quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Incidente em Antares (Érico Veríssimo)

Pelo professor Teotônio Marques Filho

Introdução
Gaúcho de Cruz Alta, onde nasceu em 1905, Érico Veríssimo é, sem dúvida, um dos grandes nomes da Literatura Brasileira de todos os tempos, embora, na sua modéstia, se revelo o contrário, como aparece numa passagem de Incidente em Antares (Ed. Globo, 29ª edição, p. 178), pela boca de D. Quitéria. Aí a rigorosa leitora acusa-o de “não conhecer direito a vida campeira” do Rio Grande do Sul: “é bicho da cidade” – dizia o Zózimo, marido de D. Quitéria.
Aristocrata e de família tradicional e conservadora, D. Quita faz restrições também à linguagem de Érico Veríssimo: “Quem vê cara séria desse homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele bota nos livros dele” (id. Ib.). Por outro lado, usando uma expressão do Prof. Libindo (outra personagem do livro), D. Quita classifica-o, em matéria de política, como “um inocente útil”.
É claro que não de pode levar a sério esse julgamento de D. Quita, mesmo porque quem realmente está fazendo essa avaliação é o próprio Érico Veríssimo. Além do mais, personagem de Incidente de Antares, que morre antes do fim do romance, D. Quita não chegou a ler esse livro. Se o fizesse, o julgamento do seu conterrâneo ilustre seria mais favorável, dadas as qualidades insofismáveis do referido romance.
Para o Prof. Délson Gonçalves Ferreira, amigo e estudioso de Érico Veríssimo, a obra desse romancista gaúcho pode ser dividida em três grupos:
1) Romances urbanos, em que o autor focaliza problemas de classe média numa cidade grande: Clarissa, Música ao longe, Caminhos cruzados, Um lugar ao sol e Saga;
2) romances épicos, entre os quais se destaca o monumental romance O tempo e o vento, em que o escritor narra a história de sua terra e de sua gente, (Ana Terra é um episódio desse romance);
3) romances universais, em que se discutem os grandes problemas do homem na sua dimensão universal e temporal: O senhor embaixador, O prisioneiro e o nosso Incidente em Antares.
Publicado em 1971, Incidente em Antares é o último romance de Érico Veríssimo. De sentido claramente político, este romance tece, de um lado, o panorama sócio-político do Brasil contemporâneo; de outro, faz um fantástico julgamento dos vivos alguns mortos insepultos, numa Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: FIM DO ESTADO NOVO E GOLPE MILITAR DE 64

O Fim do Estado Novo
Em 1942, o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com as potências do Eixo e entrou na guerra ao lado dos EUA. Isso demonstrou a grande contradição do governo Vargas, que internamente, tinha uma postura tipicamente fascista.
Em 1944, Getúlio Vargas tomou uma série de medidas para aproximar-se das massas populares. O atendimento a algumas necessidades do grande proletariado urbano, então em nascimento, convencionou-se chamar de populismo.
O queremismo, campanha dos partidários de Vargas para que ele permanecesse no, ou pelo menos se candidatasse, levou os militares, sob a liderança do General Gois Monteiro a depor Getúlio Vargas, em 29/10/45.
A Constituição de 1946 reflete bem as aspirações democráticas do pós-guerra; liberal e presidencialista, o texto constitucional pouco avança quanto à legislação social.
O governo Dutra, envolvido cada vez mais nas tramas da guerra fria e submetido à hegemonia americana no continente, restringiu as liberdades sindicais e fechou o PCB.
A volta de Getúlio, em 1951, foi uma vitória do racionalismo e do trabalhismo; sua morte, em 1954, representou a derrota do populismo getulista diante de poderosas forças políticas conservadoras, aliadas ao imperialismo norte-americano.
O nacionalismo foi a grande marca da política econômica de Getúlio Vargas, e a campanha de mobilização popular em defesa do monopólio estatal do petróleo foi uma das mais fortes campanhas nacionalistas do último governo de Vargas.

O governo JK (1956-1961)
O período de governo de Juscelino (1956-1961), politicamente foi bastante calmo. Aconteceram duas pequenas sublevações militares, logo contornadas. A ênfase do novo governo foi o Plano de Metas, voltado para a industrialização, a partir da utilização maciça de capitais estrangeiros, num flagrante contraste com a política econômica desenvolvida no último período de Vargas. Usando o Slogan “50 anos em 5”, característico das idéias desenvolvimentistas, JK privilegiou as indústrias de bens de consumo, principalmente a automobilística.
Os anos JK foram, realmente, um período de euforia social e crescimento econômico. A implantação da indústria automobilística, a construção de Brasília, o respeito às liberdades democráticas, além da notável habilidade do presidente em lidar com as crises políticas e as pressões sociais – tudo isso alimentou um clima de liberdade e progresso.

Governo Jânio Quadros (1961)
Utilizando uma campanha moralista, que usava uma vassoura como símbolo da limpeza que seria feita no país, Jânio Quadros elegeu-se presidente para o período 1961-1965. Ficou apenas 7 meses no poder, tendo renunciado em agosto de 1961. Jânio quadros fora apoiado pela UDN, derrotando o Marechal Lott, do PSD, por ampla margem de votos.
O curto período de governo de Jânio Quadros deixou a população um tanto perplexa: medidas absolutamente impensáveis como a proibição de brigas de galos, de corridas de jóquei-clube, restrições ao uso de roupas de banho nos desfiles de Miss - Brasil, eram tomadas, lado a lado com a tentativa de implantar uma política externa independente (reatamento com a URSS, com a China, condecoração de Che Guevara), deixavam entrever um estilo de governo inusitado. Em agosto de 1961, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, denunciou à imprensa que um golpe de estado estava sendo planejado, visando transformar o presidente em ditador. No dia seguinte, Jânio renunciou. Tentativa de golpe? Atitude impensada? Essas questões ainda não foram suficientemente esclarecidas.

Governo João Goulart (1961-1964)
O Vice-presidente João Goulart (PTB) estava fora do país, em missão comercial na China. Deveria retornar para assumir o governo e completar o período presidencial, mas os ministros militares opuseram-se ao seu retorno, gerando uma nova crise. O país esteve à beira de uma guerra civil, pois o III Exército, no Rio Grande do Sul, exigia o respeito à Constituição e a posse de Goulart. Finalmente chegou-se a uma solução de compromisso, com a adoção de um Ato Adicional que estabeleceu o Parlamentarismo no país. Goulart assumiu e, até 1963, vigorou o novo sistema, porém de maneira precária. Um plebiscito o aboliu, retornando ao presidencialismo.
De 1963 a março de 1964, assiste-se a uma radicalização dos setores da direta e da esquerda. Os empresários, ligados aos militares, e com plena aprovação da embaixada norte-americana, reunidos no IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) tramavam a derrubada de Goulart. Setores da imprensa, da classe média, devidamente assustados com o “perigo comunista”, pregações da Igreja Católica (rezar o terço para afastar o espectro comunista), serviriam de respaldo para o golpe que se articulava.
A esquerda pressionava Goulart para colocar em prática as “reformas de base”, considerando-as uma necessidade para o desenvolvimento do país. Propunha-se a reforma agrária. No comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, Goulart chegou a assinar vários decretos que iniciariam a aplicação dessas reformas. Mas o congresso reagiu, uma vez que isso seria prerrogativa sua. Os setores militares tornaram-se agudamente descontentes com o apoio do presidente às revoltas dos sargentos e dos marinheiros (estes últimos incentivados pelo “Cabo Anselmo” que, como se acusou depois, seria um agente da CIA, objetivando desestabilizar o governo).
Assim, em 31 de março, teve início o levante militar, que, no dia seguinte, conseguia a vitória: Goulart fugira para o Uruguai, acompanhado do ex-governador Leonel Brizola, seu cunhado. Era o colapso da época populista no Brasil.
A queda do governo João Goulart representou o encerramento da experiência da democracia populista, cujas raízes estão na Revolução de 1930 e na era de Vargas. Uma experiência que, mesmo progressista, especialmente sua última fase, não conseguiu institucionalizar a participação popular. Mas, seus avanços sociais e políticos, nos limites da ordem constitucional vigente, foram suficientemente amplos para incomodar as classes dominantes que não vacilaram em encerrá-la.
Em síntese, o período que se estende de 1945 a 1964 é tradicionalmente conhecido como o período do Populismo. Como já se observou, o populismo na América Lativa teve como característica básica uma intensa manipulação de massas, num momento de transição entre a economia agro-exportadora e a economia mais moderna, que começa a se instalar após a crise de 1929. Lideranças mais ou menos carismáticas disputaram o poder junto a essa massa, ora fazendo concessões (as leis trabalhistas de Vargas são um bom exemplo), ora utilizando o povo como elemento de ataque às antigas oligarquias.

SÍNTESE DO INCIDENTE EM ANTARES

Primeira parte: Antares
A bem dizer, Antares é uma cidadezinha perdida no mapa do Rio Grande do Sul, às margens do rio Uruguai, “na fronteira do Brasil com a Argentina”. Essa cidadezinha será palco, em 1963, numa sexta-feira, de “um drama talvez inédito nos anais da espécie humana” (p. 3).
A origem de Antares remonta há muitos anos atrás, conforme reza um relato do naturalista francês Gaston Gontran, em seu livro Voyage Pittoresque au Sud du Brésil (1830-1831). Deslumbrado com a beleza do lugar, o naturalista mostra a seu hospedeiro, Francisco Vacariano a estrela Antares. “É um bonito nome para um povoado” (p. 6). E em 1853, quando o povoado é elevado à categoria de vila, Antares substituirá o nome primitivo “Povinho da Caveira”. Para muitos, entretanto, Antares significava “lugar das antas” (p.9).
Senhor absoluto da cidadezinha até então, Chico Vacariano é ameaçado no seu reinado por Anacleto Campolargo, “criador de gado e homem de posses” (p.10), que passa a disputar com o pioneiro (Chico Vacariano) o domínio daquele feudo. Há lutas de mortes e o ódio se estabelece entre os dois clãs por gerações sucessivas, com atos de violência e atrocidades inimagináveis. A rivalidade entre as duas dinastias durou “quase sete decênios, com períodos de maior ou menos intensidade” (p. 11).
A década de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto na ordem material como intelectual (p. 29), e a cidade até então um município exclusivamente agropastoril, começava auspiciosamente a industrializar-se. O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rádio – contribuíram decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa (p. 29).
A rivalidade, contudo, entre os dois clãs (Vacariano X Campolargo) domina a cidade a política local. Após um período de turbulência e atrocidades engendradas por Xisto Vacariano e Benjamin Campolargo, chega à cidade de Antares, com a missão de estabelecer a paz entre as duas famílias beligerantes, “um membro da prestigiosa família Vargas, de São Borja” (p. 33): era Getúlio Vargas, a essa época, deputado federal. Usando de artimanhas, Getúlio consegue aproximar os dois chefes políticos, ponderando: “Os amigos hão de concordar em que os tempos estão mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos serão um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí...” (p. 35).
Os dois velhos próceres, agora apaziguados serão substituídos por Zózimo Campolargo, casado com D. Quitéria (D. Quita) e Tibério Vacariano, casado com D. Briolanja (D. Lanja). De boa paz e meio indolente, Zózimo “era um homem sem nenhuma vocação para liderança” (p. 38). Dessa forma, a chefia política da cidade acaba sendo assumida por Tibério e D. Quita, “criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até duma certa astúcia política” (p. 38). D. Quita, pois, diante da indolência do marido, acaba-se tornando a “eminência parda, o poder por trás do trono”. Com o “tratado de paz” entre as duas famílias, engendrado por Getúlio, uma grande amizade é cultivava entre os dois casais.
Com a ascensão política de Getúlio Vargas, que inaugura o Estado Novo no Brasil, Tibério se estabelece no Rio de Janeiro e vai-se enriquecendo através de negociatas e atividades escusas. “Além de advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transações imobiliárias e ocasionalmente no câmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negócios, uns lícitos, outros ilícitos. Habituara-se a viver a sócios, e para si mesmo. E, como tanto de seus pares já possuía, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dólares” (p. 48).
Com o fim do Estado Novo e a que da de Getúlio Vargas, incompatibiliza-se com ele e volta para Antares, aonde vai consolidando o seu império: atrai para a região uma empresa de óleos comestíveis de Mr. Chang Ling, a qual se alimentava da soja de sua produção: era a “Cia. De Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério Vacariano possuía 500 ações que não lhe aviam custado um vintém” (p. 65). Por outro lado, dando vazão aos seus instintos de garanhão constitui outra família, envolvendo-se com a exuberante Cleo, que passa a ser sua “teúda e manteúda”.
Após as marchas e contramarchas da política nacional, em que tem lugar o governo do Presidente Dutra, Getúlio Vargas retorna triunfante, em 1951, agora “nos braços do povo”. É um período de turbulência política, em que a UDN de Carlos Lacerda combate tenazmente “o pai dos pobres”. O atentado a Lacerda, em 1954, ao que tudo indica comandado por Gregório Fortunato (escudeiro do Presidente) precipita a queda de Getúlio, que tenta resistir: “Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte” (p. 80).
O suicídio, a forma honrosa encontrada pelo Presidente para “sair da vida e entrar na História”, desperta no país profunda comoção popular. Pressionado e abandonado, ao morrer, Getúlio escreveu: “À sanha de meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo aquilo que desejava”. A sua carta-testamento, redigida em estilo grandiloqüente, confere grandeza à sua morte: “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo na caminhada da eternidade e saio da vida para entrar na História” (p. 90).
Os acontecimentos políticos são acompanhadas com atenção em Antares: cada vez que a sirena de “A Verdade” (o jornal da cidade, de Lucas Faia) tocava, lá vinha notícia urgente e em primeira mão. Assim é que o povo de Antares vai acompanhando e discutindo (sobretudo a turma da Farmácia Imaculada Conceição) os acontecimentos políticos do cenário nacional: a eleição de JK e a posse tumultuada, o seu governo de prosperidade e progresso (cinqüenta anos em cinco), a construção de Brasília, a industrialização do país. É por essa ocasião que morre Zózimo, no Rio, onde fora transportado em busca de cura.
Candidato da UDN e a parte do PSD dissidente, Jânio Quadros, o candidato de Tibério Vacariano, vence as eleições e renuncia poucos meses depois, levado por “forças terríveis”. Uma decepção para Tibério. A renúncia de Jânio mergulhou o país no caos e na incerteza, pois o Jango, o vice-presidente, de tendência socialista, não era bem visto pelos militares e as forças conservadoras. Tudo foi contornado com o artifício do parlamentarismo, que teria, contudo, vida curta.
Mergulhado na incerteza, com greves e agitações, com Brizola, fazendo barulho, o governo de João Goulart era um convite ao golpe, - o que não demorou a acontecer: era março de 1964.
Enquanto isso, Antares era objeto de uma radiografia: o Prof. Martim Francisco Terra e sua equipe escolheram exatamente Antares para realizar a sua “anatomia duma cidade gaúcha de fronteira”. O objetivo da pesquisa como expõe o professor, era “saber que tipo de cidade é Antares, como vive a sul população, qual seu nível econômico, cultural e social, os seus hábitos, gostos, opiniões políticas, crenças religiosas” etc. (p. 128). Publicado em livro, o resultado da pesquisa revelou-se desastroso para a imagem da cidade, que esperava exatamente o contrário: Antares era uma cidade prosaica, com gente desconfiada e preconceituosa, com vícios de alimentação e um enorme problema social ao seu redor – a favela Babilônia, “um arraial de miséria e desesperança” (p. 138)
Incompatibilizando com a cidade, taxado de comunista, o Prof. Martim passa a ser “persona non grata” na cidade. Mais tarde, será perseguido pela Revolução de 1964 e tem que se exilar do país.
Ao lado da “anatomia” de Antares, realizada pelos pesquisadores do Prof. Martim (inclusive Xisto, neto do coronel Tibério), as personagens gradas do livro são apresentadas através do diário do professor: o coronel Tibério, dono da cidade; D. Quitéria, matriarca dos Campolargos; Vivaldino Brazão, prefeito da cidade; Dr. Quintiliano do Vale, o meritíssimo juiz, o delegado truculento Inocêncio Pigarço; os médicos Dr. Lázaro (da família Vacariano) e Dr. Falkenburg (dos Campolargos); o jornalista Lucas Faia, de “A Verdade”, com o cronista social Scorpio; Pe. Gerôncio, de linha tradicional, e o Pe. Pedro-Paulo, moderno, de linha socialista, taxado de comunista; o promotor Dr. Mirabeau; o fotógrafo de origem checa Yaroslav; o paranóico teuto-brasileiro Egon Sturm, neonazista; o maestro solitário Menandro de Olinda; o Prof. Libindo Olivares, com a sua fama de grande latinista, helenista, matemático e filósofo.

