

Coronel: Depois da colocação do arame farpado, podíamos acender várias fogueiras, na tentativa de que o fumo intoxique o inimigo.

Sargento: Mas antes de acenderem as fogueiras, aconselho-vos a apreciar este belo cheirinho que vem dos lados da cozinha.

Alferes: Tem razão, caro Sargento. O cheirinho do bolo que a Carmo está a fazer já chega aqui, e não engana ninguém: é um bolo de ananás!

Sargento: Estou cá a pensar numa coisa: e se os Fantasmas também roubassem este bolo?

Alferes: Tem toda a razão, pois até os Fantasmas podem gostar de bolo de ananás. Talvez fosse conveniente avisar a Carmo.

Coronel: Vou já avisá-la. - Carmo, estás a ouvir? Olha, desta vez toma o devido cuidado e não deixes que os Fantasmas roubem também esse bolo, que deve estar uma delícia!

Carmo: Os senhores estão a falar comigo? Eu já vou aí.

Coronel: Claro que estávamos a falar contigo. Olha lá, repito: desta vez não deixes que os Fantasmas roubem esse bolo!

Augusta: Tive uma ideia: talvez fosse melhor trazeres o bolo para a sala, pois se o deixares na cozinha, ainda o podem roubar, e assim nunca mais se vão embora.

A criada entra no salão e pede a todos os presentes que falem baixinho (chiuuuu)...

Carmo: Oxalá que os Fantasmas desta vez o roubem e o comam!
Augusta: Não te compreendo, Carmo. Deixa-te mas é de brincadeiras e traz o bolo para aqui.

Alferes: A Dona Augusta tem muita razão, o bolo deve vir para aqui. Talvez depois de o comermos, possamos pensar na melhor estratégia a seguir, para acabarmos de uma vez por todas com esses malfadados Fantasmas.

Sargento: Apoiado, apoiado. Venha lá depressa esse bolo para aqui.

Entretanto, a criada entra novamente no salão, e...

Carmo: Meus senhores, dão-me licença que entre e que fale?

Coronel: Olha, Carmo, tu estás a tornar-te muito chatinha. Mas... mas não nos venhas dizer que... que…

Carmo: Sim, venho solenemente comunicar-vos que o bolo de ananás DESAPARECEU!!!

Coronel: É impossível, impossível!... Desta vez não vou aceitar o facto como consumado. Desta vez, vou deitar tudo abaixo... Tudo abaixo!

Sargento: A Carmo deve estar enganada, ou então está a brincar…

Alferes: Isto é demais! Até parece um sonho mau, um pesadelo.

Carmo: Pois é, meus senhores, a partir deste momento, eu, a Carmo, criada às vossas ordens, é que vou resolver o caso dos Fantasmas cá em casa do Sr. Coronel!

Coronel: Tu não deves é estar boa da cabeça!

Alferes: Estou mesmo a ver que o teu nobre desejo era pertenceres ao nosso glorioso pelotão, mas...

Coronel: Protesto veementemente, pois o nosso pelotão não pode, de maneira nenhuma, ser constituído também por mulheres. O pelotão não é uma brigada mista... Mulheres, já p'ra cozinha... Mulheres, já p'ra a cozinha!

Carmo: Por favor, prestem muita atenção. Como já vos disse, sou eu quem vai resolver este problema dos Fantasmas, mesmo sem ter a honra de pertencer ao vosso glorioso pelotão.

Coronel: Nem posso acreditar no que estou a ouvir. Mas então, conta-nos lá como é que pensas que vais resolver este importante caso?

Carmo:  Para já, não vai ser preciso empreender nenhuma acção bélica.

Alferes: Pelos vistos, a Carmo quer dizer que a exterminação dos Fantasmas não passa por acções bélicas, mas sim, por acções políticas?

Carmo: De políticas é coisa que eu não percebo nada, mas também não importa.

Coronel: Carmo, já estou a perder a paciência. De uma vez por todas, diz-nos quais foram as acções que levaste a cabo.

Carmo: Digamos que fiz... uma acção de psicologia feminina.

Alferes: Atenção, atenção meus senhores! A Carmo descobriu uma nova fórmula para caçar Fantasmas. Imaginem só que para os caçar, basta aplicar um pouco de psicologia feminina!

Coronel: Esperem, não sei bem porquê, mas começo a estar quase de acordo com a Carmo. Sendo assim, o nosso glorioso pelotão poderá ficar ainda mais valorizado, se conseguirmos recrutar um elemento para a Psico. Por isso, vou convidar a Carmo.

