domingo, 3 de fevereiro de 2013

Gil Vicente (Auto da Feira)


A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente Príncipe El Rei Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

Figuras:

Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Diniz Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Doroteia, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

MERCÚRIO

Pera que me conheçais, e entendais meus partidos, todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céu, e depois vos direi qual, e quem me cá descendeu e a quê, e todo o al que me a mi aconteceu.

E porque a astronomia anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céus, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer aos anjos e a Deus,e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé; e eles todos em cabo terão um cão polo rabo, e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta d' um vintém que lh' entregou.

Porém, quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d' estrelas se poderá adivinhar, pois no céu nasci com elas. E se Francisco de Melo, que sabe ciência avondo, diz que o céu é redondo, e o sol sobre amarelo; diz verdade, não lh' o escondo.

Que se o céu fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d' azul fora a sua cor e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nascestes, se nascestes e crescestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos resplandecentes? Que fazem que todalas gentes ou são homens ou mulheres, ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum influi vida contina, a morte de cada um é aquela de que se fina, e não d' outro mal nenhum. Outrossim o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto.

E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida que quando a vista é perdida, os olhos são por demais.

E que mais quereis saber desses temporais e disso, senão que, se quer chover, está o céu pera isso, e a terra pera a receber? a lüa tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céu respeito, mingua-lhes as santidades, e cresce-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joanes Monteregio:

Mars, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas, em que os reis são ocupados, que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina, e retrogada em seu cargo, não se paga o desembargo no dia que s' ele assina mas antes por tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d' haver agora que quando os põe no madeiro, chama o povo ao carniceiro Senhor, c' os barretes fora. Depois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o signo do Bode, Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode.

E se este não hás tomado, nem Touro, Carneiro assi, vai-te ao sino do Pescado, chamado Piscis em latim, e serás remedeado: e se Piscis não tem ensejo, porque pode não no haver, vai-te ao signo do Cranguejo, Signum Cancer, Ribatejo, que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

Júpiter, rei das estrelas, deus das pedras preciosas, mui mais precioso qu' elas pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado , influência e senhoria, que faz percurso ordenado que tanto vale um cruzado de noite como de dia.

E faz que üa nau veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

Ao Zodíaco acharão doze moradas palhaças, onde os sinos estão no Inverno e no Verão, dando a Deus infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis por conjeituras que os corpos celestiais não são menos nem são mais que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam, está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa Maior, Ursa Menor e o Dragão, e Lepus, que têm paixão, porque um corregedor manda enforcar um ladrão.

Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões sejam filhos de mulheres, e os mesmos pais varões. E aqui quero acabar. E pois vos disse atéqui o que se pode alcançar, quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar.

Eu são Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor, e deus das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos e contratos, valias, preços, avenças, carestias e baratos, ministro suas pertenças, até às compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, ordeno üa feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem; e assi o hei por bem. E não falte comprador. Porque o tempo tudo tem.

Entra o Tempo, e arma üa tenda com muitas cousas e diz:

TEMPO

Em nome daquele que rege nas praças d'Anvers e Medina as feiras que têm, começa-se a feira chamada das Graças, à honra da Virgem parida em Belém. Quem quiser feirar, venha trocar, qu' eu não hei-de vender; todas virtudes qu' houverem mister nesta minha tenda as podem achar, a troco de cousas que hão-de trazer.

Todos remédios, especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente; conselhos maduros de sãs qualidades aqui se acharão. A mercadorias d' amor a rezão justiça e verdade, a paz desejada, porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da opinião.

Aqui achareis o temor de Deus, que é já perdido em todos Estados; aqui achareis as chaves dos Céus, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis soma de contas, todas de contar quão poucos e poucos haveis de lograr as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu' estão por contar. E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo, se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ó Messias memoria o teu Anjo que ande comigo, Senhor, porque temo ser esta feira de maus compradores, porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo, e os mesmos Diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:

SERAFIM 
À feira, a feira igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos; comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as samarras dos outros primeiros, os antecessores. Feirai o carão que trazeis dourado; ó presidentes do crucificado, lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado.

Ó Príncipes altos, império facundo, guardai-vos da ira do Senhor dos Céus; comprai grande soma do temor de Deus na feira da Virgem, Senhora do Mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz as cousas mais belas.

Entra um Diabo com üa tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

DIABO Eu bem me posso gavar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender, e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo.

Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m' estorva de ser eu o maior dela. TEMPO És tu também mercador, que a tal feira t' ofereces? DIABO Eu não sei se me conheces. TEMPO Falando com salvanor, tu Diabo me pareces.

DIABO Falando com salvos rabos inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são Diabos, (que eu não tenho nem ceitil) e bem honrados te digo, e homens de muita renda, que têm dívida comigo. Pois não me tolhas a venda, que não hei nada contigo.

Tempo ao Serafim

TEMPO Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar a feira.

DIABO Ladrão? Pois haj' eu perdão se vos meter em canseira. Olhai cá, Anjo de bem, eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, como quem vida não tem.

Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados, isto não releva nada; e em todolos mercados entra a minha quintalada. SERAFIM Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis. DIABO I há de homens ruins mais mil vezes que não bôs, como vós mui bem sentis.

E estes hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer o que deviam lembrar. Que o sages mercador há-de levar ao mercado o que lhe compram melhor; porque a ruim comprador levar-lhe ruim borcado.

E mais as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, porque não trazem proveito. Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe de ser primeiro o mais ruim que puder.

E pois são desta maneira os contratos dos mortais, não me lanceis vós da feira onde eu hei-de vender mais que todos à derradeira. SERAFIM Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras. DIABO Eu vendo perfumaduras, que, pondo-as no embigo, se salvam as criaturas.

Às vezes vendo virotes, e trago d' Andaluzia naipes com que os sacerdotes arreneguem cada dia, e joguem até os pelotes. SERAFIM Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céus: vai lá vender ao abisso, logo, da parte de Deus! DIABO Senhor, apelo eu disso.

S' eu fosse tão mau rapaz que fizesse força a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade; senhor, que lh' hei-de fazer?

E se o que quer bispar há mister hipocrisia e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia, porque lh' a hei-de negar? E se üa doce freira vem à feira por comprar um inguento, com que voe do convento, senhor, inda que eu não queira, lh' hei-de dar aviamento.

MERCÚRIO Alto, Tempo, aparelhar, porque Roma vem à feira. DIABO Quero-me eu concertar, porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar.

Entra Roma, cantando.

ROMA «Sobre mi armavam guerra; «ver quero eu quem a mi leva.

«Três amigos que eu havia, «sobre mi armam porfia; «ver quero eu quem a mi leva».

Fala:

Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me desbaratam, o meu socorro onde está Se os Cristãos mesmos me matam, a vida quem m' a dará, que todos me desacatam?