Segunda Parte: o incidente
Comandada por Geminiano Ramos, uma greve geral paralisa todas as atividades em Antares: reivindicando melhoria salarial, cruzam os braços os operários do Frigorífico Pan-Americano (de Mr. Jefferson Monroe III), da Cia. Franco Brasileira de Lãs (de M. Jean François Duplessis), da Cia. De Óleos Comestíveis Sol do Pampa (de Mr. Chang Ling) e também os encarregados da Usina Termoelétrica Municipal, deixando a cidade às escuras. Era o dia 11 de dezembro de 1963, uma quarta-feira.
Por outro lado, nesse mesmo dia, vem a falecer a veneranda matriarca D. Quitéria (enfarte do miocárdio) e mais seis outras pessoas: Dr. Cícero Branco (derrame cerebral), advogado das falcatruas do Cel. Tibério e do Prefeito Vivaldino; o anarco-sindicalista José Ruiz, vulgo Barcelona; o “subversivo” João Paz, torturado pelo delegado Inocêncio; o maestro Menandro, que suicidou, cortando os punhos; o bêbado Pudim de Cachaça, envenenado pela mulher; e a prostituta Erotildes, que morreu vitimada pela tuberculose, na ala dos indigentes do Hospital “Salvator Mundi”, do Dr. Lázaro.
Irredutíveis na sua greve, os operários, com a solidariedade dos coveiros, interditam o cemitério e impedem o enterro, ficando insepultos os sete defuntos. E é aí que acontece o fantástico: os defuntos se erguem dos seus caixões e, após as apresentações, comandados pelo Dr. Cícero, arquitetam um plano, exigindo das autoridades o sepultamento a que tinham direito: “ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético... e moral, naturalmente” (p. 250).
Dispostos em ordem hierárquica, os defuntos descem até o centro da cidade, provocando pânico e horror por onde passavam, e estabelecem o caos em Antares. Como ficara combinado, cada um poderia dispor do tempo como quisesse até ao meio-dia em ponto-horário do ultimato ao Prefeito.
D. Quitéria, numa visita aos genros e filhas, já exalando o mau cheiro do corpo em decomposição, assiste à discussão e brigas pelo seu espólio; o Dr. Cícero surpreende a esposa em flagrante adultério com um rapazinho louro, e depois se dirige à casa do prefeito; Barcelona afugenta os policiais e dá uma lição no delegado Inocêncio Pigarço; Menandro toca enfim a “Apassionata” de Beethoven; Erotildes visita a amiga Rosinha que a recebe, na sua humilde, sem nenhum medo (certamente porque não tinha nada a temer...); Pudim de Cachaça vai ao encontro do velho amigo de bebida Alambique, que o recebe também sem medo (é comovente o amor que demonstra pela esposa que o envenenara); Joãozinho Paz inicialmente conversa com o Pe. Pedro-Paulo, na praça, e depois tem um encontro comovente com a esposa grávida (Ritinha).
Por outro lado, reunido com seus pares, o prefeito busca uma solução para o problema. Até mesmo o Pe. Pedro-Paulo é ouvido na reunião; depois se retira. Após muitas falações, em que o “sábio Prof. Libindo tenta explicar o fenômeno como um caso de ‘alucinação coletiva’ “, as opiniões se divergem: o delegado Inocêncio e o Cel. Tibério propõem uma solução violenta, pela força; os outros tendem para a parlamentação com os mortos – proposta que sai vitoriosa.
O encontro entre vivos e mortos se dá exatamente ao meio-dia, com a praça apinhada de gente, sob um sol escaldante. Tem lugar, então, um autêntico julgamento dos vivos, em que os mortos, através do seu advogado constituído, expõem os podres sobretudo das pessoas gradas da cidade: as falcatruas do Cel. Tibério e do Prefeito; a truculência do delegado Inocêncio; a pederastia e vaidade do Prof. Libindo; a caridade falsa do Dr. Lázaro; a magnanimidade hipócrita do Dr. Quintiliano. AO expor essas mazelas da fina sociedade antarense, o Dr. Cícero arrancava aplausos, sobretudo dos estudantes que estavam pendurados nas árvores. Tomando a palavra, Barcelona, sem papas na língua, revela casos de adultério de damas insuspeitas e honradas de Antares. O mau cheiro (dos cadáveres em decomposição e, sobretudo, daquela sociedade podre) atrai urubus e, depois, Antares é invadida por ratos que empestam ainda mais a cidade.
Esse “fenômeno” provoca em Antares uma verdadeira revolução: Dr. Lázaro procura o Pe. Pedro-Paulo para fazer confidências; o Maj. Vivaldino tem que dar explicação à mulher; Dr. Mirabeau se preocupa por ter sido chamado de “fresco” e quer provar o contrário (por sinal, não consegue...); Dr. Quintiliano não consegue dominar mais Valentina, sua esposa, que se revela “pantera acoimada”; o delegado Inocêncio briga com o filho (Mauro), que se manda da cidade; Pe. Gerôncio balança a cabeça, perplexo. Enfim, a cidade de Antares foi sacudida nas suas entranhas com a presença dos mortos que apodreciam no coreto.
Conforme prometera a Joãozinho, o Pe. Pedro-Paulo transporta Ritinha para o outro lado do rio Uruguai (Argentina), onde estaria a salvo da truculência do delegado. É nessa oportunidade que fica sabendo do amor do Mendes, secretário subserviente do Prefeito, pela mulher de Joãozinho
Atacados a pedradas e garrafadas pelos “embuçados da alvorada” (bando de Tranqüilino Almeida), os defuntos se rendem e voltam para os seus esquifes. Por outro lado, comandada por Germiniano, uma assembléia encerra a greve e os mortos são, enfim, enterrados.
Sepultados os mortos, um vento forte sobra sobre Antares e carrega o mau cheiro que empestava a cidade: aos poucos tudo vai voltado à normalidade e as pessoas vão retomando as suas máscaras. Dessa forma, quando o pessoal da imprensa de Porto Alegre chega a Antares para documentar o fenômeno, o prefeito nega tudo e inventa outra estória: tudo fora um artifício para promover a cidade. Em vão os jornalistas tentam entrevistar outras pessoas. Procurado, o Pe. Pedro-Paulo mostra-lhes a favela miserável da Babilônia.
Numa reunião convocada pelo Prefeito, o Prof. Libindo propõe a “operação borracha”, para desespero do Lucas Faia que escrevera um artigo brilhante sobre o “fenômeno”. Coroada de êxito, a “operação borracha” se encerra com um grande banquete em que a sociedade antarense, apaziguada pelo tempo, repõe as suas velhas máscaras.
Retornando à cidade com Xisto, o Prof. Martim Francisco é ameaçado e aconselhado pelo velho Cel. Tibério e pelo Prefeito a sair da cidade. Na despedida, acompanhado pelos seus amigos Xisto e Pe. Pedro-Paulo, ele antevê a chegada da revolução de 64 que está na iminência de acontecer.
Enfim chega março de 1964 e a revolução se instala para ficar e reafirmar os valores da sociedade capitalista, empurrando para longe os anseios socialistas. Cada um vai seguindo o seu destino ou o destino que lhe foi imposto; uns morrem (Cel. Tibério, Pe. Gerôncio); alguns são promovidos (Delegado Inocêncio, o juiz Dr. Quintiliano); o Prefeito Maj. Vivaldino Brazão “entrou num período de hibernação política” e foi cuidar de suas orquídeas; outros foram perseguidos, pelo novo governo (Geminiano, Pe. Pedro-Paulo, Prof. Martim).
Em suma, a julgar pelas aparências, “Antares é hoje em dia uma comunidade próspera e feliz” (p. 484). Entretanto, uma criança que estava começando a aprender a ler, soletra uma palavra perigosa, pichada no muro: “LIBER--- Não terminou: em pânico, o pai arrasta-o e silencia-o com um safanão”.

ORGANIZAÇÃO – ESTRUTURA – PERSONAGENS
1) Como se viu, Incidente em Antares vem dividido em duas partes. Na primeira (“Antares”). “o leitor fica conhecendo a história dessa localidade, bem como as das duas oligarquias rivais que a dominaram política e economicamente por mais de cem anos. Trata-se, em suma, de uma espécie de apresentação do palco, do cenário, bem como das personagens principais e da numerosa comparsaria que, através de seus descendentes, serão envolvidos no dramático ‘incidente’ da sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.” (contracapa).
“A segunda parte, cuja duração é muito menor em tempo de calendário, embora ocupem ais espaço tipográfico, mostra o incidente propriamente dito e suas conseqüências” (contracapa). Utilizando-se do fantástico como forma de expressão (a animização dos mortos insepultos), Érico Veríssimo revela, a decomposição social e moral da sociedade humana através do microcosmo enfocado (a cidade de Antares).
2) Os fatos são narrados em terceira pessoa por um narrado onisciente e onipresente.
Esses narrados, contudo, ao longo da narrativa, vai simulando transcrições de pseudo-autores, como o relato do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville (p. 3); a carta do Pe. Juan Bautista Otero (p. 7); os diários do Pe. Pedro-Paulo e do Prof. Martim Francisco Terra (na apresentação das personagens, por exemplo); os artigos de Lucas Faia no jornal “A Verdade”; e excertos do livro Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira,, organizado pelo Prof. Martim e sua equipe.
O autor, pois, utiliza-se de todos esses recursos para organizar a sua narrativa, dando, dessa forma, a impressão de que tudo aconteceu e é verdade.
3) Visto globalmente, Incidente em Antares é, sem dúvida, um romance.
A primeira parte, contudo, dada sua linearidade e sucessividade episódica, lembra a espécie literária que chamamos de novela: cerca de um século de história fui cronologicamente, antes de o autor se deter na sua análise, em profundidade, da sociedade antarense.

PERSONAGENS
As personagens de Incidente em Antares podem ser agrupadas de acordo com as suas convicções políticas e a sua condição social.
1) Representando a ordem social tradicional, marcadamente conservadora e aristocrática, os dois clãs rivais (Vacarianos e Campolargos) dominam a cidade. É em torno dessa aristocracia, em que predomina o sistema patriarcal, que se organizam as pessoas gradas de Antares, as quais forma e revelam-se podres e em adiantado estado de decomposição moral, exalando um mau cheiro pior que o dos mortos do coreto na praça nobre da cidade. Ao levantar a tampa do “caixão”, retirando a máscara que envolvia cada um desses honrados cidadãos, Érico Veríssimo revela a podridão daquela sociedade carcomida nas suas entranhas. Como se viu pela síntese que fizemos, a verdade não convinha a esses aristocratas, e a solução foi lacrar os caixões e enterrar a verdade com os sete mortos.
2) As personagens femininas, com exceção de D. Quitéria, a matriarca dos Campolargos, vivem à sombra dos seus maridos, submissas e alienadas, aceitando passivamente a ordem estabelecida. Uma exceção a essa passividade e alienação é Valentina, mulher do Dr. Quintiliano. Influenciada por leitura perigosas e possivelmente pelo Pe. Pedro-Paulo, ela se rebela consciente e politizada, questionando o marido e não aceitando as imposições. Era, sem dúvida, um avanço naquela sociedade rigidamente patriarcal. Valentina, contudo, é ainda uma “pantera açaimada” (expressão do Prof. Martim) que não tem condições de se libertar plenamente.
3) As personagens esquerdistas, taxadas de comunistas naquela sociedade conservadora, defendem o socialismo e lutam por um ordem social mais justa e um mundo melhor. Evidentemente, esses progressistas chocam-se com os interesses da aristocracia dominante e são perseguidos. Entre outros, destacam-se aqui o Pe. Pedro-Paulo, o Prof. Martim, Joãozinho Paz com sua mulher (Ritinha), Geminiano ramos, Barcelona, o anarco-sindicalista, e mesmo Xisto, neto do Cel. Tibério.
4) Entre os humildes, constituindo a ralé da sociedade antarense, está o submundo da favela Babilônia. Nessa linha, incluem-se a prostituta Erotildes e o bêbado Pudim da Cachaça. Essas personagens, apesar de discriminadas e marginalizadas, revelam, na sua humilde e singeleza, uma grandeza comovente. Certamente por isso, não assustam os amigos visitados depois de mortos (Rosinha e Alambique).
5) Mais ou menos marginalizados, enclausurados, nos seus dramas pessoais e nos seus traumas, destacam-se o maestro Menandro, o neonazista Egon Sturm e certamente o subserviente secretário do Prefeito (o Mendes). Nessa lista, em falta de outro lugar, talvez possa entrar aqui também o fotógrafo checo Yaroslav.

