quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Joao Justiniano da Fonseca (Oswaldo Evandro Carneiro Martins – Contos Realistas)


A arte de escrever poesia e ficção é nem menos nem mais, que a sensibilidade de criar o ignoto ou recriar o vivido. Nessa, a dor de carregar o sofrimento da personagem ou alegria de viver o gozo de sua felicidade; a satisfação de gerar um filho. Quando a gente se põe dentro do próprio cérebro para tirar, daí, a composição literária, é como se fosse outro espírito, desligado deste da vida material. O mundo do escritor é, no momento de criar, o mundo do imaginário, um pouco o mundo dos deuses. Vem-me a lembrança ao fim da leitura de Oswaldo Evandro Carneiro Martins, em "Contos Realistas".

Trabalhador das letras clássico e purista, o autor transita livre e desembaraçadamente pelas mais despenhadas cachoeiras da arte das letras. É uma simples comparação com as coisas que amo e por isso me ocorrem mais constantemente. Bem comparando, ele tem, no manejo da pena, a facilidade do nativo brasileiro navegando seu rio, remo firme nas mãos ao piloto da igara. Tem o desembaraço dos mestres no exercício de sua profissão; a força do poder criador; a sensibilidade do iluminado. No conto manobra com a vivacidade do intelectual mais experiente no jogo das luzes do intelecto para sua formulação. Bate firme e pesado. Seu vocabulário é farto e elegante, e sendo lírico é forte, fincado na realidade dos que sabem o que escrevem e como o escrever. A erudição transparente no encadeamento das idéias sugere um sábio devorador de livros e um vivido observador do mundo.

A história curta, seja no conto contemporâneo, realista; seja na ficção pura, científica ou lírica; seja na novela policial, tem a preferência dos que lêem a título de lazer, mais que as longas histórias romanceadas. Nestas o leitor quer o enredo e o encadeamento dos fatos que se movem no conjunto. Naquela, busca o suspense. E o suspense incita a ir à frente, na leitura. Pergunte-se a quem é aficionado ao prazer da palavra impressa. E a resposta não será outra.

Hoje já não são poucos os que se contentam em ver o escrito eletrônico, preferindo-o ao impresso, e é outra história, que aqui não se comporta. Pretendo, antes, dizer do que li e entendi sobre este livro. O contista Oswaldo Evandro revela uma maneira especial de deixar com o leitor a oportunidade de ser co-autor de suas cogitações, forma de contar que eu desconhecia. Fecha a estória de uma maneira tão de leve, que nos induz a reler e imaginar, ao cabo escrever sobre seu escrito.

Quer ver se sim ou se não? Vamos ler sentados numa poltrona ao lado da poltrona do autor, os dois primeiros contos - A ÙLTIMA PACA e 0 "TRABALHO".

Abre as duas estórias criando suspense, acordando no leitor o vivo interesse pelo desfecho. E fecha-as simplesmente estimulando-o a idear sobre a sua fabulação, como se dissesse: conte você também o seu caso!

Com efeito. As palavras finais do primeiro conto: - "ela fugiu, mas ferida. Deixou sangue", indicam quase perfeita segurança de que a paca voltará a ser caçada festivamente. De fato. Essa primeira caça foi uma festa. E a seguinte, competirá ao leitor.

De igual modo o segundo conto. O larápio levou uma semana espionando a casa onde pretendia tirar "o seu". Mais quatro dias preparando a entrada. E o leitor ansioso pelo resultado do "trabalho". O camarada cai, sem nunca o imaginar, em uma gaiola. Tire-o desta, agora, quem chegar ao fim da bem imaginada estória.

Vamos para o terceiro conto e encontramos a mesma filosofia de trabalho, o mesmo empenho de envolver o leitor na trama. O personagem pesquisa, pesquisa, trabalha, trabalha, busca informações, chega a uma conclusão e sabe-se que ao falecer deixa um volumoso texto, que não é encontrado. Vá, a partir daí, o leitor embrenhar-se na novela um tanto policial, para saber que fim levou este e, encontrando-o, saber qual o seu conteúdo e a conclusão a que chegara o pesquisador. É tarefa sua, se pretende ser co-autor do mestre na criação e no estímulo à criação de estórias realistas. Falar nisso, sendo formulados nas proximidades do real, isto é, do que pode acontecer deveras, os contos presentes neste livro, bem que trazem, na textura, bons punhados de pura imaginação, de história de fantasia e muito do simbolismo metafórico.

Continua o contista trilhando o mesmo caminho, com algum raro desvio para veredas nas quais passeia pela filosofia e pela ciência, às vezes pelo devaneio. O devaneio é quase inevitável aos escritores de imaginação fértil. Este e até o sonho, como que são intrínsecos ao desenvolvimento da narrativa de ficção e da poesia.

Surpresa é, por exemplo, e ao mesmo tempo mensagem espiritual, a história do homem que não acredita em Deus. "DEUS EXISTE...", o título é seguro, insofismável. Apresenta, apesar disso, um incrédulo. E vai seguindo o caso até que o leitor entenda que se trata de um maluco. Ponto final. Ou não? Ou entenderá que o cara estava bêbado e o observador fazia mau juízo? À cena o leitor.

E "O MORTO E O VIVO"? E as seguintes estórias, bem engendradas e um tanto mentirosas, sendo realistas? Dissecar o que vem em cada uma delas, não. Para não reduzir ou tirar o gosto daquele a quem se destina, como foi comigo, a avaliação do livro e a quem desejo boa e alegre leitura, enquanto parabenizo o autor.

Mas... Mas... Por que não dizer um pouco mais? Por que não encerrar com o coração, essa modesta palavra? FEIRA DE PÁSSAROS, o último conto, apresenta vestida de inocência e simplicidade quase doces, uma abordagem humana. Uma temática tão forte que nos deixa a pensar nas implicações das necessidades do homem e nos problemas do dia-a-dia na vida das pessoas. Um cidadão simples e bom, honesto e sensível, chega a vazar os olhos dos passarinhos a vender na feira, porque descobre que cegos eles cantam melhor, e melhor cantando são mais vendáveis. Carecia do pão para a mesa de seus filhos. Ah, meu caro Oswaldo, só esse conto valeria pelo livro, se todo ele não valesse como esse conto.

Que, impresso, o trabalho chegue ao leitor. De certo este o entenderá como lazer e cultura.

Fonte:
http://www.joaojustiniano.net/files/prosa18.htm

Oswaldo Evandro Carneiro Martins (1922)


Filho de Evandro Borges Martins e Laura Carneiro Martins, nasceu no dia 17 de Agosto de 1922 na cidade de Fortaleza, onde fez os primeiros estudos (Instituto São Luís do Professor Francisco de Menezes Pimentel), o ginasial no Colégio Militar do Ceará.

Em 14 de dezembro de 1945, diplomou-se pela Escola de Agronomia no Ceará. Professor da Universidade de Fortaleza e Titular aposentado pela Universidade Federal do Ceará, também é Bacharel em Direito (1962) e Licenciado em Filosofia (pura) pela Faculdade de Filosofia do Ceará (1966).

Colabora no Boletim da Sociedade Cearense de Agronomia, na Revista dos Municípios do Ceará, revista Razão, jornal O Democrata, O Povo, Revista da Sociedade Cearense de Geografia e História. Publicou: Memória Pró-Escola de Conservação dos Recursos Naturais.

A análise dos seus trabalhos de pesquisas denota o espírito de investigação científica e que evidencia também a visão metodológica de uma interpretação crítica à luz da Ciência. Suas obras retratam mesmo a evolução conhecimento com fundamento não só dentro da Teoria da Ciência do Comportamento, mas também, e notadamente, no campo das Ciências Naturais e especialmente na Ecologia.

Quanto a cultura é uma das inteligências mais lúcidas, com excepcional contribuição ao desenvolvimento da cultura cearense, sobretudo no Ensaio Literário de Sociológico e na pesquisa de conteúdo histórico, sempre a serviço dos altos ideais do espírito e da verdade.

No ano de 1970 foi Administrador da Unidade Avançada José Veríssimo, da Universidade Federal Fluminense, em Óbidos, PA.

É membro da Sociedade Cearense de Geografia e História e do Instituto do Ceará.