Pois s' eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, cant' a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar. DIABO Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado. ROMA Não pareces tu azado pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

Não julgueis vós pola cor, porque em al vai o engano; cá dizem que sob mau pano está o bom bebedor; nem vós digais mal do ano.

Eu venho à feira direita comprar paz, verdade e fé. DIABO A verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é? Não trazeis bons fundamentos pera o que haveis mister; e a segundo são os tempos, assim hão-de ser os tentos, pera saberdes viver.

E pois agora à verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade, peitai a quem vo-la ponha, a ruindade digo eu: e aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vem.

Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, mentiras, que a todas as horas vos nasçam delas favores.

E como formos avindos nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos, que aqui trago comigo. ROMA Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outras sujas mercancias, que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor de Deus, te comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu desamor; e a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades; e quantas virtudes tinha te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá. DIABO As cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:

ROMA Tão honrados mercadores não podem leixar de ter cousas de grandes primores; e quant' eu houver mister deveis vós de ter, senhores. SERAFIM Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais, e pois vós sois a primeira, queremos ver que feirais segundo vossa maneira.

Cá, se vós a paz quereis senhora, sereis servida, e logo a levareis a troco de santa vida; mas não sei se a trazeis. Porque, senhora eu me fundo que quem tem guerra com Deus, não pode ter paz c ' o mundo ; porque tudo vem dos céus, daquele poder profundo.

ROMA A troco das estações não fareis algum partido, e a troco dos perdões, que é tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh, vendei-me a paz dos céus, pois tenho o poder na terra. SERAFIM Senhora, a quem Deus dá guerra, grande guerra faz a Deus, que é certo que Deus não erra.

Vede vós que lhe fazeis, vede como o estimais, vede bem se o temeis ; atentai com quem lidais, que temo que caireis. ROMA Assi que a paz não se dá a troco de jubileus? MERCÚRIO Ó Roma, sempre vi lá que matas pecados cá, e leixas viver os teus.

Tu não te corras de mi; mas com teu poder facundo assolves a todo o mundo, e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. ROMA Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos. MERCÚRIO Dá-lhe, Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit' embora.

Um espelho aí acharás, que foi da Virgem Sagrada, co' ele te toucarás porque vives mal toucada, e não sentes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida: e não digas mal da feira; porque tu serás perdida, se não mudas a carreira.

Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, pelo que fazes cá em fundo: que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós e a qualquer meu amigo, quem não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deus, e não temerá perigo.

DIABO Prepósito Frei Sueiro, diz lá o exemplo velho: dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o conselho.

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:

AMÂNCIO VAZ Compadre, vás tu à feira? DINIZ LOURENÇO À feira, compadre. AMÂNCIO VAZ Assi, ora vamos eu e ti ó longo desta ribeira. DINIZ LOURENÇO Bofá, vamos. AMÂNCIO VAZ Folgo bem de te vir aqui achar. DINIZ LOURENÇO Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar?

AMÂNCIO VAZ Isso te quero contar, e iremos patorneando, e er também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha mulher é muito destemperada, e agora, se Deus quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada.

Qu'eu quando casei com ela diziam-me, «Hétega é». E eu cuidei pola abofé que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era hétega assim foi o que m' a mim danou: avonda qu'ela engordou e fez-me hétego a mim.

DINIZ LOURENÇO Tens boa mulher de teu: não sei que tu hás, amigo. AMÂNCIO VAZ S'ela casara contigo renegaras tu com' eu e dixeras o que eu digo. DINIZ LOURENÇO Pois, compadre, cant'à minha, é tão mole e desatada, que nunca dá peneirada que não derrame a farinha.

E não põe cousa a guardar, que a tope quanda a cata; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. Trás d' üa pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão pouco o que fará.

Pera que t'hei-de falar? Quando ontem cheguei do mato pôs üa enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape a um gato. Quant'a mansa, mansa é ela; dei-m'ê logo conta disso. AMÂNCIO VAZ Juro-t'eu que mais vale isso cinquenta vezes qu'ela.

A minha te digo eu que se a visses assanhada, parece demoninhada, ante São Bertolameu. DINIZ LOURENÇO Já sequer terá esp'rito: mas renega da mulher que ó tempo do mister não é cabra nem cabrito.

AMÂNCIO VAZ A minha tinh'eu em guarda pera bem da minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda. Folga tu que ess'outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo logo me salta nas grenhas.

Então tanto punho seco me chimpa nestes focinhos; eu chamo polos vizinhos, e ela nego dar-me em xeco. DINIZ LOURENÇO Isso é de coraçuda; não cures de a vender, que s'alguém te mal fizer, já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tão cortês, que se viesse ora à mão que m'espancasse um rascão, não diria, «Mal fazês». Mas antes s' assentaria a olhar como eu bradava. Todavia a mulher brava é, compadre, a qu'eu queria.

AMÂNCIO VAZ Pardeus! Tanto me farás que feire a minha contigo. DINIZ LOURENÇO Se queres feirar comigo, vejamos que me darás. AMÂNCIO VAZ Mas antes m' hás-de tornar pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato nem na corte.

Outro bem terás com ela: quando vieres da arada, comerás sardinha assada, porqu ' ela jenta a panela. Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira. DINIZ LOURENÇO Eu faria per maneira que esperasse ela por mi. AMÂNCIO VAZ Que lh'havias de fazer?

DINIZ LOURENÇO Amâncio Vaz, eu o sei bem. AMÂNCIO VAZ Diniz Lourenço, ei-las cá vêm! Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar, qu'elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu'eu daqui hei-d' espreitar.

Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

BRANCA ANES Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima, comprarei cá üa gamela, para o ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro ; e quantas uvas penduro jeita nas gorgomileiras: parece negro monturo.

Vai-se-m'às ameixieiras antes que sejam maduras, ele quebra as cerejeiras, ele vindima as parreiras, e não sei que faz das uvas. Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada, e sempre me diz que há fome.

Jesu! Jesu! Posso-te dizer e jurar e tresjurar, e provar e reprovar, e andar e revolver, qu' é melhor pera beber, que não pera maridar. O demo que o fez marido, que assim seco como é beberá a torre da Sé! Então arma um arruído assi debaixo do pé.

MARTA DIAS Pois bom homem parece ele. DINIZ LOURENÇO Aquela é a minha frouxa. MARTA DIAS Deu-t'ele a fraldinha roxa? BRANCA ANES Melhor lh'esfole eu a pele. Que homem há i da puxa. Ó diabo que o eu dou, que o leve em fatiota, e o ladrão que m'o gabou; e o frade que me casou inda o veja na picota.