ESTILO DA ÉPOCA
Publicado em 1971, Incidente em Antares se enquadra no estilo modernista não só pelas inúmeras referências e fatos e pessoas da época atual, como também pela presença de ingredientes que configuram, no livro, o gosto modernista.
1) A fundamentação na cultura nacional revela bem uma das tendências do Modernismo: a valorização de elementos folclóricos e tradicionais, bem como de costumes regionais, é uma das metas modernistas. Esse nacionalismo aparente, contudo, quase sempre esconde dramas existenciais que têm dimensão universal. No livro de Érico Veríssimo, Antares é, sem dúvida, um símbolo de um universo maior. Aliás, essa idéia aparece, numa conotação política, pichada nos muros da cidade: “A sociedade de Antares está podre. Antares é o símbolo da burguesia capitalista decadente” (p. 459).
2) Outro aspecto do livro que configura o Modernismo é o fantástico, que se manifesta em Incidente em Antares através dos sete defuntos insepultos. Embora autores não-modernistas tenham-se utilizado desse recurso também (Machado de Assis em Memórias Póstumas, por exemplo), esse é um gosto mais freqüente do Modernismo. Esse truque evidentemente tem o seu sentido: é através do morto (fora, portanto, do palco da vida) que se vê melhor. Ficando fora do círculo da vida, desataviado da máscara e convenções sociais, é possível ver com maior nitidez e mais objetividade.
A invasão dos ratos, sem dúvida é outro elemento bem ao gosto da literatura fantástica.
3) No que diz respeito à linguagem, são constantes os registros da fala coloquial, como é comum no Modernismo. Isso, sem dúvida, confere maior autenticidade à personagem.
“- Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu não faço (p. 20).
- Ele vai acabar levando o Brasil pro lado de Moscou (p. 73).
- Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta (p. 75).
- Uma das meninas me telefonou ind’agorinha (p. 203).
Fiel a esse registro da linguagem coloquial, muitas vezes aparece palavrão e pronúncias típicas do Rio Grande, além de regionalismos.
- Não hai bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe. (p. 287).
- Desculpe lê tirar da cama a esta hora, governador (p. 192)
-Se algum filho da puta me fizer qualquer provocação, traço-lhe bala (p. 123).
4) Outro aspecto que se destaca no estilo modernista é a postura engajada assumida pelo autor em relação a problemas de ordem política ou social. Em Incidente em Antares, o autor denuncia não só as falcatruas e negociatas escusas, como também a truculência e atrocidades da polícia, que espanca e tortura em nome da ordem e da segurança social. O caso de Joãozinho Paz e sua mulher gráfica (Ritinha) é dos mais ilustrativos.
O autor modernista, pois, não é um alienado – participa ativamente dos problemas da sociedade em que vive, denunciando as arbitrariedades, desmandos e injustiças.
5) Atenda às novidades e ao progresso, na década de vinte, Antares toma conhecimento do movimento modernista através de versos de Mário e Oswald de Andrade que são receitados num sarau de arte por um forasteiro: “Num sarau de arte, no Solar dos Campolargos, um forasteiro recitou versos modernos – que ninguém entendeu – de Oswald e Mário de Andrade” (p. 30).

ESTILO DO AUTOR / LINGUAGEM
Ao longo da narrativa de Incidente em Antares, Érico Veríssimo revela algumas características estilísticas que configuram a sua maneira de escrever.
1) Como já observamos na “organização e estrutura”, o escritor constrói a sua narrativa intercalando, no romance, textos de pseudo-autores. Essa simulação, em que Érico Veríssimo transcreve relatos, diários e artigos de jornais, imprime à narrativa uma atmosfera de verdade, dá a impressão de que a estória é verdadeira.
É claro que, ao lado da ficção, há fatos históricos, registrados por ele, que realmente aconteceram. Aliás, é o próprio autor quem observa numa “nota”, logo no início do romance: “Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.”
Essa mistura de ficção e história (ou de estória com história) sempre foi uma das grandes características do estilo Érico Veríssimo.
2) Combinado com o sarcasmo e espírito critico que perpassa o livro, o autor revela-se irônico e mordaz ao longo do romance, caricaturando gente, linguagem e instituições. O Prof. Libindo, por exemplo, e outros eruditos da cidade sofrem sob a pena do escritor. Os discursos das palavras bonitas, os artigos de estilo grandiloqüente e pomposo (de Lucas Faia) vêm sempre perpassados de zombaria e sarcasmo. Veja bem a passagem abaixo, em que o sábio Prof. Libindo digladia verbalmente com o meritíssimo juiz Dr. Quintiliano, a propósito do lema dos “Legionários da Cruz”, da D. Quita: “Meu caro magistrado, quem defende a Pátria defende precipuamente a Lei e a Ordem contidas ambas no vocábulo oceânico Pátria (...)”. “Pois se a coisa é assim”, retrucou o juiz, “bastaria então que no lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a idéia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrande tudo: Ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade”. Ficava de fora a Propriedade, o que levou o Cel. Tibério a gritar: “E a prosperidade?” (p. 180).
Quase sempre com essa conotação irônica, vêm aí informações entre parênteses, como a que vamos transcrever que reproduz uma discussão entre os mortos, em que Dr. Cícero, ante a proposta de votação de Barcelona, diz: “- Não direi que aqui em cima estejamos numa democracia. Imaginemos que isto é uma... uma tanatocracia. (E os sociólogos do futuro terão de forçosamente reconhecer este novo tipo de regime)” (p. 250).
Assim, pois, combinando com a mordacidade que perpassa a obra, o autor ironiza e caricaturiza máscara da sociedade antarense na sua fala gongórica e vazia, na sua postura fingida e hipócrita. Só os humildes e sinceros escapam da “pena da galhofa” de Érico Veríssimo.
3) Outro aspecto que se destaca na linguagem do livro é a tendência do autor para criar tempos novos, quase sempre da formação erudita, com base nos radicais gregos e latinos. Além de “tanatocracia” (= morte+governo), que acabamos de ver no item anterior, veja-se ainda:
“- Vivemos numa cafajestocracia, isso é que é”. (p. 94) (hibridismo: cafajeste+governo).
“- Democracia qual nada, governador! O que temos no Brasil é uma merdocracia” (p. 193) (hibridismo: merda+governo).
Além desses, chama a atenção também para as lições do Prof. Libindo que vai ensinando ao longo do romance:
“O Prof. Libindo me garante que a palavra orquídea vem do grego e significa testículo” (p. 158).
“O Prof. Libindo, num aparte forçado, pergunta se os presentes sabem que a palavra canícula significa na realidade ‘cadela’ e que era o antigo nome da estrela Sírio” (p. 321).
Digno de nota também é o verbo “filho-da-putear”, usado na página 79: “... depois de se filho-da-putearem abundantemente, estavam já de revólver na mão”.
4) Além dessa erudição demonstrada (adquirida de forma autodidata, pois Érico Veríssimo não chegou à universidade, não tenho nem mesmo acabado o curso ginasial), o escritor entremeia a sua narrativa, sempre pela boca de suas personagens eruditas, de latim, francês, inglês e outras línguas.
5) Embora gaúcho, Érico Veríssimo usa com parcimônia vocábulos regionais. Uma ou outra palavra trai o regionalismo gaúcho, como a pronúncia de pronome “lhe” (=lê), o uso de formas que lembram o espanhol, como “Bueno” (p. 200) e “personalmente” (p. 201) e a pronúncia com “e” e “o” do Cel. Tibério, quando usa o palavrão “filho-da-puta”: “Filhos da pota” (p. 204).

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES
São muitos os aspectos temáticos que podem ser detectados no romance Incidente em Antares:
1) De conotação política, destacam-se no romance, entre outros, os seguintes aspectos:
a) Érico Veríssimo tece no livro um verdadeiro painel sócio-político, não só no Rio Grande do Sul como do país. Como vimos, o seu mapeamento abrange mais de cem anos e, através dele, pode-se acompanhar as marchas e contramarchas da política nacional. Sobretudo na primeira parte, a impressão que se tem é de que o autor faz mais história do que ficção.
b) Nesse contexto político, além de outros, sobressai a figura de Getúlio Vargas com seu carisma, com seu nacionalismo, com o seu populismo e mesmo com seu fascismo. Com a sua auréola de “pai dos pobres”, chega a ser impiedosamente ironizado por Tibério, quando do seu suicídio, ao ser inquirido por sua empregada sobre o que seria dos pobres: “- Os pobres vão continuar tão pobres como no tempo em que ele estava vivo” (p. 85).
Mas, apesar da frase de Tibério, dita com “perverso despeito”, Getúlio tornou-se um mito para as pessoas simples e humildes, como a preta Acácia, que adorava o pai dos pobres “como se ele fosse um santo” (p. 301). Chega a fazer oração a ele por um melhor salário: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, Presidente. Mande essa gente me pagarem mais. Amém!” (p. 302).
c) Não obstante, entre os protegidos de Getúlio, a corrupção alastrava com negociatas escusas (contrabandos) e negócios ilícitos. Muitos, como Tibério Vacariano, enriqueceram-se e mantinham contas numeradas em bancos da Suíça, favorecidos por negócios falcatruosos e empréstimos com fundo perdido no Banco do Brasil.
Numa conversa em casa dos Campolargos, por exemplo, o Tibério faz esta denúncia: “Em matéria de dinheiro o Getúlio é um homem honesto. Mas finge que não vê certas safadezas que se fazem ao seu redor. A sua técnica é a de corromper para governar. E nunca se roubou tanto, nunca se fez tanta negociata à sombra de Getúlio e em nome dele como neste seu atual quatriênio” (p. 74). Mas o Tibério era suspeito para falar, como pensava com seus botões a D. Quitéria: “Olhem só quem está falando em negociatas” (ib. id.).
d) Priorizando a política desenvolvimentista e a industrialização, vão-se instalando no país (período, sobretudo de JK) as multinacionais e, com elas, a espoliação do país e a exploração do proletariado, como revela muito bem a fala humilde da negra Acácia (item b) na sua oração ao Presidente Vargas: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, Presidente”.
A greve geral decretada pelos operários das multinacionais de Antares é uma resposta dos trabalhadores à exploração e ao salário da miséria que recebiam para enriquecer os abastados. A fala de Geminiano, líder dos grevistas, numa reunião com os patrões e o prefeito revela exatamente isto: “reivindicações salariais”. (p. 200).
e) Combatendo o modelo capitalista, socialmente injusto e perverso, vão-se proliferando os esquerdistas, simpatizantes do socialismo, que se identificam com os pobres e operários e, por isso, taxados de comunistas e vermelhos. O momento político (de Jango e Brizola) favorecia a esquerdização e os “subversivos” iam-se proliferando, para desespero da sociedade capitalista e conservadora que não aceitava mudanças e reprimia o movimento.
Como observa o Pe. Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio, numa conversa, “comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social” (p. 384). Numa outra passagem, esse mesmo padre lembrou ao delegado Inocêncio a postura “rebelde” de Cristo em face das arbitrariedades impetradas pela sociedade da época, dominada pelo império romano, e desafia o delegado torturador de Joãozinho Paz: “- Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-º Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar, torture-o em nome da Civilização Cristão Ocidental!” (p. 321).
f) Diante do perigo “comunista” ameaçada na sua ordem secular, a caça às bruxas é uma conseqüência lógica, engendrada e executada pela sociedade conservadora e capitalista. A punição através da tortura e mesmo a morte, no sentido de reprimir esse clamor que exige justiça e liberdade, é antigo milenar. Basta lembrar Cristo crucificado ou, em nosso caso, o Tiradentes do Romanceiro de Cecília de Meireles.
Joãozinho Paz, sem dúvida, é aqui o bode expiatório, executado pela sanha do delegado Inocêncio Pigarço, em nome da ordem e da segurança da classe dominante. Conforme vem registrado no diário do Pe. Pedro-Paulo, “Joãozinho foi torturado barbaramente. Seu rosto está quase irreconhecível. Um braço e uma perna partidos” (p. 295). Por outro lado, detalhes da tortura vêm denunciados pelo morto Dr. Cícero, voz insuspeita do além-túmulo, no julgamento da praça nobre de Antares: “Vêm então a fase requintada. Enfiam-lhe um fio de cobre na uretra e outro no ânus e aplicam-lhe choques elétricos. O prisioneiro desmaia de dor. Metem-lhe a cabeça num balde d’água gelada e, uma hora depois, quando ele está de novo em condições de entender o que lhe dizem e de falar, os choques elétricos são repetidos...” (p. 369).
Como observou o Barcelona, do além-túmulo, “o delegado Inocêncio tinha aproveitado bem a sua ‘bolsa de estudos’ com a polícia do Estado Novo” (p. 254).
2) Numa divisão meramente didática, destacava-se também no romance a análise da sociedade antarense, que tem obviamente conotação simbólica, objetivo esse empreendido e executado com maestria pelo escritor:
a) A sociedade enfocada no livro, como se tem mostrado, caracteriza-se pelo conservadorismo, apegada às aparências e fachadas, coisa de suas tradições e costumes seculares. Através da pesquisa organizada pelo Prof. Martim e sua equipe, Érico Veríssimo faz uma verdadeira anatomia da sociedade local, que é também, no fundo, o retrato de tantas outras.
Conforme registra Prof. Martim no seu diário, o juiz Quintiliano é bem um símbolo dessa “sociedade simétrica, policiada, regida por leis inflexíveis e imutáveis, cada coisa no seu lugar (e quem determina o ‘lugar exato’ é a tradição, e tradição para ele é algo que tem a ver com seus ancestrais – pai, avô, bisavô, trisavô, etc.). Está sempre, notei, do lado do oficial, do consagrado, do legal” (p. 417)
b) Organizada pelo macho, impera na sociedade antarense o sistema patriarcal e machista, em que o poder é exercido pelo homem, de forma despótica e absoluta. Sua vontade é a lei, o seu querer tem que ser respeitado, a sua voz tem que ser ouvida. O Cel. Tibério é certamente o grande senhor patriarcal do livro. Sempre armado, o coronel tinha o hábito de resolver tudo a bala. Até mesmo no caso dos mortos, a sua sugestão, bem como a do delegado, era de fazer os mortos retornarem ao cemitério, à força.
c) Posta nesse contexto, a mulher vive à sombra do macho, em tudo submissa, passiva e subserviente, aceitando a ordem estabelecida. Poucas reagem contra essa ordem em que fazem o papel de “matrona romana”. Como já observamos, o exemplo de Valentina, com seu gesto de rebeldia, é uma tentativa ainda tímida de ruptura na ordem machista. Outro exemplo é a haitiana Dominique, mulher de M. Duplessis, a qual costumava “aprontar” nos rituais vudu.
Entretanto, integrada no “baile de máscaras” da sociedade, como diz Dr. Quintiliano a Valentina, é importante, para a mulher parecer honesta: - “Valentina, não basta a uma mulher ser honesta. É preciso também parecer” (p. 429)
d) Organizada assim – valorizando as aparências e fachadas – está claro que pobres e humildes serão objeto de discriminação e desprezo. Aqui entram as prostitutas, bêbados, a favela Babilônia, os loucos e desafortunados da sorte; aqui entram até mesmo os “subversivos”, como Pe. Pedro-Paulo, sempre mal visto e rejeitado pela sociedade; e também entram aqui os infelizes e solitários – os que sofrem de amor, como o Mendes, e os que sofreram trauma da frustração da derrota, como o maestro Menandro. Isso é o inferno – o inferno estava em Antares sob a forma do preconceito, e do desprezo, conforme dizia a D. Quita, no além-túmulo:
“- D. Quitéria, eu tive em Antares uma amostra do inferno. A incompreensão, o sarcasmo, a impiedade dos antarenses me doíam fundo. O inferno não pode ser pior que Antares” (p. 246).
e) Convivendo com essa podridão, conivente muitas vezes com falcatruas e arbitrariedades, parada no tempo, a igreja de Pe. Gerôncio ia rezando suas missas em latim, encomendando os seus defuntos à espera do Juízo Final, acomodada e fiel as tradições milenares, insensível aos problemas sociais e às vozes que clamam por justiça.
Esta é a imagem da religião tradicional, moldada à imagem e semelhança da sociedade aristocrática de Antares. A ela se contrapõe a igreja de Cristo, voltada para os pobres e miseráveis da vida; no lugar das rezas convencionais e da liturgia teatral dos milênios, surge o clamor de vozes que buscam a justiça e a libertação das garras do inferno, - inferno que é a vida degradante de milhões de miseráveis que jazem à margem de Antares.
Identificada com os pobres, chamando por justiça social, combatendo a truculência e as arbitrariedades humanas, esta é a igreja de Cristo, como diz o Pe. Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio:
“- Padre, enquanto Deus não nos disser claramente o que Ele pensa de tudo isso, nós devíamos em nome de Cristo, que era e é deste mundo, combater tipos como Inocêncio Pigarço, que matam em nome da Justiça, do Capitalismo, do Comunismo, do Fascismo, da Família, da Pátria e (não ria!) até mesmo de Deus”.
f) Em suma, nesse grande painel que é Incidente de Antares, Érico Veríssimo se revela imparcial, acima de ideologias e faz uma crítica contundente e mordaz à sociedade. Através do truque utilizado, em que os mortos insepultos exigem o sepultamento, ele expõe os podres daquela sociedade em decomposição, hipócrita e carcomida nas suas entranhas. Os mortos insepultos e o mau cheiro exalado, sem dúvida, constituem um símbolo e revelam bem a decomposição moral da sociedade.
Nada escapa à crítica do escritor. Ao erguer a tampa do caixão, ele destila o fel da sua mordacidade e desmascara a nata da sociedade antarense: nada escapa – nem a direita nem a esquerda; nem mesmo a medicina com sua falsa filantropia; nem muito menos a imprensa que com sua bisbilhotice; nem muito menos Rotary e o Lions com seu espírito fraternal; não escapam muito menos os doutores e professores com sua fala erudita e gongórica; também as senhoras honradas e impolutas são devassadas nos seus segredos de alcovas, flagradas em delitos de cama; nem mesmo o venerado ancião da estátua, exemplo-mor para descendentes e ascendentes, escapa à devassa realizada pelo escritor.
Entretanto, com o sepultamento dos mortos, a verdade também foi encerrada e a mentira, vitoriosa e triunfante, retoma o seu lugar no baile dos mascarados e na estátua da praça nobre da cidade.

