sábado, 31 de março de 2012

Vera Lúcia de Souza Lima (Cartas: verdades tristonhas, mentiras risonhas)


Longe vai o tempo em que um moleque de recados, uma ama cúmplice ou um criado fiel se prestavam aos serviços de pombo-correio. Hoje, quando telefones e celulares sofisticados estão disponíveis para conversas, encontros e declarações ao pé do ouvido, a internet, um recurso tecnológico desprovido de romantismo e glamour, paradoxalmente, trouxe de volta o hábito requintado de escrever cartas.

Mas convenhamos, são as cartas tradicionais, dentro de envelopes, com destinatário, remetente e, de preferência manuscritas, que despertam maior fascínio.

Povoando canções, narrativas de ficção, filmes e peças teatrais, alimentam nosso imaginário tanto mais quanto maiores forem os indícios de que se trata de uma carta de amor ainda que ridícula, pois como afirma Fernando Pessoa “Todas as cartas de amor são ridículas”.

Do ponto de vista literário, as cartas, que pertencem ao gênero ensaístico foram batizadas pelos franceses com um nome especial: écriture intime, tendo sido acolhidas com grande entusiasmo pelas mulheres, as quais, confinadas aos espaços domésticos, adequaram-se com perfeição a esse estilo de escrita do eu, que lhes viabilizava a comunicação com o mundo exterior, sem exigir-lhes o apagamento das características pessoais, as marcas do seu mundo privado.

O tom menor, íntimo, descontraído, a liberdade de expor, de discutir sentimentos e idéias, a flexibilidade de poder deslizar de um assunto a outro, e, dessa forma, deixar fluir, consciente ou inconscientemente, comentários, sonhos, frustrações, desejos, passíveis de serem elaborados nos diálogos com o interlocutor ausente, atraíram para o gênero, cientistas, artistas, estadistas e intelectuais vários.

Assim, Freud, Jung, Van Gogh, Joaquim Nabuco, Hanna Arendt, Franz Kafka, Rainer Maria Rilke, Mário de Sá Carneiro, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Caio Fernando Abreu entre outros, se encarregaram de construir com sua extensa correspondência, um vasto acervo epistolar.

Reunidas em livro, muitas vezes depois de um exaustivo trabalho de pesquisa, as cartas constituem uma literatura especialmente instigante. Nelas, os leitores buscam vislumbrar aspectos biográficos inusitados e a revelação, quem sabe, do lado mais humano de figuras de renome. Nelas, os leitores encontram depoimentos e retratos de uma época pontuada pelos diversos acontecimentos relatados.

Delas, os leitores extraem narratividade. Sim, porque as cartas na sua organização em seqüência contam histórias várias, entretecidas nas conversas entre emissores e destinatários, que a escrita dramatiza e pereniza.

Antigas cartas medievais, escritas em latim, encerram a tragédia do grande e sofrido amor de Abelardo e Heloísa, amor condenado à sublimação mística.

- “Como o Senhor é justo e misericordioso! A odiosa traição de teu tio me fez crescer na virtude, quando me privou desta parte do meu corpo, que era a sede de minha libertinagem e a fonte única dos meus desejos” declara Abelardo. Convicto de que é justiça e benefício o que lhe aconteceu, tenta persuadir Heloísa a aceitar a renúncia e a vida monástica.

Ela, insubmissa, tomada por Eros, nega, indignada, as circunstâncias da sua conversão, afirmando que foi a determinação de Abelardo e não a vocação divina, que a levou a tomar o hábito monástico.-“Mas em mim esses aguilhões da carne se excitam mais pelos ardores de uma juventude ávida de prazeres e pela experiência que tive das mais inebriantes volúpias”, protesta Heloísa.

Abelardo, ídolo intelectual do seu tempo, mestre, poeta e músico, aos trinta e oito anos encontra em Heloísa, dezessete anos, sua aluna, sensível, inteligente e belíssima, o arrebatamento intelectual e o sensual. Separados, unidos por um casamento secreto e novamente separados em função de muitos preconceitos, são atingidos pela castração física de Abelardo, a mando do tio e preceptor de Heloísa, o cônego Fulbert.

Recentes cartas pós-modernas, escritas em linguagem coloquial, encenam uma outra tragédia contemporânea. Não o amor impossível de dois jovens, mas a vida de um jovem escritor, tornada impossível pela ação do vírus da Aids.

“-Pois é amiga. Aconteceu – estou com Aids – ou pelo menos sou HIV+,” informa Caio Fernando Abreu à sua amiga Lídia Magliani no livro Cartas (2002). “Te escrevo da minha suíte do hospital Emílio Ribas onde estou internado há uma semana” contextualiza com ironia.

Fraternas cartas, publicadas recentemente, dramatizam os vários momentos e as várias modulações de um sentimento, talvez o mais sublime de todos os sentimentos humanos: a amizade. “Depois de ler fico pensando que realmente doce é a companhia dos amigos”, diz Fernando Sabino, autor de Cartas na mesa, registro de sua correspondência, endereçada aos outros três cavaleiros mineiros do Apocalipse: Hélio Pellegrino, (Pellegruventz), Otto Lara Rezende (Pagé), Paulo Mendes Campos, (Nicodemus). È o desejo de sempre trocar, de conversar, de partilhar, de ver com os amigos a vida passar, que anima o comovente furor epistolográfico do escritor mineiro, o qual de 1943 a 1992, escreve muitas cartas, enviadas dos diversos lugares onde residiu: Juiz de Fora, Rio, New York, Frankfurt, Paris, Roma, Londres, Rio novamente. Nelas está sempre presente o apelo da amizade.

“Sinto que vocês estão se afastando de mim, Hélio, e eu não queria que isso acontecesse. Já não estou presente quando vocês se encontram aí, percebo que o tempo está me empurrando para frente com força demais, e isso é terrível. Eu queria ficar com vocês, Hélio, e estou cada vez mais longe (creio que será bom prevenir que enquanto escrevo esta carta estou com os olhos molhados)”.

Sob o fio condutor – a relação entre os amigos – a prosa que flui, ágil e saborosa, fragmentando-se ao final de cada carta, para depois fluir e novamente fragmentar-se, traz temas envolventes: reflexões filosóficas, análises de situações políticas, visões culturais de outros países, referências e informações sobre figuras do meio literário.

Diz Fernando: “Clarice chegou, viu e venceu, mas em termos: com exceção de mim, que sou suspeito, ainda não conquistou para o seu novo livro os leitores que merece”.

Trepidantes, as cartas reunidas no volume Querido Poeta – Correspondência de Vinicius de Moraes, organização de Ruy Castro. Agrupadas por décadas, elas dramatizam os movimentos de um escritor pleno, a vida vivida intensamente, nos acordes de uma lira muito singular, personalíssima.

O poeta e diplomata envia e recebe cartas, ao escrevê-las, expõe com coragem, angústia e medo, sua relação consigo próprio e com o mundo, relação que se constrói com base no amor e na entrega total aos objetos desse amor: mulheres (muitas), esposas, namoradas, filhos, mãe e pai, irmãs, amigos (muitos).

Assim, numa carta à filha Susana de Moraes se queixa: “Filhinha, meu amor, o seu velho está aqui no auge de tristeza, longe de vocês e da namorada dele (Lucinha Proença)... Esses dois meses que tenho de esperar pela vinda de Lucinha parecem dois anos, de tal forma os minutos se arrastam, pesam, fazem valer cada segundo”.

Noutra, comunga com o amigo Antonio Maria:... ”Você, meu Maria, que, além de meu amigo, é meu parente, e como eu gosta da noite, teria adorado esse começo de primavera, que de primaveral aliás só mostrou poucos dias”.

Pelo viés das cartas é possível flagrar o poeta envolvido com a poesia, a sua e a dos outros. Declara, a propósito de um poema recebido de Bandeira: “Seu ‘Epitalâmio’ nos deixou comovidíssimos, não só pela ternura do poema em si, como porque foi assim como a nossa certidão de casamento... E mostra que um poeta deve ser realmente um conhecedor de almas, um ‘expert’ no ser humano, um fisiognomista que não precisa de Husserl nem da escola alemã para intuir o essencial do comportamento de um semblante.... “Estou escrevendo minha nova peça, Uma rosa nas trevas, d’après o verso de Mallarmé. Danadamente difícil”.

Pelo viés das cartas é possível entender melhor que malgrado a poesia, o poeta é um homem que assume as preocupações prosaicas de todos os mortais. “Esta remoção, do ponto de vista financeiro, é um bom safa onça e vai me permitir pagar uma série de dívidas chatas aqui e aí. Pois a merda era grande, Braga”.

Com a ousadia que caracterizou sua vida, o querido poeta não hesita na sua correspondência em abrir seu coração, desnudar-se e avaliar-se a si próprio e a sua geração, fato que fica evidente numa carta endereçada a Ribeiro Couto: “Eu vim numa geração posterior, angustiada, errada em sua formação e que teve que descobrir tudo por si mesma, deixando, em sangue, seus melhores pedaços pela estrada. Mas não há de ser nada. A etapa foi vencida e agora só me resta congratular-me comigo mesmo de ter sobrevivido a tanto sofrimento ( por vezes tão inútil) e poder agora apreciar devidamente o meu passado, os meus amigos, o que ficou de bom de tudo isso”...

Nas cartas visitadas, as descobertas, as surpresas, as revelações. Nas malhas da letra pessoal, um universo paralelo, um eu que se estrutura e se constrói à sombra de uma persona social. Onde a verdade do ser?
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Vera Lúcia de Souza Lima é Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora do Departamento de Letras da PUC-Rio.

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 513)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

A solidão mais secreta
ganha forma de Poesia,
quando a pena do poeta
encontra a folha vazia...
–EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ–

Uma Trova Potiguar


Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a POESIA
num hino de amor e paz!!!
–PROF. GARCIA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Fazer versos é mania
que qualquer um pode ter;
mas os versos com POESIA
nem todos podem fazer!
–ARCHIMINO LAPAGESSE/SC–

Uma Trova Premiada


2007 - Bandeirantes/PR
Tema - DESVELO - M/E.


Desvelo é aquele cuidado
com que o poeta, a seu jeito,
passa uma noite acordado
buscando um verso perfeito.
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Simplesmente Poesia

Doze de Março 2012.
JOSÉ LUCAS/RN (Em agradecimentos)


Hoje colhi mais um ano
no canteiro da existência,
sem mágoa e sem desengano,
porque o Mestre Soberano
não usa a palavra ausência.
Quando tiveram ciência
deste novo amanhecer,
amigos de mil paragens
mandaram tantas mensagens,
que nunca vou merecer!
Nem é preciso dizer
da alegria e da emoção
que, encontrando a porta aberta,
me invadiram, sem alerta,
alma, vida e coração.
Ainda existe um mundo irmão
onde o dom do amor habita,
nutrindo a fraternidade
e abençoando a amizade;
por isso a vida é bonita!
Feliz é quem acredita
que é possível ser feliz,
na vida, em qualquer idade,
pois, mesmo a longevidade,
tem sonhos primaveris.
E assim, as vozes gentis,
portadoras da emoção
de pessoas tão amadas,
hoje ficaram gravadas,
pra sempre, em meu coração!