E rogo à Virgem da Estrela, e a santa Gerjalem, e ós choros de Madanela e à asninha de Belém, que o veja ir à vela pera donde nunca vem. DINIZ LOURENÇO Compadre, no mais sofrer: sai de lá desse silvado. AMÂNCIO VAZ Pera eu ser arrepelado. Não havi'eu mais mister.

DINIZ LOURENÇO E não n'hás tu de vender? AMÂNCIO VAZ Tu dizes que a qués feirar. DINIZ LOURENÇO Não qu'ela se me tomar leixar-m'á quando quiser. Mas demo-las à má estreia; e voto que nos tornemos, e er depois tornaremos com as cachopas d'aldeia: entonces concertaremos.

AMÂNCIO VAZ Isso me parece a rni muito melhor que eu ir lá. Oh, que couces que me dá, quando me colhe sob si! DINIZ LOURENÇO Cant' àquela si dará. DIABO Mulheres, vós que quereis? Nesta feira que buscais? MARTA DIAS Queremo-la ver, no mais. Pera ver em que tratais, e as cousas que vendeis.

Tendes vós aqui anéis? DIABO Quejandos? De que feição? MARTA DIAS D'uns que fazem de latão. DIABO Pera as mãos, ou pera os pés? MARTA DIAS Não -- Jesu, nome de Jesu, Deus e homem verdadeiro!

Foge o Diabo e Marta Dias diz:

MARTA DIAS Nunca eu vi bofalinheiro tão prestes tomar o mu. Branc'Anes mana, crê tu que, como Jesu é Jesu, era este o Diabo inteiro.

BRANCA ANES Não é ele pau de boa lenha, nem lenha de bom madeiro. MARTA DIAS Bofá, nunc'ele cá venha. BRANCA ANES Viagem de Jão Moleiro, que foi pola cal d'azenha. MARTA DIAS Pasmada estou eu de Deus fazer o Demo marchante! Mana, daqui por diante não caminhemos nós sós.

BRANCA ANES S'eu soubera quem ele era, fizera-lhe bom partido: que me levara o marido, e quanto tenho lhe dera, e o toucado e o vestido. Inda que mais não levara desta feira, em extremo. Me alegrara e descansara, se o vira levar o Demo, e que nunca mais tornara.

Porque, inda que era Diabo, fizera serviço a Deus, e a mi mercê em cabo; e viera-me dos céus, como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

MARTA DIAS Dizei, senhores de bem, nesta tenda, que vendeis? SERAFIM Esta tenda tudo tem; vede vós o que quereis, que tudo se fará bem. Consciência quereis comprar, de que vistais vossa alma?

MARTA DIAS Tendes sombreiros de palma muito bons pera segar, e tapados pera a calma? SERAFIM Consciência digo eu, que vos leve ao Paraíso. BRANCA ANES Não sabemos nós qu'é isso: dai-o ó decho por seu, que já não é tempo disso.

MARTA DIAS Tendes vós aqui burel, do pardo de lã meirinha? BRANCA ANES Eu queria üa pucarinha pequenina pera mel. SERAFIM Esta feira é chamada das virtudes em seus tratos. MARTA DIAS Das virtudes! E há aqui patos? BRANCA ANES Quereis feirar a cevada quatro pares de sapatos? SERAFIM Oh, piedoso Deus eterno! Não comprareis pera os céus um pouco d'amor de Deus que vos livre do Inferno? BRANCA ANES Isso é falar per pincéus.

SERAFIM Esta feira não se fez para as cousas que quereis. BRANCA ANES Pois cant' a essas que vendeis, daqui afirmo outra vez que nunca as vendereis. Porque neste sigro em fundo todos somos negligentes: foi ar que deu polas gentes, foi ar que deu polo mundo, de que as almas são doentes.

E se hão-de correger quando for todo danado: muito cedo se há-de ver; que já ele não pode ser mais torto nem aleijado. Vamo-nos, Marta, à carreira, que as moças do lugar virão cá fazer a feira, que estes não sabem ganhar, nem têm cousa que homem queira.

MARTA DIAS Eu não vejo aqui cantar, nem gaita, nem tamboril, e outros folgares mil, que nas feiras soem d'estar: e mais feira de Natal, e mais de Nossa Senhora, e estar todo Portugal. BRANCA ALVES S'eu soubera que era tal, não estivera eu cá agora.

Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças, cobertos, cantando. E, como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o Serafim:

SERAFIM Pois vindes vender à feira, sabei que é feira dos céus; por tal, vendei de maneira que não ofendais a Deus, roubando a gente estrangeira. TESAURA Responde-lhe, Leonarda, tu Justina, ou Juliana. JULIANA Mas responda-lhe Giralda, Tesaura, ou Merenciana.

MERENCIANA Responde-lhe, Teodora, porque creio que a ti creia. TESAURA Responda-lhe Doroteia. pois que mora, junto c'o Juiz d'aldeia. DOROTEIA Moneca responderá que falou já com senhor. MONECA Responde-lhe tu, Nabor, contigo s'entenderá.

Ou Denísio, ou Gilberto, qualquer de vós outros três e não vos embaraceis ou torveis, porque é certo que bem vos entendereis. GILBERTO Estas cachopas não vêm à feira nego a folgar, e trazem de merendar nestes cestos que i têm.

Mas pois quanto ao que entendo, sois, samica, anjo de Deus; quando partistes dos céus, que ficava Ele fazendo? SERAFIM Ficava vendo o seu gado. GILBERTO Santa Maria! Gado há lá? Oh, Jesu! como o terá o Senhor gordo e guardado!

E há lá boas ladeiras, como na serra d'Estrela? SERAFIM Si. GILBERTO E a Virgem que faz ela? SERAFIM A Virgem olha as cordeiras, e as cordeiras a ela. GILBERTO E os Santos de saúde todos, a Deus louvores? SERAFIM Si. GILBERTO E que léguas haverá daqui à porta do Paraíso, onde São Pedro está?

NABOR Lá vêm ó redor das vinhas compradores a comprar samica ovos e galinhas. DOROTEIA Não lhe hei-de vender as minhas, que as trago pera dar.

Vêm dous compradores, um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

MATEUS Vós rosa do amarelo, mana, tendes i queijadas. JUSTINA Tenho vosso avô marmelo! Conhecei-lo? MATEUS Aqui estão emborilhadas. JUSTINA Estade má ora quedo, pela vossa negra vida. MATEUS Menina, não hajais medo: vós sois mais engrandecida que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos, meus olhos, não m'os vendais a ninguém. JUSTINA Andar em burra e ter bem: ouvide ora o rasca-piolhos (azeite no micho!) em que vem! VICENTE Minha vida, Leonarda, traz caça pera vender? LEONARDA Vossa vida negra e parda não lhe abastará comer da vaca com da mostarda?