CONCLUSÃO
É impossível ler um livro como Incidente em Antares e não se sentir assustado, não com os mortos que descem para a cidade, mas com a mentira que jaz subjacente em cada um de nós. É impossível ler um livro como este e não mexer, no sentido de combater e extirpar, da face da terra, a truculência e a mentira. É impossível sair da leitura deste livro insensível à causa do Pe. Pedro-Paulo e de Joãozinho Paz, em busca da justiça e do amor. É impossível ler este livro e sair dele sem se emocionar com o drama comovente de Joãozinho Paz e seu amor à vida, como diz ao Pe. Pedro-Paulo.
“Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito na vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo” (p. 294)
Redimido pela leitura de Incidente em Antares, o filho de Joãozinho Paz crescerá nas nossas entranhas. Viverá e frutificará. Salvará o mundo da truculência e da mentira.
Que fique também, em cada um de nós, a lição do Pe. Pedro-Paulo com seu amor à vida e a sua luta em favor do Império do Amor:
“- Padre, espero não estar pecando quando sinta a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é o Amor” (p. 338).
Sem dúvida, é possível fazer tudo isso. Existe em cada um de nós um “menino do dedo verde” – capaz de amar e transformar o mundo. O ser humano não é o que parece, como dizia um tropeiro ao Pe. Pedro-Paulo (p. 439): “Olhe, moço, ninguém é o que parece. Nem Deus”.
Fonte:

Ernesto Von Rückert (1949)

Segundo ocupante da Cadeira 21, eleito a 24 de junho, na sucessão de Alexandre de Alencar, tendo como patrono Visconde de Taunay. Tomou posse na Academia de Letras de Viçosa (ALV), no dia 18 de novembro de 2004, em sessão solene, sendo saudado pelo Acadêmico José Levy de Oliveira.

Nascido no Rio de Janeiro em 1949, filho de Fernando von Rückert (carioca) e Lygia Barbosa von Rückert (gaúcha), funcionários públicos, Ernesto von Rückert foi criado em Barbacena, para onde se mudou aos dois anos. Fez seus estudos primários (séries iniciais do Ensino Fundamental) no Grupo Escolar Pio XI e o Ginásio (séries finais do Ensino Fundamental) e o Científico (Ensino Médio) no Colégio Estadual Professor Soares Ferreira, daquela cidade, tendo sempre sobressaído como o primeiro aluno da turma, pelo que recebeu premiações em suas formaturas.

Sendo seu avô paterno austríaco, sua avó paterna portuguesa, seu avô materno baiano, sua avó materna gaúcha e ele criado em Minas Gerais, adquiriu uma pluralidade muitas vezes conflitante de modos de viver, que assimilou com proveito.

Em sua juventude participou como militante da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), tendo sido Congregado Mariano e católico fervoroso. Abandonou a TFP em 1970 por dissidência ideológica com seus princípios.

Licenciou-se em Matemática em 1971 pela Faculdade de Filosofia de Barbacena, hoje pertencente à UNIPAC e completou o bacharelado como aluno especial na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em 1978. Em 1982 concluiu o mestrado em Física, na área de Cosmologia e Gravitação, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro.

Desde o primeiro ano da faculdade passou a lecionar, tendo sido professor da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), da Escola Agrícola Diaulas Abreu e da Faculdade de Filosofia da UNIPAC, em Barbacena, da Faculdade de Filosofia da hoje Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em 1976 veio para Viçosa como professor do Departamento de Física da UFV, onde permaneceu até sua aposentadoria como Professor Adjunto em 1996. Na UFV participou da criação do Curso de Física, do qual foi coordenador, exerceu as funções de Chefe do Departamento de Física, Presidente do Conselho de Graduação (cargo atualmente denominado Pró-Reitor de Ensino), Presidente da Comissão do Vestibular e Assessor e Chefe de Gabinete do Reitor. Durante esse tempo lecionou Física Geral, Mecânica Clássica, Eletromagnetismo, Ótica, Estrutura da Matéria, Física Quântica, Física Estatística, Teoria da Relatividade e Métodos Matemáticos da Física, tendo formulado o currículo e o programa de 21 disciplinas do Bacharelado em Física. Desde 1997 é professor do Colégio Anglo de Viçosa, do Ensino Médio, sendo, desde 1999, seu Vice-Diretor. Ao longo de sua carreira, ministrou mais de 11 mil aulas no Ensino Médio e mais de 7.500 aulas no Ensino Superior.

Nessa atividade escreveu e publicou inúmeras apostilas e monografias, na EPCAR, na UFV, no CBPF e no ANGLO.

Como pesquisador tem trabalhos publicados na área de Teoria da Relatividade Geral, tendo orientado trabalhos de iniciação científica no assunto.

Foi homenageado dos formandos do Colégio Anglo e seis vezes do Curso de Física da UFV, tendo proferido cinco Aulas da Saudade do mesmo curso e uma do Curso de Matemática.

Proferiu inúmeras palestras e ministrou vários cursos de extensão.

Tem dois filhos de seu primeiro casamento: Érika Alessandra (1978 - Engenheira de Alimentos, Especialista) e Dimitri Aleksander (1981 - Médico Veterinário, Mestranda). De seu segundo casamento, com Maria de Fátima Resende, tem quatro enteados(as): Adla (1980 - Economista Doméstica, Mestranda), Amanda (1982 - Licenciada em Letras), Márcio (1984 - Graduando em Cooperativismo) e Mayra (1986 - Pré-Vestibulanda).

Desde cedo demonstrou seu pendor pelas artes, tendo estudado piano por três anos e feito algumas composições juvenis, pintado algumas telas a óleo e escrito poesias, que tenciona reunir e publicar brevemente. Iniciou sua biblioteca e sua discoteca clássica ainda na adolescência, tendo a isso dedicado parcela significativa de seus proventos, o que lhe possibilitou reunir quase seis mil volumes de livros e três mil discos. Sua paixão, no entanto, é a Filosofia, a que sempre dedicou boa parte do seu tempo de leituras e estudos. Outra de suas atividades é a informática, de que já ministrou vários cursos avançados sobre planilha de dados, computação gráfica e computação algébrica, além de desenvolver programas e criar ilustrações.

Avesso a qualquer tipo de rótulo revela ser um livre pensador cético e racionalista, vendo tanto o lado humanista da ciência como a face científica do humanismo. Sua postura essencialmente ética inspira-se no estoicismo, todavia fundindo-se dialeticamente com a visão epicurista de uma pessoa que crê na felicidade como o bem superior da existência, enquanto luta pela prevalência do bem e pela maximização da felicidade do maior número de seres e a disseminação da beleza em todos os aspectos da vida. Igualitário ao extremo considera que a sociedade não pode distinguir, nos direitos, nos deveres e em qualquer outro aspecto, as pessoas pelo sexo, raça, crença, opção sexual, origem, riqueza ou o que seja que as diferencie. No aspecto político defende a utopia ácrata e todos os esforços no sentido de alcançá-la objetivamente no futuro. Atualmente não professa nenhuma religião, mas permanece na incansável busca do entendimento do Universo e da verdade real sobre todas as coisas.

Nesse caminho aprecia a maravilha do mundo, a beleza da arte e da ciência, o prazer do amor, fazendo do seu trabalho um lazer e o máximo possível para ajudar a todos de todas as maneiras, engajando-se na disseminação da arte, da cultura e da ciência, especialmente para a juventude menos favorecida. Produz e apresenta semanalmente um programa de Música Clássica na Rádio FM Universitária da UFV.

Fonte:
www.alv.org.br/portal/userinfo.php?uid=20

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Artur da Távola (1936)

Percorrer o universo literário de Artur da Távola é deleitar-se com a sensibilidade e a mais refinada das emoções.
Artur da Távola estabelece com os seus leitores uma cumplicidade inequívoca, uma vez que suas letras findam por confidenciar-se em um idioma que tão bem os olhares da emoção e nosso coração reconhecem. Um diálogo íntimo de sussurros, como se as letras afagassem o nosso olhar, envolvendo a paisagem, onde a palavra se deixou espraiar. Um abraço de afinidade, onde somos enleados pela alma de cada sílaba, em que pulsou o coração do escritor.
Artur da Távola alcança através de sua escrita, o que deseja todo escritor: criar elos nem sempre conhecidos e revelados, onde se espraiam as emoções num misto de reverência e regozijo
Nas palavras de Artur da Távola, deparamo-nos com o infinito, onde nascem os sonhos que dormitam, aguardando pelo encontro entre autor e leitor.
Ao deixarmos nossos olhares na escrita de Artur da Távola, percebemos uma intimidade de gestos e de expressões que vão além da letra consumada e consumida. Suas palavras falam muitas vezes, a palavra do impossível ou do apenas desejado, registrando sob matizes diversos a humanidade do universo, em que se inserem.
Ao lermos Artur da Távola tocamos a alma das palavras. E tanto mais é inquietante e, ao mesmo tempo pacificador este encontro, quanto mais nos permitimos a liberdade do sentir. Nas asas das letras deste escritor alcançamos horizontes inimagináveis, como se fosse o infinito apenas passagem e nunca destino, para aqueles que se permitem este encontro inenarrável com a emoção.

ARTUR DA TAVOLA
Pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros.
Data de nascimento: 03 de janeiro de 1936
Naturalidade: Rio de Janeiro-RJ
Filiação: Paulo de Deus Moretzsohn Monteiro de Barros
Magdalena Koff Monteiro de Barros
Profissões: Advogado, Jornalista, Radialista, Escritor e Professor.
FORMAÇÃO:
Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - 1954-1959.
Especialista em Educação, formado pela CLAFEE (Centro Latino-americano de Formación de Especialistas en Educación). Convênio UNESCO - Universidade do Chile - Santiago - 1965.
ATIVIDADES DOCENTES:
Professor da Escola de Jornalismo da Fundação Gama Filho - 1960.
Professor Chefe de Cátedra de "Periodismo Audiovisual" na Escola de Periodismo e Comunicação da Universidade do Chile - Santiago - 1966 a 1968.
Vice-Diretor da Escola de Periodismo da Universidade do Chile - Santiago - 1966 a 1968.
Professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro - Cadeira: Produção de Rádio e Televisão - 1974 a 1975.
ATIVIDADES PARTICIPATIVAS DIVERSAS:
Presidente da Comissão de reforma da escola de Jornalismo da Universidade do Chile - Santiago - 1967 a 1968.
Membro da Câmara Técnica do Corredor Cultural da Cidade do Rio de Janeiro - 1979.
1º Vice-Presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) - 1980/1981.
Conferencista em mais de cem oportunidades, em vários Estados abordando os temas - Literatura - Comunicação - Política.
Membro do Pen Clube do Rio de Janeiro.
Membro da Comitiva Oficial do Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em visita oficial ao Chile em 1995, para posse do Presidente Ricardo Lagos.
Membro da Comitiva Oficial do Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em visita oficial a Portugal em 1996.
Aula Magna inaugural nas Universidades Federal Fluminense, Gama Filho, UNIRIO e SUAM - 1995. PUC Porto Alegre - 1999.
Membro da Comitiva Oficial do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em visita oficial ao Chile - Março 2000.
Membro da Comitiva Oficial Brasileira que participou da 103ª Conferência Interparlamentar realizada em Aman (Jordânia) - maio de 2000.
Membro da Academia Virtual de Letras Luso-Brasileira - março de 2005.

