Nossa região, meu caro leitor, não foi sempre um sítio morto e sem canções, como é hoje. Antigamente havia aqui um ativo comércio de farinha. De dez léguas ao redor, os granjeiros nos traziam seu trigo para moer. Por toda parte, à volta da aldeia, as colinas estavam cobertas de moinhos de vento. À direita e à esquerda, só se viam asas de moinhos que volteavam ao sopro do mistral; acima dos pinheiros, filas de burricos carregados de sacos, subindo e descendo ao longo dos caminhos; e a semana inteira era o prazer de ouvir o estalido dos chicotes, o ruído seco do tecido dilacerado e o “Dia hue!” dos ajudantes dos moleiros. Aos domingos, íamos em bandos aos moinhos. Lá no alto, os moleiros pagavam o muscat. As moleiras eram belas como rainhas, com seus fichus de rendas e suas cruzes de ouro. Eu levava meu pífaro, e até altas horas da noite dançavam-se farândolas. Aqueles moinhos, como o senhor vê, eram a alegria e a riqueza da nossa terra.
Infelizmente, franceses de Paris tiveram a idéia de estabelecer uma moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Tudo belo, tudo novo! O povo tomou o hábito de enviar o trigo aos novos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. Durante algum tempo tentaram lutar, mas o moinho a vapor foi o mais forte. Um após outro — pobrezinhos! — foram todos obrigados a fechar. Não se viu mais virem os burrinhos. Nada de vinho!... Nada de farândolas!... O mistral soprava forte, as asas permaneciam imóveis... Depois, um belo dia, a municipalidade mandou demolir todas essas ruínas, e semearam-se em seu lugar vinha e oliveiras.
Entretanto, em meio à derrocada, um moinho se havia mantido e continuava a girar corajosamente, sobre a colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho de Mestre Cornille, este mesmo onde estamos fazendo serão, neste momento.
Mestre Cornille era um velho moleiro. Havia sessenta anos vivia metido na farinha. A instalação das moagens a vapor tinha-o deixado como louco. Durante oito dias viram-no correr pela aldeia, a reunir em tumulto toda a gente à sua volta, e a gritar, com todas as suas forças, que queriam envenenar a Provença com a farinha dessas fábricas.
— Não vão lá embaixo — dizia ele. — Aqueles bandidos, para fazer o pão, servem-se de vapor, que é uma invenção do diabo, enquanto que eu trabalho com o mistral e o transmontano, que são o hálito do bom Deus!...
E ele encontrava, como estas, uma quantidade de belas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ninguém as escutava.
Então, com uma raiva maligna, o velho fechou-se no moinho e viveu completamente só, como um animal selvagem. Nem mesmo quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma menina de quinze anos, que, mortos os pais, não tinha ninguém senão o avô no mundo. A pobre pequena foi obrigada a ganhar a vida e a se empregar ora aqui, ora ali, nas fazendas, para a colheita, os bichos-da-seda ou os olivais. Entretanto o avô parecia amá-la muito. Chegava a fazer freqüentemente quatro léguas a pé, na soalheira, para ir vê-la na casa em que trabalhava. Uma vez junto dela, passava horas inteiras a contemplá-la, chorando...
Pensava-se, na região, que o velho moleiro, deixando sair Vivette, agira por avareza. Não o honrava ter consentido que a neta assim deambulasse de uma fazenda para outra, exposta às brutalidades dos vaîles e a todas as misérias que cercam as jovens, nessas condições de trabalho. Achava-se também muito malfeito que um homem da reputação de Mestre Cornille, que até ali era respeitado, fosse agora pelas ruas como um verdadeiro boêmio, pés nus, o boné furado, a faixa da cintura em tiras... O fato é que, no domingo, quando o víamos entrar para a missa, tínhamos vergonha por ele, nós outros os velhos; e Cornille o sentia tão bem, que não mais ousava vir sentar-se no banco dos administradores da paróquia. Ficava sempre no fundo da igreja, junto à pia de água-benta, com os pobres.