VICENTE E a mesa de meu senhor irá sem ave de pena? LEONARDA Quem? E vós sois comprador? Pois nem grande nem pequena não matou o caçador. VICENTE Matais-me vós logo bem com dous olhinhos qu'eu digo. LEONARDA Mais vos mata a vós o trigo, porque não vale a vintém, e traz mau micho consigo.

VICENTE Vós fazeis de mi rascão. LEONARDA Pação vos fizestes vós; porém bem nos vimos nós guardar bois no Alqueidão. MATEUS Que vindes vender à feira, Teodora, alma minha? minha alma, minha canseira? Trazei algüa galinha? TEODORA São vossa alma galinheira.

Que má ora cá viestes pera quem vos pôs no paço! MATEUS Senhora, eu vos faço, que vos agastais tão prestes? Dizei-me vós, Teodora, trazeis vós tal cousa e tal deste jeito, muito embora? Mas lá dessoutro metal não falam à lavradora.

VICENTE Senhora Moneca, trazeis algum cabrito recente? MONECA Não bofé, Senhor Vicente: quisera ora trazer três, de que vós foreis contente. VICENTE Juro à Santa Cruz de palha qu' hei-de ver o que aqui está. MONECA Não revolvais aramá, que não trago nemigalha.

VICENTE Não me façais descortês, nem queirais ser tão garrida. MONECA Pola vossa negra vida! Olhade como é cortês ! Oh, que lhe saia má saída. MATEUS Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos? GIRALDA Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei. Comereis vós estorninhos? MATEUS Respondeis como mulher muito de sua vontade. GIRALDA Pois digo-vo-la verdade: pássaros hei-de vender? Olhai aquela piedade!

VICENTE Senhora minha Juliana peço-vos que me faleis discreta palenciana, e dizei-me que vendeis. JULIANA Vendo favas de Viana. VICENTE Tendes alguns laparinhos? JULIANA Sim, de porca. VICENTE Nem coelhos? JULIANA Quereis comprar dous francelhos, pera caçardes ratinhos? JULIANA Quero, polos Evangelhos!

MATEUS Vós, Tesaura, minha estrela, não viríeis cá em vão. TESAURA Pois si, vossa estrela vos er'ela: como aquilo é de rascão! MATEUS Mas como isso é de donzela! Porém vá já como vai, e casemo-nos, senhora. TESAURA Pois casai co'ele, casai, Casar, ma ora, meu ai, casar, má hora.

MATEUS Porém trazeis algum pato? TESAURA E quanto dareis por ele? Hui, e ele revolve o fato: olho mau se meta nele. MATEUS Não trazeis vós o qu'eu cato. VICENTE Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito. Não m'haveis de revolver MERENCIANA senão, pardeus, que dê grito tamanho, que haveis de ver.

VICENTE Eu hei-de ver que trazeis. MERENCIANA se vós no cesto bulis. . . VICENTE Senhora, que me fareis? MERENCIANA Um aqui-d'el-rei, ouvis? Não sejais vós descortês. VICENTE Não quero senão amores, pois vosso, senhora, sou. MERENCIANA Amores de vosso avô, o da ilha dos Açores. Andar aramá vós só.

MATEUS Vamo-nos daqui, Vicente. VICENTE Bofá vamos. MATEUS Nunca vi tal feira. VICENTE Vamos comprar à Ribeira, que anda lá cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

SERAFIM Vós outras quereis comprar das virtudes? Senhor, não. SERAFIM Saibamos por que rezão. DOROTEIA Porque no nosso lugar não dão por virtudes pão. Nem casar não vejo eu por virtudes a ninguém. Quem tiver muito de seu, e tão bons olhos com'eu sem isso casará bem.

SERAFIM Pois porque viestes ora cansar à feira de pé?

TEODORA Porque nos dizem que é feira de Nossa Senhora: e vedes aqui porquê. E as graças que dizeis que tendes aqui na praça, se vós outros as vendeis, a Virgem as dá de graça aos bons, como sabeis.

E porque a graça e alegria, a madre da consolação deu ao mundo neste dia, nós vimos com devação a cantar-lhe úa folia. E pois que já descansámos assi em boa maneira, moças, assi como estamos, demos fim a esta feira, primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram.

Cantiga.

I CORO «Blanca estais colorada, «Virgem sagrada. «Em Belém vila do amor «da rosa nasceu a flor: «Virgem sagrada.»

II CORO «Em Belém vila do amor «nasceu a rosa do rosal: «Virgem sagrada.»

I CORO «Da rosa nasceu a flor: «pera nosso Salvador: «Virgem sagrada.»

II CORO «Nasceu a rosa do rosal, «Deus e homem natural: «Virgem sagrada.»

Gratias agamus Domino Deo nostro

Fonte: 
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/gil-vicente/auto-da-feira.php

Contos do Folclore Brasileiro (A Casa que Pedro Fez)


Esta é a casa que Pedro fez.

 Este é o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Esta é a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Esta é a moça mal vestida que ordenhou a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o moço todo rasgado, noivo da moça mal vestida que ordenhou a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o padre de barba feita que casou o moço todo rasgado, noivo da moça mal vestida que ordenhou a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o galo que cantou de manhã que acordou o padre de barba feita que casou o moço todo rasgado, noivo da moça mal vestida que ordenhou a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

 Este é o fazendeiro que espalhou o milho para o galo que cantou de manhã que acordou o padre de barba feita que casou o moço todo rasgado, noivo da moça mal vestida que ordenhou a vaca de chifre torto que atacou o cão que espantou o gato que matou o rato que comeu o trigo que está na casa que Pedro fez.

Fonte:
Jangada Brasil. Setembro 2010. Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário.

Manuel Bandeira (Poética)


Estou farto do lirismo comedido
 Do lirismo bem comportado
 Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

 Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
 Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
 Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
 Político
 Raquítico
 Sifilítico
 De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
 Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
 O lirismo dos bêbados
 O lirismo difícil e pungente dos bêbados
 O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 4


VII

O BATISMO

Domingo seguinte a bordo da escuna tudo era festa.

No rico altar armado á popa com os mais custosos brocados, via-se a figura de Nossa Senhora da Glória, obra de um entalhador de São Sebastião que a esculpira em madeira.

Embora fosse tosco o trabalho, saíra o vulto da Virgem com um aspecto nobre, sobretudo depois que o artífice tinha feito a encarnação e pintura da imagem.

Em frente ao altar achavam-se Aires de Lucena, Duarte de Morais e a mulher, além dos convidados da função. Úrsula tinha nos braços, envolta em alva toalha de crivo, a linda criancinha loura, que adotara por filha.

Mais longe, a maruja comovida com a cerimônia, fazia alas, esperando que o padre se paramentasse. Este não se demorou, com pouco apareceu no convés e subiu ao altar.