O carioca Paulo Alberto é o funcionário mais antigo da Rádio MEC, onde estreou em 1957 e apresenta um programa sobre música clássica. Durante 15 anos, foi colunista do jornal O Globo. Também colaborou com revistas da Bloch Editores e há 18 anos escreve “crônicas sobre a vida” no Dia.

POLÍTICA
Político, escritor, intelectual. Arthur da Távola iniciou sua trajetória política como Presidente do Centro Acadêmico Eduardo Lustosa (CAEL) da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica - 1956/57.
Foi eleito Deputado Constituinte do Estado da Guanabara PTN, de 1960 a 1962, e Deputado à Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara - 1962 a 1964. Teve seu mandato cassado por ocasião do AI-5, em 1964, exilando-se de 1964 a 1968 na Bolívia e no Chile.
Retornou ao Brasil em 1968, antes do Ato Institucional nº 5, para participar nas várias formas de luta de idéias e movimentos pacíficos destinados a recuperar o processo democrático no País.
Retornou ao poder legislativo eleito Deputado Constituinte pelo PMDB-RJ, sendo o mais votado da Bancada – 1987, sendo fundador do PSDB no ano seguinte. Alcançou algumas das posições de maior destaque no partido: Líder do PSDB na Assembléia Nacional Constituinte – 1988, Vice-Presidente Nacional, Líder da bancada do PSDB na Câmara dos Deputados em 1994 e, finalmente, Presidente Nacional do PSDB - 1995 a 1997.
Sua identificação com a cultura nacional foi determinante na atuação em diversos cargos como Presidente da Comissão de Assuntos Culturais, Educação, Ciência e Tecnologia do Parlamento Latino americano (1998/1999), Membro do Parlamento Cultural do MERCOSUL (1998/1999), Presidente da Comissão de Educação, Comunicação, Cultura e Esporte - 1997/1998 e Secretário das Culturas do Município do Rio de Janeiro - Janeiro de 2001.
Sob sua direção editou a revista trimestral de Comunicação, Arte e Educação, "CONTATO" que era distribuída graciosamente para as instituições culturais de todo o Brasil com artigos assinados pelos mais eminentes nomes de todas essas áreas. Lamentavelmente com a não reeleição do Senador em 2002 os seguimentos de cultura nacional perderam muito com a ausência deste brasileiro que sempre lutou para que o Brasil não fosse relegado a segundo ou terceiro plano diante das grandes potências mundiais em termos de letras, artes e educação.
CONDECORAÇÕES:
Ordem do Rio Branco Grau de Oficial Brasília, 20 de abril de 1994.
Ordem do Infante D. Henrique Grau de Gran Cruz Lisboa, 20 de julho de 1995.
Ordem de Bernardo O'Higgins Grau de Gran Cruz Santiago do Chile, 9 de março de 1995.
Ordem do Mérito Naval Grau de Grande Oficial Brasília, 11 de junho de 1995.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Colar do Mérito Judiciário Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1995.
Ordem do Mérito Militar Grau de Comendador Brasília, 19 de abril de 1996.
TRABALHOS PUBLICADOS
- Mevitevendo - 1977
- Alguém Que Já Não Fui - 1978
- Cada Um No Meu Lugar - 1980
- Ser Jovem - 1981
- Amor A Sim Mesmo - 1984
- Arte de Ser - 1994
- Diário Doido Tempo - 1996
- Rio: Um olhar de amor - 1997
- Leilão do Mim - 1981
- Do Amor, da Vida e da Morte - 1983
- Em Flagrante - 2000
- Do Amor, Ensaio de Enigma - 1983
- A Liberdade do Ver (Televisão em Leitura Crítica) - 1984
- O Ator - 1984
- Comunicação é Mito - 1985
- Notícia, Hiper-Realismo e Ética - Opúsculo - 1995
- A Telenovela Brasileira - 1996
- Calentura - 1986
- Maurice Ravel, Um Feiticeiro Sem Deus - Livro - 1988
- Vozes do Rio - Opúsculo - 1991
- Orestes Barbosa - Opúsculo - 1993
- Centenário da Morte de Brahms - Opúsculo - 1997
- Cem Anos Sem Carlos Gomes - Opúsculo - 1997
- 40 Anos de Bossa Nova - 1998
- Ataulfo Alves 90 anos - Opúsculo - 1999
- TITO MADI - "O Acento Árabe do Canto no Brasil" - Opúsculo - 1999
- Trinta Anos sem Jacob - Opúsculo - 1999
- Nara Leão, o Canto da Resistência - Opúsculo - 1999
- Raul de Leôni - Opúsculo - 1996
- Monteiro Lobato: O imaginário - Opúsculo - 1997
- A Cruz e Sousa em seu Centenário - Opúsculo - 1998
- Liberdade de Ser - 1999
- Rui Barbosa, A Vitória das Derrotas - Opúsculo - 1999
- Sem Organização Partidária não há Democracia - Opúsculo - 1996
- CPIs "Para não acabar em pizza" - Opúsculo - 1999
- Olimpíadas de 2004 - Opúsculo - 1996
- Flamengo, 100 Anos de Paixão - Opúsculo - 1996
- O Viço da Leitura - Opúsculo - 1997
- Mulher - Opúsculo - 1998
- O Drama da Sexualidade Precoce - Opúsculo - 1998
- Publicação não Disponível para o Comércio
- Poema para Palavra

ENTREVISTA COM ARTUR DA TÁVOLA
Realizada em 14/10/2005, por José Reinaldo Marques da Associação Brasileira de Imprensa.
ABI Online — Por que o pseudônimo?
Artur da Távola — Eu era editor de Cidade na Última Hora e assinava com o meu nome, Paulo Alberto, uma coluna chamada “Cidade livre”. Quando foi decretado o Ato Institucional nº 5, quem, como eu, já tinha problemas políticos precisou se esconder. Quando a coisa foi-se normalizando, o Samuel Wainer me chamou e me aconselhou a arranjar um pseudônimo e passar a escrever sobre televisão. Aí me veio à cabeça o nome de Artur da Távola.

ABI Online — Isso foi logo após seu retorno do exílio?
Artur da Távola — Sim. A convite do Samuel Wainer, fui trabalhar na Última Hora com o Tarso de Castro, o Nelson Motta, que na época era um garoto, e o Luiz Carlos Maciel. E lá encontrei Moacyr Werneck de Castro e Otávio Malta, habituais colaboradores do Samuel.

ABI Online — Quando o senhor decidiu voltar ao Brasil?
Artur da Távola — Vivia no Chile, em 68, quando o Costa e Silva anunciou que os brasileiros que quisessem voltar não seriam incomodados. Só duas pessoas acreditaram nele: o Samuel e eu. Minha primeira mulher veio na frente com meus filhos e eu fiquei na casa do Plínio de Arruda Sampaio. Cheguei um mês depois e fui trabalhar na UH.

ABI Online — Que tipo de comentários o senhor fazia sobre TV?
Artur da Távola — Naquela época era muito comum os intelectuais e os jornalistas arrasarem com a televisão, veículo em que trabalhei no Chile. Mas segui a sugestão do Samuel, no sentido de fazer uma coluna analítica. No começo eu me apresentava como um velho aposentado, que ficava numa cadeira de rodas diante da TV, minha única diversão.

ABI Online — Depois da UH e da Bloch, veio O Globo?
Artur da Távola — Um belo dia, o Evandro Carlos de Andrade, que chefiava a Redação, me chamou para escrever no jornal. Mas eu disse ao Evandro: como é que eu vou fazer crítica de TV no Globo? Ele me disse: “Deixa comigo, vamos tentar.” Durante 15 anos, ele adotou a seguinte técnica: com o Roberto Marinho, defendia a minha posição quando eu criticava a Globo; comigo, defendia a posição do jornal. Quando não tinha jeito, ele me aconselhava a ir conversar com o Dr. Roberto.

ABI Online — Houve algum período mais difícil?
Artur da Távola — Quando ele demitiu o Walter Clark e assumiu a TV, achei que ia complicar, pois, se eu criticasse, estaria criticando o patrão. Mas foi justamente nesse período que ele absorveu muito melhor as minhas críticas. Para alguns colegas, eu fazia “o jogo” da TV Globo. Não era verdade. Muita gente da TV pediu minha cabeça diversas vezes e dizia que eu não podia emitir opiniões contrárias à emissora sendo funcionário das Organizações Globo.

ABI Online — Qual era o tom das suas críticas?
Artur da Távola — Primeiro, analisava mais do que opinava. Depois, destacava o trabalho de profissionais sem bajular a empresa e buscava infiltrar material de crônica na análise que fazia — especialmente nos comentários sobre novelas, que tinha autores muito talentosos, a maioria banida do teatro pela censura e levando material político e de reflexão para o telespectador.

ABI Online — Quanto tempo o durou o seu trabalho como crítico de TV?
Artur da Távola — Eu me demiti em 87, quando fui eleito Deputado e o Mário Covas me convidou para ser relator, na Constituinte, de um capítulo grande que incluía educação, cultura e comunicação, segmento da empresa em que eu trabalhava.

ABI Online — Como avalia seu trabalho como constituinte?
Artur da Távola — Bem, o capítulo da comunicação até hoje está aí, ninguém nunca tentou mudar nada. Todas as defesas contra a censura e pela regionalização de produção e a criação do Conselho de Comunicação nós conseguimos ganhar.

ABI Online — O senhor foi professor de Jornalismo no Chile. Ainda leciona?

Artur da Távola — Não, porque eu notava que apenas 30% dos alunos se interessavam pelas aulas. Cheguei à conclusão de que não valia a pena o esforço e resolvi transformar o meu conhecimento em Comunicação em livros. Escrevi vários sobre o tema.

ABI Online — O senhor escreveu sobre a liberdade de imprensa. Acha que ela vem sendo exercida satisfatoriamente no Brasil?
Artur da Távola — De uns dez anos para cá, tem havido um grande aparelhamento partidário nas redações. É preciso ressaltar que a liberdade de imprensa deverá respeitar também os direitos do receptor da informação, que deverá recebê-la sem condicionamentos, vista de todos os ângulos. Nós, jornalistas, nos preocupamos muito mais com a nossa liberdade de comunicar, que é fundamental, do que com o direito de quem está do outro lado da notícia.

ABI Online — Quando retomou o contato com a imprensa, escrevendo no Dia, foi novamente fazendo crítica de televisão?
Artur da Távola — Não. Eu disse que não gostaria mais de escrever sobre o tema. Então me pediram que fizesse crônicas variadas, e eu topei. Adoro o gênero e o escrevo até hoje. Só no Dia, já são quase 18 anos escrevendo crônicas sem parar.
BI Online — O senhor é uma figura pública e um intelectual de prestígio, que atua com desenvoltura na política, na imprensa e na literatura. Como é dar conta de tantas atividades?
Artur da Távola — Não me considero um intelectual de prestígio, sou uma pessoa respeitada. Inclusive, nos meus livros, eu confesso que sinto falta de prestígio intelectual.

ABI Online — Por quê?
Artur da Távola — Intelectual não lê o que eu escrevo, porque eu tenho muita preocupação de escrever para o grande público. E eu escrevo crônica, que é considerado um gênero menor. Não é, mas foi caracterizado assim.

ABI Online — O senhor se considera vítima de algum tipo de patrulhamento?
Artur da Távola — Quando eu entrei para a política eu acho que tive a coragem de abraçar uma atividade que a intelectualidade não compreendia e até hoje não compreendeu.

ABI Online — Em alguns círculos, dizem que a sua não reeleição para o Senado enfraqueceu o quadro político cujos projetos destacavam a cultura brasileira. O senhor concorda?
Artur da Távola — Acho que isso aconteceu realmente, porque eu me dediquei muito à área. Fui Presidente da Comissão de Educação, Cultura e Comunicação do Senado e participei diretamente dos seis anos de tramitação do projeto de lei de diretrizes e bases da educação no Congresso Nacional, cujo relator foi o Darcy Ribeiro.

ABI Online — Esta sua atuação teve a visibilidade merecida?
Artur da Távola — O que eu posso dizer é que, em termos de mídia, há um abismo entre o que um parlamentar faz em Brasília e a repercussão em seu Estado, a menos que ele se envolva em algum escândalo.

ABI Online — O senhor poderia explicar isso melhor?
Artur da Távola — Ninguém faz cobertura de Comissão ou de trabalho. E isso vem sendo o comportamento geral, principalmente depois que o jornalismo enveredou pela linha da notícia como entretenimento. Este fenômeno não acontece apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Vivemos uma era em que os modelos televisivos influenciam o formato do telejornalismo e da imprensa, embora os jornais ainda tenham articulistas capazes de exercer um papel de reflexão de muito boa qualidade.

ABI Online — Qual é o principal defeito desse jornalismo que o senhor classifica como de entretenimento?
Artur da Távola — É opinar em manchete. Sou de uma geração que nunca usou esse expediente; manchete era só para informar, ainda que fosse sobre algo grandioso e brutal como a guerra. De uma década para cá, é possível observar o quanto as editorias opinam na edição da matéria e das manchetes, muitas vezes em função da competição entre os jornais.

ABI Online — Nesse contexto, de que maneira o público pode ser afetado?
Artur da Távola —Isso leva à tendência de julgamentos muito rápidos e superficiais das matérias, o que não é bom nem para o veículo, nem para o seu público.
ABI Online — Qual é a avaliação que o senhor faz desse comportamento da mídia?
Artur da Távola — O jornalismo vive, atualmente, uma trepidação constante de empresas que têm que alcançar grande tiragem ou audiência para conseguir vender os espaços publicitários que lhes trazem os lucros — que, aliás, não são pequenos.

ABI Online — O que o senhor acha do jornalismo investigativo brasileiro?
Artur da Távola — A tecnologia ajudou muito no desenvolvimento desse campo do jornalismo, com suas máquinas de capturar som e imagem. Mas em certos momentos ele se deixa contaminar pelo denuncismo. Às vezes há uma tendência de se tratar o indício como sintoma, o sintoma como fato, o fato como julgamento, o julgamento como condenação e a condenação como linchamento.