Na vida de Mestre Cornille havia alguma coisa obscura. Havia muito tempo ninguém, na aldeia, lhe levava mais trigo, e no entanto as asas do seu moinho iam sempre fazendo seu ofício, como antes. À tarde, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, tangendo à sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha.
— Boas tardes, Mestre Cornille! — gritavam-lhe os camponeses. — Então, sempre vai indo a moagem?
— Sempre, meus filhos — respondia o velho com ar altivo. — Deus seja louvado, não é trabalho o que nos falta.
Então, se lhe perguntassem de onde podia vir tanto trabalho, ele colocava um dedo sobre os lábios e respondia gravemente:
— Silêncio! Eu trabalho para a exportação...
Jamais se pôde tirar mais nada dele, além disso. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem se devia sonhar. A própria Vivette não entrava ali. Quando se passava diante dele, via-se a porta sempre fechada, as grandes asas sempre em movimento, o velho burro retouçando a erva, sobre a plataforma, e um gatão magro que tomava sol no peitoril da janela e olhava para a gente com um ar maldoso.
Tudo isso sugeria mistério e fazia tagarelar o mundo. Cada um explicava à sua maneira o segredo de Mestre Cornille, mas o rumor geral era que ele tinha em seu moinho mais sacos de dinheiro que de farinha.
Com o decorrer do tempo, entretanto, tudo se descobriu. Eis como:
Fazendo dançar a mocidade com o meu pífaro, percebi um belo dia que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se haviam enamorado um do outro. No fundo, eu não ficara nem um pouco zangado, porque, apesar de tudo, o nome de Cornille era honrado entre nós; e dar-me-ia prazer ver saltitar em minha casa essa linda avezinha de Vivette. Somente, como nossos namorados tinham freqüentemente ocasião de estar juntos, eu quis, de medo de acidentes, regular o negócio imediatamente; e subi até o moinho, para trocar sobre o assunto duas palavras com o avô.
Ah! o velho feiticeiro! Era preciso ver de que maneira me recebeu! Impossível fazê-lo abrir a porta. Expliquei-lhe minhas razões, mal-e-mal, através do buraco da fechadura; e durante o tempo em que lhe falei, ficava esse ladrão de gato magro a soprar como um diabo, acima da minha cabeça. O velho não me deu tempo de terminar, e me gritou muito malcriadamente que retornasse à minha flauta; caso tivesse pressa de casar o rapaz, fosse procurar moças na fábrica...
O senhor imagine como o sangue me subia, ao ouvir essas más palavras. Contudo eu tive até bastante prudência para me conter, e, deixando o velho louco em sua mó, voltei para anunciar aos jovens o meu humilhante insucesso. Os pobres cordeirinhos não podiam acreditar. Pediram-me que lhes permitisse subirem os dois juntos ao moinho, para falar ao avô. Não tive coragem de recusar, e eis os namorados a caminho.
Justamente quando chegaram ao alto, Mestre Cornille acabava de sair. A porta estava fechada com duas voltas; mas o velho, ao sair, deixara a escada fora. Imediatamente os moços tiveram a idéia de entrar pela janela, para verem o que havia nesse famoso moinho.
Coisa singular! O quarto da mó estava vazio. Nem um saco, nem um grão de trigo; nem a menor farinha nos muros, nas teias de aranha... Não se sentia nem mesmo esse bom cheiro quente do grão de trigo triturado, que embalsama os moinhos. A braçadeira estava coberta de pó, e o gatão dormia em cima dela.
A peça de baixo tinha o mesmo ar de miséria e de abandono: um mau leito, alguns trapos sujos, um pedaço de pão sobre um degrau da escada; e, finalmente, num canto, três ou quatro sacos furados, de onde escapavam caliça e areia.
Era o segredo de Mestre Cornille! Era esse entulho que ele passeava à tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que ali se produzia farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo os moageiros tinham-no feito perder os últimos negócios. As asas viravam sempre, mas a mó girava no vazio.