Estrofe do Dia

Quem carrega, como nós,
o vírus da poesia,
tem no sangue uma plaqueta
que se altera todo dia,
aumentando a quantidade
e pondo mais qualidade
nos versos que a gente cria...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Poeta
–DOROTHY JANSSON MORETTI/SP–


Nunca lhe falta a sensibilidade,
a sutileza, o dom de transferir
às palavras toda a expressividade
na alegria ou na mágoa de sentir.

O poeta é assim, é versatilidade...
Seja o que for que intente traduzir,
mergulha em vida, em sonho, em realidade,
faz de uma noite a aurora reflorir.

Transcende as dores de um mundo sofrido,
pisa os mistérios do desconhecido,
traz as estrelas para o nosso chão.

E quem o escuta, exclama, fascinado:
“Era assim que eu queria ter cantado,
se soubesse escrever minha canção!”

Maria Elizabeth G. de Vasconcellos (Contos de Fada: Nossos Medos e Nossos Sonhos)


As fadas... eu creio nelas! Umas são moças e belas, Outras, velhas de pasmar... [...] Quem as ofende...cautela! A mais risonha, a mais bela, Torna-se logo tão má, Tão cruel, tão vingativa! É inimiga agressiva, É serpente que ali está!
Antero de Quental


Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem? Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem?

Comecemos por afirmar que uma das principais marcas que ali circulam é o medo. Os nossos e eternos medos, quer individuais, quer coletivos. E aqui vale lembrar Jean Delumeau, na obra da História do medo no ocidente: .... não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo. [1]

Vivendo, portanto, assolado pelo medo, o homem procura uma compensação que o liberte dessa agonia.

É preciso que encontre respostas que preencham as angustiantes lacunas do seu dia-a-dia. É então que, movido pela necessidade de sonhar uma outra História, o homem cria suas utopias pois, como ensina Hilário Franco Jr., [....] utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, é espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo. [2]

Neste final de século – e de milênio –, quando heranças quer de um passado remoto, quer de um passado próximo misturam-se aos velozes progressos de uma moderna tecnologia, será necessário rever a História e repensar as utopias de ontem para entender os sonhos de hoje. E só assim seremos capazes de ter um amanhã.

Estudar as utopias de uma sociedade é lidar com o desejo dessa sociedade; é trabalhar com a falta e a esperança que circulam em seu imaginário. É preciso, então, revisitar a História que ali se viveu e ouvir as histórias que ali se contavam. E para tal há que se recorrer a determinadas pistas: aquelas deixadas pelos historiadores e pelos cronistas, pelos pintores e escultores, pelos poetas, romancistas e contistas.

Sendo assim, vamos encontrar nos contos de fada [3] as utopias que respondem aos eternos desejos da humanidade, pois como afirma Karl Mannheim, na obra Ideologia e Utopia,

Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fada, promessas supraterrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. [4] (o grifo é nosso)

Em busca da abundância, da justiça e do amor – sonhos que embalam o imaginário social através dos tempos –, as personagens dos contos de fada vivem suas histórias que funcionam como respostas aos eternos desejos da humanidade. E por isso os contos tornam-se atemporais, como ensina Pierre Mabille:

Os contos, repetidos de boca em boca, de geração a geração, seguem uma trajetória comparável à de um eco gigante que se prolonga ao infinito. [5]

Assim entendidos, os contos de fada constituem documentos onde se inscrevem nossos medos e os mecanismos para neutralizá-los – as utopias. São eles que agora revisitaremos.

Contemporâneo de Luis XIV, o Rei-Sol, Charles Perrault (1628-1703) publica as suas Histórias ou contos dos tempos passados com algumas moralidades em 1697. A obra consta de oito contos de prosa: A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira, Henrique de Topete e O Pequeno Polegar. Cada um é encerrado com uma moralidade em verso. No frontispício, a obra apresenta uma gravura com a inscrição Contes de ma mère L'Oye (Contos da Mamãe Ganso).

O tempo é de contrastes na França de então; ao lado do extremo fausto da corte de Versailles, os camponeses vivem em alarmante penúria, como salienta Robert Darnton:

Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivência,
e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha da pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano;e alimentar a família. [6]

Esse universo de fome e miséria inscreve-se em contos como O Gato de Botas e o O Pequeno Polegar. Para ajudar o terceiro filho de um pobre moleiro falecido, o Gato usa das mais refinadas trapaças e consegue para seu dono até um casamento com a filha do rei. Já o Polegar – sétimo filho de um lenhador também pobre –, após ser abandonado com seus irmãos, na floresta, pelos pais, consegue um lugar na corte, como correio, graças às botas que rouba do ogre; lá enriquece e emprega também toda a família. A lição dos contos é clara: num mundo onde as injustiças sociais e as diferenças econômicas são flagrantes, é preciso ser esperto para burlar o esquema e vencer.

Também nos contos dos irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863; Wilhelm, 1786-1859) vamos encontrar idênticas situações em que o fraco (pobre) vence o forte (rico): são situações que alimentam o desejo de prosperidade e de fartura das classes menos favorecidas. Desejo este substantivado na utopia da Terra da Cocanha à qual os Grimm dedicam um conto homônimo. Nessa terra de abundância, retrato do «mundo às avessas», ninguém precisa trabalhar, pois «um rio de mel escorria como água de um vale profundo no cume de uma montanha muito alta» e «em um pátio próximo, se achavam outros quatro cavalos debulhando milho e duas cabras acendiam um fogão, enquanto uma vaca assava pães no forno». [7]

O ano da publicação dos Contos de criança e do lar dos irmãos Grimm é de 1812 e vamos encontrar a Europa vivendo sob o signo do Romantismo. Os contos fazem parte, portanto, de uma literatura que reflete as mudanças rápidas e profundas que a sociedade de então experimentava. Viajando pela Alemanha, os dois irmãos vão colhendo de diversos narradores as histórias que circulavam na boca do povo, cheias de tradições e, ao mesmo tempo, cheias de sonhos de renovação.

Quando as narrativas elegem o terceiro irmão (o bobo) – ou ainda um simples caçador (como em Os dois irmãos) – para protagonizar a aventura e finalizá-la com sucesso (muitas vezes casando-se com a filha do rei, como no conto citado), parecem responder a determinadas expectativas do público. Num mundo que vivia os ideais da Revolução Francesa, os contos apontam para a necessidade de revisão de atitudes despóticas da nobreza e da aristocracia: mais importantes que a força e a linhagem são a bondade, a coragem e a temperança. E para confirmar tais lições, as narrativas incorporam características daquele momento literário.

A vivência da Natureza, por exemplo, tão a gosto do espírito romântico, passa a constituir, nos contos de Grimm, importante marca para qualificar o herói. Lugar de refúgio ou de desamparo, a Natureza propicia muitas vezes ao personagem cenas de união e de compensação, como acontece com o caçador de Os dois irmãos. Auxiliado pela lebre, pelo urso, pelo lobo e pela raposa, casa-se com a filha do rei. É certo que tal união subverte a ordem, mas é muito bem aceita por um público que vive o sonho de «liberdade, igualdade e fraternidade». E esse final feliz alimenta, sem dúvida, a ilusão de ascensão econômica e social das classes menos favorecidas.

Mas se sonha com a ascensão social – desejo individual –, o homem sonha também com uma sociedade equilibrada, com uma terra regida por um soberano justo. Recorrendo a certos perfis já cristalizados no imaginário do ocidente cristão (como o Rei Arthur, o Imperador Carlos Magno, e até o fora-da-lei Robin Hood), as narrativas vão construindo heróis que satisfazem o eterno desejo das sociedades: o de um pai protetor.

Retrato da perfeição física e moral, o herói conta muitas vezes com a ajuda sobrenatural (de fadas, gnomos, objetos mágicos e até de animais encantados, como já salientamos anteriormente) para vencer o inimigo (muitas vezes também sobrenatural, como bruxas, ogres, anões malvados, dragões) e qualificar-se para ocupar o lugar de soberano. É o que acontece em Os dois irmãos. Assim como Arthur, personagem das histórias da Távola Redonda, o nosso herói – um caçador – é um predestinado para retirar a espada mágica de uma pedra:

Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia: «Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada ao lado de fora da porta». O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade. [8]

De posse da arma, luta com o dragão que todos os anos exigia uma donzela imaculada, mata-o e ganha a mão da princesa, sendo em seguida proclamado herdeiro do rei. Esse final feliz – que é muitas vezes repetido nos contos – aponta para o nascimento de uma sociedade mais justa. Coroado, o herói reina por muito tempo, com muita sabedoria. Cumpre-se utopia da justiça.

Mas se o dragão é desafio constante ao jovem herói, é verdade que há outro oponente que se lhe apresenta igualmente tenebroso: a bruxa. Figura diabólica, a bruxa espalha malefícios que atingem a todos: a nobres, a camponeses e a crianças perdidas na floresta.

Através dos séculos – através dos contos –, detalhes anatômicos vão sendo acrescentados a um retrato de mulher que o desejo rejeita: ela é velha, é feia, corcunda, sua pele é enrugada aponteada de verrugas. Seus dedos de ossos longos completam-se com unhas tortas e ponteagudas. Demonizada, ela representa o ser marginal que a ordem rejeita. Ela opõe-se à fada que o desejo almeja. Mas como chegamos a esses perfis tão distintos?

Ao revisitarmos a literatura dos séculos XII e XIII – principalmente aquela que aflora a chamada matéria de Bretanha, de substrato celta –, aprendemos, através do exame de alguns perfis femininos (como Isolda, Viviane, Morgana e Mab), que fada e bruxa são representações das duas faces de uma mesma história da mulher. Como grande fiandeira, reeditando o fazer de Láquesis, Cloto e Átropos, as três parcas da tradição clássica, a fada é aquela que tece o destino (fatum) do homem. Como a sábia alquimista que prepara mezinhas e conduz os partos, a bruxa é aquele agente perigoso que se atreve a penetrar nos segredos da ciência, invadindo, assim, os domínios masculinos. É na fala de Mercúrio, personagem da obra Romeu e Julieta de Shakespeare que melhor vemos apresentada essa bipolaridade:

Pelo que vejo, foste visitado Pela rainha Mab. Ela é a parteira Entre as fadas. E é tão pequenininha. Como a ágata do anel que os conselheiros usam no indicador.[....] É essa mesma Mab que, de noite, Entrança as crinas sujas dos cavalos E dá-lhes nós feéricos, os quais Enfeitiçam aqueles que os desatam. Ela é bruxa que aperta as raparigas Que se deitam de papo para o ar, E lhes ensina na primeira vez Como se hão de portar para aguentar a carga. [9]

Com o passar dos séculos, cada uma dessas facetas vai ganhando autonomia, e fada e bruxa passam a ser representações distintas e antagônicas. Na obra dos Grimm, por exemplo, são abundantes os retratos de fadas e de bruxas e no conto João e Maria a descrição da bruxa muito se aproxima daquelas que foram feitas na Baixa Idade Média – séculos XIV e XV –, período em que a caça às bruxas atingiu o apogeu:

A velha, porém, apenas fingira ser boa. Na verdade era uma perversa feiticeira, que fizera aquela casa de pão doce, bolos e açúcar-cande com a intenção de atrair crianças. Quando uma criança caía em seu poder, ela a matava, cozinhava e devorava, pois, para ela, não havia um prato mais delicioso do que carne de criança.