Fonte:
http://www.ceara.pro.br/Instituto-site/membros/OswaldoMartins.html

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.108)


Uma Trova Nacional

No meu baú de lembranças
onde a rotina enterrei,
restaram minhas andanças
e os prantos que derramei...
(REJANE COSTA/CE)

Uma Trova Potiguar

Os quadros que já pintei,
usando a tinta da vida,
foi o modo que encontrei
pra torná-la colorida.
(MARCOS MEDEIROS/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Niterói/RJ
Tema > PALAVRA > Vencedora

Tu chegas de madrugada,
cabisbaixo e sempre mudo...
E o silêncio da chegada,
sem palavras, já diz tudo!
(SELMA PATTI SPINELLI/SP)

Simplesmente Poesia

MOTE.
E a terra caiu no chão!

GLOSA:
Eu fiz um jardim suspenso
com terra bem adubada,
planta selecionada
e flores de muito incenso,
depois fiquei muito tenso
numa noite de São João,
no céu zoou um Trovão
que o mundo se sacudiu,
meu belo jardim ruiu
e a terra caiu no chão!
(ZÉ DE SOUSA/PB)

Uma Trova de Ademar

A promessa quando é feita
num altar da santa sé,
no céu, só será aceita
se ela for feita com fé!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Gotas de amargas vivências,
ou de alegria incontida,
lágrimas são reticências
no texto frio da vida...
(WALDIR NEVES/RJ)

Estrofe do Dia

Vejam aquele rapaz
sentado naquele banco,
com um traje que já foi branco
mas está sujo demais;
na minha mente ele traz
uma caneta na mão,
e dos olhos desse cristão
vejo descer pingos d’água;
aquilo é alguma mágoa
que ele tem no coração.
(JOSÉ TOMAZ/PB)

Soneto do Dia

– Renato Alves/RJ –
SUSSURROS

Tudo o que é bom na vida é sussurrado
as melhores verdades vêm com calma
penetram devagar em nossa alma
deixando o coração apaixonado.

Sussurra a meiga chuva no telhado
sussurra docemente, ao vento, a palma...
Deus ouve a confissão, o homem acalma,
e, sussurrando, absolve o seu pecado.

Também sussurra o mar em seu marulho
o sol desponta sem fazer barulho,
e, na oração, em tom menor, eu clamo...

Por isso, o que eu queria, em voz pequena
era ouvir tua boca tão serena
bem fundo em meu ouvido a dizer: "Te amo!"

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Cornélio Pires (Livro de Trovas)


A bica do maldizente
Que vive de reprovar;
É igual à boca da noite,
Que ninguém pode fechar.

Afirmação que interessa
Tanto ao fraco quanto ao forte:
Quem açambarca a fortuna,
Desconhece a lei da morte.

Ante a Lei de Causa e Efeito
Que nos libera ou detém,
Há muito bem que faz mal,
Muito mal produz o Bem.

A pessoa ponderada
Aceita o dever, age e pensa;
Não exagera perguntas,
Falar demais é doença.

As minhas trovas de agora;
Não guardam nada de novo,
São pensamentos dos sábios;
Com pensamentos do povo.

Até que haja na Terra
Limpeza de alma segura,
Todos nós carregaremos
Um pouco de loucura.

Computador é progresso,
Facilidade de ação,
Prodígio da inteligência,
Mas precisa direção.

Convidado para a festa
Não se adianta, nem demora,
Nunca surge tarde ou cedo,
Dará presença na hora.

Da multidão dos enfermos
Que sempre busco rever
O doente mais doente
É o que não sabe sofrer.

Diz o mundo que a nobreza
Nasce de berço opulento,
Mas qualquer pessoa é nobre,
Conforme o procedimento.

Em questões de livre-arbítrio,
Discernimento é preciso;
Todos temos liberdade,
O que nos falta é juízo.

Eis uma dupla correta
Que na vida é sempre clara:
O sofrimento nos une,
A opinião nos separa.

Estes versos me nasceram
Na intimidade do peito,
Se alguém lhes der atenção;
Fico grato e satisfeito.

Existem casos ocultos
Nos corações intranqüilos
Que, a benefício dos outros,
Não se deve descobri-los.

Existem homens famosos,
E muitos deles ateus,
Esquecidos de que moram
No grande Mundo de Deus.

Fenômeno admirável
Para os crentes e os ateus;
Notar em cada pessoa
A paciência de Deus.

Não te irrites, nem fraquejes;
Quando mais te desconfortas,
A tua vida é uma casa
Com saída de cem portas.

Não te revoltes se levas
Uma existência sofrida,
A provação, quando chega,
Age em defesa da vida.

No corre-corre dos homens
Há quadros fenomenais.
Anota: Quem sabe menos;
É fala muito mais.

No que fazer e fizeste
Registra em paz o que tens;
Há muitos bens que são males,
Muitos males que são bens

Observando a mim mesmo,
Anoto em linhas gerais;
Os nossos irmãos mais loucos
Estão fora de hospitais.

O orgulho é uma enfermidade
Na pessoa o que se aferra,
Doença que a vida cura
Usando emplastros de terra.

Provérbio antigo que achei,
Entre nobres companheiros:
"O avarento passa fome
Para luxo dos herdeiros ".

Quem quiser auxiliar
De qualquer modo auxilia;
Quem não quer, manda fazer
Ou deixa para outro dia.

Quem quiser saber o início
Das grandes obras do Bem,
Procure ajudar aos outros,
Nem fale mal de ninguém.

Sabedoria só age
No que for justo e preciso;
Mas a Ciência, por vezes,
Age fora do juízo.

Sem sofrimento em nós mesmos,
Não se sabe o que se é,
Não se sabe da ingenuidade
Nem se sabe se tem fé.

Silêncio é um amigo certo,
Guardando virtudes raras,
No entanto, a palavra livre,
Às vezes, tem muitas caras.

Sociedade é um jardim
De expressão risonha e bela;
Entretanto, a convivência
Exige muita cautela.

Vinha do enterro do avô,
Mas jogou na loteria;
Ganhando cem mil reais,
Antônio chorava e ria.

Fonte:
PIRES, Cornélio. "Alma Do Povo" – Médium: Francisco Cândido Xavier, 1995.

Cornélio Pires (1884 – 1958)


Cornélio Pires (Tietê, 13 de julho de 1884 — São Paulo, 17 de fevereiro de 1958) foi um jornalista, escritor, folclorista e espírita brasileiro. Foi um importante etnógrafo da cultura caipira e do dialeto caipira.

Cornélio Pires nasceu na cidade de Tietê, Estado de São Paulo, no dia 13 de julho de 1884, e a sua desencarnação aconteceu na cidade de S. Paulo, no dia 17 de fevereiro de 1958.

Homem de personalidade inconfundível, tornou-se figura popular e de bastante destaque em todo o Brasil, graças ao trabalho, por ele encetado, de viajar pelas cidades do Interior do Estado de S. Paulo e outros Estados, estreando na condição de caipira humorista.

Em 1910, Cornélio Pires, apresentou no Colégio Mackenzie hoje Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, um espetáculo que reuniu catireiros, cururueiros, e duplas de cantadores do interior. O Colégio Mackenzie foi fundado e sempre mantido pela Igreja Presbiteriana, à qual Cornélio Pires pertencia.

Em sua juventude aspirava participar de um concurso de admissão numa Faculdade de Farmácia. Animado desse propósito viajou de Tietê para S. Paulo, a fim de se inscrever como candidato a um desses concursos, porém, apesar do seu desempenho não logrou êxito nesse seu intento.

Ambicionando cursar a Faculdade de Farmácia, deslocou-se de Tietê para a cidade de São Paulo, a fim de prestar concurso de admissão. Não teve sucesso em seu intento.

Tomou então a deliberação de dedicar-se ao jornalismo, passando a trabalhar na redação do jornal O Comércio de São Paulo, em cujo cargo desenvolveu um aprendizado bastante estafante. Posteriormente passou a exercer atividades nos jornais O São Paulo e O Estado de São Paulo, tradicional órgão da imprensa paulista, onde desempenhou a função de revisor e, finalmente, no ano de 1914, passou a dar a sua contribuição ao órgão O Pirralho.

Numerosos escritores teceram comentários sobre a personalidade de Cornélio Pires e, para ilustração, passemos a citar Joffre Martins Veiga, que em seu trabalho A Vida Pitoresca de Cornélio Pires, escreveu " Ninguém amou tanto a sua gente como Cornélio Pires; ninguém se preocupou tanto com seus semelhantes como esse homem, que foi, antes de tudo, um Bom". O famosos poeta Martins Fontes, por sua vez, escrevendo sobre ele, afirmou: "é um bandeirante puro, um artista incansável, enobrecedor da Pátria e enriquecedor da língua".

Admirado também pelo grande jornalista Amadeu Amaral, este deu-lhe a sugestão de tornasse um dos maiores divulgadores do folclore brasileiro.