Os mocinhos voltaram, lavados em lágrimas, para me contar o que tinham visto. Senti o coração machucado ao ouvi-los. Sem perder um minuto, corri à casa dos vizinhos, contei-lhes a coisa em duas palavras, e concordamos todos em que era preciso levar imediatamente ao moinho de Cornille tudo que houvesse de grão em nossas casas. Tão logo foi dito, logo se fez. Toda a aldeia se pôs a caminho, e chegamos ao alto com uma procissão de burros carregados de trigo — trigo verdadeiro!
O moinho estava completamente aberto. Diante da porta, Mestre Cornille, sentado num saco de gesso, chorava, com a cabeça entre as mãos. Acabava de perceber, entrando, que durante sua ausência alguém penetrara em sua casa e surpreendera seu triste segredo.
— Pobre de mim! — dizia ele. — Agora não me resta senão morrer... O moinho está desonrado.
E soluçava de cortar o coração, chamando seu moinho por todas as espécies de nomes, falando-lhe como a uma pessoa viva.
Nesse momento os burros chegaram à plataforma, e nós nos pusemos todos a gritar bem alto, como nos belos tempos dos moleiros:
— Eh! Ó do moinho!... Ei! Mestre Cornille!
De súbito os sacos se acumulam diante da porta, e o belo grão ruivo rola abundantemente pela terra, de todos os lados.
Mestre Cornille arregalava os olhos. Apanhara um pouco de trigo no côncavo da velha mão, e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo:
— É trigo!... Senhor Deus! Trigo verdadeiro!... Deixem-me contemplá-lo...
Depois, voltando-se para nós:
— Ah! Eu sabia que vocês voltariam...
Queríamos levá-lo em triunfo até a aldeia.
— Não, não, meus filhos! É preciso, antes de tudo, que eu vá dar de comer ao moinho... Pensem! Há muito tempo que nada lhe pomos entre os dentes!
E todos nós tínhamos lágrimas nos olhos, de ver o pobre velho agitar-se para a direita e para a esquerda, destripando os sacos, vigiando a mó, enquanto o grão arrebentava e a fina poeira do trigo subia para o teto.
Justiça nos seja feita: a partir desse dia, nunca deixamos faltar trabalho ao velho moleiro. Depois, certa manhã, Mestre Cornille morreu, e as asas do nosso derradeiro moinho cessaram de virar, para sempre desta vez. Morto Cornille, ninguém continuou sua obra...
Fonte:
Alphonse Daudet. Contos. SP: Cultrix, 1993.
Infelizmente, franceses de Paris tiveram a idéia de estabelecer uma moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Tudo belo, tudo novo! O povo tomou o hábito de enviar o trigo aos novos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. Durante algum tempo tentaram lutar, mas o moinho a vapor foi o mais forte. Um após outro — pobrezinhos! — foram todos obrigados a fechar. Não se viu mais virem os burrinhos. Nada de vinho!... Nada de farândolas!... O mistral soprava forte, as asas permaneciam imóveis... Depois, um belo dia, a municipalidade mandou demolir todas essas ruínas, e semearam-se em seu lugar vinha e oliveiras.
Entretanto, em meio à derrocada, um moinho se havia mantido e continuava a girar corajosamente, sobre a colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho de Mestre Cornille, este mesmo onde estamos fazendo serão, neste momento.
Mestre Cornille era um velho moleiro. Havia sessenta anos vivia metido na farinha. A instalação das moagens a vapor tinha-o deixado como louco. Durante oito dias viram-no correr pela aldeia, a reunir em tumulto toda a gente à sua volta, e a gritar, com todas as suas forças, que queriam envenenar a Provença com a farinha dessas fábricas.
— Não vão lá embaixo — dizia ele. — Aqueles bandidos, para fazer o pão, servem-se de vapor, que é uma invenção do diabo, enquanto que eu trabalho com o mistral e o transmontano, que são o hálito do bom Deus!...
E ele encontrava, como estas, uma quantidade de belas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ninguém as escutava.