As bruxas têm os olhos vermelhos e enxergam muito mal, mas por outro lado, têm um faro igual ao de certos animais e, mesmo sem vê-lo, percebem quando um ser humano se aproxima. [10]

Mas afinal, que motivos levaram uma sociedade – como a cristã medieval, da qual herdamos vários tabus e muitos medos – a alimentar esse amedrontador perfil feminino? É bem verdade que o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos. Por ter sido um constante enigma para o homem, a mulher sempre o amedrontou, como salienta Jean Delumeau:

Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando sorri? [12]

Mas se é verdade que o medo da mulher não é invenção do ascetismo cristão, é certo também que foi o cristianismo que muito cedo o integrou em seu ideário e trabalhou esse espantalho até o limiar do século XX. Se o indecifrado existe, se incomoda e amedronta, é preciso buscar um motivo que justifique sua perseguição e até, se possível, sua neutralização – a mais perfeita que se puder. E no que se refere à mulher, a Europa da Baixa Idade Média viveu, com toda violência, uma clima favorável a essa cena. É Jeffrey Richards, na obra Sexo, desvio e danação, quem sintetiza:

As pessoas do período medieval viviam num mundo de medo: medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do inferno. Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural,no poder das forças das trevas em ação de Satã e de seus demônios no mundo.Acreditava também na bruxaria, que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas (fome, epidemias,tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto para problemas familiares recorrentes, tais como impotência,infidelidade, mortalidade infantil. [....]

As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas: as velhas, as solitárias, as impopulares, as neuróticas, as insanas, as mal-humoradas,as promíscuas, as praticantes de medicina popular ou parteiras, mulheres que, por motivos variados, haviam se tornado alvo do ódio local. [....]

As bruxas satânicas do final da Idade Média eram, assim, os bodes expiatórios perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo uso da tortura e do terror, se tornava realidade. [13]

Autos de fé são comuns e a execução de bruxas na fogueira traz o aval das Escrituras: «Não deixarás viva uma feiticeira», diz o Êxodo, 22, v. 18. Infração cometida, castigo imposto. Castigo que se eterniza através dos séculos e que também se inscreve no universo dos contos de fada. É o que acontece, por exemplo, em Os dois irmãos, de Grimm, com a bruxa da floresta que encantava a todos que por lá passassem:

– Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo! Ela pegou uma varinha e tocou
as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram,agradeceram ao caçador e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira. [14]

E agora o nosso terceiro autor, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875). Imprimindo à sua obra marcas de sua hipersensibilidade, timidez, e de seu temperamento depressivo, Andersen publica seus Contos em 1835. Neles também desfilam personagens em busca de abundância, da justiça e do amor. É deste que trataremos agora.

Acossado pelo medo da diferença encarnada pelo outro, pelo medo, enfim de sua natureza seccionada, o homem (a humanidade) responde com a utopia da androginia. Através do sonho de amor, homem e mulher buscam a unidade perdida, isto é, procuram reviver o tempo em que, como recorda Aristófanes em sua fala em O Banquete, de Platão, [....] nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não como agora, o masculino e feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino... [15]

Tais seres possuíam muita força e, presunçosos, voltaram-se contra os deuses. Zeus, para punir tal ousadia, delibera cortá-los ao meio, para enfraquecê-los. E assim, seccionados, viviam à procura da outra metade. E continua Aristófanes:

O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo é que se dá o nome de amor. [16]

Será, então, na expressão literária que o amor se imortaliza: na paixão vivida por Tristão e Isolda, por Romeu e Julieta e por tantos outros casais. São também muitos os contos de fada onde se lê a busca do par: A Bela Adormecida e a Gata Borralheira, nas versões de Perrault e Grimm; A Bela e a Fera, na versão de Madame Leprince de Beaumont (meados do século XIX); Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, A Moça dos Gansos, na versão dos Grimm, dentre outros.

Já nos contos de Andersen essa busca não constitui tema recorrente; há narrativas em que o final é feliz – como em A Princesa e o Grão de Ervilha e Os Cisnes Selvagens –, mas certamente há outras em que se acentua o pessimismo em relação ao amor, como em Os Namorados. E em A Sereiazinha, que reedita, ainda que de maneira eufemizada, a eterna sedução das sereias, é trágico o final para a figura feminina: não conseguindo o amor do príncipe, e não desejando matá-lo, como recomendara a bruxa do mar, para reassumir sua antiga natureza de sereia, a Sereiazinha joga-se ao mar e transforma-se em espuma.

E em relação a esse final, vale ressaltar que é também trágico, em outras narrativas de Andersen, o destino das personagens femininas, como as dos contos Os Sapatinhos Vermelhos e A Menina dos Fósforos, por exemplo.

Encerrada a viagem através do universo literário dos três autores selecionados – Perrault, Grimm e Andersen – é importante lembrar, ainda, que o primeiro livro infantil publicado no Brasil data de 1894 e é de autoria de Figueiredo Pimentel (1869-1914): Contos da Carochinha. A ele somam-se Histórias da Avozinha e Histórias da Baratinha, do mesmo autor. Nessa trilogia são incluídos os contos clássicos, já presentes nas obras dos três autores mencionados, e muitos outros.

Por traduzirem as eternas paixões humanas, os contos de fada tornam-se atemporais, como salientamos ao início. Sendo assim, tendo já visitado a produção clássica, cabe agora dirigir nosso olhar para a produção destas últimas décadas do século XX e observar como tais contos são recontados.

Reaproveitando o já escrito, os autores vão recontando as histórias ouvidas (ou lidas) aqui e ali e, nesse processo, vão descobrindo novos sentidos, multiplicando, assim, o já contado. É como salienta Marina Colasanti no conto Com voz de mulher da obra Longe como o meu querer:

Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias de deus para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali, acrescentava coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesma, era outra. Mais que contar, recontava. Depois houve um rapaz, que também. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro. [18]

Também nas narrativas agora produzidas vamos encontrar os mesmos medos de ontem: o medo da morte, da fome, da solidão, da doença, da injustiça. A forma de tratá-los é que é diferente. Em vez de narrativas que caminham para um final fechado (muitas vezes feliz), agora privilegia-se um final aberto, que conduz o leitor à reflexão. É o que acontece, por exemplo, em R, a Princesinha de Ziraldo, que retoma A Sereiazinha de Andersen. Em vez de transformar-se em espuma, como no conto clássico, a sereia transforma-se em reticências, que, sem dúvida, constituem o sinal de pontuação mais aberto que conhecemos... E é Nasuta, a bruxa, quem explica às irmãs da sereia:

Olha: no final de uma frase, as reticências significam que há ainda alguma coisa mais a dizer, certo? As letrinhas já tinham suas lágrimas quase secas.

Se colocarmos, porém, as reticências no princípio de uma frase, isto quer dizer que alguma coisa dita antes foi interrompida e vai começar, não é verdade, minhas...

Ééééé! ... queridas? Logo, as reticências fazem exatamente essa ligação entre o que foi e o que virá a ser. As irmãs se olharam, tentando descobrir se todas haviam compreendido a explicação da bruxa. E ela continuou:

Como a espuma do mar, sua irmãzinha vai voltar ... [19]

E se, ainda, nos contos tradicionais imperava o claro esquema antitético entre Bem (fada) e Mal (bruxa), já agora tais opostos se mesclam, sugerindo que de fada e de bruxa todos nós temos um pouco. E é o que lemos em Uxa, ora fada, ora bruxa, de Silva Orthof; Onde tem fada tem bruxa, de Bartolomeu Campos Queirós; e Bruxa e fada: menina encantada, de Ieda Oliveira.

Como paródias (para = ao lado de; ode = canto), isto é, uma narrativa ao lado da outra, as produções atuais exigem do leitor um conhecimento prévio do texto clássico para que o entendimento se estabeleça. É o que propõem os Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner, onde encontramos deliciosas paródias de Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, dentre outras.

Ainda na esteira da paródia, podemos citar Ervilina e o Princês, de Silvia Orthof, que parodia o conto de Andersen A Princesa e Grão de Ervilha, mostrando que o destino da mulher não é mais o de ser escolhida, mas o de fazer sua própria escolha. E nessa linha de inauguração de uma nova história da mulher podemos ler também História meio ao contrário, de Ana Maria Machado; Mulheres de coragem, de Ruth Rocha; Heróis e guerreiras, de Heloísa Prieto; Doze reis e a moça no labirinto do vento, Entre a espada e a rosa, O lobo e o carneiro no sonho da menina e Ofélia, a ovelha – todos de Marina Colasanti.

Produzida sob o signo de uma cultura de propaganda, do consumo, da velocidade, a própria arte insere-se nessa rede de exigências. Narrativas curtas, à moda dos clips da linguagem televisiva, constituem a literatura ideal para o leitor de hoje. Assim é construída, em seis volumes, a coleção «Assim é se lhe parece» de Angela Carneiro, Lia Neiva e Sylvia Orthof. Cada volume contém três sketches que viram pelo avesso elementos e situações dos contos clássicos. No volume intitulado Chamuscou, não queimou, encontramos um dragão doente, casado com uma princesa indomada. Ao neutralizar o dragão como encarnação do Mal, a narrativa anula também o poder que o criou e a tradição que o manteve como sustentáculo do forte maniqueísmo repressor. O episódio final, à moda de um besteirol, conduz à perplexidade, perplexidade que é, enfim, a do próprio leitor num mundo estilhaçado como o desse final de século, onde até o amor é descartável. Desfazendo o seu casamento com o dragão, a princesa Marinalva volta para o castelo real, apaixona-se pelo sapo e depois pelo bode, levando o seu pai ao desespero:

O rei estava enfezado,e disse, assim assado:Perdôo só desta vez,ó filha, desajuizada,ficaste toda ensapada,estou danado! Marinalva se cuidou,desensapou. Aí ela viu um bode... vê se pode! Marinalva virou cabra? Abracadabra! Esta história é inventada, sou muito inventadeira, a história verdadeira por outros será contada. Eu brinco, rebolo, bolo, canto mentiras na feira, sou Orthofia, a feiticeira... quanta besteira! [20]

A palavra irreverente que provoca o riso, como essa de Sylvia Orthof, é mais uma das características das narrativas da atualidade; e pode também funcionar como uma das mais eficazes estratégias para neutralizar os nossos medos...

E já que falamos de riso, vamos concluindo também de maneira irreverente o passeio através do mundo encantado dos contos de fada: «entrou por uma porta e saiu por outra, e quem quiser que conte outra».”