Começou então a cerimônia do benzimento da Virgem, que prolongou-se conforme o cerimonial da Igreja. Terminado o ato, todos até o último dos grumetes foram por sua vez beijar os pés da Virgem.

Em seguida se passou ao batismo da filha adotiva de Duarte de Morais. Foi madrinha Nossa Senhora da Glória, de quem recebeu a menina o nome que trouxe, pela razão de a ter Aires salvado no dia daquela invocação.

Esta razão porém calou-se; pois a criança foi batizada como filha de Duarte de Morais e Úrsula; e a explicação do nome deu-se com ter ela escapado de grave doença no dia 15 de agosto. Por igual devoção tomou-se a mesma Virgem Santíssima para padroeira da escuna, pois à sua divina e milagrosa intercessão se devia a vitória sobre os hereges e a captura do navio.

Depois da bênção e batismo da escuna, acompanharam todos em procissão o sacerdote que de imagem alçada dirigiu-se à proa onde tinham de antemão preparado um nicho.

Por volta do meio-dia terminou a cerimônia, e a linda escuna desfraldando as velas bordejou pela baía em sinal de regozijo pelo seu batismo, e veio deitar o ferro em uma sombria e formosa enseada que havia na praia do Catete, ainda naquele tempo coberta da floresta que deu nome ao lugar. 

Essa praia tinha dois outeiros que lhe serviam como de atalaias, um olhando para a barra, o outro para a cidade. Era ao sopé deste último que ficava a abra, onde fundeou a escuna Maria da Glória, à sombra das grandes árvores e do outeiro, que mais tarde devia tomar-lhe o nome.

Aí serviu-se lauto banquete aos convivas, e levantaram-se muitos brindes ao herói da festa, Aires de Lucena, o intrépido corsário, cujos rasgos de valor eram celebrados com um entusiasmo sincero, mas decerto afervorado pelas iguarias que trascalavam.

É sempre assim; a gula foi e há de ser para certos homens a mais fecunda e inspirada de todas as musas conhecidas.

Ao toque de trindades, cuidou Aires de voltar à cidade, para desembarcar os convidados; mas com pasmo do comandante e de toda a maruja não houve meio de safar a âncora do fundo.

Certos sujeitos mais desabusados asseguravam que sendo a praia coberta de árvores, na raiz de alguma fisgara a âncora, e assim explicavam o acidente. O geral, porém, vendo nisso um milagre, o referiam mais ou menos por este teor.

Segundo a tradição, Nossa Senhora da Glória agastada por terem-na escolhido para padroeira de um navio corsário, tomado aos hereges, durante o banquete abandonara o seu nicho da proa e se refugiara no cimo do outeiro, onde à noite se via brilhar o seu resplendor por entre as árvores.

Sabendo o que, Aires de Lucena botou-se para a praia e foi subindo a encosta do morro em demanda da luz, que lhe parecia uma estrela. Chegado ao tope, avistou a imagem da Senhora da Glória em cima de um grande seixo, e ajoelhado defronte um ermitão a rezar.

- Quem te deu, barbudo, o atrevimento de roubares a padroeira de meu navio, gritou Aires irado.

Ergueu-se o ermitão com brandura e placidez.

- Foi a senhora da Glória quem mandou-me que a livrasse da fábrica dos hereges e a trouxesse aqui onde quer ter sua ermida.

- Há de tê-la e bem rica, mas depois de servir de padroeira à minha escuna.

Palavras não eram ditas, que a imagem abalou do seixo onde estava e foi sem tocar o chão descendo pela encosta da montanha. De bordo viram o resplendor brilhando por entre o arvoredo, até que chegado à praia deslizou rapidamente pela flor das ondas em demanda da proa do navio.

Eis o que ainda no século passado, quando se edificou a atual ermida de Nossa Senhora da Glória, contavam os velhos devotos, coevos de Aires de Lucena. Todavia não faltavam incrédulos que metessem o caso à bulha.

A crê-los, o ermitão não passava de um mateiro beato, que se aproveitara da confusão do banquete para furtar a imagem do nicho, e levá-la ao cimo do outeiro, onde não tardaria a inventar uma romagem, para especular com a devoção da Virgem.

Quanto ao resplendor era em linguagem vulgar um archote que o espertalhão levara de bordo, e que servira a Aires de Lucena para voltar ao navio conduzindo a imagem.

VIII

A VOLTA

Dezesseis anos tinham decorrido.

Era sobre tarde.

Grande ajuntamento havia na esplanada do Largo de São Sebastião, ao alto do Castelo, para ver entrar a escuna Maria da Glória.

Os pescadores tinham anunciado a próxima chegada do navio, que bordejava fora da barra à espera de vento, e o povo concorria para saudar o valente corsário cujas surtidas ao mar eram sempre assinaladas por façanhas admiráveis.

Nunca ele tornava do cruzeiro sem trazer uma presa, quando não eram três, como nessa tarde em que estamos.

Tornara-se Aires com a experiência um consumado navegante, e o mais bravo e temível capitão de mar entre quantos sulcavam os dois oceanos. Era de recursos inesgotáveis; tinha ardis para lograr o mais esperto marítimo; e com o engenho e intrepidez multiplicava as forças de seu navio a ponto de animar-se a combater naus ou fragatas, e de resistir ás esquadras de pichelingues que se juntavam para dar cabo dele.

Todas estas gentilezas, a maruja bem como a gente do povo as lançava à conta da proteção da Virgem Santíssima, acreditando que a escuna era invencível, enquanto sua divina padroeira a não desamparasse.

Aires tinha continuado na mesma vida dissipada, com a diferença que a sua façanha da tomada da escuna lhe incutira o gosto pelas empresas arriscadas, que vinham assim distrai-lo da monotonia da cidade, além de lhe fornecer o ouro que ele semeava a mãos-cheias por seu caminho.

Em sentindo-se aborrido dos prazeres tão gozados, ou escasseando-lhe a moeda na bolsa, fazia-se ao mar em busca dos pichelingues que já o conheciam às léguas e fugiam dele como o diabo da cruz. Mas dava-lhes caça o valente corsário, e perseguia-os dias sobre dias até fisgar-lhes os arpéus.

Como o povo, também ele acreditava que à intercessão de Nossa Senhora da Glória devia a constante fortuna que uma só vez não o desajudara; e por isso tinha uma devoção fervorosa pela divina padroeira de seu navio, a quem não esquecia de encomendar-se nos transes mais arriscados.

Tornando de suas correrias marítimas, Aires, da parte que lhe ficava líquida depois de repartir a cada marujo o seu quinhão, separava metade para o dote de Maria da Glória e a entregava a Duarte de Morais.

A menina crescera, estava moça, e a mais prendada em formosura e virtude que havia então neste Rio de Janeiro. Queria-lhe Aires tanto bem como à sua irmã, se a tivesse; e ela pagava com usura esse afeto daquele que desde criança aprendera a estimar como o melhor amigo de seu pai. 