Então, com uma raiva maligna, o velho fechou-se no moinho e viveu completamente só, como um animal selvagem. Nem mesmo quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma menina de quinze anos, que, mortos os pais, não tinha ninguém senão o avô no mundo. A pobre pequena foi obrigada a ganhar a vida e a se empregar ora aqui, ora ali, nas fazendas, para a colheita, os bichos-da-seda ou os olivais. Entretanto o avô parecia amá-la muito. Chegava a fazer freqüentemente quatro léguas a pé, na soalheira, para ir vê-la na casa em que trabalhava. Uma vez junto dela, passava horas inteiras a contemplá-la, chorando...
Pensava-se, na região, que o velho moleiro, deixando sair Vivette, agira por avareza. Não o honrava ter consentido que a neta assim deambulasse de uma fazenda para outra, exposta às brutalidades dos vaîles e a todas as misérias que cercam as jovens, nessas condições de trabalho. Achava-se também muito malfeito que um homem da reputação de Mestre Cornille, que até ali era respeitado, fosse agora pelas ruas como um verdadeiro boêmio, pés nus, o boné furado, a faixa da cintura em tiras... O fato é que, no domingo, quando o víamos entrar para a missa, tínhamos vergonha por ele, nós outros os velhos; e Cornille o sentia tão bem, que não mais ousava vir sentar-se no banco dos administradores da paróquia. Ficava sempre no fundo da igreja, junto à pia de água-benta, com os pobres.
Na vida de Mestre Cornille havia alguma coisa obscura. Havia muito tempo ninguém, na aldeia, lhe levava mais trigo, e no entanto as asas do seu moinho iam sempre fazendo seu ofício, como antes. À tarde, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, tangendo à sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha.
— Boas tardes, Mestre Cornille! — gritavam-lhe os camponeses. — Então, sempre vai indo a moagem?
— Sempre, meus filhos — respondia o velho com ar altivo. — Deus seja louvado, não é trabalho o que nos falta.
Então, se lhe perguntassem de onde podia vir tanto trabalho, ele colocava um dedo sobre os lábios e respondia gravemente:
— Silêncio! Eu trabalho para a exportação...
Jamais se pôde tirar mais nada dele, além disso. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem se devia sonhar. A própria Vivette não entrava ali. Quando se passava diante dele, via-se a porta sempre fechada, as grandes asas sempre em movimento, o velho burro retouçando a erva, sobre a plataforma, e um gatão magro que tomava sol no peitoril da janela e olhava para a gente com um ar maldoso.
Tudo isso sugeria mistério e fazia tagarelar o mundo. Cada um explicava à sua maneira o segredo de Mestre Cornille, mas o rumor geral era que ele tinha em seu moinho mais sacos de dinheiro que de farinha.
Com o decorrer do tempo, entretanto, tudo se descobriu. Eis como:
Fazendo dançar a mocidade com o meu pífaro, percebi um belo dia que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se haviam enamorado um do outro. No fundo, eu não ficara nem um pouco zangado, porque, apesar de tudo, o nome de Cornille era honrado entre nós; e dar-me-ia prazer ver saltitar em minha casa essa linda avezinha de Vivette. Somente, como nossos namorados tinham freqüentemente ocasião de estar juntos, eu quis, de medo de acidentes, regular o negócio imediatamente; e subi até o moinho, para trocar sobre o assunto duas palavras com o avô.
Ah! o velho feiticeiro! Era preciso ver de que maneira me recebeu! Impossível fazê-lo abrir a porta. Expliquei-lhe minhas razões, mal-e-mal, através do buraco da fechadura; e durante o tempo em que lhe falei, ficava esse ladrão de gato magro a soprar como um diabo, acima da minha cabeça. O velho não me deu tempo de terminar, e me gritou muito malcriadamente que retornasse à minha flauta; caso tivesse pressa de casar o rapaz, fosse procurar moças na fábrica...