Bibliografia

I – Repertório crítico-teórico
1 – BAROJA, Julio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa, Vega, s/d.
2 – CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual. São Paulo, Brasiliense, 1984.
3 – COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo, Ática, 1987.
4 – DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro, Graal, 1986.
5 – DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
6 – FRANCO Jr., Hilário. As utopias medievais. São Paulo, Brasiliense, 1992.
7 – MABILLE, Pierre. Le miroir du merveilleux. Paris, Minuitt, 1976.
8 – MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 3. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
9 – PASTOUREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo. Companhia das Letras, 1989.
10 – PAZ, Noemí. Mitos e ritos de iniciação nos contos de fadas. São Paulo, Cultrix, 1995.
11 – PLATÃO. O Banquete. 2. ed. São Paulo, Difel, 1970.
12 – PLACE, Robin. Os celtas. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1989.
13 – RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.
14 – SANT'ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo, Ática, 1985.
15 – SOUZA, Angela Leite de. Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil. Belo Horizonte, Lê, 1996.

II – Repertório ficcional
1 – ALLSBURG, Chris Van. A vassoura encantada. São Paulo, Ática, 1996.
2 – ALMEIDA, Fernanda Lopes de. A fada que tinha idéias. 10 ed. São Paulo, Ática, 1984.
3 – ANDERSEN, Hans Christian. Contos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
4 – BANDEIRA, Pedro. Chapeuzinho e o Lobo Mau. 5. ed. São Paulo, Moderna, 1990.
5 – –––––. O fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo, FTD, 1986
6 – BERNADINHO, Adriana (adap. de). Tristão e Isolda. São Paulo, FTD, 1996.
7 – BIRD, Malcom. Manual prático da bruxaria em onze lições. Rio de Janeiro, Ática, 1996.
8 – BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. 5. ed. Rio de Janeiro, Barlendis & Vertecchia, 1983.
9 – COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro, Nórdica, 1982.
10 – –––––. Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro, Salamandra, 1990.
11 – –––––. Longe como o meu querer. São Paulo, Ática, 1997.
12 – –––––. O lobo e o carneiro no sonho da menina. Rio de Janeiro, Ediouro, 1994.
13 – –––––. Ofélia, a ovelha. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1989.
14 – ESTERL, Arnica. As penas do dragão. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
15 – FUNARI, Eva. A bruxa Zelda e os oitenta docinhos. São Paulo, Ática, 1994.
16 – –––––. O feitiço do sapo. São Paulo, Ática, 1995.
17 – GARNER, James Finn. Contos de fada politicamente corretos. Rio de Janeiro, Ediouro, 1995.
18 – GRIMM, Jacb & GRIMM, Wilhelm. Branca de Neve e outros contos de Grimm. Sel. e trad. de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
19 – –––––. Cinderela e outros contos de Grimm.Sel. e trad. de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.
20 – –––––. Chapeuzinho Vermelho e outros contos de Grimm.Sel. e trad. de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
21 – –––––. Contos de fadas. Belo Horizonte, Villa Rica, 1994.
22 – LARRUELA, E. & CAPDEVILLA, R. As memórias da bruxa Onilda. São Paulo, Scipione, 1990.
23 – LUKESCH, Angelika. A Excalibur de Arthur. Rio de Janeiro, Ediouro, 1995.
24 – MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. São Paulo, Ática, 1994.
25 – MASTROBERTI, Paula. Cinderela. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997.
26 – –––––. Os sapatinhos vermelhos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995.
27 – NEIVA, Lia et alii. «Coleção assim é se lhe parece». Rio de Janeiro, Ediouro, 1994. 6v.
28 – –––––. O castelo da torre encantada. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
29 – OLIVEIRA, Ieda. Bruxa e fada: menina encantada. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1994.
30 – OLIVEIRA, Rui de. A Bela e a Fera. São Paulo, FTD, 1994.
31 – ORTHOF, Sylvia. Ervilina e o Princês. Rio de Janeiro, Memórias Futuras, 1986.
32 – –––––. Uxa, ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
33 – PERRAULT, Charles. Contos. Lisboa, Estampa, 1977.
34 – PIMENTEL, Figueiredo. Contos da Carochinha. Rio de Janeiro, Garnier, 1992.
35 – –––––. Histórias da Avozinha. Rio de Janeiro, Garnier, 1994.
36 – –––––. Histórias da Baratinha. Rio de Janeiro, Garnier, 1994.
37 – PREUSSLER, Otfried & SPÍRIN, G. A história do unicórnio. São Paulo, Ática, 1993.
38 – PRIETO, Heloísa. Heróis e guerreiras. São Paulo, Cia. das Letrinhas, 1995.
39 – QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Onde tem bruxa tem fada... 24. ed. São Paulo, Moderna, 1983.
40 – QUENTAL, Antero de. As fadas. Lisboa, Contexto, 1983.
41 – ROCHA, Ruth. Mulheres de coragem. São Paulo, FTD, 1991.
42 – –––––. Sapo-vira-rei-vira-sapo. 8. ed. Rio de Janeiro, Salamandra, 1983.
43 – RÓNAI, Cora. Sapomorfose. Rio de Janeiro, Salamandra, 1983.
44 – ROSA, João Guimarães. Fita verde no cabelo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 512)

O AMANHECER NA PRAIA DA "PONTA VERDE" - MACEIÓ/AL

Uma Trova de Ademar

O sentimento mais lindo
em nós vai se esparramando...
Meu tempo diminuindo
e o nosso amor aumentando.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Quem compra amor por dinheiro,
como quem vai ao mercado,
não compra do verdadeiro,
compra do falsificado.
–CLARISSE BARATA SANCHES/PRT–

Uma Trova Potiguar


Das luzes da mocidade,
que deram luz à ilusão,
sobrou sombra de saudade,
dando sombra à solidão.
–LUIZ DUTRA BORGES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


N'alma, a esperança reflete
uma risonha mentira,
pois é o que a vida promete
em troca do que nos tira...
–WALTER WAENY/SP–

Uma Trova Premiada


2006 - São Paulo/SP
Tema - CIÚME - Venc.


Ciúme é como se fosse
um veneno sedutor...
Amargo, se mostra doce,
matando aos poucos o amor.
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Simplesmente Poesia

Canção de Amor
–THALMA TAVARES/SP–


Meu olhar, qual veio d' água,
lavou de meu peito a mágoa...
Já não temo a ingratidão.
Assim, se um dia voltares
esquecerei meus pesares,
te estenderei minha mão.
Como outrora, quando a vida
nos sorria colorida
e eu tinha o teu coração,
terás de novo meus beijos,
meus carinhos, meus desejos,
meu ardor, minha paixão.
Pois só quem ama de fato
perdoa o parceiro ingrato,
muda o rancor em bondade...
Todo amor é um sonho alado,
é um pássaro encantado;
não vive sem liberdade.
Maior que a vida, que a morte,
o amor é sempre mais forte,
vence a própria eternidade;
muda em virtude o defeito,
vence a dor que oprime o peito...
Mas só não vence a saudade.

Estrofe do Dia

Uma prostituta mancha
a moral e o destino,
num restaurante grã-fino
a milionária lancha,
uma gangue se desmancha
num tiroteio da favela,
um bebum cutuca a goela
pra vomitar na calçada;
são cenas que a madrugada
mostra a quem visita ela.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

Lágrimas
–AUTA DE SOUZA/RN–


Eu não sei o que tenho... Essa tristeza
que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
parece vir de alguma fonte amara
ou de um rio de dor na correnteza.

Minh'alma triste na agonia presa,
não compreende esta ventura clara,
essa harmonia maviosa e rara
que ouve cantar além, pela devesa.

Eu não sei o que tenho... Esse martírio,
essa saudade roxa como um lírio,
pranto sem fim que dos meus olhos corre,

Ai, deve ser o trágico tormento,
o estertor prolongado, lento, lento,
do último adeus de um coração que morre...

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 511)


Uma Trova de Ademar

Todo amigo verdadeiro
tem sempre a mão estendida
para livrar seu parceiro
dos escorregões da vida!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


A minha grande alvorada
será eterna ... Eu suponho!
Se um sonho não der em nada ...
Eu troco por outro sonho!
–DILVA MORAES/RJ–

Uma Trova Potiguar


Só uma prisão eu respeito,
quando rendo-me à paixão...
Qualquer castigo eu aceito,
se a cela é o teu coração!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


A desgraça no mais forte
mais robustece a esperança;
nunca descreias da sorte;
quem espera sempre alcança.
–SOARES BULCÃO/CE–

Uma Trova Premiada


2010 - Ribeirão Preto/SP
Tema - VIAGEM - M/H


De viagem, vem o vento
e beija a flor quando passa...
É um amor só de momento
como tantos que há na praça.
–MARINA BRUNA/SP–

Simplesmente Poesia

Feridas
–ELISA ALDERANI/SP–


Abri a gaveta das lembranças
Tirei tudo o que dentro estava.
Fechei todas as portas e janelas,
Não queria que elas saíssem por ai,
Para espalhar minha historia.
O mundo está cheio
De palavras inúteis.
Não enobrecem a vida.
Preciso agora descobrir
Os segredos da alma:
Curar, ungir, suturar feridas...
Sutis, apodrecidas.
Dobras doentes
Procurando refrigério,
Procurando alento,
Na simples caricia
Do toque do vento...
Depois, com carinho, guardo-as novamente,
Na última gaveta da minha mente.

Estrofe do Dia

Morre a noite, nasce a aurora
com seu brilho radiante
e nesse preciso instante
em que as trevas vão embora
surge no céu, sem demora,
para cumprir seu afã,
com sua mão tecelã,
o Sol, rendeiro celeste,
e, com véu dourado, veste
os seios nus da manhã!
–JURACI SIQUEIRA/PA–

Soneto do Dia

Inspiração.
–THALMA TAVARES/SP–


Encantada senhora de meus passos
que em tudo pões a flor da poesia,
que me acorrentas em teus meigos braços
quando te fazes minha estrela guia.

Teu servo sou, sem peias nem cansaços,
- escravo desse fogo que alumia
meu dia, minha noite, meus espaços
num misto de prazer e de agonia.

Não te peço alforria. Em minha senda
a tua luz uma outra luz desvenda
e põe um facho em minha escuridão.

És fenômeno antigo e sempre raro.
Não vale a vida sem o teu amparo
nem vale o verso sem o teu clarão.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 510)


Uma Trova de Ademar

Nos arquivos da memória
guardei minha juventude;
quis reviver minha história...
Deu uma pane, não pude!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Tenho, por certo, em verdade,
bem vivo e, embora, poungente,
que a mais pungente saudade
é aquela de alguém. . . presente!
–MAURÍCIO N. FRIEDRICH/PR–

Uma Trova Potiguar


Se todos fossem honestos,
ninguém veria, na praça,
mendigos comendo restos
do pão que a miséria amassa!
–CLARINDO BATISTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


No portão, os namorados,
são como os barcos no cais:
pelos beijos amarrados,
querem ir...e ficam mais...
–CLEONICE RAINHO/MG–

Uma Trova Premiada


2011 - CTS-Caicó/RN
Tema - PEGADA - 7º Lugar


Ela chega e me incendeia,
mas é ventura fugaz,
como pegadas na areia
que a onda vem e desfaz.
–JOÃO COSTA/RJ–

Simplesmente Poesia

Cidade Grande.
–WELTON MELO/PE–


Cidade grande de ilusões e sonhos
cheguei em busca de oportunidade
mas vi que aqui a desigualdade
é um fantasma que se faz presente.
Em cada esquina ver-se uma criança
cheirando cola sem ter esperança
sentindo a falta de uma mãe ausente,
cidade grande, quanta e quanta gente
abandonou o seu torrão natal
e veio em busca de melhores dias
no colo duro desta capital.
Mas no tumulto da grande cidade
seu sonho veio a morrer prematuro
e estando em meio a desigualdade
viu que a paz e que a felicidade
estão distantes deste solo impuro.