Pelos idos de 1910, Cornélio Pires lançou o livro Musa Caipira, obra que foi largamente saudada pela crítica, graças ao seu conteúdo tipicamente brasileiro. Sílvio Romero tornou-se um dos seus mais salientes críticos, comentando da seguinte forma o lançamento dessa obra: " Apreciei imensamente o chiste, a cor local, a graça, a espontaneidade de suas produções que, além do seu valor intrínseco, são um ótimo documento para o estudo dos brasileirismos da nossa linguagem".

Foi autor de mais de vinte livros, nos quais procurou registrar o vocabulário, as músicas, os termos e expressões usadas pelos caipiras. No livro "Conversas ao Pé do Fogo", Cornélio Pires faz uma descrição detalhada dos diversos tipos de caipiras e, ainda no mesmo livro, ele publica o seu "Dicionário do Caipira". Na obra "Sambas e Cateretês" recolhe inúmeras letras de composições populares, muitas das quais hoje teriam caído no esquecimento se não tivessem sido registradas nesse livro. A importância de sua pesquisa começa a ser reconhecida nos meios acadêmicos no uso e nas citações que de sua obra faz Antonio Candido, professor na Universidade de São Paulo, o nosso maior estudioso da sociedade e da cultura caipira, especialmente no livro Os Parceiros do Rio Bonito.

Foi o primeiro a conseguir que a indústria fonográfica brasileira lançasse, em 1928, em discos de 78 Rpm, a música caipira. Segundo José de Souza Martins, Cornélio Pires foi o criador da música sertaneja, mediante a adaptação da música caipira ao formato fonográfico e à natureza do espetáculo circense, já que a música caipira é originalmente música litúrgica do catolicismo popular, presente nas folias do Divino, no cateretê e na catira (dança ritual indígena, durante muito tempo vedada às mulheres, catolicizada no século XVI pelos padres jesuítas), no cururu (dança indígena que os missionários transformaram na dança de Santa Cruz, ainda hoje dançada no terreiro da igreja da Aldeia de Carapicuíba, em São Paulo, por descendentes dos antigos índios aldeados, nos primeiros dias de maio, na Festa da Santa Cruz, a mais caipira das festas rurais de São Paulo).

A criação de Cornélio Pires permitiu à nascente música caipira comercial, que chegou aos discos 78rpm libertar-se da antiga música caipira original, ganhar vida própria e diversificar seu estilo. Atualmente a música caipira é chamada de música raiz para se diferenciar da música sertaneja. A música caipira dos discos 78rpm nasce, no final da década de 1920, como o último episódio de afirmação de uma identidade paulista após a abolição da escravatura, em 1888, que teve seu primeiro grande episódio na pintura, especialmente a do piracicabano Almeida Júnior, expressa em obras como "Caipira picando fumo", "Amolação interrompida", dentre outras. A ironia e a crítica social da música sertaneja originalmente proposta por Cornélio Pires, situa-se na formação do nosso pensamento conservador, que se difundiu como crítica da modernidade urbana. O melhor exemplo disso é a "Moda do bonde camarão", uma das primeiras músicas sertanejas e uma ferina ironia sobre o mundo moderno.

No início do presente século, Cornélio Pires começou a freqüentar a Igreja Presbiteriana, entretanto não conseguiu conciliar os ensinamentos dessa religião com o seu modo de pensar. Ele não admitia a existência das penas eternas e de um Deus que desse preferência aos seguidores de determinadas religiões. O demasiado apego aos formalismos da letra, na interpretação dos textos evangélicos fez com que ele quase descambasse para o materialismo.

Nessa época ele desconhecia o que era Espiritismo, entretanto, durante as suas viagens ao Interior, aconteceram com ele vários fenômenos mediúnicos, inclusive algumas comunicações do Espírito Emilio de Menezes, as quais muito o impressionaram. Como conseqüência ele passou a estudar obras espíritas principalmente as de Allan Kardec, Leon Denis, Albert de Rochas e alguns livros psicografados pelo médium Francisco Cândido Xavier.

Dali por diante integrou-se decididamente no Espiritismo, interessando-se muito pelos fenômenos de efeitos físicos. Nos anos de 1944 a 1947 ele escreveu os livros Coisas do Outro Mundo e Onde estás, ó morte?, tendo desencarnado quando escrevia Coletânea Espírita.

De sua vasta bibliografia destacamos: Musa Caipira, Versos Velhos, Cenas e Paisagens de minha Terra, Monturo, Quem conta um conto, Conversas ao Pé do Fogo, Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho - O Queima Campo, Tragédia Cabocla, Patacoadas, Seleta Caipira, Almanaque do Saci, Mixórdias, Meu Samburá, Sambas e Cateretês, Tarrafas, Chorando e Rindo, De Roupa Nova, Só Rindo, Ta no Bocó, Quem conta um Conto e outros Contos..., Enciclopédia de anedotas e Curiosidades, além dos dois livros espíritas acima citados.

Num de dos seus escritos sobre o Espiritismo, dizia ele: " O Espiritismo, mais cedo ou mais tarde, fará aos católicos romanos, aos protestantes e aos adeptos de outros credos, a caridade de robustecer-lhes a Fé, com os fatos que provam a imortalidade da Alma, que se transforma em Espírito ao deixar o invólucro material" e mais adiante " O Espiritismo nos proporciona a FÉ RACIOCINADA, nos arrebata ao jugo do dogma e nos ensina a compreender DEUS como Ele é".

Pouco antes de sua morte, Cornélio Pires, demonstrando que havia assimilado o preceito de Jesus Cristo: " Amai ao próximo como a ti mesmo", voltou para a cidade do Tietê e ali comprou uma chácara, onde fundou a " Granja de Jesus", lar destinado a crianças desamparadas. Infelizmente ele não chegou a ver a conclusão da obra.

Cornélio Pires chegou a organizar o " Teatro Ambulante Cornélio Pires" perambulando de cidade em cidade, sendo aplaudido por toda a população brasileira por onde passava. Esse intento foi concretizado após ter abandonado a carreira jornalística.

Causos sobre Cornélio

Cornélio foi descendente de Bandeirantes, era filho de Raimundo Pires de Campos e de Ana Joaquina de Campos Pinto, (D. Nicota), nasceu antes do tempo, pois Tia Nicota, grávida de Cornélio, escorregou em uma casca de laranja, caiu sentada e passou a sentir fortes dores, acabou indo para a cama por volta das 11 horas. Quando Tio Raimundo chegou da roça, teve que cortar o cordão umbilical do recém nascido.

Como vê, nascido antes do tempo e ainda com o nome trocado. E o próprio escritor diz: "Meu nome tem a sua historia". Uma de minhas tias maternas andava de namoro com um parente chamado Rogério Daunt, e foi ela que me levou a Pia Batismal. Ao me batizar, Padre Gaudêncio de Campos, que era nosso parente, e nesta época já bem velho e muito surdo, pergunta: "Como se chama o inocente?". Ao que responde sua Tia, "Rogério". E o Padre – "Eu te batizo, Cornélio...".

E Cornélio crescia, porém desde cedo revelou-se um chorão de primeira, por qualquer motivo soltava as lágrimas. Certa feita, sua mãe o levou para visitar alguns parentes, e em meio a conversa com os adultos, ele começou a chorar sem nenhuma razão. A dona da casa, muito preocupada, desdobrou-se para acalmá-lo dizendo: -Que é isso Cornélio..., o que você tem? – Perguntou ela com ternura, alisou-lhe os cabelos loiros e deu-lhe uma moeda de alguns reis. – Tá, tome este presentinho pra calar o bico. Coitadinho! O menino parou de chorar, limpou as lágrimas com as costas das mãos e exclamou. – Ah! A senhora pensa que eu choro por dinheiro? E bem rápido, agarrou o níquel, enfiou no bolso da calça de brim e iniciou outra choradeira.

De outra feita, um outro tio, muito zombeteiro, sempre que o encontrava, dava-lhe amáveis e doidos piparotes na cabeça. A brincadeira tornou-se monótona pela repetição. O menino não gostava dos gracejos, porém, nunca se queixou aos pais. D. Nicota, contudo, soube dos que se passava e recomendou ao filho, entre divertida e indignada. – Quando ele bater outra vez, você responda que não foi batizado por Cabeçudo. Certo domingo, o garoto se dirigia ao jardim, quando se encontrou com o parente e este repetiu o gesto e usou da mesma expressão. Cornélio, pensando no que sua mãe lhe disse, foi logo dizendo todo atrapalhado. – "Não fui BATIZUDO por CABECADO! E saiu de cara amarrada entre risos dos presentes.