ABI Online — E quais seriam os pontos positivos da investigação jornalística?
Artur da Távola — Há uma emersão de talento no jornalismo brasileiro da ditadura para cá. Muita podridão tem vindo à tona graças ao esforço do jornalismo e aos seus defeitos, que vão se corrigindo no andamento do processo. Acho que os jornalistas mais conseqüentes se deram conta desse problema e têm lutado contra a arrogância do jornalismo e o autoritarismo enfático nos veículos de grande circulação.

ABI Online — De que tipo de linha editorial o senhor sente falta?
Artur da Távola — Do jornalismo de idéias, que marcou um tempo e também sumiu.

ABI Online — Por exemplo?
Artur da Távola — Os jornais comunistas, católicos etc., todos eles refluíram para publicações mais fechadas e mais alternativas. Na Europa, os jornais do Partido Comunista ainda se mantêm, mas há uma tendência à diluição, principalmente depois da queda do Muro de Berlim. Mas há outros aspectos relevantes que eu poderia destacar sobre a mídia nacional.

ABI Online — Quais?
Artur da Távola — Há um que nunca é observado e acontece com muito mais freqüência na TV: deprimir a população nos noticiários e euforizá-la nos comerciais. Trata-se de uma estratégia do sistema produtor, para mostrar que tudo o que vem do consumo, da indústria e do capital é a beleza, é a gente alegre e vencedora. Então, teoricamente, o que tem a ver com a realidade deprime e o que tem a ver com o consumo euforiza.

ABI Online — Todos os veículos de comunicação trabalham nessa linha?
Artur da Távola — Como eu já citei, o jornal ainda é um reduto de articulistas de alto grau de independência, até porque os donos de jornais sabem que há uma massa crítica no País que precisa ser alimentada. E a TV a cabo dá também uma cota muito interessante de matéria para o público mais exigente e formador de opinião. No rádio predomina o populismo, tanto na faixa AM como na FM.

BI Online — Dá para o senhor fazer uma análise do populismo do rádio em relação à qualidade do seu noticiário?
Artur da Távola — O radiojornalismo tornou-se mais urgente do que analítico, ou seja, a rapidez da informação é mais importante do que aprofundar e analisar o assunto.

ABI Online — Essa correria não aumenta o risco de erros de reportagem?
Artur da Távola — A pressa do furo determina algumas conclusões nem sempre adequadas, pois muitas vezes as fontes não são checadas.

ABI Online — Como o senhor avalia os investimentos em programas jornalísticos que vêm sendo feitos pelas emissoras de rádio e TV?
Artur da Távola — Apesar da urgência das matérias, aumentaram os investimentos no jornalismo. A quantidade de repórteres que as emissoras têm hoje é muito grande. Nunca houve uma fase como essa, com tantos jornalistas trabalhando em várias frentes até nos veículos mais populares.

ABI Online — O senhor é um homem que atua em várias frentes. Como dá conta de tantas tarefas?
Artur da Távola — Às vezes eu mesmo me espanto. Afinal, vou completar 70 anos... Toda semana, faço três crônicas para O Dia, dois programas na Rádio MEC, quatro no Senado (três de rádio e um de TV) e um de música erudita na TV Cultura, em São Paulo. Como gosto de todas essas coisas, consigo dar conta.

ABI Online — Qual das atividades lhe dá mais prazer?
Artur da Távola — Todas se equivalem, mas tenho uma paixãozinha secreta pelo rádio. Em função da tecnologia, sua comunicação com o ouvinte, na sua escuta solitária, traz um grau de intimidade e aceitação maior que o da televisão. Esta é dominada pelo olhar, mais volúvel que a audição.

ABI Online — Quando se deu seu primeiro contato com o rádio?
Artur da Távola — Na juventude. E o meu primeiro emprego jornalístico foi na Rádio MEC, que ano que vem faz 70 anos, como eu. Atualmente sou o funcionário mais antigo da emissora.

ABI Online — Sua formação jornalística vem da Rádio MEC?
Artur da Távola — Ali fui obrigado a improvisar, o que era essencial nas transmissões externas antigamente e me deu uma boa base. Outra experiência notável na minha vida foi a passagem pelo jornal O Metropolitano, da União Metropolitana dos Estudantes. Ele era todo feito por estudantes e circulava encartado no Diário de Notícias, aos domingos. Foi onde eu aprendi a fazer jornalismo impresso. Depois, tive forte influência do Samuel Wainer, que foi um grande mestre.

ABI Online — E de onde vem o seu estilo como cronista?
Artur da Távola — Do ponto de vista literário, sempre fui um enamorado da crônica, que é um dos gêneros mais encontrados na coleção de livros que mantenho em casa. É uma pena que ela esteja desaparecendo do jornalismo. Na minha concepção, a crônica é tão importante para um jornal como um jardim é para uma cidade.

ABI Online — O senhor recebe muitas manifestações de leitores sobre suas crônicas?
Artur da Távola — Sim. O que eu não tenho em prestígio intelectual, recebo dos leitores participantes. No Dia, chegam muitas cartas e e-mails.

ABI Online — O senhor mencionou há pouco sua coleção de livros...
Artur da Távola — Além dos livros de crônicas, também coleciono obras sobre música e biografias de santos, que leio por um interesse misterioso que não sei qual é. Estas são as três coisas que eu mais leio habitualmente.

ABI Online — Quantos volumes tem a sua biblioteca?
Artur da Távola — Cerca de 4 mil, mas já teve muito mais. Recentemente doei essa mesma quantidade de livros a uma universidade.

ABI Online — E o seu acervo musical?
Artur da Távola — Também tenho cerca de 4 mil discos e uma coleção formidável de publicações sobre música, de coisas recentes às antigas, compradas em sebos. Estou escrevendo um livro sobre música clássica, em que enumero as cem obras indispensáveis desse segmento e comento cada uma.

ABI Online — Em que estágio se encontra a cultura nacional?
Artur da Távola — O Brasil tem uma capacidade descomunal de produção cultural, mas tem problemas nos canais de distribuição da cultura. Política cultural que não cuide desse processo não é política para o povo brasileiro. Outro ponto negativo é que se gasta muito dinheiro proveniente da Lei Rouanet com a aprovação de projetos muito caros, quando se poderia viabilizar eventos mais baratos e irradiar a ação cultural até as periferias.

ABI Online — O que o senhor acha do trabalho de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
Artur da Távola — Sou suspeito para falar do Gil porque gosto muito dele, sou seu amigo, mas discordo dos que reclamam do fato de ele estar no Ministério e continuar sendo um artista. Acho importantíssimo ter um artista como Ministro. E o Gil sabe perfeitamente distinguir o que é oficial da sua carreira. Ele não pode fazer mais porque o Ministério da Cultura não tem dinheiro; a verba só dá para fazer a manutenção do que já existe.

ABI Online — Então, o que é preciso mudar na política cultural do País?
Artur da Távola — Investir mais dinheiro e considerar que a cultura é um bem de primeira necessidade que tem tudo a ver com a evolução civilizadora do povo. A cultura é tão importante quanto gastar dinheiro com estrada e com saúde.

ABI Online — Fale da sua relação com a Associação Brasileira de Imprensa.

Artur da Távola — Quando retornei do exílio, fui chamado para ser Vice-Presidente da ABI pelo Dr. Barbosa Lima Sobrinho. Este é um grande momento da minha vida e do qual tenho um grande orgulho. Fiquei encarregado da parte de assistência social. E há uma passagem que eu nunca vou esquecer.

ABI Online — Qual?

Artur da Távola — Foi o período em que a direita estava colocando bombas em bancas de jornal. Um dia nós fomos chamados por causa de uma bomba que havia sido colocada na ABI. Encontramos o Dr. Barbosa Lima na portaria com os bombeiros. Ele, que era um homem muito sereno, naquele dia nos deu uma bronca e disse: “Vocês não vão entrar, porque eu é que sou um homem idoso e que já cumpri com os meus deveres com a vida e, se eu tiver que explodir, vocês têm que ficar para continuar a luta.”

ABI Online — E a sua participação na ABI atualmente?

Artur da Távola — Hoje eu olho o Conselho e vejo pessoas que lutaram a vida inteira por uma causa política. São colegas que já estão fora do poder dentro da imprensa, mas continuam lutando para erguer a instituição.


Fontes:
http://www.fernandaguimaraes.com.br/textos/artur/apresentacao_artur_tavola.html

James Joyce (1882 - 1941)

James Augustine Aloysius Joyce (Rathgar, Irlanda, 2 de Fevereiro de 1882 - Zurique, Suíça, 13 de Janeiro de 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnicius Revém (1939) - o que se poderia considerar um "cânone joyceano".

Embora Joyce tenha vivido fora de seu país natal pela maior parte da vida adulta, suas experiências irlandesas são essenciais para sua obra e fornecem-lhe toda a ambientação e muito da temática. Seu universo ficcional enraíza-se fortemente em Dublin e reflete sua vida familiar e eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e faculdade. Desta forma, ele é ao mesmo tempo um dos mais cosmopolitas e um dos mais particularistas dos autores modernistas de língua inglesa.

Irlanda
O mais velho de dez filhos, James Joyce nasce em uma abastada família católica no subúrbio de Rathgar, em Dublin. A família de seu pai, proveniente de Cork, era de ricos comerciantes. Em 1887, o pai, John Stanislaus Joyce, antes secretário em uma destilaria, foi nomeado coletor de taxas imobiliárias pela Dublin Corporation (o Conselho Municipal); a família se muda então para o novo e elegante subúrbio de Bray. No ano seguinte, o menino começa sua educação no Clongowes Wood College, um internato no Condado de Kildare.

Em 1891, James escreveu um poema, Et Tu Healy, sobre a morte de Charles Stewart Parnell. Seu pai fê-lo imprimir e até mandou uma cópia para a biblioteca do Vaticano. Em novembro do mesmo ano, o nome John Joyce foi inscrito na Stubbs Gazette (um registro oficial de falências) e afastado do trabalho. Em 1892, James tem de sair de Clongowes pois seu pai não podia mais pagar por sua matrícula; em 1893, John foi demitido com uma pensão. Assim começou uma descida rumo à pobreza para a família, principalmente devido ao consumo de álcool por John e sua inaptidão financeira em geral. John Joyce foi o modelo para o caráter de Simon Dedalus no Retrato do Artista Quando Jovem e Ulisses, assim como do tio do narrador em diversos contos de Dublinenses.

Após Clongowes, Joyce estudou em casa e por um breve tempo na escola dos Christian Brothers na rua Richmond norte, antes que se lhe oferecesse uma vaga na escola jesuíta de Dublin, o Belvedere College, em 1893. A oferta foi feita, ao menos em parte, na esperança de que se demonstrasse que ele tinha uma vocação e se juntaria à Companhia de Jesus. Joyce, porém, rejeitou o catolicismo aos dezesseis; apesar disso, a filosofia de Tomás de Aquino permaneceria uma de suas fortes influências por toda a sua vida.

Ele se matriculou no University College Dublin em 1898. Ele estudou línguas modernas, especificamente inglês, francês e italiano. Também envolveu-se com os círculos teatrais e literários da cidade. Sua resenha do Novo Drama de Henrik Ibsen foi publicada em 1900 pela Forthnightly Review e resultou numa carta de agradecimento pelo próprio dramaturgo norueguês. Joyce escreveu alguns outros artigos e pelo menos duas peças (uma delas intitulada A Brilliant Carreer, "Uma Carreira Brilhante"; ambas desde então se perderam) durante este período. Muitas das suas amizades do University College aparecem como personagens nos livros de Joyce.

1902-4: Anos decisivos
Joyce foi a Paris pela primeira vez em 1902 para estudar medicina (à época, havia também um efervescente movimento artístico em Montparnasse e Montmartre). Em 1903, retorna à Irlanda, pois sua mãe morria de câncer. Busca manter-se como jornalista e professor particular. Em janeiro do ano seguinte, escreve Um Retrato do Artista, um ensaio-narrativa sobre estética, em um dia, mas a obra é recusada pela revista livre-pensante Dana. Em seu vigésimo-segundo aniversário, decide revisar a história e transformá-la num romance que ele planejava chamar Stephen Hero (Stephen Herói). No mesmo ano, publica seu primeiro trabalho na idade adulta: a sátira desaforada O Santo Ofício, na qual proclamava-se superior a muitos membros proeminentes da Renascença Céltica e afirma sua herança lingüística inglesa.

Ainda em 1904 ele conheceu Nora Barnacle, uma jovem do Condado de Galway, que trabalhava como camareira e viria a ser sua companheira por toda a vida. Em 16 de junho, eles saíram pela primeira vez, embora a natureza do encontro não seja conhecida com precisão; a data é comemorada na obra de Joyce, pois nela se passa Ulisses. Joyce ainda permanece em Dublin por um tempo, bebendo bastante. Vai morar com o estudante de medicina Oliver St John Gogarty, que serviu de base para a personagem Buck Mulligan em Ulisses. Depois de dormir por seis noites na Torre Martello, de Gogarty, ele sai após ambos discutirem, embebeda-se em um bordel e envolve-se numa briga, da qual é resgatado por Alfred Hunter, um conhecido de seu pai; Hunter, um judeu irlandês, fornece o modelo para Leopold Bloom, o herói de Ulisses.

Trieste
Pouco depois, ele foge com Nora. O casal parte em exílio auto-imposto, indo primeiro para Pula (hoje na Croácia) e depois Trieste (Itália), ambas então na Áustria-Hungria, para ensinar inglês na escola Berlitz. Um de seus alunos triestinos foi Ettore Schmitz; eles se conheceram em 1907, e por longo tempo foram amigos e críticos mútuos. Joyce passou a maior parte das décadas seguintes no Continente. Aí nasceriam seus filhos Giorgio (1905) e Lucia (1907; seu nome pronuncia-se à italiana, como Lutchía).

Joyce publica, em 1907, Música de Câmara (Chamber Music) (batizada, segundo ele afirmou, a partir do som de urina num penico, chamber pot) uma antologia de 36 poemas líricos curtos. A obra, inspirada na poesia do período elisabetano (i.e. autores como William Shakespeare), levou à sua inclusão na Antologia Imagista, editada por Ezra Pound, que mostraria ser como um defensor de Joyce por mais de uma década.
Em visitas a Dublin, abre o primeiro cinema da cidade, o Volta, em 1909, mas fracassa; depois, em 1912, desentende-se com um editor sobre sua nova obra, e publica contra ele, no mesmo ano, Gás de um Bico (Gas from a Burner).

A obra que Joyce queria fazer sair em sua cidade natal era Dublinenses, uma série de quinze contos sobre a cidade e a vida de seus habitantes. Os contos são uma análise penetrante da estagnação e paralisia da sociedade de Dublin. Incorporam epifanias, uma palavra usada particularmente por Joyce, que para ele significava uma súbita consciência da "alma" de algo.