Carmo: E eu terei muito prazer em aceitar essa missão!

Coronel: Sendo assim, companheiros de armas, a partir deste momento, tem a palavra a nossa novel, valente e destemida, Carmo!

Sargento: Apoiado, apoiado! Vivá  Carmo - a criada!

Carmo: Muito obrigado, muito obrigado a todos! Como é do conhecimento geral, e resumindo, eu fiz um bolo de ananás, que por acaso devia estar delicioso, mas que desapareceu...

Alferes: Ai que pena, até estou a ficar com água na boca.

Carmo: Mas, enfim, desapareceu...

Sargento: E, possivelmente, desapareceu nas bocas imundas de uns quaisquer Fantasmas!

Carmo: Mas... há sempre um “mas”. Ao amassar a massa do dito cujo bolo, adicionei uma certa porção de um produto que serve para exterminar ratos. Assim, os Fantasmas ao ingerirem o bolo, também ingeriram a tal porção de raticida. E agora, vamos esperar.

Coronel: Queres então dizer que...

Alferes: Os Fantasmas...

Capitão: Vão morrer...

Coronel: Envenenados?

Carmo: Mas, atenção... Desde já quero que fique muito bem esclarecido que eu não envenenei ninguém. Nem mesmo os Fantasmas. Limitei-me só a pôr uma certa porção de raticida num bolo de ananás. Nada mais...

Coronel: Podes estar descansada e em paz com a tua consciência, pois, somos todos testemunhas do que aconteceu. Se os Fantasmas estiverem envenenados, a culpa foi deles (só deles), pois não tinham o direito de comer o bolo de ananás, feito com todo o amor e competência, aqui pela Carmo... A nossa companheira de armas!

Alferes: Mas agora temos um grande problema: como é que vamos saber se os tais Fantasmas comeram ou não o bolo de ananás? Para mais, eles devem ser transparentes.

Capitão: Eu só quero saber das minhas calças, das minhas riquíssimas calças novas, e também da caneta de ouro. Que indignidades fizeram a um Capitão como eu!

Sargento: Se os Fantasmas morrerem, com certeza que devem começar a cheirar mal; mas como o Alferes diz, e com muita razão, eles devem ser transparentes. E sendo assim, como é que os podemos ver? Talvez através de uns óculos escuros. Bem, é só uma ideia...

Sargento: E depois, como é que os podemos deitar fora? Vocês ainda não pensaram nesse problema?

Capitão: E ninguém fala nas minhas queridas calcinhas, ninguém se importa de eu andar para aqui em cuecas; nunca, nunca hei-de perdoar aos Fantasmas, pois o que eles fizeram a um Capitão importante como eu, é indigno, é indigno. E se as calças também se tornaram transparentes? Ai, ai, que eu nem quero pensar nessa possibilidade; as minhas riquinhas calças!...

Carmo: Meus senhores, a título de curiosidade, vou ler-vos o que está aqui escrito na embalagem do raticida: "Perigo de Morte" - "Este produto é altamente tóxico. Em caso de ingestão, deve o acidentado ser transportado urgentemente à morgue mais próxima, pois o corpo começa logo a decompor-se"...

Coronel: Sendo assim, os Fantasmas já devem estar completamente mortos... E talvez, até bem mortos. Já me estou a arrepiar todo!

A porta do salão abre-se abruptamente e entra um homem e depois outro, ambos encapuzados, cambaleando, antes de caírem inimados no chão…

1º Encapuzado - Ai, ai... ai o meu rico estômago... Ai, que eu vou morrer... Mataram-me… Socorro… socor…

2º Encapuzado - Ai, ai, ai a minha barriguinha... Ai que vou rebentar... Socorro! Assassinos… assas…

Esta entrada e a posterior morte dos embuçados, deixou todos estupefactos. Valentes como eles eram, depressa reagiram…

Coronel: Mas ... Mas quem são estes homens que invadiram a minha casa e estão mortos (pelo menos aparentemente)?

Alferes: Oh, caro Coronel, não me diga que não sabe quem são?

Sargento: O Sr. Coronel nem calcula quem são?!

Coronel: Não sei se me vou enganar, mas serão os Fantasmas?

Capitão: Fantasmas ou não, este aqui tem as minhas riquinhas calças novas. Vá, meu "menino" dá-me cá as calças; meu malandro, pois um Capitão como eu, nunca poderá andar p'ra aqui em cuecas. Dá cá as minhas calcinhas... upa... upa…upa... Custaram a sair, mas já cá estão nas minhas mãos! Estão muito sujas e amarrotadas, mas já são minhas novamente!

Augusta: Olha lá, Carmo, o que é que estás aí a procurar nesse sítio?

Carmo: Não se aflija, minha senhora, pois eu só estou a procurar o que é meu, ou seja, o dinheiro e o ouro. Para mais, eles já estão tão geladinhos…

Augusta: Ó Carmo, mas aí, nesse sítio?

Carmo: Sim, sim, minha senhora! Neste sítio é onde se encontram as minhas coisas. Olhe, está a ver, minha senhora? Neste saquinho de plástico estão os setecentos euros e naquele Fantasma ali ao lado já encontrei o meu fio e a minha pulseira. Como vê, Dona Augusta, eu fui logo ao sítio certo, enquanto a senhora só olhou…

Augusta: Carmo, como estás com a mão na massa, aproveita e vê se eles têm mais alguma coisa?

Carmo: Lá ter, têm, minha senhora, mas...

Augusta: Então, diz-me cá o que é que encontraste mais!

Carmo: O que os homens têm, ou melhor, deviam ter, mas estes já nem com uma lupa se pode ver qualquer coisa!

Augusta: Oh, oh, oh, que disparates estás para aí a dizer?

Carmo: Olhe, minha senhora, este aqui até tem umas fotografias, digamos, muito indecentes. A D. Augusta está interessada em vê-las?

Augusta: Estou sim, Carmo. Dá-mas cá, porque eu sempre gostei muito de ficar com velhas “recordações”.

Coronel: E onde está o baralho de cartas que também estava em cima da mesa?

Alferes - E também aonde estão a minha carteira, chaves do carro e o meu porta-moedas?

Sargento: E o meu bloco de notas, por acaso, também está por aí?

Carmo: Sim, sim, está tudo aqui. Os senhores também querem ver? Estejam à vontade.

Coronel: Não, não merece a pena, pois todos nós acreditamos em ti!

Alferes: A Carmo pode trazer tudo o que encontrou, para cima desta mesa.

Carmo: Tudo?! Ó companheiros de armas, o melhor é vocês virem cá buscar o que vos mais interessa, porque eu, mesmo sem querer, posso exagerar!

Coronel: Companheiros de armas! A nossa querida colega do "Psico", que conseguiu resolver, e muito bem, este caso que derrotou completamente o inimigo comum, ou seja os Fantasmas, pelo facto e pelos relevantes serviços prestados à nossa comunidade, bem merece que lhe prestemos uma guarda de honra!

Alferes: Muito bem, muito bem. Como estamos todos completamente de acordo, vamos a isso: Pelotão!... Formar... Sentido!... Essas barriguinhas para dentro e peito para fora. Meu comandante, estamos às suas ordens!

Coronel: É p'ra já. Companheira de armas, queira fazer o favor de passar revista ao nosso glorioso pelotão!

Carmo: Muito bem... Muito bem... Muito... Olhe lá, senhor Capitão, pode dizer-me o que faz na formatura, com as calças na mão esquerda e a catana na mão direita?

Capitão: Perdão, perdão... É que perdi as calças e ainda não tive tempo de as voltar a vestir... Além disso, estão muito sujas...

Carmo - Ah, é isso? Então, saia imediatamente da formatura... Imediatamente, não ouviu? Depois de bem lavado e bem ataviado, apresente-se na cozinha. E p'ra já, conte com algumas guardas de castigo à porta deste salão. Senhor Comandante Ramalho, já passei revista ao nosso glorioso pelotão. Agora, vou para a cozinha  fazer o jantar: para os homens, vou fazer uma feijoada e para a sobremesa, um pudim de pinhões. Para mim e para a D. Augusta, vou fazer uma dobrada com uma sobremesa de torta de maçã!

Coronel: Carmo, nossa companheira de armas, antes de ir para a cozinha, queira fazer o favor de nos dizer o que é que vamos fazer aos corpos dos inimigos?

Carmo: O que é habitual fazer nestas situações: pô-los em vala comum, com a indicação “Desaparecido em combate”.

Coronel: Muito bem! As suas ordens serão rigorosamente cumpridas. Pelotão, em frente  marche... um... dois... esquerdo... direito... esquerdo... direito... opp... opp... opp ...

Carmo: Pare, pare aí com essa marcha. Ordeno e mando publicar, na Ordem de Serviço do Dia, que de ora avante, não serei mais a Carmo.

Passarei a CARMINHO!!!

Siga a marcha…

F I M

Nota: Trabalho de ficção: qualquer situação ou personagem é pura invenção.

Texto de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande - Portugal