Outra passagem, ocorreu em uma das tentativas de alfabetização de Cornélio. Seus pais já cansados em tentativas frustradas, conheceram um grande sábio dinamarquês, Alexandre Hummel, um professor ideal para o filho, pensavam os pais. Hummel era pobre, solteiro, sóbrio, vivia em hotéis quando podia, altivo de caráter. Vivia baixando em fazendas, lecionando quase que só a troca de cama e mesa. Ensinava tudo o que lhe pediam e dominava muito bem o português. Com a morte de Ruy Barbosa, o jornal "O Tietê" encomendou-lhe uma reportagem. O sábio Dinamarquês, sentou-se a mesa da redação e redigiu um bonito artigo sobre Ruy Barbosa, sem consultar livros ou biografias. Hummel era dono de uma memória prodigiosa, dominador de vários idiomas, tinha um bom senso de humor, porém não era humorista, no sentido popular. Isto não lhe deixava entender ou tolerar um menino gordo, muito feio, cheio de vontades. Talvez no seu íntimo, vendo a desatenção do caipirinha, às vezes o tachasse de burro. Mas não foi o que disse um dia irritado. – "CORRRNELIO PIRRES", você e muito "INTELICHENTE, mas e muito "IGNORRANTE"!.

Já crescido, por volta de 1907, conhecido como Tibúrcio, este apelido, ele ganhou na passagem de um circo pela cidade, que possuía um orangotango chamado de Tibúrcio, seus amigos achando alguma semelhança, passaram então a chamá-lo de Tibúrcio. Cornélio foi trabalhar, a convite de um tal Dr.Vieira, na redação do jornal "O Movimento", semanário político que circulava na cidade de São Manoel, em S.P. Certa noite, alguém lançou um concurso de feiúra e divulgou pela cidade. Poucas semanas depois, o redator do jornal de Dr. Vieira, anunciou que, Cornélio Pires, ele mesmo, ganhara o concurso – por unanimidade! - O tieteense sempre brincalhão, achou graça e cooperou no certame para sua melhor performance. No dia da entrega do premio, lá estava o vencedor pronto para receber seu premio: "Uma corda para se enforcar"!

Esta outra ocorreu pelo ano de 1933, já beirando os 49 anos, com a afamada superstição do numero 13. Um grande amigo das noitadas de Cornélio o encontrou sentado em um banco na Praça do Patriarca muito pensativo. Começaram a conversar e em pouco tempo estava formada a tradicional roda em volta dos dois. Alguém fez referências ao acaso de certas pessoas serem perseguidas pelo numero 13. Cornélio com aquele jeitão, achando sempre um "a propósito" para todos os casos, chamou a atenção da roda. – Pois saibam vocês que tenho grande predileção pelo número 13, e sou por ele fartamente retribuído. E Cornélio começou sua descritiva:

Cornélio Pires – 13 letras. Vi a luz em Julho – 13 letras. Nasci no dia treze – 13 letras. Século passado – 13 letras. Eu sou paulista – 13 letras. Sou brasileiro – 13 letras. Nasci no Brasil – 13 letras. Sul de São Paulo – 13 letras. Cidade de Tietê – 13 letras. D.Anna Joaquina (minha mãe) – 13 letras. Raimundo Pires (meu pai) – 13 letras. Poeta e caipira – 13 letras. Poeta e "conteur" 13 letras. Conferencista – 13 letras. Escrevo livros – 13 letras. Sou muito pobre – 13 letras. Sou muito feliz – 13 letras. Eu sou solteiro – 13 letras. Amei treze "emes" (o M e a 13 letra do alfabeto) – 13 letras. E o escritor regionalista concluiu: Não cito os nomes das minhas 13 namoradas, porque, vocês compreendem... E com esta, até logo. – Para aonde vais? - Vou tomar Bonde! – E note uma coisa, que sua pergunta e minha resposta, ambas tem 13 letras!

Até doente Cornélio ainda mostrava sua veia de humorista. Esta aconteceu no hospital que Cornélio estava internado, em São Paulo. Ele recebia visitas de parentes, em seu quarto, quando entrou uma enfermeira com sua medicação diária. Era composta de comprimidos e de uma injeção. Tomou os comprimidos enquanto a enfermeira preparava a seringa. Virou-se ela e perguntou. – Sr. Cornélio, aonde quer que aplique esta injeção? Cornélio olhou para os braços já todos picados, olhou para cima, para os lados e sem cerimônia disse: - Pode aplicar ali na parede mesmo!

Algum tempo depois, em 17 de Fevereiro de 1958, as 2:30 h , falecia Cornélio Pires no Hospital das Clínicas de São Paulo, vítima de câncer na laringe. Seus restos mortais foram trasladados no mesmo dia para sua cidade natal e sepultados no cemitério local. Faleceu solteiro convicto e em plena lucidez, tinha 74 anos incompletos. Foi enterrado de pijamas e descalço, conforme sua vontade.

Fontes:
http://www.widesoft.com.br/users/pcastro4/biogrcp.htm
http://www.espiritismogi.com.br/biografias/cornelio.htm
http://pt.wikipedia.org/

Folclore, Superstição, Lendas e Histórias (Aves do Brasil: Beija-Flor)


Coacyaba - O primeiro beija-flor

Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em borboletas. É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.

Coaciaba, uma bondosa índia, ficara víuva muito cedo, passando a viver exclusivamente para fazer feliz a sua filhinha Guanambi. Todos os dias passeava com a menina pelas campinas de flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.

Guanambi ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo cada vez mais e também morreu. Entretanto sua alma não se tornou borboleta, ficando aprisionada dentro de uma flor próximo à sepultura da mãe, para assim permanecer do seu lado.

Enquanto isso, Coaciaba, em forma de borboleta, voava entre as flores, colhendo o seu néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanambi, ouviu um choro triste, que logo reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu então ao deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse levar a filha para o céu. Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a num beija-flor, podendo assim, realizar o seu desejo.

Desde então, quando morre uma criança índia órfã de mãe, sua alma permanece guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe, em forma de beija-flor, venha buscá-la, para juntas voarem para o céu, onde estarão eternamente.
O beija-flor

Um casal que tinha uma filha muito linda, trazia-a escondida, com medo que algum rapaz a roubasse.

Certa vez, uma escrava que foi à fonte buscar água, viu um beija-flor cantando bonito assim:

Esperança, esperança
Hum-hum
Tá… tá… tá-lê-lê
Sentada no cazumba
Helena Pereira,
Hum-hum

A negra deixou-se ficar, encantada. Como demorasse, a mãe da moça mandou outra negra, que também lá ficou. Depois outra e mais outra. Afinal, todos os escravos que foram, ficaram presos pelo encanto do pássaro. Por fim, a própria mãe da moça foi e ficou. Restava a moça, que não vendo ninguém voltar, foi à fonte, mas o beija-flor, logo que a viu, voou para ela, agarrou-a e despareceram juntos.

Fontes:
ANDRADE E SILVA, Waldemar de. Lendas e mitos dos índios brasileiros. São Paulo, FTD, 1997. Disponível em Jangada Brasil.

Machado de Assis (Um Homem Célebre)


— AH! o SENHOR é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu modo, mas. .. é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda, tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha. escada velha. um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d'alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha. porque as distrações do senhor eram freqüentes.
— A bengala.
— Mas parece que hoje chove.
— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

— Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

— Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa.

— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora Dona, Guarde o Seu Balaio.

— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a Rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
— Vai casar com uma viúva.
— Velha?
— Vinte e sete anos.
— Bonita?
— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, — mau espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo, artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; cousa difícil porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

— Acaba, disse Maria, não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Cristóvão.

— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas. . . Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doudo. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação. . . Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque , saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta. não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou de esforços, esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Requiem.

"Para quê?" dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
— Nada.
— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

— Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.

— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/homem.gif

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 4. Um Homem Célebre)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Tipicamente machadiano, Um Homem Célebre, conto publicado, primeiramente, no periódico "A Estação", em 1883, e, posteriormente, no livro Várias Histórias, em 1896, aborda o tema da incompatibilidade entre os ideais e a realidade, constituindo, uma quase parábola, a parábola da existência humana.

Nele, Machado de Assis mais uma vez não se atém somente ao aspecto historicista do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, invadido que foi pela música, ouvida nas ruas, advinda das casas, onde havia saraus, ou mesmo assobiada por transeuntes que passeavam nelas.

É a história da frustração de um compositor de polcas cujo maior desejo era criar obras clássicas. Conto repleto de humor, mostra a cruel ironia do destino, que persegue o pobre Pestana com as composições efêmeras de gosto popular, imediatamente "consagradas pelo assobio". Morre "bem com os homens e mal consigo mesmo".