Apesar de seu interesse por teatro desde a juventude, Joyce publicou apenas uma peça, Exilados, iniciada em Trieste logo após a erupção da Primeira Guerra Mundial e publicada em 1918. Um estudo da relação marido-mulher, a peça conecta-se com a obra anterior "Os Mortos" (o último conto dos Dublinenses) e com a posterior Ulisses.
Esta também foi iniciada na cidade italiana em 1914, e ainda levaria muitos anos para ser completada e publicada. Porém, começada a guerra, a permanência dos Joyce em território austro-húngaro se torna impossível, já que eram cidadãos britânicos e, portanto, inimigos. Assim, em 1915, Joyce e Nora se mudam para a neutra Suíça; após breves estadas em outras cidades, se estabelecem em Zurique.

Zurique
Eventos importantes da primeira estadia suíça de Joyce são a publicação de Exilados, a continuidade da composição de Ulisses, a primeira crise de iridite, que iria piorando sua visão ao longo das décadas, e a publicação de seu primeiro romance, Retrato do Artista Quando Jovem.

O Retrato é uma recriação completa do romance abandonado "Stephen Herói". Autobiográfico em larga medida, o romance mostra a obtenção de maturidade e auto-consciência de um jovem inteligente. O protagonista é Stephen Dedalus, a representação joyceana de si mesmo. Neste romance, é possível vislumbrar técnicas posteriores do escritor, no uso do monólogo interior e na maior preocupação com o psíquico em relação à realidade externa. Além disso, a linguagem se desenvolve ao longo do livro, conforme o personagem cresce, amadurece e torna-se capaz de narrar seu mundo de uma maneira mais sofisticada.

Paris
Finda a guerra, Joyce retorna a Paris em 1920 onde, exceto por duas visitas à Irlanda, permaneceu pelos vinte anos seguintes. É morando na Cidade-Luz que Joyce sofre diversas operações nos olhos a partir de 1924, conclui suas duas maiores obras, obtendo amplo reconhecimento pelo Ulisses e reações diversas pelo Finnicius Revém, e torna-se uma referência para os modernistas de língua inglesa, especialmente jovens irlandeses como Samuel Beckett. É também durante este período, em 1931, que James e Nora se casam, em Londres.

Poesia
Joyce publicará, em 1927, seu segundo livro de poesia, Pomas, um Tostão Cada. Escreve também Ecce Puer, um poema escrito em 1932, sobre dois eventos próximos, a morte de seu pai e o nascimento de seu neto. Publica-os, juntamente com a demais obra poética, em Collected Poems (Poesia reunida), em 1936.

Ulisses
Em 1906, enquanto terminava Dublinenses, Joyce considerou adicionar outro conto, sobre um negociante de anúncios judeu chamado Leopold Bloom sob o título Ulisses. A história não foi escrita, mas a idéia permaneceu e, em 1914, Joyce começou a trabalhar num romance usando tanto este título quanto a premissa básica, tendo-o completo em outubro de 1921.

Graças a Ezra Pound, trechos do romance começaram a ser publicados na revista The Little Review em 1918. Esta revista era editada por Margaret Anderson e Jane Heap, com o apoio de John Quinn, um advogado de Nova York interessado em arte e literatura experimentais contemporâneas. Infelizmente, houve problemas desta serialização com a censura norte-americana, e em 1920 os editores foram condenados por publicar obscenidades, o que interrompeu a publicação serial do romance. O livro permaneceu proscrito nos EUA até 1933.

Joyce encontrou dificuldades para encontrar quem publicasse seu livro, pelo menos em parte devido a esta contrariedade. Mas a Shakespeare and Company, uma famosa livraria da Margem Esquerda parisiense, de propriedade de Sylvia Beach, publicou-o em 1922. Uma edição inglesa publicada no mesmo ano pela mecenas de Joyce Harriet Shaw Weaver encontrou novas dificuldades com autoridades estadunidenses, e 500 cópias enviadas aos EUA foram confiscadas e possivelmente destruídas. No ano seguinte, John Rodker imprimiu uma tiragem de mais 500, destinadas a substituir as cópias faltantes, mas estes livros foram queimados pela alfândega inglesa em Folkestone. Uma outra conseqüência do status legal ambíguo de Ulisses como um livro proscrito foi a aparição de várias versões "bootleg", mais notavelmente versões piratas do editor Samuel Roth. Em 1928, conseguiu-se um mandado judicial contra Roth e ele parou a publicação.

Ulisses e a ascensão do modernismo literário
1922 foi um ano fundamental na história do modernismo na literatura de língua inglesa, com a publicação tanto de Ulisses quanto do poema The Waste Land, de T. S. Eliot. Em seu romance, Joyce utiliza-se do fluxo de consciência, da paródia, de piadas e virtualmente todas as demais técnicas literárias para apresentar seus personagens. A ação do livro, que se desenrola em um único dia, 16 de junho de 1904, situa os personagens e incidentes da Odisséia de Homero na Dublin moderna e representa Odisseu (Ulisses), Penélope e Telêmaco em Leopold Bloom, sua esposa Molly Bloom e Stephen Dedalus, cujos caracteres contrastam com seus altivos modelos, parodiando-os. O livro explora diversas áreas da vida dublinense, estendendo-se sobre sua degradação e monotonia. Ainda assim, o livro também é um estudo afeiçoadamente detalhado sobre a cidade, e Joyce afirmava que se Dublin fosse destruída por alguma catástrofe, poderia ser reconstruída tijolo por tijolo, usando como modelo sua obra. Para atingir este nível de precisão, Joyce usou uma edição de 1904 do Thom's Directory - uma obra que listava os proprietários e/ou possuidores de cada imóvel residencial ou comercial da cidade. Ele também enxurrava amigos que ainda viviam na cidade com pedidos de informação e esclarecimentos.

O livro consiste em dezoito capítulos, cada um cobrindo aproximadamente uma hora do dia, começando por volta das 8 da manhã e terminando em algum ponto após 2 da madrugada seguinte. Cada um dos dezoito capítulos emprega seu próprio estilo literário. Cada um deles também se refere a um episódio específico da Odisséia de Homero e tem associado a si uma cor, arte ou ciência e órgão do corpo humano. Esta combinação de escrita caleidoscópica com uma estrutura extremamente formal e esquemática é uma das maiores contribuições do livro para o desenvolvimento da literatura modernista do século XX. Outras são uso da mitologia clássica como a armação para a construção do livro e o foco quase obsessivo nos detalhes exteriores num livro em que muito da ação relevante ocorre dentro das mentes dos personagens. Ainda assim, Joyce queixou-se: "talvez eu tenha supersistematizado Ulisses," e minimizado as corrrespondências míticas pela eliminação dos títulos dos capítulos, emprestados a Homero.

Escrevendo o Finnicius Revém
Ao que parece, tendo terminado Ulisses, Joyce sofreu um período de bloqueio criativo. Em 10 de março de 1923 ele começou a trabalhar num texto que seria conhecido, inicialmente, como Work in Progress ("Obra em andamento") e depois Finnegans Wake (Finnicius Revém, na tradução brasileira de Donaldo Schüler). Em 1926 as duas primeiras partes do livro estavam completas. Naquele ano, ele conheceu Eugène e Maria Jolas que propuseram ir publicando o trabalho em sua hoje legendária revista transition. Sem este apoio, é possível que o livro nunca fosse terminado ou publicado.

Por alguns anos depois disso, Joyce progrediu com rapidez, mas na década de 1930, desacelerou consideravelmente. Isso deveu-se a uma série de fatores, incluindo a morte de seu pai em 1931, preocupação com a saúde mental de sua filha Lucia e seus próprios problemas de saúde, incluindo a visão que ia diminuindo. Boa parte do trabalho era feito então com a ajuda de jovens admiradores, entre eles Samuel Beckett. Por alguns anos, Joyce alimentou o excêntrico plano de entregar o trabalho para ser completo por seu amigo James Stephens, baseado no fato de que Stephens nascera no mesmo hospital que Joyce, exatamente uma semana depois, e tinha o nome tanto do autor quanto de seu alter ego ficcional (este é um exemplo das numerosas superstições de Joyce).

As seções originais a aparecer em transition receberam reações diversas, incluindo comentários negativos de antigos apreciadores da obra de Joyce, como Pound e Stanislaus Joyce, irmão do autor. Como reação a esta recepção hostil, apoiadores do novo livro, entre os quais Beckett e William Carlos Williams, organizaram um livro de ensaios. Ele foi publicado em 1929 sob o título Our Exagmination Round His Factification For Incamination Of Work In Progress. Na festa de seus 57 anos na casa dos Jolas, Joyce revelou o título final da obra e em 4 de maio o Finnegans Wake é publicado como livro.

Estilo e estrutura do Finnicius Revém
O método joyceano dos fluxos de consciência, alusões literárias e livres associações oníricas foi levado até o limite em Finnicius Revém (Finnegans Wake), que abandonou todas as convenções de construção de enredo e personagem e é escrito numa linguagem peculiar e árdua, baseada principalmente em complexos trocadilhos de múltiplos níveis. Esta abordagem é similar à usada por Lewis Carroll em "Jabberwocky", mas muito mais extensa. Se Ulisses é um dia na vida de uma cidade, o Wake é uma noite e compartilha da lógica dos sonhos. Isto fez com que "Livro Azul inutilmente ilegível, numa tradução simples", a freqüentemente citada descrição de Ulisses no Wake, fosse aplicada por muitos leitores e críticos ao próprio Wake. Entretanto, foi-se chegando a um consenso sobre o elenco central de personagens e enredo geral.

Além do uso freqüente de neologismos e arcaísmos, muito do jogo de palavras do livro enraíza-se no uso de trocadilhos multilíngües que conectam uma gama de idiomas. O papel de Beckett e outros assistentes incluiu reunir palavras destes idiomas em cartões para Joyce usar e, à medida em que a visão do autor piorava, escrever o texto enquanto ele ditava.

A visão de história proposta neste texto sofre influência muito forte de Giambattista Vico, e a metafísica de Giordano Bruno de Nola é importante para as interrelações dos "personagens". Vico propunha uma visão cíclica da história, na qual a civilização se erguia do caos, passava por fases teocráticas, aristocráticas e democráticas e retornava novamente ao caos. O exemplo mais óbvio da influência da filosofia cíclica da história de Vico encontra-se nas sentenças de abertura e fechamento do livro. Finnicius Revém começa com as palavras (na tradução brasileira de Donaldo Schüler): aqui, pretendo citar um trecho da tradução. Já foi feito o contato com a editora para solicitar a permissão por escrito. Em outras palavras, a primeira sentença começa na última página e a última sentença na primeira, tornando o livro um grande ciclo. Inclusive, Joyce disse que o leitor ideal do Finnicius sofreria de uma "insônia ideal" e, ao completar o livro, retornaria à página um e começaria novamente, e assim por diante num ciclo infinito de releituras. Inclusive, a tradução proposta para o título remete a fim + início, com o us no final podendo aludir a línguas como o latim e o francês, referidas também no original (fin-again, fim-de-novo).

Legado
Com a erupção da Segunda Guerra Mundial, Joyce teve de deixar Paris e por fim volveu a Zurique, quase cego, em 1940. No começo do ano seguinte, morre de úlcera duodenal perfurada e peritonite generalizada, durante uma operação para salvar sua vida . Está enterrado no Cemitério de Fluntern, naquela cidade, junto com Nora.

A obra de Joyce foi submetida a pesquisas intensas por estudiosos de todos os tipos, e ele é um dos autores mais notáveis do século XX. Também foi influência importante para autores tão diversos quanto Beckett, Jorge Luis Borges, Flann O'Brien, Máirtín Ó Cadhain, Salman Rushdie, Thomas Pynchon, William Burroughs e muitos outros.

A influência de Joyce também se faz sentir em campos alheios à literatura. A frase "Three Quarks for Muster Mark", no Finnicius Revém, é a fonte para a palavra quark, na Física, que designa um dos muitos tipos de partícula elementar. O nome foi proposto pelo físico Murray Gell-Mann. O filósofo francês Jacques Derrida publicou um livro sobre o uso da linguagem em Ulisses, e o filósofo americano Donald Davidson fez o mesmo com o Finnicius Revém, comparando-o com Lewis Carroll.

Celebra-se anualmente a vida de Joyce no dia 16 de junho, o Bloomsday, em Dublin e num número cada vez maior de cidades ao redor do mundo. Em 2004, a capital irlandesa realizou o festival Bloomsday 100, que durou cinco meses (de abril a agosto) e se propunha a reaproximar a cidade e a obra de seu estimado filho. Um dos maiores eventos foi um café da manhã para milhares de pessoas na O'Connell Street, a principal da cidade.

Obra
Música de Câmara (1907)
Dublinenses (1914)
Retrato do Artista Quando Jovem (1916)
Exilados (1918)
Ulisses (1922)
Pomas, um Tostão Cada (1927)
Finnegans Wake (1939)

Fonte:


segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Trovadorismo

Literatura Medieval - o Trovadorismo

Para conhecer a literatura medieval, precisamos, antes, conhecer um pouco da Idade Média, relembrar as aulas de História.

A Idade Média foi o tempo em que nasceram as nações européias como as conhecemos hoje. Para que isso ocorresse, foi necessário encerrar o período feudalista, em que o poder estava nas mãos dos senhores feudais, e restabelecer o poder dos reis, reconhecendo neles a autoridade de governo. Isso só foi possível graças ao Renascimento Comercial.

As viagens dos mercadores ao Oriente colocaram os europeus em contato com uma realidade diferente. No Oriente, havia cidades prósperas, bonitas, e um comércio intenso de produtos requintados há muito tempo ignorados pelos europeus. Ao poucos, os mercadores intensificaram o comércio com o Oriente, inicialmente pelo Mediterrâneo, a partir das cidades italianas de Gênova e Veneza. Por mar e por terra, as rotas comerciais se expandiram em todas as direções, fazendo surgir novas cidades e enriquecendo uma nova classe social: a dos burgueses comerciantes.
A força do dinheiro dos burgueses chamou a atenção dos reis, que logo se aliaram a eles, enfraquecendo o poder da nobreza (senhores feudais) e da igreja. Apoiados pelo dinheiro dos burgueses, recolhido na forma de impostos, os reis quiseram demonstrar a sua força: organizaram exércitos sob o seu comando, instituíram leis para todo o país, estabeleceram uma língua única e deram vida nova às suas cortes.