O senhor imagine como o sangue me subia, ao ouvir essas más palavras. Contudo eu tive até bastante prudência para me conter, e, deixando o velho louco em sua mó, voltei para anunciar aos jovens o meu humilhante insucesso. Os pobres cordeirinhos não podiam acreditar. Pediram-me que lhes permitisse subirem os dois juntos ao moinho, para falar ao avô. Não tive coragem de recusar, e eis os namorados a caminho.
Justamente quando chegaram ao alto, Mestre Cornille acabava de sair. A porta estava fechada com duas voltas; mas o velho, ao sair, deixara a escada fora. Imediatamente os moços tiveram a idéia de entrar pela janela, para verem o que havia nesse famoso moinho.
Coisa singular! O quarto da mó estava vazio. Nem um saco, nem um grão de trigo; nem a menor farinha nos muros, nas teias de aranha... Não se sentia nem mesmo esse bom cheiro quente do grão de trigo triturado, que embalsama os moinhos. A braçadeira estava coberta de pó, e o gatão dormia em cima dela.
A peça de baixo tinha o mesmo ar de miséria e de abandono: um mau leito, alguns trapos sujos, um pedaço de pão sobre um degrau da escada; e, finalmente, num canto, três ou quatro sacos furados, de onde escapavam caliça e areia.
Era o segredo de Mestre Cornille! Era esse entulho que ele passeava à tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que ali se produzia farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo os moageiros tinham-no feito perder os últimos negócios. As asas viravam sempre, mas a mó girava no vazio.
Os mocinhos voltaram, lavados em lágrimas, para me contar o que tinham visto. Senti o coração machucado ao ouvi-los. Sem perder um minuto, corri à casa dos vizinhos, contei-lhes a coisa em duas palavras, e concordamos todos em que era preciso levar imediatamente ao moinho de Cornille tudo que houvesse de grão em nossas casas. Tão logo foi dito, logo se fez. Toda a aldeia se pôs a caminho, e chegamos ao alto com uma procissão de burros carregados de trigo — trigo verdadeiro!
O moinho estava completamente aberto. Diante da porta, Mestre Cornille, sentado num saco de gesso, chorava, com a cabeça entre as mãos. Acabava de perceber, entrando, que durante sua ausência alguém penetrara em sua casa e surpreendera seu triste segredo.
— Pobre de mim! — dizia ele. — Agora não me resta senão morrer... O moinho está desonrado.
E soluçava de cortar o coração, chamando seu moinho por todas as espécies de nomes, falando-lhe como a uma pessoa viva.
Nesse momento os burros chegaram à plataforma, e nós nos pusemos todos a gritar bem alto, como nos belos tempos dos moleiros:
— Eh! Ó do moinho!... Ei! Mestre Cornille!
De súbito os sacos se acumulam diante da porta, e o belo grão ruivo rola abundantemente pela terra, de todos os lados.
Mestre Cornille arregalava os olhos. Apanhara um pouco de trigo no côncavo da velha mão, e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo:
— É trigo!... Senhor Deus! Trigo verdadeiro!... Deixem-me contemplá-lo...
Depois, voltando-se para nós:
— Ah! Eu sabia que vocês voltariam...
Queríamos levá-lo em triunfo até a aldeia.
— Não, não, meus filhos! É preciso, antes de tudo, que eu vá dar de comer ao moinho... Pensem! Há muito tempo que nada lhe pomos entre os dentes!
E todos nós tínhamos lágrimas nos olhos, de ver o pobre velho agitar-se para a direita e para a esquerda, destripando os sacos, vigiando a mó, enquanto o grão arrebentava e a fina poeira do trigo subia para o teto.
Justiça nos seja feita: a partir desse dia, nunca deixamos faltar trabalho ao velho moleiro. Depois, certa manhã, Mestre Cornille morreu, e as asas do nosso derradeiro moinho cessaram de virar, para sempre desta vez. Morto Cornille, ninguém continuou sua obra...
Fonte:
Alphonse Daudet. Contos. SP: Cultrix, 1993.