A temática básica desse conto é a oposição entre vocação e ambição. Sua personagem principal, Pestana, é um famoso compositor de polcas, um estilo bastante popular de música, conhecido e louvado por todos que o cercam, mas ele vive um dilema pessoal: odeia suas composições e toda a popularidade que elas lhe proporcionam. Seu grande sonho é produzir música erudita no nível dos grandes mestres, como Chopin, Mozart, Haydn, é “compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven ou Mozart”. A busca pela perfeição estética marca a trajetória do famoso músico, que vê todas as alternativas lhe serem negadas no decorrer da vida: “Aspira ao ato completo, à obra total”. No entanto, eram as polcas, sempre as polcas, que lhe vinham à cabeça durante os momentos de composição:

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventurá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão, a idéia esvaía-se (...) Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano (...) De repente (...) Compunha só teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Em pouco tempo estava a polca feita. (ASSIS, 1997, p. 23)

O protagonista do conto é apresentado tal como se encontra intimamente: ”vexado e aborrecido”. Já no início da obra, depara-se com um Pestana incomodado e descontente com a popularidade que existe em torno de suas composições. Quando solicitado para que tocasse uma de suas polcas na comemoração do aniversário da viúva Camargo, percebe a sintonia entre sua música e os convidados, apesar de tê-la publicado apenas vinte dias antes. Frente ao ocorrido, qualquer compositor se sentiria realizado. Pestana, entretanto, abandona o recinto alegando estar com dor de cabeça e fica mais angustiado ainda quando ouve, nas ruas, uma de suas polcas sendo assobiadas. Segundo J. C. Garbuglio, existe uma distinção muito grande entre o pretendido e o alcançado na vida do compositor: nem mesmo as aclamações por parte da população facilitam e diminuem a dificuldade que há no caminho para se ir do anseio à realização, que é o “local” em que se encontra o músico no conto Um Homem Célebre.

Diante de tal situação, Pestana sente-se diminuído em suas produções, pois não quer compor apenas para as massas, quer ser portador de um modelo que simbolize e represente algo mais elaborado e elevado, que o transporte para além do seu momento, e não, simplesmente, o consagre na plenitude de sua existência. Essa plenitude efêmera representa pouco para o compositor. Sua ambição é a eternidade.

O desencontro é o que permeia a vida do protagonista Pestana. Esse problema é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. ‘Malentendido original’, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia e desgoverno da criatura, para fazer do homem vítima e joguete de sua tessitura.

O início desse desencontro está na busca da satisfação pessoal, no desejo humano de realizar algo e nas interferências e dificuldades que aparecem diante dessa vontade, frustrando sua realização: há um impasse entre o anseio pessoal e a expressão do que se consegue ou se tenta conseguir. Pesta, o célebre compositor de polcas, vive triste e macambúzio; tem o poder criador e o domínio da língua, mas quer algo mais. Suas polcas não o conduzem ao encontro da satisfação plena, pois, para ele, representam algo inferior, que está apenas ligado ao sucesso. Pestana quer compor música erudita, uma forma superior de arte, que o leve à imortalidade. Sem os clássicos, há falta de glória; há, portanto, uma vida diretamente ligada à tristeza. “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (ASSIS, 1997, p. 23)

Esses desencontros são contradições: contradição entre o parecer e o ser, entre a máscara e o desejo, entre o que é público e a vida interior. E o protagonista de Um Homem Célebre vive, mesmo, envolto em contradições: é um famoso compositor de polcas, mas quer compor música erudita, assim como os “santos” que cultua: Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Shumann etc; deseja a glória com a produção de algo superior, mas sobrevive das suas polcas; é uma celebridade entre seus compatriotas, mas vive frustrado perante a sua falta de capacidade para a tão desejada glória e imortalidade.

Tamanha é a obstinação do músico para alcançar sua ambição, que chega até a se casar com uma cantora lírica tísica, Maria, crendo que, convivendo com ela, finalmente teria a fatídica inspiração. Mas sua vocação mais uma vez é colocada em segundo plano quando se casa:

O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventura de petimetres. Agora sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas. (ASSIS, 1997, p. 25)

Contudo, ainda que sob o efeito de tal estratégia, mais uma vez sua investida ao tão sonhado mundo erudito cai por terra, pois, nem após a morte de sua esposa, quando se propõe a compor um Réquiem para executar no seu primeiro aniversário de morte, consegue realizar seu intento. Talvez, Pestana não pudesse (ou simplesmente não quisesse) desistir; o que se sabe, apenas, é que as lágrimas caídas de seus olhos durante o ocorrido se confundiam entre a dor do marido e a infertilidade do compositor.

E é assim que o personagem principal do conto se encontra durante toda a narrativa: confuso, frustrado e triste. Seu dilema entre ser brasileiro e produzir de acordo com as condições sociais internas ou usar uma imagem já fabricada (e consagrada) pela arte européia coloca-o diante de uma glória efêmera, não idealizada por ele, distanciando-o do reconhecimento eterno que, segundo o músico, só seria alcançado se compusesse seguindo os padrões dos compositores clássicos por ele admirados.

E, em meio a toda essa desilusão, aparece ainda o editor, importante peça do conto, que traz consigo uma carga muito pesada, que é transposta para Pestana: é ele quem decide os títulos das polcas, serve-se do produto totalmente, e controla o sistema, indicando sobre o que e quando o músico deve compor. Suas escolhas rendem-se às convenções: seu objetivo é a venda fácil, por isso age de forma a regular o mercado, levando Pestana a produzir discorrendo sobre os temas que ele, o editor, acredita serem de interesse da população.

Nesse sentido, a realização inatingível das composições idealizadas por Pestana dá lugar, como eixo central do conto, à postura do editor, figura que detém o poder sobre as produções.

Em Um Homem Célebre, Machado adota um viés que nos leva para uma sucessão de fatos que expõem alguns problemas: os da arte, os do artista e os da sociedade em que este e aquela estão inseridos. Mais que um problema situado entre a realização e o desejo, Pestana enfrenta uma delicada relação entre produção, público e valorização.

Para não chegar a essa condição marginal, nosso protagonista vive em meio a sua ambição, a sua vocação, a seu editor e a seus compatriotas, rendendo-se, em seus últimos momentos, a uma força maior que o atormenta durante toda sua existência: produzir aquilo que parece ser sua vocação e, ainda, de acordo com as determinações de seu editor. Assim, o narrador de Machado, nessa que pode ser considerada uma das mais complexas obras do autor, encerra a apresentação da vida de Pestana, fazendo questão de deixar clara a situação na qual o compositor deixa o mundo: “bem com os homens e mal consigo mesmo” (ASSIS, 1997, p. 27), destacando o fim do longo percurso percorrido entre o que o compositor era e o que (inutilmente) destinou toda sua vida a ser.

O drama de Pestana mostra-nos a impotência espiritual de um homem que, do mais profundo do seu ser, clama pela redenção, que não é alcançada. O sucesso irrealizável de glória culmina com o fracasso íntimo do compositor que, diante dos entraves sociais explicitados no conto, na pessoa do editor, vê sua música sendo levada para o que é comum, para o que é das massas. A polca é simples, e simplicidade é justamente o que Pestana não quer. Sua vocação é algo que o incomoda e que o frustra, pois sua ambição sempre falou mais alto e o tocou mais profundamente. Polca é o que é popular e representa o sucesso; um sucesso transitório para o artista, que resulta em uma vida de tristeza e totalmente desprovida de glória, de uma glória que, segundo o protagonista, só seria alcançada com a sua inserção no mundo dos clássicos, da música erudita.

Há uma crítica que ainda é atual: o mercado está mais interessado em obras de qualidade fácil, que satisfazem de forma imediata e rasteira o gosto do público. Sintomático disso é o fato de o editor já ter títulos prontos para obras que ainda nem existem, aproveitando-se de fatos do momento, da moda. Além disso, há um conflito interessante entre o efêmero (polca) e o eterno (música erudita), que pode ser também visto como entre o baixo e o sublime.