O segredo do nascimento de Maria da Glória fora respeitado, conforme o desejo de Aires. Além do corsário e dos dois esposos, só o gajeiro Bruno, agora piloto da escuna; sabia quem realmente era a gentil menina; para ela como para os mais, seus verdadeiros pais foram Duarte de Morais e Úrsula.

Nas torres os sinos a repicarem trindades, e da escuna um batel a largar enquanto roda o cabrestante ao peso da âncora. Vinha no batel um cavalheiro de aspecto senhoril, cujas feições tostadas ao sol ou crestadas pela salsugem do mar respiravam a energia e a confiança. Se nos combates o nobre parecer, assombrando-se com a sanha guerreira, infundia terror no inimigo, fora, e ainda mais neste momento, a expansão jovial banhava-lhe o semblante de afável sorriso.

Era Aires de Lucena esse cavalheiro; não mais o gentil e petulante mancebo; porém o homem tal como o tinham feito as pelejas e trabalhos do mar.

Na ponta da ribeira, que atualmente ocupa o Arsenal de Guerra, Duarte de Morais com os seus, ansioso esperava o momento de abraçar o amigo, e seguia com a vista o batel.

De seu lado Aires também já os avistara do mar, e não tirava deles os olhos.

Úrsula estava à direita do marido, e á esquerda Maria da Glória. Esta falava a um mancebo que tinha junto de si, e com a mão lhe apontava o batel já próximo a abicar.

Apagou-se o sorriso nos lábios de Aires, sem que ele soubesse explicar o motivo. Sentira um aperto no coração, que se dilatava naquela abençoada hora da chegada com o prazer de volver á terra, e sobretudo á terra da pátria, que é sempre para o homem o grêmio materno.

Foi pois já sem efusão e com o passo moroso que saltou na praia, onde Duarte de Morais abria-lhe os braços. Depois de receber as boas-vindas de Úrsula, voltou-se Aires para Maria da Glória que desviou os olhos, retraindo o talhe talvez na intenção de esquivar-se ás carícias que sempre lhe fazia o corsário á chegada.

- Não me abraça, Maria da Glória? perguntou o comandante com um tom de mágoa.

Corou a menina, e correu a esconder o rosto no seio de Úrsula.

- Olhem só! Que vergonhas!... disse a dona a rir.

No entanto Duarte de Morais, pondo a mão na espádua do mancebo, dizia a Aires:

- Este é Antônio de Caminha, filho da mana Engrácia, o qual vai agora para três semanas nos chegou do reino, onde muito se fala de vossas proezas; nem são elas para menos.

Dito o que, voltou-se para o mancebo:

- Aqui tens tu, sobrinho, o nosso homem; e bem o vedes que foi talhado para as grandes cousas que tem obrado. 

Saudou Aires cortesmente ao mancebo, mas sem aquela afabilidade que a todos dispensava. Esse casquilho de Lisboa, que de improviso e a titulo de primo se introduzira na intimidade de Maria da Glória, o corsário não o via de boa sombra.

Quando a noite se recolheu a casa, levou Aires a alma cheia da imagem da moça. Até aquele dia não vira nela mais do que a menina graciosa e gentil, com quem se habituara a folgar. Naquela tarde, em vez da menina, achou uma donzela de peregrina formosura, que ele contemplara enlevado nas breves horas passadas a seu lado.
-----------
continua

Gil Vicente (Auto da Lusitânia)


O Auto da Lusitânia, uma das últimas peças de Gil vicente, foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho, D. Manuel.

 A peça trata das bodas de Lusitânia e Portugal (personagens mitológicos), mas Gil Vicente, como muitas vezes faz, mistura no enredo e nos diálogos muitos temas, personagens, e cenas que constituem como "diversões" à margem do tema maior.

 Lusitânia é filha de Lisibea (Lisboa) e do Sol, e por ela se apaixonou um caçador grego de nome Portugal. Quando os amores parecem desencaminhar-se, acorrem às deusas (diesas) gregas, com cuja proteção se decide então o casamento. Este o tema, que se desenrola da seguinte maneira: comça o auto com vários diálogos e recitativos de pessoas comuns acerca dos assuntos de amor e outros, alguns picarescos como convém a uma farsa, até que entra em cena o Licenciado, que faz o papel de narrador e representa Gil Vicente; ele introduz o tema das bodas dizendo que o Sol viu Lisibea nua sem nenhuma cobertura (...) e houve dela uma filha tão ornada se sua luz, que lhe puseram nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta Província. Passados tempos, um famoso cavaleiro grego de nome Portugal ouviu falar da boa caça na serra de Sintra (serra da Solércia), e como este Portugal, todo fundado em amores, visse a formosura sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela.

 O texto tem ressonâncias no presente de Gil Vicente, que busca formar um panorama de sua terra, apreendendo a totalidade de suas raízes culturais.

 O Auto da Lusitânia classifica-se como uma fantasia alegórica. A peça é dividida em duas partes distintas:

 - na primeira parte, assiste-se às atribuições de uma família judaica;

 - na segunda parte, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com a princesa Lusitânia. Dois demônios, Belzebu e Dinato, que aparecem no texto vêm presenciar o casamento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.

 O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.

 "Todo o Mundo" era um rico mercador, e "Ninguém", um homem pobre. Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. 

 Vejamos:

 Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

 Ninguém: Que andas tu aí buscando?

 Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
                          delas não posso achar, 
                          porém ando porfiando
                          por quão bom é porfiar. 

 Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

 Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
                          e meu tempo todo inteiro
                          sempre é buscar dinheiro
                          e sempre nisto me fundo.

 Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
                e busco a consciência.

 Belzebu: Esta é boa experiência:
              Dinato, escreve isto bem.

 Dinato: Que escreverei, companheiro? 

 Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
               e Todo o Mundo dinheiro.

 Ninguém: E agora que buscas lá? 

 Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

 Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
                que tope com ela já.

 Belzebu: Outra adição nos acude:
               escreve logo aí, a fundo,
               que busca honra Todo o Mundo
               e Ninguém busca virtude.

 Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?

 Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
                          tudo quanto eu fizesse.

 Ninguém: E eu quem me repreendesse
                em cada cousa que errasse.

 Belzebu: Escreve mais.

 Dinato: Que tens sabido? 

 Belzebu: Que quer em extremo grado
               Todo o Mundo ser louvado,
               e Ninguém ser repreendido.

 Ninguém: Buscas mais, amigo meu? 

 Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

 Ninguém: A vida não sei que é,
                a morte conheço eu.

 Belzebu: Escreve lá outra sorte.

 Dinato: Que sorte? 

 Belzebu: Muito garrida:
               Todo o Mundo busca a vida
               e Ninguém conhece a morte.

 Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
                          sem mo Ninguém estorvar.

 Ninguém: E eu ponho-me a pagar
                quanto devo para isso.

 Belzebu: Escreve com muito aviso.

 Dinato: Que escreverei?

 Belzebu: Escreve
               que Todo o Mundo quer paraíso
               e Ninguém paga o que deve.

 Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
                          e mentir nasceu comigo.

 Ninguém: Eu sempre verdade digo
                sem nunca me desviar.

 Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
               não sejas tu preguiçoso.

 Dinato: Quê?

 Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
               E Ninguém diz a verdade.

 Ninguém: Que mais buscas?

 Todo o Mundo: Lisonjear.

 Ninguém: Eu sou todo desengano.

 Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

 Dinato: Que me mandas assentar?

 Belzebu: Põe aí mui declarado,
               não te fique no tinteiro:
               Todo o Mundo é lisonjeiro,
               e Ninguém desenganado.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/auto_da_lusitania

Amosse Mucavele (A Lavoura do Tempo)


Luís Serguilha
A  Lavoura do Tempo: A Filosofia das Luzes Ontológicas do Distante Universo Poético Serguilhiano e a Renovação Estética do Futuro da Linguagem Gnósica do Futuro Contínuo  Ou o Conhecimento e a Experiência em KOA’E.  
                                                                                            Para Cláudia Carvalho Machado e   Aurelino Costa
                                                      
                                                      << O desconhecido é quase a nossa única tradição>>
                                                                                       José Lezama Lima, A partir de la poesia

Se tomarmos a “arte’’ segundo Jürgen Habermas como poder de reconciliação que aponta para o futuro, podemos dizer desde logo que estamos perante um vulcão de vozes a romperem paralelamente na sinfonia harmônica da linguagem “poética” e do “ objecto estético” universal na óptica de Mikel Dufrenne.

Em KOA’E a poesia assume-se desde o inicio ou desde o fim pois é difícil discernir onde ela começa e onde termina, mas tem algo que assumo com toda propriedade, que ela é eterna, nasce cresce e chega até aos nossos olhos como “o objecto estético no estado de um possivel aguardando a sua epifania”( op.cit. por  Carlos Nogueira da Silva – O objecto estético como mundo, la phénomenologie de l’experience esthétique l,de Mikel Dufrenne,in Phainomenon, Revista de fenomenologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Edicões colibri 2001), há uma notável pluralidade de “contextos” deste novo “texto” onde multiplicam-se vivências com o pensamento “pós-moderno” e o “ conflito com o tempo” “pós-utópico”.

Cláudio Daniel ( Protocolos Críticos-Itaú Cultural 2009) no ensaio “Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis” ressalta que “ a poesia (...) manifesta essa tensão na linguagem, construção estética que dialoga com história, pessoal e colectiva, ao mesmo tempo que afirma a sua própria identidade com artefacto artístico”.

Segundo Ernesto Melo e Castro em resposta a eterna, conflituosa e conflituante questão: O que é poesia?  feita na Casa das Rosas do Centro Cultural de São Paulo, pelo poeta Edson Cruz:

- A poesia corporiza em textos contraditórios ondas energéticas, as que nos atacam e destroem mas também  as construtivas que nós (só nós os poetas) sabemos e podemos transformar, enviando para destinatários universais que as saberão, ou não, descodificar e entender...lá onde quer que se encontre e como quer que entendam  aquilo que esta escrito...

Caracteristica consideravelmente patente no poema a seguir:

A fantasmagoria dos grânulos fluviais inflama AS MANGAS

BIFURCADAS dos salmonetes antropológicos
                             como as asparas das povoações a desembaraçarem 
os circuitos      exaustos  das     estátuas  dos   bandos-insectos-
alienigenas
                         sobre os anzóis  dos equilíbrios  das portarias
mumificadas  que refractam   os veios extensos  das putrescências
das solenidades (...) pag. 374

Creio que a mesma “ fantasmagoria”que Luís Serguilha se refere é a mesma que “inflama” sobre a “antropologia das povoações” que habitaram a cidade de KOA’E degradada e levada abaixo por um vulcão, há aqui uma “arquitectura hieróglifica” que tenta (re)construir ou ressuscitar  a cidade no meio do escombros da “consciência do tempo” que a cada traço apresenta fragmentos 

(...) na musica poderosa dos utensílios-plasmas-dos-lances-fluorescentes
                      como as venialidades das esporas terrestres
                                      sobre os sigilos das tranqueias arbóreas    pag.374 e 375
                                      
A música tocada em KOA’E escuta-se no silêncio dos ouvidos da distância, onde cria um espaço de concordância ( Einverständnis- em alemão) entre a orquestra, o fisico, o matematico, o escritor, o cineasta, e outros, assim sendo “produz-se uma relação de reciprocidade consciente das pessoas (dos leitores-grifo meu) e, ao mesmo tempo, uma relação unitária das mesmas( dos mesmos-grifo meu) a um mundo circundante comum” disse Edmund Husserl. Nota-se a transposição (Übersetzen- em alemão) de sonoridades e ritmos para pinturas com fotos e nomes dos pensadores modernos, traz consigo a “poesia como fim último da humanidade” onde subjaz o retorno da nova “arqueologia do ser e estar” camuflada por um discurso renovado estéticamente pela consciência poético-pensante-totalizante que o passado almeja tê-lo no seu repertório, o presente estranha a gigantesca imagem, a forma como as mãos  de Serguilha (pro)criam o mundo e o futuro será que esta preparado para ver estes “reflexos coloridos”? Para assistir a celebração do “fim da arte” ?  O matrimônio quântico, sentimental, ingênuo entre a teologia, filosofia, artes, música, matemática, quimica e fisica?

Em suma existem  versos, conversas, encontros do pensamento universal em KOA’E tais como estes:

(...) a perspectiva-dos-fragmentos de Godard e as abreviaturas-das-armações-dos-nómadas de Kusturica (...) pag.25

(...) a progressão paciente do ar escoa-se nos despojos da ferida dos teoremas ( de Pasolini e Pitágoras) (...) pag. 35

 (...) as celas dos exílios-de BRECHT-Pavese expandem a direcção profundissima do húmus-gestual(...) pag.73

Importa agora compreender que em KOA’E  estes encontros aqui me referi e o “texto” poema  acima lido mostra de forma clara e objectiva a ideia de “flecha de sentido” na feliz expressão de Pierre-Jean Labarriére “no que esta imagem denota de força e tensão, apontando e devotando o próprio  texto ao tempo”(Isabel Matos Dias, Tradução: palimpsestos e metamorfoses in Heidegger, Linguagem e Tradução, Colóquio Internacional, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002)   que logo no primeiro olhar  ganha este duplo sentido “a produtividade e a intertextualidade” disse Julia Kristeva. Daí que “o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo”(Roland Barthes, o prazer de texto) e torna-se um espaço polivalente e polifónico ( Isabel Matos Dias, op.cit)  onde os polos ( a ciência, a teologia, a filosofia, arte,a literatura ) confluem na tonalidade desta “iluminação profana”( W. Benjamin) e na totalidade desta Einbildungskraft( força de formação em imaginação) tal como pedia Schelling.