Estrofe do Dia

Amor è um carpinteiro
que ri com ar de matreiro,
cerrando forte e ligeiro
na tenda do coração..
Põe pregos de resistência,
ferrolhos na consciência,
tranca as portas da razão.
–ADELAIDE DE CASTRO ALVES/BA–

Soneto do Dia

E n l e v o.
–DOROTHY JANSSON MORETI/SP–


Às vezes, quando a insônia bate à porta,
envolvo a mente em requintados véus,
e nela deixo apenas o que importa
para elevar meu pensamento aos céus.

Afasto a lógica indistinta e torta
que quer ligar-me ao jugo dos incréus,
e imersa na Poesia, que conforta,
de olhos cerrados “vejo” os meus troféus.

Cada um deles revela , em minha história,
o momento fugaz de alguma glória
que conquistei ao dom que Deus me deu.

A insônia vai fugindo lentamente...
E em canção de ninar macia e quente,
me entrego inteira aos braços... de Morfeu

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 509)

Aniversário do Poeta Zé Lucas em Março

Uma Trova de Ademar

Qual um Profeta eficaz,
digo, por querer-te bem:
Tu vais viver muito mais
que viveu Matusalém...
ADEMAR MACEDO/RN– (Para Zé Lucas)

Uma Trova Nacional


Zé Lucas não viveria
em alegria completa,
sem o sertão e a poesia
dando mais vida ao poeta.
–WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Uma Trova Potiguar


Contra o ente que fingisse
nutrir por nós, amizade,
bom seria que existisse
detector de falsidade.
–PEDRO GRILO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Chega a noite... Fecho as portas,
nosso amor cresce, querida,
e a calma das horas mortas
nos abre as portas da vida!...
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Uma Trova Premiada


2009 - Niterói/RJ
Tema - PRÊMIO - Venc.


Meu prêmio dentro da vida
foi fazer, na minha história,
de toda ilusão perdida
sempre mais uma vitória!...
–LARISSA LORETTI/RJ–

Simplesmente Poesia

Poemeto...
–HUGO ARAUJO/PE–


se a vida é uma pintura
o meu quadro é de revolta
pois dei várias pinceladas
numa natureza morta

... mas depois analisei
quão errado eu estou
a tinta da nossa vida
foi jesus que fabricou

aproveite então e pinte
colorindo uma tela
agradecendo ao divino
e pintando uma aquarela

Estrofe do Dia

Com a inspiração que navega
nas ondas da sua mente,
Zé Lucas sempre carrega
um mar de versos pra gente;
e quem ler sua poesia
sente uma doce magia
que só o seu verso traz;
e com rimas sempre novas,
ninguém no mundo faz trovas
como as Trovas que Ele faz!...
–ADEMAR MACEDO/RN– (Para Zé Lucas)

Soneto do Dia

José Lucas de Barros...
–DELCY CANALLES/RS–


Doze de março. Como eu gostaria
de poder abraçar-te, meu amigo,
de chegar em Natal, bem no teu dia!
Mas é sonho! Em verdade, não consigo!

E, com teus acadêmicos, queria
junto com Rose e, também, contigo,
poder falar de trova e de poesia
e deste afeto que trago comigo!

Aqui, no Sul, rodeada de coxilhas,
lembrarei nossa troca de sextilhas
e de trovas nascidas da afeição!

Tu sabes que eu te estimo de verdade,
que existe, entre nós, tanta amizade,
que não há mais distâncias, meu irmão!

J. G. de Araújo Jorge (Verão, Compromisso com a Felicidade)


Uma vez um amigo meu estranhou que “chovesse tanto” em minha poesia. A chuva -disse-me ele - é uma constante em vários poemas, e em todos os seus livros. Curioso com a observação passei os olhos por minha obra. Mas se constatei, realmente, que escrevi muitos poemas sugeridos pelos dias de chuva, nem por isso, homem que sou dos trópicos, escapei às influencias poderosas do sol, do verão.

Confesso até meu “estranho remorso” num poema de “Eterno Motivo”:

“Às vezes, quando escrevo feliz uma poesia,
me assalta um estranho remorso, incompreensível,
que não sei de onde vem:
Quem sabe? Pode ser que esse meu canto de alegria
faça mal a alguém...
meu irmão triste, meu irmão doente,
perdoem-me a cantiga frívola e contente,
que me fugiu dos lábios na manhã alvissareira
de verão...
Ela brotou sem querer na minha felicidade!
É que eu trago uma cigarra cantadeira
e imprudente/ dentro do coração!”.

Um dos sonetos meus mais difundidos é justamente aquele “Bom dia Amigo Sol!” que está no mesmo livro. Lembram-se?

Bom dia amigo Sol! A casa é tua!
As bandas da janela abre e escancara!
Deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!

Entra! Vem surpreende-la quase nua,
doura-lhe as formas de beleza rara,
na intimidade que a deixei, repara
que a sua carne é branca como a lua!

Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho...
Que não repares no seu desalinho
nem no ar, cheio de sombras, de cansaços...

Entra! Só tu possuis esse direito
de surpreende-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito...

Ainda no mesmo livro, além do “Desejos na Manhã de Sol”, há uma verdadeira declaração de amor à manhã, vale dizer ao dia, ao sol: “A manhã é a minha namorada.” “Ela entrou no meu quarto trêfega e contente/ e com seus dedos de sol tocou nos vidros e metais/ mexeu em tudo que viu/ e espiou para os lençóis da minha cama desfeita.../ Depois, fugiu.../ Lá se foi pelo caminho com as mãos cheias de pássaros/ levada pela aragem numa doida correria,/ rasgando seu vestido/ de galho em galho.../ e as contas do seu colar espatifando-se no espaço/ eram gotas de orvalho...”/.

Sim, mas terei de confessar que a noite é a minha companheira, e com ela as madrugadas. Sou um nostálgico do silêncio das sombras. A luz grita, o sol atordoa. O verão é um desafio constante. Parece jogar-nos na cara todos os instantes: “Vê se consegues ser claramente feliz como eu!”

Um dia de verão é um compromisso com a felicidade. E ai dos que não podem sintonizar o coração com a harmonia e a luminosidade do mundo ao redor. São esmagados. Por isso escrevi aquele “Manhã para se Ser Feliz” que está em “Espera”.

Esta é uma manhã para se ser feliz
em algum lugar, de algum modo
- é uma manhã para se ser feliz...

Esta é uma manhã para dois, para dois juntos
abraçados e tontos num remoinho,
não como nós, eu aqui, diante do sol, das árvores, de tudo
envergonhado porque estou sozinho...

Esta é uma manhã que me fala de ti
na transparência do ar,
neste azul do céu, imaculado,
na beleza das coisas tocadas de sonho
e imaterialidade...

Uma manhã de festa
para se ser feliz de verdade!
Esta é uma manhã
para te ter ao meu lado...
Quando Deus fez uma manhã como esta
estava com certeza apaixonado!”

E eis a razão das fugas constantes para os dias de chuva, dias que parecem feitos para a solidão; quando mesmo sozinho, não sabe tão funda a tristeza. Ficou-me na alma e no ouvido, além do mais, aquele rumor da chuva nos telhados de zinco da minha infância, no Acre. Daí, entre tantos, aquele poema em forma de oração, do “Cantiga do Só”:

Irmã chuva, com teu manto cor de cinza
teus olhos embaciados
teus gestos mansos,
solidária com as nossas fadigas
que acaricias nosso tédio com teus dedos molhados
e embalas nosso coração sussurrando baixinho doces cantigas...

Irmã chuva, que sempre vens quando ficamos doentes
de sol
ou de alegrias,
exaustos de verão e de calor,
e que, com teus gestos suaves e compressas frias
acalmas nossa fronte ardente
e adormeces nosso amor...

Irmã chuva... Que bom teres chegado assim, tão calma...
Pareces que adivinhas a aflição da minha alma...
Ainda bem, que mansamente
E inesperadamente,
Vieste me ver...

Irmã chuva, que aconchegas o coração da gente,
para a gente adormecer…

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 508)

Lual em João Pessoa/PB

Uma Trova de Ademar

Almoço e janto poesia.
E, neste meu universo,
mastigo um pão todo dia
amanteigado de verso!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Partes, levando a metade
da metade que eu já sou,
deixando inteira a saudade
na metade que restou...
–DIVENEI BOSELI/SP–

Uma Trova Potiguar


Pelas manhãs vou buscando
minha esperança perdida.
Há sempre um sonho vagando
nas alvoradas da vida!
–PROF. GARCIA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


A mulher sempre é mais pura,
mais bonita e mais completa,
quando a ponho na moldura
dos meus olhos de poeta.
–ORLANDO BRITO/MA–

Uma Trova Premiada


2009 - Nova Friburgo/RJ
Tema - SAUDADE - M/H


Partiu, deixando o seu traço
no meu caminho dos sós…
- A saudade é esse espaço
que existe sempre entre nós.
JOSÉ VALDEZ C. MOURA/SP–

Simplesmente Poesia

As Duas Flores
–CASTRO ALVES/BA–


São duas flores unidas
são duas rosas nascidas
talvez do mesmo arrebol,
vivendo, no mesmo galho,
da mesma gota de orvalho,
do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
de um passarinho do céu..
como um casal de rolinhas,
como a tribo de andorinhas
da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
que em parelha descem tantos
das profundezas do olhar...
como o suspiro e o desgosto,
como as covinhas do rosto,
como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
numa eterna primavera
viver, qual vive esta flor.
juntar as rosas da vida
na rama verde e florida,
na verde rama do amor!

Estrofe do Dia

Se você é pessimista
orgulhoso e prepotente,
aprenda a vergar a alma
se quiser viver contente;
ouça a paz que lhe convida,
toda reforma da vida
começa dentro da gente.
–GERALDO AMANCIO/CE–

Soneto do Dia

Amigo! Um irmão que a gente escolhe...
FRANCISCO NEVES MACEDO


Fazer escolhas, nesta minha vida,
é o dia a dia que se faz dever,
e quando eu erro vem todo um sofrer,
mas, se a escolha é banal, fica esquecida.

Um carro, um disco, um anel, uma bebida,
uma mulher, um livro para ler,
a nossa fé, time para torcer,
uma viagem, um som, uma comida.

Fiz tantas vezes essa escolha errada,
usei o livre-arbítrio para nada!
mas, quem está na chuva, que se molhe...

Há uma escolha que é definitiva,
e eu me baseio nesta afirmativa:
Amigo é aquele irmão que agente escolhe.