Foco narrativo

Ao analisar a obra, pode-se facilmente observar que é narrada com uma visão por trás, na qual o narrador, que não toma parte na história, possui um conhecimento amplo e irrestrito sobre todos os fatos, descrevendo não só o que é visível, como também os pensamentos das personagens e fatos que irão acontecer posteriormente ao que é apresentado na narrativa. Como exemplo da caracterização desse narrador, pode-se separar o seguinte trecho do texto:

...pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos setenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. (ASSIS, 1988, p. 63)

No entanto, apesar de se notar que, ao longo do conto, predomina a expressão de um narrador onisciente, pode-se observar também que, em determinados momentos, esse narrador oculta o seu conhecimento, simulando uma exposição restrita, que apresenta apenas o que é visível. Para isso, joga com o foco da narração, passando a apresentar e descrever fatos e demais personagens através das palavras e pensamentos de uma personagem específica. Cabe esclarecer, no entanto, que, apesar de parecer não ser mais o narrador que conta, tal recurso, na verdade, é apenas um artifício com o qual o narrador onisciente aparenta uma focalização interna, ou uma “visão com”, com objetivo de aproximar um pouco mais a história de quem a lê. Em Um Homem Célebre, Sinhazinha Mota é a personagem mais utilizada pelo narrador para essa “falsa” mudança de foco, valendo-se do seu olhar e das suas palavras para descrever Pestana e sua futura esposa em diversos trechos.

- Ah! o senhor é que é o Pestana? Perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? (ASSIS, 1988, p. 63)

- Casar com quem? Perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia. - Vai casar com uma viúva. - Velha? - Vinte e sete anos. - Bonita? - Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica. (ASSIS, 1988, p.72)

Mesmo oculto, o narrador onisciente ainda está ali, valendo-se das personagens para exercer o ato de narrar. O resultado primeiro dessa técnica é o dinamismo que a leitura do conto adquire. E, nesse sentido, o uso do discurso indireto livre mostra-se a forma mais eficaz de aproximação, inserindo, diretamente nas palavras do narrador, frases ou pensamentos de alguma personagem, como acontece no exemplo a seguir, no qual o sujeito que narra introduz, no meio do seu discurso, pensamentos da Sinhazinha Mota: “Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor”. (ASSIS, 1988, p. 67)

Quando se observam as formas de apresentação e tratamento, pode-se perceber que o narrador se vale tanto de cenas quanto de sumários em seu processo narrativo, por vezes mostrando o que está acontecendo, por vezes contando de maneira bastante acelerada, resumindo e ocultando diversos acontecimentos: “Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo” (Assis, 1988, p. 64). “Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar” (ASSIS, 1988, p.75).

Ação / Temporalidade

Os dados temporais, que são diversos ao longo de todo o texto, permitem identificar claramente quando se passam as ações: durante o Segundo Império brasileiro, entre os anos de 1871 e 1885, mais precisamente, entre a publicação da primeira polca de Pestana e o falecimento da personagem. Além disso, é possível também caracterizar a narrativa como posterior, ou seja, feita depois de os fatos terem ocorrido, como se percebe pelo uso dos tempos verbais no pretérito: “Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele” (ASSIS, 1988, p. 63).

No entanto, a quebra da ordem cronológica na narrativa é uma das características mais marcantes do estilo machadiano, recurso que pode ser percebido facilmente em diversas obras do autor, entre elas, o conto analisado aqui. Nele, os fatos não são narrados na sua seqüência lógica. Em vez de iniciar a narrativa apresentando o “início da carreira” de compositor de Pestana, com a publicação da sua primeira polca, o narrador abre o conto já na época em que o músico experimenta um grande sucesso, com várias músicas publicadas e muito bem aceitas pelo gosto popular. Primeiro é apresentado o protagonista, sua intrigante rejeição diante do sucesso popular e a angústia que vive por não conseguir compor nenhuma peça musical à altura dos grandes compositores clássicos: “Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo”. (ASSIS, 1988, p. 64)

A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? (ASSIS, 1988, p. 67)

Apenas depois de introduzir a perturbação, o problema a ser resolvido, é que o narrador revela o passado do protagonista, os acontecimentos anteriores que desencadearam e elucidam a situação apresentada no início do conto, apresentação essa feita através de uma analepse: “Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol”. (ASSIS, 1988, p. 69)

A anacronia identificada nesse trecho tem um alcance determinado, retrocedendo de um fato acontecido em 1875 para um evento ocorrido em 1871. Apesar de concentrar sua narração na publicação da primeira polca de Pestana, a amplitude dessa figura de anacronia abrange quatro anos, chegando, através de um sumário, ao ano de 1875: “e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante”. (ASSIS, 1988, p. 70)

Mas a analepse não é o único recurso de alteração de ordem temporal de que se vale o narrador de Um Homem Célebre. Além dessa figura de anacronia, a obra também apresenta uma prolepse, de alcance curto, aproximadamente dois meses, e com uma amplitude também restrita, limitada ao fato da morte da “boa e patusca viúva” apresentada pelo narrador: “Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos setenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876”. (ASSIS, 1988, p. 63)

Como foi dito anteriormente, além da ordem de apresentação dos acontecimentos, outro ponto de contraste entre o tempo da história e o tempo do discurso diz respeito à duração, ao ritmo da narrativa. A própria palavra “ritmo” deixa clara a associação existente entre a condução temporal na narrativa e o tempo musical, uma proximidade que faz com que, nesta obra de Machado, mais do que um simples recurso narrativo, o tratamento temporal ganhe significação, permitindo que o discurso, o modo de narrar, esteja extremamente ligado ao tema. O narrador desenvolve o ritmo do texto de uma maneira “musical”, conduzindo lentamente a narração de um período de alguns dias em contraponto com a narração sumária de fatos transcorridos no intervalo de quase dez anos. Percebe-se uma diferenciação no tratamento temporal, nitidamente marcada no conto, visto que o narrador concentra o uso de alongamentos e pausas descritivas na primeira parte do texto. É interessante observar, no uso desses recursos, a sobreposição do tempo psicológico em relação ao tempo real.

Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana (ASSIS, 1988, p. 65-66)

Por outro lado, a partir da metade do texto, nota-se uma quantidade significativamente maior de sumários e elipses. Podendo parecer irrelevantes à primeira vista, as diversas marcações temporais que o narrador distribui pelo texto exercem um papel fundamental para esse jogo de aceleração e retardamento do discurso. É apenas através delas que se pode perceber os saltos de tempo que, por exemplo, fazem passar quatro horas em uma única frase, ou mesmo meses entre um parágrafo e outro: “Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir” (ASSIS, 1988, p. 68), “Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar” (ASSIS, 1988, p. 75) e “Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor” (ASSIS, 1988, p. 76).

Se, por um lado, percebem-se momentos de aceleração e retardamento na narrativa, é possível notar também que, em diversos trechos, o narrador se vale do recurso da cena para tentar aproximar ao máximo o tempo da história ao da narração, seja através da descrição direta de ações das personagens, seja através da apresentação de diálogos: “Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata” (ASSIS, 1988, p. 66).

- Lá se vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? - Nada. - Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, pode renovar. (ASSIS, 1988, p. 76)

Além da ordem dos acontecimentos e da duração do tempo na narrativa, a freqüência também é um artifício bastante empregado nesta obra de Machado de Assis, em especial para demonstrar o processo, geralmente angustiante, pelo qual passava o protagonista todas as vezes que compunha suas polcas.

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles. (ASSIS, 1988, p. 67-68)

Neste conto observa-se igualmente a importância que o tratamento temporal assume. Observa-se a semelhança que se estabelece entre a reiterada narração das tentativas de Pestana em compor peças clássicas e as repetições de motivos musicais ou leitmotivs. Ressalta-se a forma como Machado conduz, paralelamente à trama principal, ações secundárias que se contrapõem àquela, funcionando como linhas melódicas que têm a função de interromper a condução do motivo central da peça musical. São exemplos dessas rupturas as ações de Sinhazinha Mota e do editor musical de Pestana, apresentadas ao longo do texto para quebrar o ritmo do discurso narrativo.

Por fim, é interessante apontar que, além de estar relacionado intimamente com o tema da obra, no que se refere à forma como é conduzido, o tempo, especificamente o histórico, também desempenha um papel importante na narrativa. Nela, o sucesso das polcas de Pestana está, na visão de seu editor, intimamente relacionado à menção que fazem dos acontecimentos do momento. Sendo assim, para cair no gosto popular, os títulos não precisariam ter qualquer relação com as peças, mas sim fazer referência a algum fato político.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta o Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é Política; é um bom título de ocasião. (ASSIS, 1988, p. 76)

A ressonância da espacialidade

Para compor o espaço onde se desenrolam as ações de Um Homem Célebre, o narrador se vale tanto de elementos que podem ser apontados como motivos associados, indispensáveis para a história em si, quanto de objetos que podem ser vistos como motivos livres, que têm influência sobre a forma como é contada e percebida a história. Entre estes últimos, que podem ser chamados também de caracterizadores, o texto apresenta seus dois tipos: heterólogo e homólogo. Como motivo heterólogo, ou seja, aquele que contradiz uma determinada situação ou traço da personagem, pode-se apontar a apresentação da casa de Pestana, um lugar cujas características fogem da imagem corriqueira de um compositor de sucesso, como Pestana: “Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear” (ASSIS, 1988, p. 65).

É interessante observar, no entanto, que, na medida em que esses motivos caracterizadores se mostram heterólogos quanto à imagem que via de regra se constrói de um compositor de sucesso, ao serem analisados como caracterizadores da figura singular de Pestana e, nesse caso, defrontados com outras características de sua personalidade, passam a ser homólogos da caracterização da personagem.

Por outro lado, como exemplo de motivos caracterizadores homólogos, pode-se tomar a descrição do trajeto feito por Pestana quando se dirige aos trilhos do trem para suicidar-se. A caracterização do ambiente pelo qual ele passa, que apresenta um “velho matadouro”, não tem qualquer relevância para a história, mas é fundamental para o discurso, uma vez que reforça o estado de espírito da personagem naquele momento: “E ele ia andando, alucinado, mortificado [...] Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve a idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse” (ASSIS, 1988, p. 74).

Ainda entre os motivos livres, pode-se apontar os objetos presentes no ambiente no qual a personagem compõe suas peças musicais. Entre os elementos desse espaço, carregados de grande significação, destacam-se os quadros de diversos compositores clássicos pendurados na parede. Mais do que simples elementos decorativos, essas imagens reforçam a caracterização da angústia vivida pelo protagonista ao tentar, sempre em vão, compor algo à altura dos gênios retratados, figuras que o cobram e o inspiram ao mesmo tempo. Sem exercer uma influência direta sobre a seqüência das ações da personagem, elas ajudam a criar a imagem de homem ao mesmo tempo pressionado pelo desejo de ser alguém comparável aos gênios emoldurados na parede e frustrado pelo fato de não conseguir criar uma peça do nível das obras de tais compositores.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. (ASSIS, 1988, p. 66)

E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada ente Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. (ASSIS, 1988, p. 71)

Quanto aos motivos associados, composicionais no que se refere à sua função narrativa, pode-se citar o piano da sala de música, ao mesmo tempo instrumento indispensável para Pestana concretizar seu sonho de compor uma peça clássica e objeto sem o qual o protagonista não alcançaria a glória, ou tormento, de ser um reconhecido compositor de polcas populares.

Por fim, cabe apontar também o interessante uso, por parte do narrador, do recurso da motivação falsa, personalizado, no conto, na figura da Sinhazinha Mota. Sua presença, introduzida já nas primeiras linhas do texto, leva a supor uma participação mais intensa no desenrolar dos fatos, talvez até um envolvimento direto com o próprio protagonista, expectativas, no entanto, que são frustradas ao final da narrativa.

A ambientação é muito mais do que a caracterização dos lugares onde se dão as ações. Ela desempenha um papel de significação dos mais importantes no processo narrativo, seja descrevendo ambientes cuja caracterização desempenha uma função primordial no discurso, confirmando ou contrariando a expectativa de um determinado evento, ação e característica da personagem, seja trazendo elementos cuja presença age diretamente sobre suas ações, ou, ainda, aproximando o leitor daquilo que está sendo narrado, valendo-se, para isso, do jogo das diferentes maneiras de apresentar o espaço. Através da análise de Um Homem Célebre foi possível identificar todos esses elementos que envolvem o processo de ambientação narrativa. E, por mérito das habilidades do narrador machadiano, pode-se levantar todos os efeitos que fazem da espacialidade uma peça tão importante na construção de uma grande obra literária.

Considerações Finais

Ao se estudar, em Um Homem Célebre, a focalização, o tempo e o espaço, três importantes componentes do discurso narrativo, muito mais do que identificar os elementos desses processos, pode-se levantar sua importância na narrativa, ou seja, o efeito que as escolhas feitas pelo narrador, sobre esse três aspectos, surtiram no leitor.

Em primeiro lugar, tratando da focalização onisciente do narrador, percebe-se claramente que, em conseqüência dessa visão, o leitor mantém-se a uma distância dos fatos narrados. No entanto, se, por um lado, a leitura é marcada por esse afastamento, por outro, o narrador, habilmente, introduz uma dinâmica ao texto através do uso de discursos diretos e, muitas vezes, disfarçando o seu olhar sob a ótica de algumas das personagens.

A forma como é tratada a questão da temporalidade também traz conseqüências para a leitura da obra. A principal delas, como foi já apresentado, diz respeito à forte relação que se estabelece entre a condução do tempo da narrativa e o próprio tema desta. Mas, além disso, percebe-se também que as escolhas feitas pelo narrador quanto às ordens temporais trazem efeitos sobre aquele que lê, induzindo-o a um envolvimento maior com os fatos narrados. As alterações seqüenciais acabam por instigar o leitor a tentar decifrar, por exemplo, por que o sucesso de suas polcas perturba tanto o protagonista.

Além disso, percebe-se, afinal, que também o espaço desempenha um importante papel nessa aproximação da narrativa. Ao mudar, em alguns trechos, a forma de apresentação do ambiente de franca para reflexiva, o narrador diminui o distanciamento do leitor. De forma semelhante, buscando uma participação deste com a construção de sentidos, o narrador carrega os elementos espaciais de significações, significações essas que só são apreendidas e organizadas no contexto ao longo da leitura.

Analisando esses três aspectos da construção de uma narrativa, percebe-se que, seja na aproximação do foco, seja no ritmo temporal ou na significação dos elementos espaciais, em cada uma dessas escolhas, mais do que uma preocupação com o discurso, Machado teve o objetivo de fazer desse discurso um eco do tema proposto. Debruçando-se sobre o conto, nota-se com clareza o desejo do autor de transformar em música a história de um frustrado compositor de polcas. Perfeccionista como era, Machado soube usar todos os recursos narrativos para encontrar a forma perfeita e criar uma obra-prima. É o sonho angustiante da personagem, realizado com maestria por seu criador.

Machado de Assis, neste conto, traçou a marca do tempo, mas levou o leitor, por outro lado, para muito além da História social, problematizando-a através da divisão do personagem Pestana entre a música popular e a erudita. Com isso não se está considerando no conto somente a interioridade do personagem, mas também a exterioridade, na História que se apresenta com a máscara da tranqüilidade, apenas aparente. Dessa maneira são os “eus” do personagem que revelam o tempo tecido de várias tensões. Sob o presente passa um “mar em fúria” que expõe a complexidade do tempo carregado de outros tempos. Assim temos o juízo de valor da crítica consagrada que eleva as obras canônicas ao altar da fama e do sucesso, modelos do passado que devem ser seguidos e imitados pelos que almejam se tornarem célebres estrelas da arte. Obras sagradas que imprensam Pestana, sempre desejoso de escrever “uma que fosse daquelas páginas imortais”. Por esta razão, o músico persegue noite e dia, dia e noite, com trabalho incessante, a composição de um Noturno ou de um Réquiem, tornando-se duplamente frustrado pelas impossibilidades de realizar tais criações. Pestana fica, dessa maneira, por fatores determinados pela Crítica, atrelado a um ideal que lhe vem do exterior, que lhe dita o que sejam “obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas” (ASSIS, 1998, p. 373) e o que sejam as “aventuras de petimetres” (ASSIS, 1998, p.373).

Fontes:
Adriana Giarola Ferraz Figueiredo, Mestre - UEL
Rafael Guimarães, bacharel em Comunicação Social - UFRGS, aluno do curso de Especialização em Literatura Brasileira - Unisinos
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Continua… análise do conto “A Desejada das Gentes”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.107)


Uma Trova Nacional

Falta grave que dói fundo
e é por tantos repetida:
Trazer uma vida ao mundo
e não cuidar dessa vida!
(PEDRO ORNELLAS/SP)

Uma Trova Potiguar

As flores que me ofereces
perfumando os nossos dias,
são meu rosário de preces,
meu buquê de fantasias.
(GONZAGA DA SILVA/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR
Tema > DEVANEIO > Vencedora

Devaneio é uma promessa
que a vida, às vezes, nos faz,
mas que o destino, sem pressa,
cobrando caro, desfaz!
(RODOLPHO ABUBUD/RJ)

Simplesmente Poesia

– Olympio Coutinho/MG –
IDEAIS

Na imensa solidão desta saudade,
em que me debruço e penso tristemente,
conforta-me saber que, estando ausente,
em ti, meu grande amor, estou presente.
Não importa nosso amor ser impossível
e que juntos não possamos ficar mais,
muito mais belo é o bem inatingível
e é mais lindo sonhar com os ideais.

Uma Trova de Ademar

Quando você foi embora
vi nascer dentro do mim,
um sentimento que chora
numa penúria sem fim!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Nada fala neste Mundo
tanto bem de nossas vidas,
como o silêncio profundo
de duas bocas unidas...
(LUIZ OTÁVIO/RJ)

Estrofe do Dia

Pular de árvore na areia,
Fazer furna de ameixa,
Ao receber uma queixa
Não fazer nem cara feia;
Respeitar quem nos rodeia,
Procurar ser cidadão,
Tomar benção a um ancião
Eram ordens dos meus pais;
Tudo isso e muito mais
Eu aprendi no sertão.
(DAMIÃO METAMORFOSE/RN)

Soneto do Dia

– Thereza Costa Val/MG –
DOCE ENVOLVIMENTO

Faz tanto tempo que da vez primeira
com ela me encontrei... e me envolvi!
Daí por diante, foi minha parceira
e sempre mais com ela convivi.

Tornou-se, em meu viver, a companheira
e só com ela a vida eu entendi.
Muita emoção sincera e verdadeira,
por entendê-la, afirmo que senti.

Quando os meus dias tornam-se enfadonhos,
ou quando sofro mágoas e incertezas,
com seu alento as penas me alivia.

Ela me abriu os olhos para os sonhos,
fez-me sentir ternuras e belezas,
a minha amada... a eterna POESIA!

Fonte:
Ademar Macedo

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Folclore, Superstição, Lendas e Histórias (Aves do Brasil: Acauã)


Introdução

Dos enfeites dos trajes indígenas às lendas sobre a origem do mundo, as aves estão presentes em todos os aspectos do folclore e etnografia. O uirapuru é a ave que causou a loucura de um jovem índio, por ter escolhido outra jovem como companheira, porém é considerado um talismã que traz boa sorte. Os tangarás são os filhos de Chico Santos que de tão apaixonados pelas danças e fandangos, não respeitaram os dias da Semana Santa, e foram condenados pelo Criador a dançar pela eternidade. O beija-flor é a mãe que busca a alma da filhinha morta, guardada dentro de uma flor. O japim é o pássaro mimético, e por esse motivo ganhou a antipatia das outras aves e o consequënte isolamento. O imaginário popular é rico em histórias para explicar a cor de suas plumagens, seus hábitos, suas características, suas personalidades diversas, seu canto, ora melodioso e encantador, repleto de bons presságios, ora agourento e enlouquecedor.

Acauã

Em 1862, eu passava por Serpa, vindo de Manaus. Essa cidade do Alto Amazonas, situada na margem esquerda do rio colossal, foi fundada mais ou menos nos meados do século XVIII. Na época em que lá estive a cidade conservava ainda seu nome português de Serpa; hoje retomou seu nome indígena: é chamada Itaquatiara, isto é, pedra pintada. Esse nome lhe foi dado por causa de um grupo de rochedos existentes nas suas proximidades, sobre os quais estão escritos hieróglifos, atribuídos aos primitivos habitantes da região. Todos os navios que sobem o Amazonas com destino a Manaus, mesmo os vapores vindos da Europa, fazem escala hoje, em Itaquatiara, destinada a se transformar em centro comercial de primeira ordem, graças à sua situação privilegiada: a cidade, com efeito, está situada em frente à embocadura do rio Negro.

Em 1862, um pequeno vaso de guerra para ali havia transportado o sábio e venrável bispo do Pará, monsenhor Macedo, apóstolo bem-amado dessas regiões, que ele procura dotar, atualmente, com uma basílica flutuante da qual toda a imprensa européia se ocupou há algum tempo. Eu fazia parte da comitiva do ilustre prelado.

Durante sua visita pastoral, chamaram-lhe a atenção para os feitos de um pajé, que estava, no momento, preparando-se para realizar uma cura.

Fui vê-lo e tenho ainda na memória, como se tivesse ocorrido ontem, a cena que presenciei.

Em local um pouco distante da aldeia erguia-se uma casa de aspecto pobre, mais propriamente uma choupana. As paredes e o teto eram feitos de folhas de palmeira, da mesma forma que a porta. A casa dividia-se em duas contruções independentes: na frente uma choupana com duas peças, , tendo uma varanda com beiral; atrás, uma cabana inteiramente aberta, que servia de cozinha.

De fora ouviam-se gritos espaçados, repetidos a intervalos regulares: Acauã! Acauã! As três sílabas destacavam-se lentamente: A-cau-ã!

Espiei pela porta levantando as folhas de palmeira entrançadas: o único mobiliário era, na peça principal, três redes grosseiras de tucum, algumas esteiras sobre o solo negro, de terra batida, e cerca de meia dúzia de banquinhos côncavos, bancos típicos do país, aos quais se dá o nome de bancos dos uaupés, e que imitam a forma de um jabuti deitado sobre a carapaça. Possuo, em Paris, numerosos desses banquinhos.

Duas das redes estavam ocupadas por jovens índias. Eram elas que gritavam: Acauã! Eram elas, as pobrezinhas, que tinham visto o Acauã!

O Acauã (Falcão Cachinans) é um pássaro do tamanho de uma galinha comum. Os índios afirmam que ele se alimenta exclusivamente de serpentes. Quando vê uma, lança o seu grito sonoro e prolongado: Acauã! (É daí que lhe vem o seu nome). Logo surge outro Acauã, respondendo ao seu chamado. Os dois lançam-se sobre a serpente: um ataca de um lado; o outro do outro lado. A serpente ergue-se sobre a cauda para mordê-los. Tempo perdido! Os acauãs servem-se de suas asas como de um escudo para aparar os botes da serpente. A luta prolonga-se por muito tempo. Ao fim, a serpente tomba esgotada, por maior que seja, e os acauãs a devoram.

Mas não fica aí o papel do acauã. Seu grito prolongado aterroriza a imaginação dos tapuias. Infeliz daquele que o ouve! Pouco a pouco enlanguece e definha. Vêm depois terríveis convulsões. A vítima cai por terra, rasgando com as unhas o próprio peito repetindo, de tempos em tempos, a palavra fatídica: Acauã! Acauã!

O mais estranho, no entanto, é que a doença passa de uma mulher à outra. Basta que uma tapuia tenha ouvido o acauã para contagiar todas as suas vizinhas.

Eu tinha diante dos olhos um exemplo do inexplicável contágio.

Uma das jovens fora atingida pelo mal misterioso. Logo depois, sua irmã começou a sofrer do mesmo mal, e conta-se que, na vizinhança, outras índias, vindas para visitá-las, começaram a apresentar sintomas do mal.

Eu continuava a olhar as duas redes. As índias agitavam-se dentro delas, como se arrepios percorressem seus corpos e, de quando em quando, uma delas lançava agudo grito: Acauã! Acauã!

A escuridão era completa. Nem um só lampião: a aldeia não os possuia. Quando saíam à noite, as pessoas transportavam tochas feitas de gravetos.

De repente, percebi uma sombra que se aproximava. Escondi-me. A sombra estava mais próxima. Deu a volta à casa entoando um canto lúgubre e monótono, com voz rouca e de falsete. Eu não podia entender as palavras, mas este canto parecia embalar as duas doentes, cujos gritos tornavam-se menos estridentes.

Era o pajé!

Ele penetrou na choupana entoando, com voz mais acalentadora, o mesmo canto. As jovens não se levantaram; pareciam mesmo não se terem apercebido da presença de um estranho, não terem ouvido o seu canto.

O pajé dirigiu-se, sucessivamente, às duas redes. Já não cantava. Mumurava alguma oração misteriosa, enquanto fumava um enorme charuto, cuja fumaça lhe servia para incensar as duas tapuias, uma de cada vez.

Elas, também, já não gritavam: de quando em quando um tremor agitava os seus membros, e, como em agonia, elas murmuravam: Acauã! Acauã!

Muitos anos se passaram desde então. O acauã continua a causar danos entre as jovens índias. Todos os dias ouve-se falar de qualquer tapuia atingida pelo mal terrível e, por vezes, o contágio se estende a toda uma aldeiazinha: frescas jovens são tranformadaas em horríveis megeras, macilentas, olhos fundos, presa de convulsões, repetindo o grito: Acauã! Acauã!

Fonte:
F. J. de Santana Néri. 'Folk-lore Brésilien'. Paris, Librairie Académique Didier, 1889, p. 168-173, In MELO, Anísio. Histórias e lendas da amazônia. Disponível em Jangada Brasil.