A formação de Portugal se deu numa época de transição em que se percebe o sistema feudal em crise e, em contrapartida, o crescimento das atividades mercantis em áreas urbanas. Como afirmam Oscar Lopes e Antônio J. Saraiva no livro História da literatura portuguesa: “Na época em que Portugal se constitui como estado independente, em meados do século XII, encerra-se a chamada “Idade das Trevas”, isto é, a idade em que a economia, a sociedade, a vida política e a cultura estiveram dominadas pela economia rural de auto-subsistência. Começa a desenvolver-se a economia mercantil; em face dos castelos brotam as vilas e cidades povoadas de “burgueses”. Os produtos da terra começam a ser lançados e procurados nos mercados pela gente citadina. Entre o senhor, que usufrui do rendimento da terra, e o servo que o produz, novas classes se instituem, quer ligadas ao trabalho rural, como os pequenos proprietários e os rendeiros livres, quer a novas atividades econômicas, como os mercadores e os negociantes de dinheiro.”

Muito característico também dessa época é o espírito de intensa religiosidade. Grande parte das atividades sociais estava relacionada à Igreja, o homem medieval vivia sob o medo e o temor de Deus, a produção cultural estava, pois, toda ela sujeita à aprovação do clero. Enfim, Deus estava no centro de todas as preocupações.
É por isso que se denomina essa época de teocêntrica.

Seria interessante, também, lembrar as relações de vassalagem entre o senhor feudal e os servos. Essa mesma rigidez e distanciamento vão ser transportados para o relacionamento amoroso na poesia, sob a denominação de amor cortês. Todas essas marcas estarão visíveis na produção artística da época, especialmente na literatura.

Cantigas e Trovadores

É nessa época que surgiram os primeiros textos literários: as cantigas trovadorescas, assim chamadas porque eram compostas e cantadas pelos trovadores, que eram acompanhados por instrumentos musicais como o alaúde, a flauta, a viola, a gaita etc.

Essas composições eram poesias feitas para serem cantadas nas feiras ou nos castelos, só mais tarde foram reunidas em cancioneiros, sendo os mais importantes: o da Ajuda, o da Biblioteca Nacional e o do Vaticano. (As cantigas têm um correspondente na arte popular brasileira: as trovas dos repentistas do Nordeste, que tanto divertem os turistas nas feiras e nas praias).

O texto mais antigo desse período, segundo Carolina Michaelis, é a Canção da Ribeirinha (também conhecida como Canção de Guarvaia), de Paio Soares de Taveirós.

Tipos

Compostas e cantadas no idioma galego-português (comum a Portugal e à Galícia, pois o português propriamente dito ainda não se desenvolvera), as cantigas se dividem em dois tipos: líricas (cantigas de amor e de amigo) e satíricas (de escárnio e maldizer).

As cantigas de escárnio e maldizer eram feitas para ridicularizar alguém, numa linguagem simples, popular e, muitas vezes, obscena.

As cantigas de amor tiveram origem em Provença, no sul da França. Chegaram a Portugal nos contatos entre as cortes e por meio dos romeiros e peregrinos em viagem aos lugares santos. Como se adivinha pelo nome, tratam do relacionamento amoroso e inauguram a forma do amor cortês, em que os trovadores declaram seu amor a uma dama (de posição social superior), pedindo-lhe que aceite sua devoção e colocando-se, submisso, à sua disposição – em uma relação muito parecida com a suserania e vassalagem, percebida na estrutura social medieval.

As cantigas de amigo, ao contrário, tiveram origem na própria Península Ibérica e apresentam uma diferença fundamental em relação à cantiga de amor, o trovador compõe sua cantiga como se fosse uma mulher contando o seu sofrimento à espera do namorado (chamado amigo). Nessa composição, os elementos da natureza (flores, árvores, praias etc.) aparecem assim como pessoas do ambiente familiar (mãe, amigas etc) atribuindo à cantiga um caráter popular. (Modernamente, Chico Buarque de Holanda, em muitas de suas composições, dá voz a uma mulher que canta seus sofrimentos de amor).

A TROVA

Segundo o trovador paranaense A. A. de Assis, a língua portuguesa nasceu cantando trovas, isso há mais de mil anos, na voz dos jograis e menestréis que iam de cidade em cidade espalhando os seus versos.Cultivara-se a trova inicialmente no sul da França, de lá se espalhando por toda a Europa, até encontrar na Espanha e, finalmente, em Portugal, o seu mais fértil canteiro.

Nas cortes portuguesas a trova alcançou grande esplendor. Era a poesia dos reis, como o célebre Dom Dinis; dela se serviram Gil Vicente e Camões; mais recentemente, cantaram em trovas Augusto Gil, Antônio Correia de Oliveira, Fernando Pessoa.

Ao Brasil a trova chegou nas caravelas de Cabral. Facilmente aclimatou-se, caiu no gosto do povo, e até hoje perdura, ganhando a cada dia mais adeptos. Cultivou-a José de Anchieta; passou por Gregório de Matos; pelos árcades (Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa); pelos românticos (Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves); pelos parnasianos (Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho); pelos simbolistas (Cruz e Souza, Alphonsus de Guimarães; pelos modernistas (Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drumonnd de Andrade)...

Mas a grande expansão da trova no Brasil, com repercussão imediata em Portugal, deu-se mesmo a partir de 1956, com o lançamento de "Meus irmãos, os trovadores", uma coletânea de duas mil trovas organizada por Luiz Otávio, na época o trovador mais conhecido em todo o país. No livro aparecem, entre centenas de outros autores, alguns poetas já consagrados e que se especializaram em trovas: Adelmar Tavares (o primeiro trovador a ingressar na Academia Brasileira de Letras), Bastos Tigre, Belmiro Braga, Lilinha Fernandes.

Tamanho foi o sucesso da obra, que a trova ganhou espaço na maioria dos jornais e revistas e também em numerosos programas de rádio. Em 1959, Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge, com apoio do jornal carioca "O Globo", lançaram os I Jogos Florais de Nova Friburgo, ponto de partida para a consolidação do movimento literário mais amplo e bem organizado de que se tem notícia da literatura brasileira.

Os Jogos Florais foram muito populares na Idade Média. Era um torneio cultural promovido anualmente em Toulouse, França, inspirado em tradições originárias da Roma antiga. Por se realizar na primavera, esse torneio, que envolvia várias modalidades literárias, oferecia prêmios (troféus) em forma de flores, daí o nome "Jogos Florais".

Os I Jogos Florais de Nova Friburgo constaram de um grande concurso de trovas, com o tema "amor". A festa de premiação, em maio de 1960, reuniu na bela cidade serrana fluminense, além dos vencedores do concurso, outros ilustres intelectuais, entre os quais Antônio Olinto, Eneida, Jorge Amado, Manuel Bandeira. Dali por diante, dezenas de outras cidades passaram a promover torneios semelhantes, alguns com o nome de Jogos Florais, outros simplesmente como concursos de trovas. Na maioria dessas cidades, a festa hoje faz parte do calendário de eventos, constituindo importante atração turística.

O concurso de trovas propõe um ou mais temas, a partir dos quais trovadores de todo o Brasil e também de Portugal produzem seus versos. Ao final do prazo estabelecido para remessa dos trabalhos, uma comissão julgadora seleciona as trovas premiadas (vencedoras, menções honrosas e menções especiais).

Os autores das trovas contempladas são convidados a comparecer à cidade promotora do concurso para uma festa que dura de um a três dias. Nessa ocasião, além de passeios, recitais e outros programas, faz-se uma reunião solene para entrega dos prêmios (diplomas, troféus e medalhas). Não há prêmio em dinheiro. Quando há recursos disponíveis, os premiados ganham hospedagem e refeições, mas as despesas de transporte correm por conta de cada um. Por ser um movimento literário que se caracteriza pela fraternidade, tal costume é aceito tranqüilamente.

A União Brasileira de Trovadores tem seções e delegacias em todo o país, congregando cerca de 5 mil trovadores. A trova moderna define-se como um poema composto de quatro versos de sete sons (setissílabos), rimando o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o quarto. Assemelha-se ao haicai, pela concisão; porém é mais acessível ao público geral, pela sua musicalidade e simplicidade. Adelmar Tavares a resumiu assim:
"Oh linda trova perfeita",
que nos dá tanto prazer...
Tão fácil, depois de feita...
tão difícil de fazer!"

Classificam-se as trovas em três grupos principais: filosóficas, líricas e humorísticas.

Exemplo de trova filosófica:

Redimindo os pecadores,
conduzindo-os para a luz,
o maior dos sonhadores
morreu pregado na cruz!
Aparício Fernandes

Exemplo de trova lírica:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria:
- Era uma Santa escutando
o que outra santa dizia!
Barreto Courinho

Exemplo de trova humorística:

Minha sogra não reclama
pelo trato que lhe dou.
Até de filho me chama...
só não diz que filho eu sou!

Elton Carvalho

O trovador carioca Sérgio Bernardo, em artigo A Trova: Origem, Trajetória, Rumos, enfatiza que a trova, desde sua origem até este início do séc. 21, tem estado presente em todos os movimentos literários surgidos. No Trovadorismo dos séc. 13 e 14, como visto, encabeçou os tipos poemáticos chamados cantigas (de amor, amigo e de escárnio e maldizer).

Nos séc. 15 e 16 eram compostas isoladamente ou retiradas do trovário popular — coleção de trovas anônimas — para que os poetas as glosassem, desenvolvendo poemas mais extensos, de várias estrofes, cujo conteúdo era centrado na temática da trova-mote. Os autores já não tinham de estar presos, porém, a temas fixos como nas cantigas, podendo os versos ser de exaltação a campanhas militares, feitos reais ou mesmo um relato da vida cotidiana das cidadelas fortificadas.

Ao tempo de Camões, Sá de Miranda e Diogo Fernandes, entre outros, as trovas eram largamente referidas por estes poetas, recolhidas do povo, como esta que critica a cessão de Portugal ao trono da Espanha, no séc. 16:

Viva El Rei Dom Henrique
Lá no inferno muitos anos,
Pois deixou em testamento
Portugal aos castelhanos!

A esta altura, com o surgimento do Brasil na geografia mundial, vem a trova na bagagem dos primeiros portugueses. Difícil é ser encontrada documentalmente, já que o governo português proibia a impressão gráfica na nascente colônia. Mesmo assim, há referência dela utilizada como estribilho em poemas de, por exemplo, José de Anchieta (1543-1597).

No séc. 17, já com uma literatura brasileira mais expressiva, surgem nossos primeiros livros, impressos em Portugal, um deles o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira (1652-1734?), em que as trovas estão presentes. Historicamente, trata-se do primeiro livro brasileiro contendo trovas intencionais (isoladas).

Sem conta, peso ou medida,
vivo no mundo, de sorte
que não sei, chegando a morte,
que conta darei da vida.

Com o florescimento do Arcadismo, no século seguinte, imperaram as composições poéticas com metros e estrofes de maior extensão, mas muitas trovas podem ser derivadas, como esta que encerra um poema de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), o célebre autor de Marília de Dirceu:

Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto,
pois quando não é Marília
já não posso ver com gosto.


Antônio Bersane Leite, amigo de Bocage, que veio para o Brasil em 1807 e aqui morreu, foi outro que escreveu muitas trovas intencionais, sobretudo satíricas. O séc. 19 foi riquíssimo em movimentos literários — o Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo — e em grandes vozes poéticas. Todos os poetas situados dentro destes períodos cederam aos encantos da trova, entre eles, Castro Alves (romântico):

As nuvens ajoelhadas
nos claustros ermos e vãos
passam as contas doiradas
das estrelas pelas mãos!

Ou Olavo Bilac (parnasiano):

O amor que a teu lado levas
a que lugar te conduz,
que entras coberto de trevas
e sais coberto de luz?


Ou ainda Alphonsus de Guimaraens (simbolista):

O cinamomo floresce
em frente do teu postigo...
Cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo!


Com a chegada do séc. 20, surgem os primeiros trovadores autênticos, começando a encarar a trova com mais seriedade e escrevendo-a conscientes de estar criando uma peça literária, com o cuidado formal e estilístico que esta merece. Destacam-se Américo Falcão, Belmiro Braga e Adelmar Tavares, primeiro trovador a pertencer à Academia Brasileira de Letras (ABL).

Também em letras de música — nas modinhas, lundus, chorinhos — a trova se fez presente.

Dos grandes poetas desse século, praticamente todos mostraram-se sensíveis à trova e em dado momento a produziram. Podem ser citados, entre tantos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Desta última ficou uma linda trova:

Em barca de nuvens sigo...
E o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.


Em 1956, Luiz Otávio (1916-1977) compilou e publicou a antologia Meus irmãos, os trovadores, contendo 2 mil trovas de autores brasileiros e portugueses, de Gregório de Matos aos atuantes na época. Este livro é considerado o marco de criação do movimento trovadoresco atual, pois, a partir dele, trovadores e mais trovadores foram aparecendo por todo o Brasil, numa verdadeira febre pelas quadras de 7 sílabas. De tal porte foi este surto trovístico, que a ocasião tornou-se propícia para se criar o primeiro concurso de trovas com congraçamento de trovadores, os I Jogos Florais de Nova Friburgo, em 1960.

Daí por diante, outras cidades compraram a idéia e passaram a promover seus concursos e jogos florais, que foram se espalhando por todo o País, de Belém, PA, a Porto Alegre, RS. Centenas de milhares de trovas já foram escritas, milhares delas antológicas, a partir do que é possível reafirmar-se: a trova é o gênero poético de forma fixa mais cultivado hoje no Brasil. E talvez mesmo no mundo, podendo ser até que ganhe do haicai, poema de 3 versos originário do Japão e largamente produzido naquele país.

Rumos

Em pleno séc. 21, era da supremacia tecnológica, do comportamento globalizado e do vanguardismo a qualquer preço, a trova resiste e continua ativa, efervescente e fazendo brotar novos talentos. No País, a União Brasileira de Trovadores é a entidade responsável, administrativamente falando, pela sua consolidação, divulgação e perpetuação, através da coordenação de concursos ou realização de oficinas em escolas e instituições públicas, visando a despertar o interesse pela trova, sobretudo no tocante às novas gerações. Trovas escritas por jovens do ensino fundamental e médio, em muitas cidades brasileiras onde estas oficinas são ministradas, dão a certeza de que a UBT caminha em bom rumo. E de que a trova ainda tem muito a contribuir com nossa literatura poética, enquanto num mundo cada vez mais assediado pela máquina houver coragem para se falar de sentimento.

Fontes:
ASSIS, A.A. de. Falando sobre Trovas. Disponível em http://ubtportoalegre.portalcen.org/leitores.htm

BERNARDO, Sérgio. A Trova: Origem, Trajetória, Rumos. Disponível em http://www.falandodetrova.com.br/v5/atrovaorigem

SANTOS, Eberth. MOURA, Josana de. Literatura e Filosofia (Palavra em Ação). 2.ed. Uberlândia: Ed. Claranto, 2004.