José Feldman (Até Mais, meu Irmão) - Dedicado a Chico Macedo

quinta-feira, 29 de março de 2012

Trova Triste - Francisco Neves de Macedo (RN)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 507)


Uma Trova de Ademar

Tem homem com maus intentos,
que, por maldade ou desdém,
às vezes, gasta quinhentos
para o outro não ganhar cem...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Se a vida é a maior graça,
que do bom Deus recebemos,
ergamos a nossa taça
enquanto vida nós temos.
–ZÉ REINALDO/AL–

Uma Trova Potiguar


Meu olhar ficou defronte,
ao seu olhar, de repente...
E este encontro se fez ponte
entre os corações da gente.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Faço versos se estou triste,
faço versos de alegria,
a minha alma não resiste
aos apelos da poesia.
–CORA LAYDNER/RS–

Uma Trova Premiada


2004 - Nova Friburgo/RN
Tema - REFÚGIO - 1º Lugar


Baú velho, tampo torto,
Cartas e fotos mofando...
- refúgio de um sonho morto
Que eu vivo ressuscitando!...
–JOSÉ OUVERNEY/SP–

Simplesmente Poesia

Libertação
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–


Cortei as amarras,
soltei o meu barco,
tracei nova rota...
Disse adeus ao velho cais,
e, qual errante arrais
navego outros mares...
Quero ancorar em ignoradas margens,
desbravar uma diferente terra,
encontrar novas paisagens,
descobrir o segredo do outro lado da serra...
Correr leve e solta
pelas brancas areias de novo sonho
já não mais tristonho,
e, quem sabe, olhos nos olhos,
mãos nas mãos,
viver um amor inesperado,
entregar os beijos que não dei
escrever os versos que guardei!...

Estrofe do Dia

Minha vida tem sido uma peleja,
quando venço um problema outro aparece,
quando alguém me ajuda outro me esquece,
toda mão que eu encontro me apedreja;
procurei um vigário na igreja
disse: padre eu só vim me confessar,
disse o padre você tem que pagar
uma conta que deve a natureza;
minha vida é um filme de tristeza
que eu deixei de assistir pra não chorar.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

O Ideal
–LUIZ OTÁVIO/RJ–


Esculpe com primor, em pedra rara,
o teu sonho ideal de puro artista !
Escolhe, com cuidado, de carrara
um mármore que aos séculos resista !

Trabalha com fervor, de forma avara !
Que sejas no teu sonho um grande egoísta !
Sofre e luta com fé, pois ela ampara
a tua alma, o teu corpo em tal conquista !

Mas, quando vires, tonto e deslumbrado,
que teu labor esplêndido e risonho
ficará dentro em breve terminado,

pede a Deus que destrua esse teu sonho,
pois nada é tão vazio e tão medonho
como um velho ideal já conquistado ! ...

J. G. de Araújo Jorge ("Vamos Voltar Pra Casa ?")


Uma hora "sagrada" para mim é a hora da volta. A hora de voltar para casa. Acredito que seja uma "hora sagrada" para quase todos os homens.

Ao fim do dia de trabalho, de preocupações, de luta, atirado ao mundo ilimitado de interesses e ambições, aquela expectativa de paz, de aconchego, do seu pequeno mundo entre quatro paredes.

Os ingleses tem uma doce palavra que define esse porto de volta - "home".

É o nosso lar.

Tenho uma pena infinita daqueles que não podem voltar, ou não tem para onde voltar. São como pássaros que tivessem que permanecer em vôo, sem o embalo de um ramo, ou a quentura de um ninho.

Na pressa do retorno, no fim da jornada, quando procuro os meios de condução, vez por outra surpreendo na ruas, nos bancos das praças, os vultos indigentes dos que não voltam, dos que terão de ficar, dos que vêem chegar a noite, indiferentes ao estranho burburinho humano que lembra o dos pardais, nas árvores da cidade.

Então, não consigo evitar que um pensamento amargo turve o meu apressado egoísmo. E uma tristeza inevitável esvoaça por momentos como uma borboleta negra que entrasse por uma janela aberta.

Todos nós, diariamente, ao entardecer, somos como marinheiros de nós mesmos; navios que se avizinham do porto de origem. ansiamos por avistar a paisagem do coração, por encontrar os que nos são caros, os que justificam as partidas de todo dia, o cotidiano exílio do trabalho.

Em muitos trechos de minha poesia tenho fixado as emoções que essa hora me suscita. Sou um homem que acha que, até mesmo nas viagens de puro prazer, a grande alegria é a volta. Quase se poderia dizer que a gente parte antegozando hora de retornar., transformar as uvas colhidas no vinho doce das lembranças, servido entre amigos.

Tal como se diz dos namorados: que brigam pelo prazer de fazer as pazes. Uma viagem é uma "briga de namorados" com a vida. A gente larga o que gosta, para sentir saudades, e voltar mais apaixonado ainda.

Gostaria de citar para vocês os muitos poemas que escrevi, cantando a alegria de voltar. Sim, bem sei que tenho muitos outros poemas falando do desejo de partir, de perder-me em dionisíacos descaminhos. Mas, no fundo mesmo, o que prevalece é o sentido das raízes que prende o homem ao seu chão, que lhe permite, nos momentos de pausa, crescer e encher-se de flores, frutos e pássaros.

Na exígua moldura desta página, eis duas faces de um mesmo canto.

Tiro primeiro, de "Harpa Submersa" um trecho de :

COLÓQUIO PROSAICO

Porque as coisas que me cercam se impregnam de poesia,
porque lhes transmito minha convivência
é que posso amá-las e senti-las com a perspectiva
da minha emoção.
Oh, felizes são aqueles que encontram os objetos amados
nos seus lugares, ao seu redor,
e possuem o Dom de transubstanciar-se em seu próprio mundo
cercado por uma imensa família
mesmo em solidão.

Seres de nosso mundo
os jarros, os quadros, os livros, as cortinas,
a janela, a cama, a mesa,
são velhos companheiros - formas estáticas de pensamentos-
são velhos confidentes, testemunhas silenciosas
de nossos conflitos,
estátuas de mil figuras e personagens
representando-nos em mil instantes diversos...

Cada um, é um momento múltiplo, onde se agrupam tantas idéias
tantas conjeturas e solilóquios,
fazem parte de nossa vida e se encontram nela, vivos
como a cena no personagem.

Depois, de "a Outra Face" este monólogo lírico que intitulei:

Meu Mundo

Toda tarde digo para mim mesmo:
afinal, eis o meu mundo.

O mesmo beijo, o mesmo quarto claro, com seu assoalho brilhando
refletindo o meu passo;
as mesmas paredes brancas me envolvendo com afáveis gestos de paz;
o mesmo rádio silencioso, entre livros empilhados, a mesma estante fechada
que a um gesto meu descobre tesouros como velha mala de pirata.

Afinal, eis o meu mundo.
A mesma insubstituível companhia, a mesma presença até quando longe dos olhos,
a mesma voz perguntando, a mesma voz respondendo,
o mesmo odor suave da janta, do tempero cozinhando,
a mesma impressão de quem chega de ombros nus e veste ajudado
um macio agasalho.

Afinal, eis o meu mundo.
Como o pescador solitário, diante do primeiro ramo:
- afinal, eis a terra!

E por isso é que acho que defini a felicidade naqueles dois versos de um poemeto de "A Sós":

Gostaria de poder de repente te dizer:
- vamos voltar pra casa!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 506)


Uma Trova de Ademar

Nesta gravura se encerra
uma verdade de fato:
se acaso esse mouse emperra
o gato não pega o rato!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Tendo a plástica da Estela
pele “daquele lugar”...
vira e mexe a cara dela
tem vontade de sentar...
–CÉSAR AUGUSTO DEFILIPO/MG–

Uma Trova Potiguar


De tanto ver a Maroca,
todo dia na janela,
cheio de ciúme, o Joca,
botou o ferrolho nela...
–FRANCISCO BEZERRA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Toda mulher que é gorducha
tem um recurso só seu:
Ao vestir-se, grita: “Puxa...
como esse troço encolheu!”
–MAGDALENA LEA/RJ–

Uma Trova Premiada


2009 - Nova Friburgo/RJ
Tema - CINQUENTÃO - 5º Lugar


Tentando aparentar trinta,
o cinquentão se “ferrou”.
Comprou um estoque de tinta,
mas… o cabelo acabou.
–WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Simplesmente Poesia


M O T E:
Não posso vencer a morte,
mas irei de má vontade.


G L O S A:
Mesmo que eu pareça forte
como um touro premiado,
serei um dia enterrado,
Não posso vencer a morte,
do Rio Grande do Norte
levarei muita saudade...
Promessas de eternidade
me fazem crer noutra luz.
Eu sei que é pra ver Jesus,
mas irei de má vontade.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Estrofe do Dia


Na vida de Michael Jackson
Eu sei o que aconteceu:
Não tinha fama, arranjou
Era pobre, enriqueceu
Era preto, ficou branco
Mudou de cor e morreu!
–GERALDO AMÂNCIO/CE–

Soneto do Dia

Só a Morte...
–MEDEIROS E ALBUQUERQUE/PE–


"Se me desdenhas, sinto que faleço,
De nada mais pode servir-me a vida;
De ti e só de ti me vem, querida,
Todo o alento vital de que careço.

Só a morte é possível, se perdida
Eu vir tua afeição. Nenhum apreço
Darei a tudo mais, se o que mereço
É teu desprezo, em paga à minha lida."

Ela não respondeu... Por fim, notando
Que contra a sorte é inútil que se teime
Resolvi não morrer. E tão tranquilos

Foram os meus dias, que eu me rio quando
Penso no que ontem vi: ontem pesei-me
E achei, num mês, que eu engordei três quilos!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Marina Colasanti (Que Escritor Seria Eu Se Não Tivesse Lido? )


George Dawson tinha 98 anos quando aprendeu a ler. E tinha 102 quando, em maio deste ano, publicou seu primeiro livro. Dawson é descendente de escravos do Texas, e sem Ter lido nada antes, sem Ter qualquer bagagem literária, escreveu a história da sua vida nos anos 20 e 30. Escreveu, sem que nenhum livro lhe ensinasse a fazê-lo, a história mis complexa que existe, a de uma vida humana.

Li sobre a façanha de Dawson no jornal e me perguntei: o ele teria escrito se tivesse começado a ler na infância? E também me perguntei: tivesse sido leitor contumaz desde menino, teria igualmente se tornado escritor?

É provável que não. A leitura não nos conduz fatalmente à escrita- o que, convenhamos, é ótimo, porque ninguém agüentaria tantos escritores -. A leitura, como uma agência de publicidade, desdobra à nossa frente “depliants” de mundo maravilhosos, e nos conclama, e os estimula, e deserta nossos desejos. As possibilidades de escolhas se multiplicam. Vocações que sem ela dormitariam, para sempre ignoradas, despertam. E partimos, graças às asas da literatura, para as mais diversas profissões. Às vezes, até para a de escritor.

Eu não me tornei escritora porque era leitora. Eu me tornei escritora porque comecei a escrever.

A leitura, que habitou minha vida desde cedo quando consigo lembrar, não medisse, vai Marina ser isso ou aquilo. Mas a pessoa que eu era aos 15 anos, barro cozido e assado por tantas pequena chama literárias, queria ser pintora.

E pintora fui, durante bons anos. Dedicada, apaixonada, feliz com meu fazer, segura da minha escolha. Até que cheguei aos 23. Continuava achando que tinha uma vocação e estava até me dando bem na vida com ela. Mas decidi que precisava ganhar dinheiro. E fui trabalhar em jornal.

Não seria questão de abandonar a vocação. Tratava-se de abrir uma porta, deixado a pintura pendurada atrás dela, à espera.

Entrei na redação levando apenas uma bolsa pendurada no ombro, e óculos guardados na bolsa. Uma ‘foca”, sem bola no nariz. Um jovem principiante que havia feito um curso acelerado de datilografia para não passar vexame de catar milho. Assim me apresentei, e assim me viram. Eu não ouvi, nem meus colegas, mas depois que soube comigo haviam entrado o menino Tom e o índio que o perseguia, os acordes do órgão do Capitão Nemo, o silêncio na cabeça de Ulisses enquanto via as sereias cantarem, os rebanhos de carneiros descendo em transumância na Provença de Giono, o vento nas pás do moinho de Quixote, uma galinha perseguida num Domingo pela mão de Clarice, uma pedra no meio do caminho, uma “madeleine' , um gato de botas.

Comecei a escrever porque puseram uma Olivetti na minha frente, um monte de papel, e me mandaram fazer a matéria. Isso ainda não era escrever, evidentemente. Mas empoleirados no alto das divisórias de vidro lateado daquela redação, Pinocchio, Raskolnikov, Ricardo Coração de Leão, Gregório Samsa, D'Artagnan e Mr Gatsby esfregaram as mãos. Estava na hora de começarem a empurrar.

E assim fez-se, ou abriu-se, em mim outra vocação.

Como para George Dawson, também me pergunto: eu teria sido escritora se não tivesse sido leitora? Mas é uma pergunta que não procede porque equivale a por em questão toda uma vida. Então seria que perguntar: eu teria sido escritora se não tivesse saído da África onde nasci? E se não tivesse saído da Itália, onde me criei, e não tivesse vindo para o Brasil, onde comecei a escrever? É quase como perguntar, sabendo de antemão que não encontrarei resposta: que escritora teria sido eu se não tivesse sido leitora?

A leitura me ensinou, antes de mais nada, a gostar de papale, a amar papel escrito, a perseguir tipologias. Ne ensinou a precisar da presença física dos lvros. Não fosse isso, e a viade escritora seria uma condenação, com oslivros que se multiplicam incessantemente, enchendo a casa, empilhando-se sobre as mesas, as cadeiras, o chão, e os papéis, os papéis que contrariamente ao que se alardeou no início da era da informática não desapareceram mas parecem cada ida mais abundantes.

A leitura me ensinou a viver com a leitura. Me viciou em leitura, me fez procurar a vida nos livros com a mesma intensidade com que a procurava fora deles.

Se eu não tivesse sido leitora precisaria de um talento infinitamente maior, para escrever. Não tendo afiado o ouvido às palavras, que trabalhoso seria apertar sozinha, uma por uma, todas as cravelhas.

Mas as palavras escritas- que não são as mesmas palavras da fala, embora irmãs, porque criadas para andarem juntas naquela exata ordem e não em outra, já eu ó naquela ordem o valor de uma contamina a outra- as palavras escritas, eu dizia, infiltraram-se em mim junto com os outros aprendizados, quando eu ainda não sabia ler. Minha mãe lia para mim. E a música da voz da minha mãe fundia-se com a música das palavras que ela lia.

Talvez justamente isso, o fato da minha ler em vez de contar, tenha marcado a minha escrita. Pois nunca me senti levada a escrever de forma oralizante; pelo contrário, o inusitado que mantendo o texto perfeitamente compreensível e familar confere um frescor de coisa nova e uma intonação poética, sempre foi a minha busca. O texto não é para mim ferramenta para contar uma história. Mais justo seria dizer que a história é pretexto para construir o texto.

Hoje leio como se fizesse trialto. Acordo e perco no mínimo um hora lendo os jornais. Depois vou para o escritório e começo a ler o material de trabalho. Na hora do almoço, se estiver sozinha, encosto um livro no copo cheio d'água, que não bebo para não perder o suporte. E dia afora vou lendo e escrevendo. Ma sou atleta indisciplinada, capaz de perder um tempo enorme com leituras inúteis, deixar cada mínima consulta de pesquisa alongar-se indefinidamente porque não consigo me ater somente ao que procurava, e gastar em leituras menores o tempo que deveria reservar para ler ou reler os clássicos. E, o que é pior, tenho a impressão- prefiro não dizer a certeza- de esqueço a maioria do que leio.

Quando menina, e mesmo depois quando jovem, lia como se descesse as corredeiras num bote. Deixava-me levar, jogada de um lado a outro pela narrativa, transportada, na espera ansiosa da cachoeira que a qualquer momento despencaria comigo assombrando meu coração.

Eu usava lápis, jamais teria ousado riscar um livro, por meu que fosse. E por isso, não pela sacralidade do livro, mas porque não me passava pela cabeça eu me fosse permitido, que me fosse devido interagir diretamente junto ao texto- a palavra interagir sequer se usava-. A idéia de que a minha opinião pudesse Ter lugar, e valor, ao lado daquilo que que havia sido escrito pelo autor não me aflorava.

Quando passei a usar o lápis, tornei-me outra leitora. Ou melhor, quando me tornei outra leitora, passei a usar o lápis. Não desço mais, entregue, nas corredeiras. Sou seu vigilante. Analiso a força das águas, sua direção, a profundidade. Meço a transparência, procuro o que nela se move. Vou sim com ela, e me encanto, e me deixo molhar pelas espumas. Mas a qualquer remanso indevido, a qualquer turvação, minhas orelhas se erguem atenta, meu lápis se apoia na margem. Anoto, controlo. Por um instante não estou sendo levada, botei um pé para fora do bote.

Tornei-me interlocutora do autor. As margens às vezes são estreitas demais para as conversas que tenho com ele. E me acontece fazer uma crítica, ir a diante, ver que a crítica não se justifica, voltar atrás apagar o que eu havia anotado. Como se pedisse desculpas ao autor pela falta de confiança. Não estou mais lendo sozinha como lia. estou lendo por cima do ombro dele.

A leitura atravessou minha juventude em blocos. Como se um trem me varasse a cada vez com seus vagões. Eram comboios de paixão. Um autor entreva na minha vida, eu me enamorava e, depois do outro , ia lendo todos os seus livros.

Foi assim desde menina. Bem pequena ainda, devorei Salgari inteiro e imitando suas histórias brinquei de pirata e de índio americano, Sole Ridente era o meu nome na tribo. Lá pelos onze anos me banqueteei com Verne. Depois fui indo. que furacão na minha alma quando encontrei Dostoievski! Eu ansiava o dia inteiro pelos momentos que iria encontrar com ele. Foram meses e meses de neve, sofrimento e nomes cheios de vogais. Depois os americanos; a sedução daquele trem que parecia interminável, os vagões de Hemingway, dos Passos, Steinbeck trazendo-me um mundo novo, seco de frases curtas, um mundo sem volutas, especialmente revelador para mim, italiana encharcada e barroco. Amei Giono, ocupei com ele toda a prateleira da estante. E pouco antes de esbarrar com a minha própria escrita, esbarrei com Proust. Foi um fecho glorioso para minhas leituras de juventude.

Mas também fui leviana, traindo meus grandes amores com amores passageiros, “ficando” com um livro ou outro, só pelo prazer de uma noite. Sim, cometi pecados de juventude, gostei de M. Dely, e acreditei que “To et Moi” de Paul Geraldy fosse bela poesia. Chorei com Ayn Rand. E li muito Mistério Magazine de Ellery Queen, embora o mesmo tempo economizasse dinheiro da mesada para comprar a revista “ Senhor” e ler os contos de Clarice.

Hoje os trens são mais raros , e não percorro todos os vagões. Se gosto de um autor, leio primeiro um livro, atravesso em diagonal um ou dois livros mais, para certificar-me e para Ter uma idéia de conjunto, dispenso os outros. Não tenho mais paixões. Tenho apreço, admiração. Leio, reconheço a qualidade, me entusiasmo. Mas entusiasmo não é a mesma coisa que paixão, entusiasmo é uma categoria profissional. A escrita roubou-me o arrebatamento da leitura.

Houve um tempo em que cada livro que me chegava era um Cavalo de Tróia, de cuja barriga sairiam, na solidão do meu quarto, invasores bem vindos. Depois aprendi a desventrar a barriga do cavalo ainda na livrara, de pé, percorrendo o índice e vendo o que continha. Já não levo nenhum mistério para o quarto, os habitantes do livro/cavalo são gentis convidados, quando não reféns que manterei comigo só quando me interessarem. Nenhum me invadirá.

E se ler escondido depois da hora de dormir, na clássica cena da lanterna acesa debaixo das cobertas, era duplo prazer, de leitura e transgressão, ler tornou-se com o tempo dupla culpa, pois me sinto culpada se, escrevendo, deixo de ler, tendo tantos livros à minha espera.

Com freqüência me perguntam quais as marcas dessas leituras na minha escrita. E eu própria me surpreendo com a sensação de que não existem, pelo menos não claramente identificáveis. Me parece impossível que se possa dizer olha a patinha de fulano ali, olha o focinho de fulana aqui. Pois eu não usei patas ou focinhos alheios para compor minha linguagem, embora os usasse para despertas a emoção que, mais tarde, viria a servir de base para a construção dessa linguagem.

Nunca quis escrever como alguém, por mais que gostasse da sua escrita. Talvez pensasse inconscientemente que não seria capaz, que aquilo não estava em mim.

Embora tivesse tantos romances e livros de aventura, nunca quis escrever nem uma coisa nem outra; meu desejo de escrita sempre esteve centrado na ourivesaria do texto curto.

E nenhum dos meus queridos realistas despertou em mim o desejo de imitá-los. Poe, que li menos que Verne, deixou em minha juventude uma marca mais funda, introduzindo-me no mundo fantástico. Um mundo que eu já havia freqüentado através os contos de fadas na voz de minha mãe. E que, adulta, reencontraria em Borges, em Cortazar, em Calvino, em Buzzati.

Pode parecer ingratidão, mas não tenho e nunca tive ídolo. À medida que avançava nas leituras e na profissão, porém, percebi que pertencia a uma família. Sou parente daqueles escritores que deram um passo além do real, e ali fundaram sua realidade. Sou irmã dos que reencontraram seu mundo somente no inconsciente, ou no papel impresso.

Fonte:
Simpósio Internacional Transdisciplinar de Leitura/ 2000. Leia Brasil
http://www.leiabrasil.org.br/old/simposio/escritor_lido.htm

Carlos Lúcio Gontijo (O Obscuro Fogaréu das Vaidades)


Não me perguntem aonde ir para encontrar leitores, pois nunca soube. As bibliotecas estão sempre vazias, as livrarias repletas de autores estrangeiros e livros de autoajuda, enquanto a literatura brasileira sobrevive com a simples e costumeira citação de grandes autores, que verdadeiramente também são muito pouco lidos. Não entendo também de busca de recursos para se editarem livros, porque nunca obtive sucesso nessa empreitada, consciente de que a política cultural brasileira só favorece aos que se acham sob os holofotes da mídia, o que determina fluxo volumoso de recursos para as mesmíssimas celebridades e famosos de sempre. Todavia, em torno desse assunto, as discussões se prendem mais ao calor obscurantista do fogaréu das vaidades que à luz da real busca de soluções.

Houve um tempo em que concursos literários lançavam novos talentos, mas hoje eles só servem para propiciar alguma pequena edição ao ganhador, o que representa significativa glória num país em que as editores não investem nem apostam em novos autores (digo isso no tocante ao ato de se fazer conhecido, uma vez que existe gente com idade avançada e sem qualquer trabalho editado), obrigando aos que pretendem tirar a sua obra da gaveta, em tempo de democrática ditadura de intensa propagação do grotesco ou, no mínimo, de valor cultural duvidoso, que por sua vez leva adultos, adolescentes e crianças a dançarem na boquinha da garrafa. Infelizmente, entre nós, o esmero tecnológico da imagem digital chegou às ?nossas? televisões antes de as mesmas implantarem qualidade em sua rede de programação.

Se eu fosse tangido pela busca de fama e sucesso não estaria me movendo para editar o meu 14º livro nem disposto a investir quantia, para mim volumosa, em meu site, que agora em junho próximo, neste ano de 2012, completará sete anos. Uma vez que, hoje, o que determina notoriedade são a inventiva e o comportamento esdrúxulo ou completamente anômalo e contrário aos chamados bons costumes, tratados como desnecessários ditames ultrapassados.

A dilapidação promovida ao senso comum que norteia a convivência em sociedade vem exatamente dos órgãos que deveriam atuar em sua defesa. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário se consideram (e se põem) acima da nação brasileira, que sabiamente os julga pelo produto final que a ela é apresentado. Vem daí a generalização da reclamação popular, pois quando uma prestação de serviço não é satisfatória o consumidor recorre ao PROCON contra a loja vendedora ou a fábrica produtora, não lhe sendo exigida a indicação de nomes ? ao produtor da mercadoria defeituosa cabe, se assim o desejar, a descoberta do funcionário responsável pela ocorrência!

Ou seja, a má prestação de serviço advinda da ação dos Três Poderes é problema relativo a todos aqueles que o integram. Cabe a cada um deles e mais especificamente aos que se nos apresentam como a parte boa, reclamando da constante acusação generalizada, agirem em prol da devida apuração. Afinal, não se trata de seres inanimados; não são maçãs sadias enfiadas, involuntariamente, em saco de aniagem em meio a frutos putrefatos...

Em ambiente assim perverso, no qual os que deveriam dar o exemplo insistem em não dá-lo, assisto ao cotidiano crescimento da cultura do levar vantagem em tudo, que vai levando a tudo de roldão. Para onde olho eu vejo podridão: é político com dinheiro na cueca, na meia, no porta-malas, no banco do carro; são favorecimentos e desvios de recursos públicos em montante inimaginável, mas que pode ser dimensionado pela paisagem de abissais carências sociais que nos rodeia.

Quem sou eu, pequeno escriba, para perder o fio da meada, abandonar a literatura menor que realizo (mas que é a minha vida) à beira do caminho, depois de tão longa caminhada. Só me resta mesmo impor-me alguns sacrifícios em nome do invisível, do que não se vê: a energia imaterial do halo da alegria de efetivar o exercício de um dom, ainda que as palavras me pareçam jogadas ao léu. E é exatamente sob esse sentimento que lançarei meu novo trabalho literário, o romance ?Quando a vez é do mar? (um livro de 400 páginas), no dia 27 de abril, às 19:30, na Associação Mineira de Imprensa, à Rua da Bahia, 1.450, em Belo Horizonte.

Enfim, sou brasileiro comum. Faço parte desse povo que, apesar dos governantes e dos poderes, consegue sobreviver e driblar as pedras atiradas em seu caminho. Termino então repetindo reflexão de Sigmund Freud, grande explorador da alma humana: “Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.”

www.carlosluciogontijo.jor.br

Fonte:
Texto enviado pelo autor

J. G. de Araújo Jorge (Universo à Vista)


Estamos nos limites de uma época - momento grave da entrega do bastão, na maratona da História

Fim de etapa, começo de outra. Dialeticamente chegamos a uma nova síntese. O homem se encontra, não apenas em face de um mundo novo, mas de “novos mundos”, tal como a civilização medieval na era dos grandes descobrimentos marítimos. Não foi sem razão, portanto, que chamaram os astronautas da Apolo-8 de “Colombos do espaço”. Do mesmo modo que os Colombos, os Magalhães, dilataram o mundinho mediterrâneo, o fechado “maré nostrum” romano, e deram ao Atlas terrestre suas proporções atuais, os recentes feitos da Astronáutica subverteram as dimensões da nossa acanhada geografia.

-Universo à vista!

O Gênesis tem que ser reescrito. “No princípio Deus criou os céus...” e as terras. Muitas terras gravitando em imensos vazios, mas com certeza habitadas por outros seres, parecidos ou não com os Adões e Evas do perdido Éden.

Subitamente somos passado e futuro. Decolamos de nós mesmos, do que “éramos”, como um foguete rompendo a área gravitacional da Terra, e investindo o desconhecido. Olhamo-nos no espelho, e não nos reconhecemos em corpo e alma. Nossas idéias terão que ser reestruturadas em função deste deslocamento físico, das alterações de nossa visão cultural; da imprevista realidade descortinada; do homem inédito em que nos sentimos. Saímos da casca, como o pinto, e devemos encarar tal fato como uma projeção natural do nosso eu ante as espantosas conquistas da ciência moderna.

Todos nós crescemos, e vivemos, sabendo que a Terra é redonda, que gira em torno de si mesma, e entorno do Sol. Está nos compêndios que compulsamos desde o curso primário, no globo terrestre que a professora tinha em cima da mesa. Mas, no fundo, todos nós esperávamos pela “prova real” dessa velha lição. Como S. Tomé: “Ver para crer”. Já ouvi um garoto perguntar ao pai, como é que o japonês podia andar de cabeça para baixo, do outro lado do mundo? E da ingênua conjetura de um companheiro: por que um avião “parado” no ar, não fazia a volta à Terra em 24 horas, se ela completa seu giro nesse tempo?

As explicações da lei de Newton nos deixavam incrédulos, a pensar neste estranho mundo redondo, a rodar nos céus, com todas as coisas presas no chão, sem que as imensas massas líquidas dos oceanos não se soltassem, e com elas, algas, peixes, baleias, tubarões, a voarem como pássaros!

Os garotos de agora não terão motivos de dúvida. Viram, como eu vi, na televisão, os filmes tirados por Borman, Lovel e Anders, quando a mais de 400 mil quilômetros de nosso planeta, circunavegavam a Lua (Três meses depois de escrita esta crônica, a 20 de julho de 1969, Armstrong, Aldrin e Collina, os três astronautas norte-americanos chegaram a lua, tendo os dois primeiros descido na superfície lunar). E todos compreendemos, então, que o homem deixou de ser um simples habitante terreno. Seu “espaço” ampliou-se. Até agora, víamos tudo, do chão, colados, como as serpentes. De repente, ultrapassamos as próprias aves - somos aves de infinito vôo, - e é como se descobríssemos a Terra - habitantes de outro planeta - livres das milenares raízes que nos agarram ao solo. Einstein se imaginou numa estrela, Arturus, para, livre da lei da gravidade, descobrir a sua “teoria da relatividade”.

Borman e seus companheiros se encontram realmente na situação imaginada pelo gênio de Einstein, e devem ter descoberto uma teoria mais simples: a da humanidade. Paradoxalmente foi preciso que se afastassem da Terra para se “humanizarem”, no sentido de compreenderem ao mesmo tempo a insignificância e a grandeza do homem. O Universo, apenas palavra, poesia - tem agora um sentido tão próximo, palpável, como praia, mulher, edifício, sorvete.

Lovel declarou, vendo a Terra à distância, como uma bola iluminada, que, naquele momento, duvidou que ela pudesse ser habitada.

Assistindo o filme, e a nos repetirmos a cada instante: inacreditável! - também perguntamos: será que há seres naquela “lua grande”? E Lovel concluiu:

“O mundo pareceu-me então, realmente um mundo só”.

Positivamente, como se falar em guerras por palmos (palmos, mesmo) de terra, diante dessa imagem extraordinária? Eu, por mim, não pude conter a irritação, quando, logo após o locutor se referia à disputa entre árabes e judeus, por nesgas de deserto, de areal, na península do Sinai. Tudo me pareceu de proporções liliputianas! Que tacanha a mentalidade de nossos estadistas! Se eu fosse Borman, a primeira coisa que teria proposto ao meu governo ao sair da cápsula, na volta seria:

“Que seja criado um governo Universal!”

Não somos mais que um átomo a girar nos espaços. É estúpido que permaneçamos a usar um sistema métrico mental ultrapassado; que insistamos em nos autodestruir e a nos entre devorar.

Tal apelo, hoje, não saberia mais a utopia. Se Borman o fizesse, teria completado a sua oração, ao ler, no Cosmo, um capítulo do Gênesis. Sim, o Gênesis terá que ser reescrito. Esta é a hora de revisarmos valores, idéias, e até palavras. Fronteiras, pátrias, religiões, formas arcaicas de uma civilização para trás, devem e terão que ser necessariamente reconceituadas. As ONUS, OEAS, UNESCOS, meras siglas sem significado real, não funcionarão enquanto o nosso mundo subdividido continuar sujeito à espoliação dos fracos pelos fortes, às competições desleais entre ricos e nobres, com uma infra-estrutura anterior à era da energia atômica, da astronáutica, dos transplantes, da eletrônica.

Há um mundo novo pela frente. Um mundo que deverá se organizar à base das necessidades fundamentais do homem, físicas e culturais, despojando as sociedades de inúteis e anacrônicos aparatos bélicos. As fardas, para os museus.

As fronteiras não estão mais na terra. As pátrias têm novo sentido. As religiões serão reinventadas, para que permaneçam arrimo e esperança. A Bíblia, velha colcha de retalhos, remendada pelos hebreus, será relegada à sua condição de mitologia lendária do Oriente.

A Igreja não considera mais a Terra o “centro do Universo”, renegou Ptolomeu, admite outros mundos habitados. Concordou afinal com Galileu, e quem sabe? -com Renan. Re-estudar a natureza mística de Cristo não será mais heresia. De quantos Cristos precisaria Deus para redimir incontáveis “humanidades”?

As fronteiras são rabiscos de giz, num quadro-negro, que as gerações apagam com facilidade espantosa. O nacionalismo, já o definia Goethe, como “sarampo dos povos”, doença primária, e passageira. As pátrias, armadas, mais que amadas, caducaram. Absurdo que se justifiquem genocídios brutais, à base de conceitos artificialmente alimentados ao som de bandas de música e de discursos políticos. O homem é um só. O Universo, o seu mundo. E é diante desta visão, desta realidade nova, que deveremos reconstruir-nos para conquistar os caminhos que Deus projetou à nossa frente. À maneira dos velhos marinheiros, do alto dos mastros das caravelas, agora podemos gritar:

- Universo à vista!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969