A leitura e a visão do mundo em KOA’E transforma toda cadeia de conceitos sobre o estatuto da poesia e do poeta em um mecanismo de conhecimento metafisico ( no contexto Kantiano) e da experiência ontológica ( na visão do Aristoteles) do “objecto estético”.

Afinal qual é o papel do poeta na óptica de Serguilha?

(...) O poeta manifesta a sua origem na cegueira, no desassossego da luz que é projectada na metamorfose polimórfica-vibratória regenerando os ecrâs  da reciprocidade do animal-poema com o movimento da imersão fulgurante como a gênese da recomposição do abismo a centralizar-se na profundidade, na exteriorização da descoberta absoluta do mundo (...) pag 122

(...) A visão-outra do poeta emancipa-se no silêncio, liberta-se no conhecimento caótico, no anticonvencionalismo porque é selvagem, não aceita interpretações ou qualquer tipo de determinações sociais, politicas, religiosas porque a efervescência da sua linfa-linguagem é única e sagrada ao elevar/aprofundar a regeneração/purificação cristina do mundo, sacralizando-a como um mosaico-corpo-não-efêmero, formador de vertiginosos rizomas, de disseminações vulcânicas. (...) pag. 123

Assim em KOA’E  “o poeta é selvagem” e a sua poesia caminha no silêncio da distante (in)consciência poética do tempo e da (in)temporalidade profética do mundo, ele usa uma linguagem ciclica- magnética-digladiadora-destruitiva-construitiva-poderosa-rizómatica, sua “única e sagrada” “atitude para a mensagem enquanto tal”( Roman Jacobson, Linguística e Poética)

E o que é  poesia para Serguilha?

 (...) A poesia reconstitui-se na língua anterior ao conhecimento e esculpe as suas sismologias-tapeçarias no mundo-outro como uma partilha do desassossego, uma sanguinidade do poema-poeta-poesia-liberdade na exploração mutual do enigma, na germinalidade do deserto (...) pag.109

(...) A poesia fortalece a energia transmutadora, a expressão dos ecossistemas da não evidência, da eclipse, a multiplicabilidade das prespectivas que interrogam a busca da unidade perdida.(...) pag. 116

Se para K. Marx “a finalidade dos trabalhadores é de produzir para viver” e qual é/será a finalidade dos poetas?

Para  Luis Serguilha a finalidade dos poetas é de procurar “ a área primordial da metamorfose para se unir ao cântico transmissor  do livro natureza” .pag 109
=====================
Amosse Mucavele nasceu em 1987 em Maputo onde vive, sonha em ser poeta, ensaísta, antologiador, tradutor, cronista, Director do projecto de divulgação Literária Esculpindo a Palvra com a Língua , é chefe da redacção da Revista Literatas-Revista de Literatura moçambicana e lusófona,membro do Conselho Editorial da Revista Mallarmagens-Brasil, membro da academia de Letras de Teófilo Otoni-Minas Gerais, membro da International Writer association (IWA-Ohio-USA) possui textos publicados em diversos jornais do mundo Lusófono, representou Moçambique na 1 Raias Poéticas- Vila Nova de Famalicão-Portugal
Email- amosse1987@yahoo.com.br,                arqueologiadapalavra@gmail.com 

Fonte:
O autor

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Contos do Folclore Brasileiro (A Formiguinha)


 Diz que era um dia que era uma formiguinha, foi comer pela manhã. Quando ela estava comendo, a neve pegou o pé. Ela disse:

 — Neve, tu é tão valente
 Que o meu pé prende?

 A neve disse:

 — Mais valente é o sol
 Que me derrete

 Ela foi à procura do sol:

 — Ó, sol, tu é tão valente
 Que derrete a neve
 Que o meu pé prende?

 O sol disse:

 — Mais valente é a parede
 Que me encobre

 Ela foi para a parede:

 — Ô, parede, tu é tão valente
 Que encobre o sol
 O sol derrete a neve
 E a neve o meu pé prende?

 A parede disse:

 — Mais valente é o rato
 Que me rói

 Ela foi à procura do rato:

 — Ô, rato, tu é tão valente
 Que rói a parede
 A parede encobre o sol
 O sol derrete a neve
 E a neve o meu pé prende?

 O rato disse:

 — Mais valente é o gato
 Que me come

 A formiguinha disse:

 — Ô gato, tu é tão valente
 Que come o rato
 O rato rói a parede
 A parede encobre o sol
 O sol derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 Ele disse:

 — Mais valente é a cobra
 Que me morde

 — Ô, cobra, tu é tão valente
 Que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 — Mais valente é o pau
 Que me mata

 — Ô, pau, tu é tão valente
 Que mata a cobra
 A cobra que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 — Mais valente é o fogo
 Que me queima

 — Ô, fogo, tu é tão valente
 Que queima o pau
 O pau que mata a cobra
 A cobra que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 A neve que o meu pé prende

 — Mais valente é a água
 Que me apaga

 — Ô, água, tu é tão valente
 Que apaga o fogo
 O fogo queima o pau
 O pau que mata a cobra
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 A neve que o meu pé prende?

 — Mais valente é o boi
 Que me bebe

 — Ô, boi, tu é tão valente
 Que bebe a água
 A água apaga o fogo
 O fogo que queima o pau
 O pau que mata a cobra
 A cobra que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 — Mais valente é o homem
 Que me mata

 — Ô, homem, tu é tão valente
 Que mata o boi
 O boi que bebe a água
 A água que apaga o fogo
 O fogo que queima o pau
 O pau que mata a cobra
 A cobra que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 — Mais valente é Deus
 Que me criou

 — Ô, Deus, vós é tão valente
 Que mata o homem
 O homem que mata o boi
 O boi que bebe a água
 A água que apaga o fogo
 O fogo que queima o pau
 O pau que mata a cobra
 A cobra que morde o gato
 O gato que come o rato
 O rato que rói a parede
 A parede que encobre o sol
 O sol que derrete a neve
 E a neve que o meu pé prende?

 Ele disse:

 — Ô xente!... que desaforo você vir aqui...

 Aí Deus pegou, deu um cocorote — pá! — na cabeça da formiguinha... se retorceu toda, quando caiu em baixo... esses formigueiros todos que têm pelo mundo foi gerado dessa formiguinha. 

Fonte:
Jangada Brasil. Setembro 2010. Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário.