segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 35

CAPÍTULO V

A segunda decepção destinada a Branca consistiu no seguinte: Teobaldo, no fim de dois anos de casamento, já não tinha pela esposa o primitivo desvelo, se bem que ela, longe de perder alguma coisa dos seus encantos, ia-se fazendo cada vez mais sedutora.

Não deixou todavia a pobre senhora transparecer o seu ressentimento e, convencida de que havia de reconquistar o marido à força de carinhos, refinou na ternura e na meiguice. Mas em breve compreendeu que de nada aproveitariam tais esforços., porque no espírito egoísta daquele homem a inconstância era talvez a face mais desenvolvida. Foi terrível a sua desilusão, quando deveras se convenceu de que o vaidoso pensava muito mais em si do que nela.

— Agora, dir-se-ia até que ele apenas a estimava como a um precioso objeto de luxo que ao amor-próprio de qualquer desvanecera. Já não era o afeto, nem dedicação, nem respeito, mas simples orgulho de possuir inteira aquela mulher maravilhosa, que todos lhe invejavam sem ânimo de cobiçá-la. Teobaldo gozava muito mais com vê-la resplandecer em meio dos salões, crivada de olhares deslumbrados, do que com tê-la a sós, na intimidade do lar, palpitante de amor nos braços dele.

Branca percebeu tudo isso e começou a sofrer em silêncio; ao passo que o marido, de tão preocupado consigo mesmo e com as suas ambições, não dava sequer pelo estado lastimável em que ela se abismava. Às vezes, durante o almoço, enquanto Teobaldo comia, sem despregar os olhos e a faca do jornal em que vinha alguma coisa a respeito dele, a mísera esposa o fitava longamente, com a cabeça apoiada em uma das mãos, e toda ela enlanguescida e triste, como a planta mimosa que vai fenecendo à míngua de cuidados.

E suspirava.

Ah! Mas Teobaldo já não sabia ouvir estes suspiros e, ao erguer-se da mesa, distraído e apressado pelos seus interesses exteriores, também não sabia adivinhar nos olhos de Branca as lágrimas que tinham de rebentar daí a pouco, logo que ele transpusesse a porta da rua.

Uma ocasião, por volta de um baile em que ela mais do que nunca fez sobressair os seus encantos e as suas graças, o marido tomou-a frouxamente nos braços e pousou-lhe na fronte um beijo, em que já não havia a febre dos outros tempos.

Este beijo desnaturado e frio foi o bastante para fazer transbordar a grande tempestade interior que Branca há tanto e com tamanho custo reprimia. Ela deixou pender a cabeça sobre o colo do marido e abriu em uma explosão de soluços.

Teobaldo surpreendeu-se, sem compreender aquele súbito transbordamento de lágrimas.

— Por que choras, filhinha? Perguntou ele, procurando ameigá-la. A esposa não respondeu, porque o pranto não Iho permitia.

— Vamos! Não chores desse modo!... Se alguma coisa te aflige, dize-me com franqueza o que é.

Ela, sem poder falar, meneava a cabeça negativamente, a esconder o rosto como que envergonhada por se deixar trair, pelos seus soluços.

— Perdoa... disse afinal, não me pude conter. Perdoa.

— Mas qual é o motivo dessas lágrimas?

— Tu bem sabes por que choro.

— Eu?... Juro-te que não sei...

— Oh! Tu me fazes sofrer, Teobaldo!

— Eu?!

— Sim! Já não és o mesmo para mim...

— Ora essa! Acaso terei, sem saber, cometido alguma coisa que te desgostasse?... Já deixei qualquer dia porventura de tratar-te com a mesma delicadeza e com a mesma dedicação que sempre me mereceste?...

— Oh, não! Não me queixo disso! És cada vez mais delicado e mais atencioso para comigo.

— Então?

— Mas é que já não me amas como dantes! Acho-te frio, indiferente aos meus carinhos; posso dizer que me suportas com dificuldade quando insisto em ficar perto de ti.

— Ilusão tua!

— Não, não me iludo! Já não és o mesmo! Dantes querias ter-me ao teu lado, quando trabalhavas horas esquecidas no gabinete; fazias-me ir buscar na estante um livro ou outro de que precisavas para consultá-lo; fazias-me procurar no dicionário o termo que te faltava na ocasião; lias-me sempre o que escrevias, consultavas a minha opinião, discutias comigo, prendias-me enquanto durasse o teu serviço, pagando-me depois a beijos todo o prazer que eu punha em estar contigo. Dantes não tinhas fora de casa uma conversa, vem encontro menos comum, uma impressão qualquer, que não me viesses logo transmiti-los; tudo me contavas; dizias-me todos os passos de tua vida, e eu podia, hora por hora, instante por instante, afinar meu coração pelo teu; e agora já nada me contas do que fazes; já não me reclamas quando vais para a tua mesa de trabalho; já não me passas o braço na cintura e não me levas contigo; já não encontras o que me dizer; já não achas graça em coisa alguma que eu faço; vosso ir para o piano, posso cantar os mesmos romances que dantes estimavas tanto; e nada te comove, e nada te prende, e nada te chama a atenção! Teu pensamento, tua alma, está toda lá fora; aqui só vens para preparar novos elementos de popularidade! Agora ligas mais importância à opinião do primeiro que se te apresenta do que ligas à minha opinião e às minhas palavras!

— Sim, porque tua opinião é suspeita...

— Oh! Não há opinião menos suspeita e mais valiosa do que a da pessoa que amamos sinceramente; pelo menos comigo é assim: nada do que os outros me passam dizer, por mais lisonjeiro que seja, vale o mais insignificante gesto de aprovação que de ti venha. O maior elogio dos estranhos não vale o menor dos teus sorrisos...

— Ah! Decerto, porque o caso muda muito de figura: tu és mulher e és minha esposa; vives pura e exclusivamente para o nosso lar, vives para mim; teu público sou eu, e mais ninguém. A minha opinião deve esconder aos teus olhos todo e qualquer juízo dos estranhos. Desde que eu decida dos teus atos, nada mais tens que ver com o que pensam os outros a respeito deles. Se eu os aprovar ou se eu os reprovar, seja com justiça ou não seja, estão definitivamente aprovados ou reprovados, ninguém mais tem nada que dizer!

— Pois é justamente por isso; justamente porque tu para mim representas o mundo inteiro; justamente porque eu só a ti possuo; porque só com o teu julgamento devo contar, e porque não tenho outro estimulo e por que não tenho outro amor, senão o teu e que com tanto empenho te disputo e tanto me arreceio de perder-te?

Ao terminar estas palavras, Branca deixou de novo transbordar, desfeito em lágrimas o seu ressentimento, mas Teobaldo, por melhores esforços que empregasse, já não conseguia arrancar de si uma única centelha do extinto amor, que dantes lhe inspirava a esposa.

Todo o seu entusiasmo consumia-se no pedestal da sua própria imagem, gastava-se a seus pés, naquela eterna adoração de si mesmo. E no entanto, os suspiros de Branca, que ele já não sabia ouvir, e as lágrimas, que ele não sabia evitar, foram pressentidas e abençoadas de longe por alguém.
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continua…

domingo, 8 de setembro de 2013

Luiz Otávio (Oração do Poeta)



Fonte:
RAMOS, Carolina. Príncipe da Trova. SP: EditorAção, out 1999. Capa final.

Poema e rosto de Luiz Otávio sobre pintura "O Poeta", de Manoel Castro

Concurso Nacional Intersedes de Trovas (Resultado Final)


A Diretoria da UBT-Curitiba tem a satisfação de informar o resultado do Concurso Nacional Intersedes 2013.

Comunicamos que a Seção BELO HORIZONTE, será a responsável pela realização do INTERSEDES 2014, haja vista que foi classificado no concurso 2013, em primeiro lugar, associado daquela Seção.


Tema: TÚNEL

1º Lugar:
Merece subir ao pódio
o glorioso vencedor
que destrói barreiras de ódio
e constrói túneis de amor.
Wanda de Paula Mourthé
- UBT- Belo Horizonte

2º Lugar
Em meio ao bélico impasse,
na escuridão de horas más,
que bom se o homem pensasse
quão branco é o túnel da paz!
Maria Helena Oliveira Costa
– UBT-Ponta Grossa

3º Lugar

Quando o trem da vida alcança
o túnel da meia idade,
nas sombras da tarde mansa
surge o perfil da saudade.
Adilson Maia
– UBT-Niterói

MENÇÕES HONROSAS

(ordem alfabética – as 03 trovas obtiveram a mesma pontuação).

Entre ilusões e esperanças,
meu amor sobreviveu
nesse túnel de lembranças
que liga meu mundo ao teu.
Almira Guaracy Rebelo
– UBT- Belo Horizonte


A vida é um túnel estreito
que à eternidade conduz.
- Só o amor nos dá o direito
ao desembarque na Luz.
Antônio Augusto de Assis
– UBT- Maringá.


Ah, coração, toma jeito!...
Calma, em tuas investidas...
ou te enclausuro, em meu peito,
em um túnel... sem saídas.
Therezinha Dieguez Brisolla
– UBT-São Paulo

MENÇÃO ESPECIAL
(ordem alfabética – as 02 trovas obtiveram a mesma pontuação).

Crista erguida, se avoluma
e, prestes a se espraiar,
vem a prancha e rasga a espuma
do túnel feito de mar...
Darly O. Barros
– UBT-São Paulo


Quando me sinto estressado,
fugindo da realidade,
vou do presente ao passado
pelo túnel da saudade.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
– UBT- Juiz de Fora.


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Resultado do Concurso Paralelo - Somente para participantes da UBT-Curitiba.

Tema: Refúgio

1º Lugar


Um refúgio hás de encontrar,
mesmo em meio a vilania,
se souberes cultivar
a semente da harmonia.
Eliane Queiróz Gabardo

2º Lugar


Um cantinho onde o combate
é travado na poltrona
é o refúgio para um vate
que num livro se abandona.
Mário A.J. Zamataro

3º Lugar

Foram refúgio de sonhos
as tuas cartas de amor;
hoje, traços enfadonhos
que só causam muita dor.
Maurício Norberto Friedrich

MENÇÃO HONROSA


O refúgio que eu habito
para mim é tão sagrado:
é minha alma, eu acredito,
o meu lar ensolarado.
Paulo Roberto Walbach Prestes

MENÇÃO ESPECIAL


Pra minha Fé não existe
nem o menor subterfúgio.
Estando eu alegre ou triste
tenho Deus por meu refúgio.
Roza de Oliveira
A premiação será entregue aos classificados no dia 24 de novembro de 2014, durante o almoço de final de ano da UBT-Curitiba, detalhes do evento serão divulgados nos próximos dias. Lembramos que a participação no mesmo é por adesão e que a UBT - Curitiba não se responsabilizará por nenhuma despesa realizada pelo classificado para participar do mesmo, conforme regulamento do certame.
Abraços,
Andréa Motta
UBT-Curitiba.

Fonte:
UBT-Curitiba

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) V

foi mantida a grafia original.
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AS VÍTIMAS

Eu vejo muita vez e raro já me assombro
— minha alma tanto afiz às tristes comoções! -
Na rua, junto a mim, passar ombro com ombro
No trânsito penoso as longas procissões,

De vítimas da sorte e vítimas do mundo!
Umas boas, gentis, outras feias, cruéis,
Envoltas num sudário ou num burel imundo;
Nas pompas teatrais, nas galas dos bordéis,

Não são filhas do sonho ou criações quiméricas
Da mente alucinada, ou vagos ideais;
São magros peitos nus, são faces cadavéricas,
São as tristes, as vis desolações carnais.

São pequenos sem pão que vão pedindo esmola
Nas lamas encharcando os regelados pés:
Que dormem nos portais, que nunca vão à escola
— flores que enfeitarão a noite das galés!

São aquelas gentis e pobres costureiras
De peito comprimido; anémica expressão;
Que passam a tossir, cansadas, com olheiras,
Ganhando em todo o dia apenas um tostão,

Curvadas a coser o lânguido veludo,
O irritante cetim dos grandes enxovais,
Das princesas do Banco, herdeiras disto tudo;
Depois indo morrer nos tristes hospitais!

São os pobres heróis que os seus irmãos combatem;
Que morrem sob o peso enorme dos canhões,
E o cortejo de mães pedindo aos reis que as matem
E os reis fazendo rir das suas maldições!

São da lúgubre noite umas flores sem nome
Batidas muito já dos grandes vendavais,
Que, porque sentem frio ou porque sentem fome,
Derramam pelo seio aromas triviais

E fingem depois ser aparições divinas,
Erguendo um pouco a saia, a fímbria sensual,
Abrindo um vil leilão de beijos, nas esquinas,
Aos apetites vis da multidão brutal!

São mineiros sem luz; são velhos britadores,
Que o contacto da pedra um dia endureceu,
Queimados pelo sol, gelados nos horrores
Do túmulo cruel que em vida os recebeu!

São aqueles heróis, enfim, dos grandes sonhos,
Que sentiram na terra as vastas corrupções
E às turbas apontando uns mundos mais risonhos
Tentaram espedaçar os últimos grilhões

E que passam também um tanto contristados,
Talvez cheios de tédio, ao verem que hoje, nós,
Os deixamos seguir ainda apedrejados
Não raro desprezando a sua augusta voz!

E a grande multidão de mártires sublimes,
De tristes seminus, constante a caminhar,
Aos céus erguendo as mãos, queixando-se dos crimes
Dos déspotas que aos pés não cessam de os calcar!

A fila tenebrosa, a procissão de vítimas,
Aumenta mais e mais; não deixa de crescer!
E do estigma cruel das penas mais legítimas
Em muita fronte bela um traço podeis ver!

Caminhe muito embora: a sorte é sempre vária
E a turba sofredora, ó grandes bem sabeis,
Podia dividir a túnica cesárea
Lançando aos que estão nus a púrpura dos reis!

EVOCAÇÃO

Levanta-te Romeu do túmulo em que dormes
E vem sorrir de novo à boa, à eterna luz!
De noite, ouço dizer que há sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!

Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto: — assim, que bem que estás!
Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruído
Nas horas vis do tédio e das insónias más.

O mundo transformou-se; aquele fundo abismo
Do antigo amor fatal, fechou-se duma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prosaísmo
No berço onde sonhava a doce candidez!

No entanto podes crer; faz muito menos frio
À luz do novo sol; do gás provocador;
E o século apesar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cântico sombrio
Que fala de ideais e cousas sem valor!

Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos céus ainda por ti levanta as brancas mãos;
E enquanto por mim corre a tétrica ampulheta,
Da musa alegre e vil da torpe cançoneta
Saudemos a nudez a par dos bons pagãos!

Nas praças, tu bem vês; a turba prazenteira
Inunda-se na luz de mil constelações!
E os arcanjos da rua assomam na poeira
Que exala o macadame, trazendo em cada olheira
O astro criador das grandes sensações!

E quando a cotovia à estrela matutina
Mandar a saudação. Lá fora, em pleno céu,
Romeu tu beijarás, que é tua eterna sina,
A trança da beleza anémica e franzina
Que entre os fumos da festa, a amar, adormeceu!

Boas noites coveiro: a tua enxada
Não cessa há tanto tempo de cavar?!
Cavaleiro da morte, ó fronte desolada,
Não sentes a mão trémula e cansada
De tanto trabalhar!

Tu esperas hoje as legiões sombrias
De mortos, que eu suponho ao longe ver?
Os felizes caídos nas orgias
E os tristes que além todos os dias
O gelo vem colher?!

Que imensa vala aberta! São medonhos
Os risos dessa boca infame, alvar!...
Descansa dos teus dias enfadonhos!
— Eu cavo a sepultura dos teus sonhos
Não posso descansar!

Fonte:
http://luso-livros.net/

Isabel Pakes (Poesias Avulsas) II

Pintura de Francisco Javier Rodriguez (O Poeta)
Às candeias do amanhã

Ausente do meu toque, feito um anjo ou feito um bruxo,
me olhas do alto da lua, me beijas através da brisa
e nas rosas que admiras me mandas lembranças tuas.
Pareces estar vibrando em tudo quanto me envolve,
até nos livros que leio, como se teus mensageiros,
contam-me histórias de amor iguais à tua e a minha.

E isso não te bastando, interceptas meus pensamentos,
seduzes meus argumentos e, de pronto,
te colocas porta adentro dos meus sonhos.
De tal forma te embrenhas em minha mente
que não há como fugir dos teus enleios e nem tenho eu por quê.
Se às vezes me exasperas pelo ontem que adiaste,
outras vezes me comoves, muito, profundamente,
quando feito a canção que mais gosto,
vens, manso e cativo, aninhar-te no meu peito.

Alheio ao tempo e à distância
por onde vou me alcanças trespassando dimensões,
alongando os teus sentidos aos menores dos meus gestos,
guardando-me em calmaria, às candeias do amanhã,
em noite de turbilhão.

Se és um anjo ou um bruxo, não sei.
Se me guardas ou me enfeitiças, não sei.
Talvez em mim só preserves o alento em cuja sombra repousas.
Mas estás aí, é o que importa!
Estás aí e me ouves devotado
e sem que te apercebas, minha alma embevecida
por um breve instante me escapa para abraçar-se à tua.

Anjos na Terra

Eu sei de um anjo. Eu sei de muitos anjos!
Não desses de belas faces e olhares plácidos
que povoam as páginas dos livros sacros
e as abóbadas das catedrais. Não desses.
Anjos de verdade, que posso tocar e sentir.
Anjos que, corporeamente, me livram do mal
da vaidade, do orgulho, da ambição...
Que me dizem do quanto sou feliz
com o que tenho e o que sou.
Anjos que trazem as asas atadas
e caminham a passos lentos e difíceis,
pelas barrancas que ladeiam o caminho por que vou,
a fim de que eu possa passar livremente e sem demoras.
E que se mostram a mim, sem reservas,
para que eu possa me pensar e dizer:- Obrigada, Deus,
por me conceder os meios com que exercitar o amor.
Anjos. Anjos do Senhor, na terra.

Estes anjos que sei,
trazem o céu dentro de si.
Às vezes, são como crianças grandes,
mas sempre puros como os pequeninos.
Jamais se abrem às ilusões do mundo.
Não vivem senão à vontade do Pai.

E pensar que, um dia, eu me julguei perfeita...
Eu! Que sempre fui tão vulnerável às tentações
e preciso deles como escoras
para suster minha pretensa evolução.

Estes anjos de que falo, existem por aí,
em todas as partes do planeta
e para reconhecê-los nem preciso aguçar minha visão.
São tão evidentes e tanto se parecem
nos rostos, nos gestos, na autenticidade do carinho,
no jeito excepcional de amar!
A quem de coração de entender, ou não.

Amor, substantivo concreto

Você é o amor feito criança!
Amor substantivo concreto
que tomo nos braços,
afago, aperto...

Quando olho pra você
esqueço-me em sua serenidade
sentindo-me alongar
no estado do meu ser.

E deixo-me ficar assim, agigantada!
Abandonada à sua angelical figura.
É tão doce esta paz de que me inundo
que me custa acreditar que o céu
é além divisas deste mundo.

É quando minha alma transparece
e minha voz te adormece
feito canção de ninar.

Sobras de amor

Há sobras de amor
rolando pelos cantos das casas inférteis
enquanto crianças, órfãos de afeto,
se abortam pelas sarjetas.

Não, isto não é poesia,
apenas um pensamento,
um desconforto da alma
num ter que viver terreno.
Igual quando vejo laranjas
apodrecendo nas árvores,
enquanto um espantalho mesquinho
afugenta os sanhaços.

Cerquilho - Cidade menina

Quando passeio meus olhos por tuas ruas e praças
tuas rosas me saúdam e fico orgulhosa de ti!
Lembro-me de que nasceste de um humilde vilarejo
onde abrigavas tropeiros que na calidez do teu colo
descansavam seus quebrantos...

Lembro-me dos estrangeiros, audaciosos lavradores
chegados na Estação, trazendo de além-mar
nada mais que garra e força, nada mais que amor e fé
e tuas terras verdejaram, vestindo-as de cafezais!

Lembro-me dos saber adentrando tuas portas;
tua primeira professora, teus primeiros aprendizes,
teu burburinho infantil no velho grupo escolar!

Lembro-me do teu grito quando a dor te estilhaçou,
do teu pranto, do teu luto, das tuas flores soterradas...
E de como renasceste, como a hera entre as ruínas,
tímida, assustada, mas ansiosa por viver!

Quantas lágrimas te banharam! Quanto suor te regou!
Mãos de aço, incansáveis, te soergueram das cinzas
e te fizeram mais forte, mais vigorosa ainda!

Lembro-me de como cresceste vitoriosa!
Do verde-cana mesclando-se ao verde-cor do café...
Das tuas indústrias ativando suas rodas
para nunca mais parar.

Lembro-me dos teus filhos, trabalhadores devotos
que honram teu padroeiro, teu amado São José!
Dos teus filhos cujos braços sempre abertos
acolhem quem te procura buscando o teu amparo
e cujas mãos se entrelaçam, unificados na prece,
entoando louvor e glória à providência dos céus!

Lembro-me da tua bandeira que baila com a brisa,
toda vaidosa ostentando os frutos do teu trabalho,
margeando de azul anil as páginas da tua história!
Ah... Minha cidade menina!

Tão robusta, mas menina. Radiante, graciosa!
Exalas essência de rosas e provocas dentro em mim
algo que não explico, porque não sei definir.
Só sei que estou orgulhosa, muito orgulhosa de ti!

Cerquilho - Cidade menina II

Remodelam a cidade.
Derrubam-se as minhas saudades-
- lugares meus da infância, da mocidade...
Santuários onde algum dia,
cheia de fé, rezando as minhas esperanças,
fiei quimeras e amoldei meu íntimo,
(entulhos agora) demovem-se do tempo,
desaparecem...

Fico triste. Choro...
Porém, num processo mágico,
talvez por maternal instinto,
as lágrimas que verto converto em seiva
para vitalizar meus novos ideais.

E a cidade se afigura sorridente!
Assume ares diferentes
qual menina adolescente preocupada em se enfeitar.
Diante dos meus olhos cada vez se faz mais bela
e, vaidosa, sempre cheirando à rosas,
ainda mais me envolve, ainda mais me seduz!
E mais ainda me induz
a me orgulhar sempre dela!

Minha eternidade

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me romper-te
como o sol rompe a noite.
Eu quero afugentar os teus temores,
teus pesares, tuas dores...
Eu quero iluminar-te em larga aurora
num eterno amanhecer!
Quero-te claro como o dia,
sem segredos, inteiro!
Quero-te na plenitude do teu ser.

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me lançar-me em tua vida
como uma aeronave no espaço etéreo.
Eu quero desvendar os teus mistérios,
descobrir-te como um novo mundo
e exilar-me em ti, confiar-me a ti,
compor contigo uma unidade,
esquecer-me em teu amor
como se fosse a minha eternidade!

É preciso

É preciso, antes do replante, revolver a terra;
retalhar raízes que, irreverentes, se torceram,
se tramaram... perderam-se das origens;
demover as ervas que, daninhas, se embrenharam nos trigais.

Que a seiva retorne ao seio.
Que vicejem as espigas
e se multiplique o pão!

É preciso alentar a terra;
lancetar as chagas, remover as pedras, dar vazão às lavas...
Dissolver as nuvens, destilar as águas, saciar-lhe a sede.
Que se refrigere!

Que essa febre cesse,
essa dor se aquiete,
que se cicatrize!

É preciso temperar a terra,
afastar as sombras, dar passagem à luz
que se lhe adentre no cansado ventre
e o restabeleça do desconforto da nossa inconsequência.
Que outra vez fecundo possa germinar a paz!

Sobretudo, é preciso cultivar a fé e preservar virtudes,
até que, preparada a seara, venha o lavrador
selecionar as mudas.

Bom tempo

Acendi o sol dentro de mim
hoje de manhãzinha,
depois da chuva que passou
e levou os meus entulhos
com as folhas mortas,
na enxurrada.

Revivescência

 Deixa refluir o vento...
Depois, quando no limiar da hora
for se desintegrando a noite
aos primeiros raios da esperada aurora,
há de a tempestade amainar-se
e se fazer bom tempo!

E há de brilhar o sol
como se, do eterno, na manhã primaz!

E soprará a brisa,
renascerão as flores,
revoarão os pássaros...
Toda a natureza se pontuará de luz!

E na memória,
nada a se lembrar do que foi mal passado,
nenhum resquício.
Porque aos ares da bonança
profundamente se alteram
as sementes dos abrolhos.

Tudo será novo,
como no despertar do sétimo dia!

E haverá calma e doçura...
a quem de boa vontade.

Fontes:
Portal CEN http://www.caestamosnos.org/
Blog da Autora. http://belpakes.blogspot.com/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 34

CAPÍTULO IV

Depois desta cena, Branca fazia o possível por familiarizar-se com o Coruja. Procurava pô-lo à vontade, converte-lo em uma espécie de parente velho, rompia com ele sem cerimonias que não usava para com mais ninguém, e para as quais, força é confessar, não lhe sobrava jeito, pois que ela já por temperamento, como por educação, era uma dessas criaturas frias e reservadas, cujos sentimentos nunca se deixam trair na fisionomia ou nas palavras.

Mme. de Nangis, como toda a mãe adotiva, transmitira-lhe as suas maneiras, o seu gosto, o seu estilo, mas não lhe tocara na alma, porque esta só a própria mãe sabe educar.

Felizmente a alma de Branca era boa por natureza, e, se não se aperfeiçoou por falta de educação, também não se corrompeu com a moral da professora. André ficou extremamente surpreso quando notou que a encantadora senhora era para com ele muito mais dada e expansiva do que com qualquer dos outros amigos do esposo. E foi aos poucos se habituando a vê-la e a falar-lhe sem ficar constrangido, até sentindo já por fim um certo gosto quando a tinha a seu lado, tão tranqüila, tão feliz e tão distinta.

Ela, muita vez, ao vê-lo triste e apoquentado da vida, chamava-o para junto de si e procurava animá-lo com boas palavras de interesse. Dizia-lhe por exemplo:

— Então, meu amigo, que ar terrível tem hoje o senhor... Veja se consegue enxotar os seus diabinhos azuis e leia-me alguma coisa. Olhe! Dê-me notícias de sua obra, diga-me como vai a sua querida história do Brasil... Terminou afinal aquele episódio dos guararapes, que tanto o preocupava? Vamos! Converse!

Coruja sorria, muito lisonjeado por debaixo da sua crosta de elefante, mas remancheava para não mostrar o que escrevera.

— Ora... Aquilo era um trabalho tão frio, tão desengraçado, que não podia interessar o espírito de uma senhora.

Contudo, se Branca insistia, ele acabava por ir buscar os seus caderninhos de apontamentos históricos e lia-lhe em voz alta aquilo que dentre eles se lhe afigurava menos insuportável.

Eram fatos colhidos por aqui e por ali, em serões da Biblioteca Nacional, escritos num estilo compacto, muito puro, mas sem belezas de colorido nem cintilações de talento. O que lhe falecia em arte e gosto literário sobrava-lhe não obstante em fidelidade e exatidão; as suas crônicas eram de uma frieza de estatística, mas sumamente desapaixonadas, simples e conscienciosas. Entre aquela infinidade de páginas, abarrotadas de letrinha miúda e muito igual, não havia um só adjetivo de luxo ou uma frase que não fosse de primeira necessidade.

Teobaldo gostava de fazer pilhéria com os alfarrábios do amigo; mas, passando a falar sério, citava-os com respeito, se bem que deles não conhecesse uma linha ao menos.

— Obra de fôlego! Dizia, engrossando a voz; e afirmava que no meio de toda aquela papelada havia coisas magníficas.

Quando Branca estava aborrecida, durante pequenas viagens comerciais do marido, André, em lugar da enfadonha historia, lia-lhe alguns dos seus poetas mais prezados, clássicos na maior parte, entre os quais se destacavam Camões e Garrett, por quem ele sentia verdadeiro fanatismo. Outras vezes tomava da flauta e punha-se a tocar para a distrair; quase nunca, porém, o conseguia, porque o desgraçado tocava mal e sem inspiração.

Para ser agradável a Branca, para entreter, ele estava sempre disposto a tudo, menos a apresentar-se na sala de Teobaldo em noites de recepção ou acompanhá-los ao lírico. Adorava a boa música, mas não podia ajeitar-se com o frenético burburinho das platéias e a nervosa vivacidade dos saraus. Quando lhe dava na cabeça para ver uma ópera, o que era raríssimo, comprava um bilhete de torrinha e metia-se lá em cima, muito só, muito escondido de todos e pedindo a Deus que ninguém o notasse.

Entretanto o que Branca sentia por ele era menos estima do que uma certa espécie de condolência, que todo o coração feliz e farto costuma voltar aos desfalecidos da fortuna. E, se por vezes brilhava nas suas palavras ou nos seus gestos qualquer centelha de afeição, seria talvez alguma gota escapada do grande transbordamento do seu amor pelo marido; Coruja, por muito ligado a este, participava do luminoso eflúvio.

Tanto assim que, entre todas as relações de Teobaldo, antigas ou recentes, era essa a única que merecia da formosa criatura semelhante distinção; as outras, nem isso tinham.

O velho Hipólito e mais a mulher causavam-lhe tédio; ele com a sua eterna mania de criticar a Deus e a todo o mundo, com sua avareza mal disfarçada e com a sua proa de ricaço; &a com aquele gênio de querer governar sempre e dirigir a vida das pessoas com quem se dava e querer impor a sua opinião a propósito de tudo. Quanto ao Sampaio, esse felizmente poucas vezes aparecia e outro rastro não deixava de sua passagem além de meia dúzia de banalidades e algumas pontas de cigarro lançadas fora do cinzeiro. Era porco.

Depois do Coruja, o mais freqüentador da casa era o Afonso de Aguiar. Apresentava-se regularmente nos dias de recepção e surgia uma vez por outra à hora do jantar, sem ser esperado. A sua atitude ao lado da mulher do amigo, na aparência, a melhor e mais correta que se poderia desejar: chegava com o seu passinho miúdo, um sorriso de bom rapaz à superfície dos lábios, e ia logo apertar-lhe a mão com todo o respeito, perguntando-lhe cheio de doçura "como passava a sua querida prima e em seguida ia ter com Teobaldo e punha-se, até à ocasião de sair, a conversar com este sobre negócios e um pouco sobre política. Estas conversas tanto e tanto se repetiram e foram por tal forma tomando um caráter expansivo e intimo, que Teobaldo, contra todo o seu sistema de atração, já de último lhe confiava algumas particularidades da sua vida comercial. O outro, cuja posição na praça era bastante próspera e secura, animava-o com palavras de amigo e prometia estar sempre ao lado dele e ao seu dispor, quando por acaso Teobaldo encontrasse alguma séria dificuldade na sua carreira. Independente disso parecia admirar-lhe por tal modo o tino e o talento, que ao lado dele se fora aos poucos convertendo em um desses louvaminheiros constantes, que em geral acompanham os homens excepcionais, e para os quais reservam estes uma certa proteção amistosa, cheia de apreço e reconhecimento, mas com quem, no fundo, são de uma indiferença à toda a prova.

Como todo homem egoísta e vaidoso, Teobaldo gostava de ouvir elogios, viessem esses de quem quer que fosse, e o finório do Aguiar, compreendendo isso mesmo, não perdia ocasião de lhe queimar incenso defronte do nariz. Tudo, por mais simples, que fazia o marido de Branca, representava para o velhaco novos pretextos de entusiasmo. Um discurso à sobremesa ou em alguma outra reunião, um parecer em qualquer questão comercial, um artigo na imprensa, tudo era motivo de louvor e pasmo.

— Não há outro! Exclamava o primo de Branca. Não há um segundo Teobaldo! O ladrão reúne em si todas as qualidades que se podem desejar em um homem! Maneiras, talento, caráter, figura, tudo o que há de bom, de belo e de grandioso! E demais um verdadeiro fidalgo: ninguém como ele para saber cativar a quem quer que seja; para cada pessoa tem sempre um assunto especial que a interessa particularmente, que a prende. Se está defronte de um ministro, só conversa em política e, ouvindo-o, ninguém acreditaria que ele durante toda a sua vida, tivesse outra preocupação além da política; se fala a um homem de ciência, faz logo pasmar a todos com a sua despretensiosa erudição; se a pessoa com quem ele conversa é um artista, um músico, um poeta, um pintor ou um ator, então a sua palavra privilegiada chega a causar delírios de entusiasmo: as idéias, as frases, as belas imagens literárias, saem-lhe da boca em borbotão. E note-se que tão facilmente discorre pela arte moderna, como remonta à de três séculos atrás; tão à vontade se acha falando sobre os pintores da renascença, como falando da escultura pagã, como do teatro grego ou da poesia hebraica. Seu milagroso talento, sem fazer especialidade de coisa alguma, abrangeu tudo e de tudo se apoderou.

Nada do que existe no orbe intelectual escapou à sua grande faculdade de apanhar de um salto aquilo que os outros levam muitos anos para conquistar. Com a mesma facilidade com que compõe uma valsa, escreve uma poema, desenha uma paisagem, faz um discurso, escreve uno artigo político, engendra um folhetim de crítica, canta uma parte de barítono, sustenta a conversação de uma sala, dirige um cotilhão, inventa um feitio de chapéu para senhora, um prato esquisito para o jantar e tão pronto está para fazer uma lista dos melhores vinhos do mundo, como para fazer a classificação de todos os sistemas filosóficos até hoje conhecidos.

Teobaldo, com efeito, era um desses espíritos que tanto tem de inconstantes e fracas para aprofundar e conservar qualquer coisa, como de prontos e fortes para assimilar o que passa defronte deles com a carreira mais vertiginosa. Tudo conseguia apanhar em um lapso instantâneo, mas não conseguia estudar seriamente qualquer coisa; conhecia tudo e nada conhecia ao mesmo tempo, porque tudo percorrera de passagem; era enfim um homem superficial, um habilidoso, incapaz de qualquer trabalho de fôlego ou de qualquer concepção verdadeiramente individual, mas como ninguém apto para imitar em um relance tudo aquilo que os outros, os especialistas, conceberam e aperfeiçoaram durante uma existência inteira.

Por várias vezes representara em teatrinhos particulares e tão bem copiava o ator que ele escolhia para modelo, que chegaram a julgá-lo um gênio na arte dramática; quando pela primeira vez apareceu na corte o introdutor da copofonia, Teobaldo arranjou logo uma dúzia de copos de cristal, afinou-os e, tanto fez que, no fim de alguns dias já tocava, não com a perfeição do outro, mas enfim tocava, e isso era o bastante para satisfazer a sua fantasia. Depois de ver o Hermann, entregou-se durante três meses à mania da prestidigitação e conseguiu fazer maravilhas nessa especialidade; vendo um célebre jogador de bilhar, que em certa época se andava mostrando ao público do Rio de Janeiro, quis competir com ele e conseguiu fazer trezentas carambolas de uma tacada.

Para estas passageiras manifestações de habilidade, incontestavelmente era como ninguém. Entendia um pouco de tudo; sabia tirar retratos fotográficos, jogar todos jogos de cartas e mais os de exercício, contando a esgrima, o tiro ao alvo, a péla, a bengala, o bilboquê; e cada novidade que surgia, fazendo impressão no público, encontrava nele o maior e também o menos constante dos entusiastas. Assim, durante algum tempo, só o ouviram falar em magnetismo, e parecia resolvido a não pensar em outra coisa, daí em diante; depois veio o espiritismo, e Teobaldo durante outro período foi o mais fervoroso discípulo de Allan Kardec; depois passou a dedicar-se à astronomia; depois à maçonaria e, entre os vinte e os trinta anos, pertenceu sucessivamente àquilo que mais estivesse em moda. Foi materialista com Buckner; foi ateu com Renan; socialista com Saint-Beuve; evolucinista com Spencer; psicólogo com Bain; positivista com Littré e Augusto Comte; mas nenhum deles conseguiu estudar a sério; entusiasmava-se momentaneamente e de cada filósofo conhecia apenas os livros mais espetaculosos, mais vulgares, sem nunca entrar pela obra profunda dos sábios. De Buckner, por exemplo, conhecia tão somente Força e Matéria, de Renan a Vida de Jesus, de Jacolliot a Bíblia na Índia, e assim por diante; notando-se que de muitas obras conseguia ler apenas uma pequena parte, ou alguma notícia crítica, ou qualquer citação, ou um simples a-propósito.

No entanto falava de todas elas, nomeando autores modernos e antigos, discutindo-os, atribuindo-lhes até pensamentos e frases que jamais lhes pertenceram, chegando a sua temeridade ao ponto de citar em falso ou de orelha as mais respeitáveis autoridades, para justificar o que ele na ocasião negava ou afirmava. Esta prodigiosa faculdade de tudo assimilar sem nada digerir era tamanha em Teobaldo que muita vez discutindo com o Coruja, ele apanhava no ar os argumentos deste e apresentava-lhes em defesa própria, já transformados e desenvolvidos. E o mais curioso é que, posto André estivesse senhor da matéria em discussão e arrazoasse-la conscienciosamente, citando autores que o outro desconhecia, era sempre levado à parede e tinha de render-se, porque o contendor com sua afoita verbosidade lhe arrebatava todas as armas.

Seu espírito, de uma agilidade acrobática, saltava de um ponto a outro, fazendo as mais difíceis cabriolas; tão depressa Teobaldo se sentia mal seguro em um terreno, puxava logo a conversa para o lado oposto, sem que aliás ninguém desse por isso, tão presos ficavam todos à sonora corrente de suas palavras. E, sempre irrequieto, sempre em constante fermentação, aquele sutil e maleável espírito a tudo se amoldava, em tudo se informava, torcendo, singrando e penetrando por caminhos da ciência inteiramente desconhecidos para ele. E às vezes, sem conhecer de certos autores mais do que o nome, citava-os de todas as nacionalidades, de todas as classes e de todas as épocas.

Os ignorantes, ouvindo-o, comiam-no por sábio; um sábio se o ouvisse, havia de julgá-lo um louco. Afonso de Aguiar não o considerava nenhuma dessas coisas; mas bem lhe conhecia a parte vulnerável do caráter — A vaidade e, por ai contava invadir-lhe o coração e apoderar-se dele. E, no empenho de conquistar a confiança de Teobaldo, já por fim tanto lhe glorificava os dotes intelectuais e as simpáticas exterioridades de sua pessoa, como ainda lhe gabava as qualidades morais.

— Que coração! Segredava ele a todo aquele que pudesse levar suas palavras ao marido de Branca. Que coração de ouro! É capaz de despir a camisa para socorrer a um pobre! Da esmolas, sem contar o dinheiro e, dantes, quando não tinha para dar, sofria mais do que o próprio necessitado. Em solteiro, muita vez empenhou o relógio só para servir a algum amigo; muita vez teve de pedir emprestado dinheiro, que não era para ele; muita vez pagou dívidas, que não eram suas!

E o Aguiar, abaixando a voz, acrescentava quase sempre:

— E sem precisar ir muito longe, aí está o fato do Coruja…

— Que Coruja? Perguntavam.

— Ora! Aquele rapaz que ele tem em casa, um pobre diabo, sem eira nem beira, um tipo esquisitório, que teria levado o diabo, se não fosse ele!

Então passava a contar uma história a respeito do Coruja, e, sempre engrandecendo as qualidades do outro, resumia:

— Pois é como digo! E note-se que ele faz tudo isso somente porque o tal sujeito foi seu companheiro de colégio!

Esta calculada e constante glorificação de Teobaldo, feita pelo suposto amigo, foi afinal encontrando eco nos grupos em que ela caía, e o festejado esposo de Branca viu surgir aos poucos em torno de seu nome uma grande reputação de homem ilustrado, de homem de talento e de homem generoso. Isto, ligado à sua fama de rico, era tudo quanto ele desejava. E mais: todas as vezes em que Teobaldo ouvia elogiar o seu procedimento para com o Coruja e tentava provar que o não merecia, tanto mais se assanhavam os propagadores de sua fama e tanto mais o fato era engrandecido e apregoado.

Um deles exclamou cheio de entusiasmo:

— Além de tudo é modesto! Que homem! Nega a pé junto a esmola que faz como qualquer negaria um obséquio recebido que o humilhasse!

Branca, porém, revoltava-se com tamanha injustiça feita ao melhor amigo do seu Teobaldo. Este, pensava ela, tem de sobra com que merecer elogios e não precisa enfeitar-se com as penas que lhe não pertencem!

Sofreu, pois, uma enorme decepção, quando, falando a esse respeito ao esposo e dizendo que achava indispensável esclarecer bem aquele ponto aos olhos de todos, lhe ouviu declarar frouxamente:

— Não sei, minha flor, não acho muito prudente agitar essa questão mais do que já está... Com semelhante resolução talvez apenas conseguíssemos chamar sobre mim algum ridículo...E bem sabes que um homem na posição em que me acho deve temer o ridículo sobre todas as coisas!.

Branca não opôs uma palavra às do marido, mas intimamente sentiu estremecer, posto que de leve, o entusiasmo pelo seu ídolo, pelo seu amado, pelo seu esposo, pelo seu Deus: entusiasmo que ela até aí mantinha sereno e inalterável como uma estátua de ouro.

Foi o primeiro ponto escuro que descobriu no astro, e procurou logo enganar a vista, fazendo por convencer-se de que "aquilo" não passava de "uma venial fraqueza".

Ah! Mas a primeira mancha nunca vem só, e Branca tinha de sofrer ainda outras decepções mais amargas e mais difíceis de esquecer!

Todavia, uma vez ao lado do Coruja, não se pode dominar e falou-lhe abertamente sobre o fato.

Ah!... Respondeu o professor sem se alterar; eu já sabia... Fui até já várias vezes interrogado sobre isso…

— Como? Pois já chegaram a lhe falar?

— Sim, alguns amigos de Teobaldo.

— E o senhor explicou tudo, não é verdade?

— Não, não valia a pena... Que mal pode haver em que suponham semelhante coisa? Muito mais quando isso tem o seu fundo de verdade!...

— De verdade? Pois o senhor quer me convencer também a mim de que Teobaldo é quem lhe fornece os meios de subsistência?

— Ora, se os não fornece agora, já o fez por muito tempo, e quem sabe se não virei ainda a precisar disso?...

Branca, defronte destas palavras, ficou ainda mais surpresa de que quando ouviu as próprias do marido. Ela sabia já que o Coruja era um singular exemplo de abnegação e de boa-fé, mas nunca o julgou capaz de tanto.

E seu espírito, ainda puro, religioso e casto, principiou instintivamente a voltar-se mais e mais para aquela figura feia, resignada e melancólica, aquele pobre diabo carcomido pelo trabalho e pelo sacrifício, que todos repeliam, e para o qual ninguém sabia ter uma única palavra de amor e consolação.
––––––––
continua…

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Mensagens em Imagens n.4 - Antoine Saint-Exupery


Caldeirão Poético de Tocantins

FRANCISCO PERNA FILHO
Miracema do Norte/TO


VISGO

As pernas daquela moça eram longe
e distantes de tudo;
Longínquas
e humildes.
As pernas dela
souberam dos meus olhos,
ignoraram distâncias.
Fechamos a porta.

ESTADO

Embora presa,
a água borbulha solta na chaleira
efervescente.
É de fora
a sua natureza líquida.
Não há fôrma que a aprisione,
não há temperatura que a molde.

Embora verso,
embora prosa,
A poesia sabe-se leve,
sabe-se solta.
Amorfa,
não se prende ao vocábulo.

GUTEMBERG GUERRA
Marabá/TO


A QUESTÃO

 Deu um tiro no peito
por ser cidadão com direito à busca
da (in)felicidade,
conforme o seu sentimento.

Morrer ou não é outra.
Ser ou não ser é uma.
A dor é
          a questão.

Deu um tiro no peito!

HIRAN CÉLIO DE MONÇÃO
Marabá/TO (1922-1941)


A VIDA
Devassa prostituta do destino,
filha bastarda e má da Divindade;
Es o resíduo amargo do intestino
dessa pantera horrenda- a Humanidade!

Degenerado aborto adulterino
da Criação! Essência da maldade
desde o existir da vida intra-uterina,
és o instrumento da fatalidade!...

No desespero da existência incalma
maldigo os deuses que me deram alma
e me entregaram, sem defesa, à vida!

É felizardo o que já nasceu morto;
não lhe manchara abençoado aborto
dessa Lucrécia, a mãe prostituída!

EU

Filho da carne putrefata e impura
estátua podre de excremento e barro,
trago no crânio o estigma da loucura
e o pus da morte existe em meu escarro.

Desta fumaça azul do meu cigarro
fogem bacilos da garganta escura.
Meu peito é um cofre imundo de catarro
onde se esconde um velho mal sem cura.

Milhões de germes trago no organismo
que em miserando e infame comunismo,
vão destruindo, aos poucos, meus tecidos.

Trago no corpo gangrenoso a essência
de toda podridão que há na excrescência
-glândulas, nervos, sangue apodrecidos…

ISABEL DIAS NEVES
Tocantinópolis/TO


P(OMAR) DE NÓS

         Para Marcelina Dias Neves, minha mãe

 É doce e vão esse pomar;
sombra feita,
flores fartas,
frutos gerados
sensualizam a boca.

Pomar que se almeja e conta
é o que se planta.

Sombra firme - reduzida,
flores novas - raras,
frutos fartos - racionados.
Tudo à mão - sem suor
 nem invenção.

Pomar que se almeja e planta
 é o que conta.

O trabalho com a terra
é um gesto de promessa:
molha a raiz com pranto e riso,
canta o plantio e a colheita,
sonha e arde a todo canto.

Pomar que se planta e conta
é o que se canta.

ORESTES BRANQUINHO FILHO
Araguaina/TO


LUCIDALUSÃO

Pensei que a camisa
Fosse o canto da parede
Como a janela seminua
Me olhando pela mulher
Segurando um coração.

Peguei a cortina
E a vesti correndo
Como se fosse cair,
Aí me deu um rosto
E sai morrendo pelo armário.

Encontrei seus restos rotos
E senti não estar morto
Em querer ser harmonia.

Corri terr´adentro noutro
Dentro em rins atrofiados,
Me doeu clastrofobia.

Moas mascam goma
Moscas mascam moças
Moças mascam mascam
Moscas moscas moscas.

Agora sol, o nublar ferve
Do teu corpo exalo verve
Que me urge e conduz.

Sinto rente à tua sina
Algo novo, longo zoom
Intuindo todo lume.

PEDRO TIERRA
(Hamilton Pereira)
Porto Nacional/TO


A HORA DOS FERREIROS

Quando o sol ferir
com punhais de fogo
                   e forja
a exata hora dos ferreiros,
varrei o pó da oficina
e a mansidão dos terreiros,
libertai a alma dos bronzes
e dos meninos
desatada em som
e nessa aguda solidão
que em ondas se apazigua
— ponta de espinho antigo —
na carne
         do coração.

Convocai enxadas,
foices, forcados, facões,
grades, cutelos, machados,
a pesada procissão dos  ferros
afeitos ao rigor da terra
                   e da procura
e, por fim, as mãos,
                   resignadas,
multiplicadas no cereal maduro.

Mãos talhadas em silêncio
                   e ternura,
que plantam a cada dia
sementes de liberdade
e colhem ao fim da tarde
celeiros de escravidão.

Esgotou-se o tempo de semear
e inventou-se a hora do martelo.
Retorcei na bigorna outros anelos
e a força incandescente deste mar
de ferros levantados.

Esgotou-se o tempo de consentir
e pôs-se a andar
a multidão dos saqueados
contra os cercados do medo.

Homens de terra
e relâmpago!
Convertei em fuzis vossos arados,
armai com farpas e pontas
a paz de vossas espigas!

LURDIANA ARAÚJO
Filadélfia/TO

CÁLICE


Se o amor acabou,
traz-me o cálice
que finda esta vida,
transforma minha alma
nas flores, na lua.

Se o amor acabou,
acabou-se a lida.
Traz-me o cálice
sem despedida.

Esquece as juras
Sob a luz da lua,
esquece que minh’alma
desejava a tua.

Esquece o silêncio
na madrugada fria,
minh’alma partiu,
sem despedida
pra longe da tua.

XAVIER SANTOS
Marabá/TO

INFÂNCIAS

O mundo fez piruetas
Com o pé de manga-rosa
Pintou as bolas-de-gude
Com as sobras do arco-íris.
Brincavam de amarelinhas
Felizes muricizeiros.
Curiós, xexéus e sanhaços
Faziam o maior furdunço
Nas frutas, nos arvoredos.

Os anos de todos eles
A gente contava nos dedos.

Com argamassa dos sonhos
A terra forjava os homens:
Era Bruno, Erick, Carol e Rafa
Brincando de lobisomem.

ZACARIAS MARTINS
Gurupi/TO

POLIVALENTE


Conserto quase tudo
mesmo que às vezes
possa provocar
alguns estragos.

Fazer o quê?
Ninguém é perfeito!

SORRISO ENIGMÁTICO

À noite,
ficava horas a fio
com aquele sorriso maroto,
mergulhada em seus pensamentos.
Jamais se conformou por ser apenas
uma dentadura num copo d´água!

SONHÓDROMO
Não me impeçam de viver o meu sonho.
Também tenho o direito de sonhar,
mesmo que às vezes,
isso incomode muita gente
por causa do barulho.

Fonte:
Antonio Miranda. Poesia dos Brasis.  http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/tocantins/tocantins.html

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Luiz Otávio e Carolina Ramos (Trovas Apaixonadas)

Em 1973, Luiz Otávio e Carolina Ramos trocam, em trovas, palavras de amor:

Que a este amor me consagre
– amor distante e sem calma -
e agradeço este milagre
de viver sem ter mais alma!
(LUIZ OTÁVIO)

Por te amar, tenho sofrido,
mas, não me arrependo: Vem!
– Quem ama as rosas, querido,
ama os espinhos, também.
(CAROLINA RAMOS)

Telefono… sempre em ânsia…
e ao ouvir a tua voz,
sinto que a longa distância
fica menor entre nós…
(LUIZ OTÁVIO)

Minha queixa é tão dorida,
ouve-a, suplico, Senhor!
Corta ao meio a minha vida,
dá metade ao meu amor!…
(CAROLINA RAMOS)

Um suplício que me aterra
e me torna quase incréu:
ter de perder-te na terra
para assim ganhar o Céu…
(LUIZ OTÁVIO)

Quando os meus olhos levanto,
vendo os teus junto dos meus,
vejo encanto em cada canto,
à luz do Amor, vejo um Deus!
(CAROLINA RAMOS)

Teus olhos nunca beijados,
terão, agora, a ventura,
de ver, embora orvalhados,
a Vida com mais ternura…
(LUIZ OTÁVIO)

Um amor que nada pede,
puro, intenso sublimado,
é benção que Deus concede
e não pode ser pecado.
(CAROLINA RAMOS)

Conversa com Deus, em prece…
Confiante enfrenta a procela!
– “Sempre o mau tempo parece
pior, se o vês da janela.”
(LUIZ OTÁVIO)

Tão rica eu sou… que ventura!
Deste-me um rico tesouro,
– um tesouro de ternura
que vale bem mais do que ouro!
(CAROLINA RAMOS)

No Céu, em vida mais bela,
na terra, seja onde for,
se eu estiver longe dela,
é tudo Inferno, Senhor!…
(LUIZ OTÁVIO)

Adormeceste em meus braços…
e eu pude ter a ventura
de ninar os teus cansaços,
no meu berço de ternura…
(CAROLINA RAMOS)

Eu tinha medo de amar,
previa que fosse assim:
minha alma e a vida entregar
sem limite sem ter fim…
(LUIZ OTÁVIO)

Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
(CAROLINA RAMOS)

Em dois versos se resume
a nossa esplêndida história:
– amor que é sonho e perfume!
– amor que é cruz e que é glória!
(LUIZ OTÁVIO)

Nosso amor… e quem o entende?
– Sublime e grandioso amor!
Tão ferido, não se rende,
e é maior envolto em dor!
(CAROLINA RAMOS)

Fonte:
RAMOS, Carolina. Príncipe da Trova. SP: EditorAção, out 1999. p. 142-145.

Noordyne Mussa (A Menina que paria pássaros)

Uma doce e poética narrativa do moçambicano Noordyne Mussa, participante de oficina de escrita criativa, de Marcelo Spalding. Neologismos como "se sozinhava" e um tom de realismo mágico representam bem a estética da literatura luso-africana, que tem Mia Couto como seu expoente maior.
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Um dia, ela foi vista na varanda dos seus aposentos – sem burca. O expressivo rosto de olhos verdes denunciava sua tristeza. Abiba ouvia de longe a felicidade das primas já casadas, mas ela ainda se sozinhava. Essa exclusão tingia o espelho da sua alma com a ânsia da esperança.

Um casal vivia numa remota aldeia e não se misturavam com outras raças. E com o problema da guerra civil, ficou complicado viajar e estabelecer contactos para prepectuarem a sua raça. Quando a guerra acabou, a esperança renasceu nos corações da família.

O casal tinha uma filha – Abiba. Ela não ia à escola porque todos, incluido os professores viviam nas palhoças de barro e capim. E a escola era debaixo duma árvore. Os alunos, sentados na areia cheia de matequenhas . Abiba cresceu gradeada dentro de casa – aprendendo o comércio da família. A menina tinha vestes de variadas cores, excepto a preta, embora o seu cabelo fosse preto. Quando ela via a cor preta, imaginava o sujo de um cadáver e se sentia nauseada. A menina crescia, a curiosidade nela também e os pais ficavam cada vez mais impossibilitados de correspondê-la. Ela não entendia a escuridão da noite e até dormia acordada como o coelho, porque o sono também era escuro. E a fome era tanta… Nem vacas. Nem gazelas. Os animais, sumidos com a guerrilha. Um dia, a menina perguntou à sua mãe, porque não comiam o cão:

- A carne de cão é preta.

Abdul não quis saber mais. Ultimamente, a sua filha Abiba andava esquisita – já falava de amor e paixão. Aquelas palavras eram proibidas para raparigas da sua idade. Várias vezes, Abiba fora avistada com um rapaz albino, o único que para ela era branco – assim como a noite e o dia. E a mãe, assustada, indagou-lhe onde ela aprendera a palavra loiro. A miúda calou, mas tinha alguma coisa lhe minhocando na cabeça. Fábio tinha pele branca e portanto, como a mãe lhe ensinara outrora, ele era branco. Mas a mãe da Abiba frisou mais uma vez, sua repugnância em relação ao albinismo:

- Rochas nascem rochas.

Abiba ficou com a ideia que a raça de Fábio era uma doença contagiosa. Ela foi proibida de sair para a rua. Um dia, acesa de fogos, Abiba enganou os guardas e fugiu – algo estranho lhe movia dentro do seu peito adolescente. Pouco depois, ela e o Fábio foram encontrados com os seus pais, sentados num banco do parque. Em casa, cada pai reprimiu seu filho. E disse a mãe de Fábio:

- Nós somos a última raça depois dos índios.

Raça perseguida nos últimos tempos e em extinção devido à superstição – as pessoas eram caçadas e mortas para gerar riqueza. E se Fábio se metesse com Abiba, traria azar para a família dela e os pais não estavam dispostos às consequências. Os pais da Abiba conversaram os derradeiros planos devido à desobediência dela. O senhor Abdul, já tinha decidido:

- Vamos colocar expulsamento nela.

- Expulsá-la?

Não. Um pássaro para lhe guardar. Naquela zona havia um medicamento tradicional que os pais usavam para proteger suas filhas contra a gravidez precoce, bem como o relacionamento com pessoas erradas. No dia seguinte, Abiba tomou o medicamento sem notar, estava dissolvido na sua adorada sopa. Só que os pais não sabiam que aquele medicamento, também era afrodisíaco – um efeito secundário que dava comichão nas bundas, nos pés e obrigava à prática de nudismo: Abiba já não parava em casa.

Ela passou a ser vista com saias curtas e calções jeans apertadíssimos. Mas Fábio já se tinha ido embora – destinado ao externato, situado a uma longa distância dali. Dada a gravidade do problema, os pais da Abiba arranjaram um noivo para ela. Um alguém da mesma cor – um homem trinta anos mais velho que ela. Era tradição da família. Abiba foi casada.

Então, no dia das núpcias, os dois já na cama, o guarda surgiu – um pássaro saiu voando dentre as pernas abertas da Abiba, estragando todo clima do casal. Alarmado, o homem apanhou um infarto e caiu, morto. Ela ficou sozinha. E assim foram os restantes dias da Abiba.

Nenhum lúcido a queria como esposa, ficou famosa por parir pássaros e matar homens. Para contrariar, era assim a sua miserável vida: se maquiava e pousava ali na varanda, sozinha e sorrindo às aves. As pessoas não entendiam aquela sua vaidade. Ela devia é chorar e tratar do seu sofrimento passarinhado. Os pais, preocupados, lhe indagaram o motivo da felicidade, e ela respondeu:

- Sou uma gaivota no alto mar.

Janelando, ela desfrutava, lá do céu, a esfericidade do planeta. Diferentemente das outras gaivotas, ela voava noturnamente. Então deu-se que o corpo bem nutrido da Abiba desaparecia noite após noite. A palidez e o sofrimento, se gravavam no seu rosto. Ela inventara uma receita para dieta. Já não usava burca. Virou modelo, pousava para fotógrafos e assim aumentava a renda familiar, uma vez que o pai estava já muito velho, e o comércio não atravessava os melhores dias. Um dia, a mãe lhe pediu o segredo de voar. Abiba hesitou, mas depois disse:

- O voo é meu homem.

Os voos eram únicos que lhe podiam saciar a fome de sexo. E a mãe sabia dos casos com os voos. Mas o senhor Abdul, já não fazia voar a sua esposa. E a mãe queria ter o corpo da filha, leve, aerodinâmico, voando com a brisa do mar, passarelando a passarinho como Abiba. Então, a moça elucidou a mãe de que o seu corpo era resultado de muitos voos, diferentes casos de voos – os velozes, os acrobáticos, incluindo a planagem.

Um dia, arrumaram-se e saíram. E foi sempre assim, o corpo da mãe dela passarinhava, mãe e filha pareciam irmãs. Como era possível emagrecer tão rápido assim? Abdul, desconfiado, seguiu-as escondido na escuridão das árvores das ruas, e chegaram no local – uma rua coberta de bares lado a lado, uma rua com gente cada vez mais parecida uma da outra. Lá, os pretos é que conduziam os voos. Abdul descobriu que a filha e a mulher eram prostitutas. Regressou à casa e suicidou-se.

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Contos

Luiz Eduardo Caminha (Poesias Escolhidas) II

Reflexões poéticas ou nada poéticas sobre o Inverno

Inverno 1


Cruel,
Sisudo,
Padrasto.

De mim?

Carrancudo,
Casmurro,
Sofrido.

Teu corpo?

Se amolda,
Me aquece,
Me envolve,
Me cobre.

Só tu,
Mulher,
Podes ser
Meu Sol!

Inverno 2

Frio intenso.

Na estepe
De minha mente
Nada cresce.

Nem mesmo
Um poema -
Que me aquece –
Que me aqueça!!!

Porventura...

Inverno?
Não rima
Com estéril?

Deveria!

É isto
Qu’ele faz:

Até a mente
Tolda,
Congela,
Nada produz!

MÍNIMO

Tu és,
Mulher,
No
Inverno,
Meu
Sol.
Meu
Verão.

AMENIDADES

Coisas boas do Inverno:
Uma cama bem quentinha,
Um ar quente no máximo,
Um café de pelar a boca
...

Só prá continuar
Debaixo dos cobertores.

Nada disto é melhor
Que a areia leito de uma praia,
Um Sol de verão,
Uma água de coco bem gelada,
De doer os dentes.

...

Quem gosta de frio e neve
É pinguim, urso polar e esquimó!

LUA INVERNAL

Até a lua,
Amante dos boêmios,
Companheira dos notívagos,
Se acoberta;
Agasalha-se de nuvens,
Névoa,
Neblina;
Esconde-se
Do frio gelado.
Mas está lá!
Pronta, à espera,
O poeta sabe.

ORFANDADE

Eu não imaginava
Ficar órfão tão cedo.
Aliás, eu nunca
Imaginei-me um órfão.

Estou nos cinqüenta e oito,
Quase cinqüenta e nove,
Primeiro meu pai,
Tristeza, melancolia.
Depois um irmão,
Dor, sentimento.
Mas ainda tinha uma mãe.
O fel da dor compensava!

Daí... ela resolveu partir,
Bateu asas
Como um pássaro,
Uma borboleta
Foi ao encontro dos seus,
Do outro lado.

O velho útero,
Sacrário dos filhos,
Já não vivia.
O cordão umbelical
Definitivamente se partira.
Um silêncio ensurdecedor,
Eco de uma ausência.

Foi aí que senti a orfandade.
Ficou fácil entender saudade.
Tão fácil! Tão amarga!
Sem graça, senti-la!

A Hamilton e Edy, meus pais, 1 ano depois que ela partiu para encontra-lo e reverem, juntos, meu irmão!

ESPECTRO

Foto noturna,
Riscos de luzes,
Rasgos melancólicos,
Soturnas lembranças.

Lúgubres sombras,
Espectros famélicos,
Andanças perdidas,
Descoloridas!

Uma tela disforme
Retrata a fome.
Miséria cansada
Da exclusão.

Quem vai parir o amanhã?
Quem vai colorir a vida?
A Esperança? Último grito de Pandora?
Ou a certeza? Dum triste futuro possível?

A argamassa, massa dos pobres,
Pão amanhecido, amolecido
Pelo suor diário de desatinos.
Faina diuturna, sede insaciável
De Justiça... e Paz, enfim!

Um Sepulcro futuro e garantido,
Repleto de sonhos, sussurros,
(Caiado pela hipocrisia)
Resta como digno descanso!

SONHOS

Estás louco poeta?
Queres tu imaginar,
Que o imponderável
Acontece?

Sonha, sonha, oh! Poeta.
Ainda bem que dormes,
Melhor: existes.
E sonhas...
Poesias!

Fonte:
http://caminhapoetando.blogspot.com.br/search/label/meus%20poemas

Isabel Furini (Livro Bom, Livro Ruim)

Na oficina Como escrever um livro, que oriento há muitos anos, houve uma discussão quando uma aluna disse: Comecei a ler o Senhor dos Anéis, um livro muito mal escrito. Um colega contra-argumentou: Eu gostei do livro. Se você não gostou, é um problema seu, isso não quer dizer que não seja um bom livro, só que não agrada a todos os leitores.

E eu tive que desafiar o grupo com uma pergunta:

- Será que existe um livro que agrada a todos os leitores?

Uma senhora respondeu: - A Bíblia.

Um rapaz retrucou: - Será que ateus gostam de ler a Bíblia? (Risos)

Alguém disse: - Machado de Assis.

Apoiou um senhor idoso: - Isso mesmo.

Um aluno não esteve de acordo: - Minha tia não gosta de Machado de Assis, porque uma professora obrigou-a a ler O Alienista no colegial, na época que havia colegial...

- E os Lusíadas de Camões?

Silêncio na sala. Por fim, um rapaz disse: - Será que todos leram Os Lusíadas? Eu nunca vi esse livro na lista dos mais vendidos. E será que todos aqueles que leram apreciaram o livro? Ou alguns têm medo de falar que não gostaram e de parecer burros?

A discussão continuou por algum tempo. Por fim, eles mesmos chegaram à conclusão de que existe um livro aceito por todos os leitores. Existem livros aceitos pela maioria dos leitores, os best-sellers. Existem livros aceitos pela maioria dos intelectuais, em geral, livros que ganham prêmios importantes. Mas sonhar que um livro será apreciado e aplaudido por todos os leitores é algo muito difícil de acontecer. Talvez impossível em um país livre. Cada cabeça é um universo. Tem suas nuances. Sua história pessoal. Seu olhar único.

É tão fácil criticar o trabalho de outrem e tão difícil criar e realizar uma obra de arte que o aforismo fala “a crítica é fácil, a arte, difícil”. É assim mesmo, ver o erro no trabalho dos outros não leva muito tempo, por exemplo, observar um quadro e criticar pode levar questão de minutos.

Ler um texto e sentir desagrado também não leva muito tempo, em geral depende da dimensão do texto a ser lido. E, às vezes, nem isso. O leitor começa o texto e nem dá chances... já forma uma opinião ao focar as primeiras frases. E é muito interessante que a maioria das pessoas não fala: eu gostei, ou eu não gostei do texto, ela afirma: “está muito bem escrito”, “está mal escrito”, ou pior ainda, “esse é um bom escritor”, “esse escritor é ruim”, como se umas poucas frases fossem suficientes para julgar a obra completa de um autor.

“Eu não gostei desse livro” é uma frase honesta. “Esse livro é ruim” é uma frase fruto da arrogância, que tenta mostrar que a opinião dessa pessoa tem valor universal. Parece que ela está gritando: “Ei! Não leiam esse livro! Eu não gostei e ninguém deve gostar dele. Eu já falei, esse livro é ruim. Escutem meu recado”.

É comum em concursos literários haver pessoas insatisfeitas, aqueles que não ganharam, logicamente. Algumas dessas pessoas, ao conhecer os poemas ganhadores, enviam e-mails dizendo: “O poema que ganhou o primeiro lugar não é bom”. E não adianta. O poema precisa ser bom para os jurados. Às vezes eu também não fico contente com um trabalho que conquista o primeiro lugar, mas fico em silêncio pensando que cada ser humano tem vivências e ideias diferentes e que é preciso aprender a respeitar a escolha dos outros.
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Isabel Furini é escritora e poeta premiada, autora de “,,, E OUTROS SILÊNCIOS” que foi lançado em 08 de julho/12.

Fonte:
http://livrodoescritor.blogspot.com/feeds/2000808209209305748/comments/default

Raquel Ordones (Poesia em Gotas) II


AMO-TE

 Amo-te desde sempre e além do fim
Antes da essência da estrela e do céu
Após a curva do infinito de onde vim
Em circuito inicio, meio e fim do anel.

Amo-te com a carne e de toda a alma
Na tua presença e na minha saudade
Amo-te em vendaval que me acalma
Em todo instante é minha eternidade.

Amo-te, simples assim naturalmente.
Com a emoção; sem nem um segredo.
Amo-te; amo-te, digo isso sem medo.

Amo-te desde antes do nascer do mar
Maciço é o desejo quem vem na onda
Amo-te, ininterruptamente me ronda.

ÀS VEZES UM ABRAÇO É TUDO

Sabe quando você se sente só na multidão?
Ou quer caminhar por uma estrada sem fim?
Quando uma conversa baixa é um turbilhão?
Ou não entende a diferença entre não e sim?

Sabe quando você se sente sem importância?
E tudo o que você faz em nada surpreende?
E quando o espelho a você não dá confiança?
Quando parece que o mundo não lhe entende?

Sabe quando a lágrima vem e pelo rosto corre?
E sabe aquele dia que do quarto não quer sair?
Que nem um palhaço consegue lhe fazer sorrir?

Então, esse momento sempre existe no coração
Creio que nós mesmos nos impelimos no espaço
E tudo que carecemos é do silêncio e do abraço.

SAUDADE

Saudade é apreciar um passado que não transpôs
É uma tatuagem no coração com tinta irremovível
Algo que jaze dentro gente que alguém fez ou pôs
É uma condição só nossa, uma coisa intransferível.

Saudade é dentro da essência o não desligamento
Histórico que mora mesmo com tempo decorrido
Persiste na alma o sorriso e martela pensamento
Um presente flor que o passado nos deu colorido.

Saudade é a recusa de apagar o que na alma mora
Reprise que surge em qualquer lugar sem demora.
Prática do pensamento de uma coisa que faz bem

Saudade é algo mágico que nos transporta e além
Pó de perlimpimpim quase vivo, de todas as cores
De todos os gêneros, todas as superfícies e amores!

O VALOR DE TER VINDO AO MUNDO

A minha frente balança a folha
Dança a borboleta
Da água de sabão voa a bolha!
A poeira se levanta sem escolha
Bailam as flores
O vento carrega seus olores!
Ascende a pipa: um espetáculo
A pena voa
Para o vento não há obstáculo!
Tudo se transforma em orquestra
Cabelos valsam
Com a brisa que entra pela fresta!
E tudo é vida nessa inquietude
Na constância do vento
Se resume em retrato colorido
Inda que sem ser visto é sentido
Ante esse cenário
Vale a pena ter nascido!

BORBOLETEANDO POESIA

Adejo de encontro às palavras, enfim
E sinto a fragrância que delas exalam
Letra por letra eu arquiteto um jardim
Os versos em pétalas ali se instalam.

O gosto do néctar imprime essência
Sentimento com vitamina de ternura
Torna-se a razão da minha vivência
A dedicação se aduba ruma a altura.

Se solta o casulo e vontades voejam
Nas transparências que vem da alma
Borboleteando poesia, imo se acalma.

Ventos levam e trazem, as folhas bailam
Bebida de Deuses desanda em desejo
Verso em botão se abre poesia e beijo.

CASTELO DE NÓS

Construí um castelo real com partículas de nós
Com supinos paredões edificados com respeito
Sem divisas, sem porões, sem cacos e sem pós
Com plantios de carinho de tudo quanto é jeito.

Um riacho nasceu com fluidez de cumplicidade
Flores se ergueram a sua margem e fragrância
Abissais janelas se acendem discerne a amizade
Nesse cenário existe um infinito em abundância.

Degraus de confiança, galgados um de cada vez
O acordo das portas que aos poucos se abrem
Conceito: quereres a compreender: não cabem

Há um encanto que chuvisca nos jardins, enfim
Pássaro ali pousa sem cobrança sem promessa
Castelo de nós: instante a instante sem pressa!

DAS MÁSCARAS

Indiscutível tua existência, em qualquer canto.
No festejo da vida fazem folias a todo instante
Incapaz de imaginar o quão determina o pranto
Adorável, tem lucidez dentro do jeito farsante.

Ideologia: a que veio com tão meiga aparência?
Quase chega a ter um aspecto espúrio, engana
Superficial... Isenta de toda e qualquer essência
Mas se acha com vantagens faz da alma insana.

E o que faz aqui tão bem vestida essa máscara,
Se não tem cerne, é absolutamente desconexa,
De mãos dadas à mentira tua concubina anexa?

Diverge no que fala e no que faz; é um desastre.
Em teu pensamento onírico seduz e enclausura
Torna-se precipício e sem paraquedas na altura.

DE INICIO, UM SUSTO... ENORME!
Entre o verde das folhas e o bruto galho
arrisquei colocar o meu rosto a espreitar.
Em um alfobre logo adiante vi roseiras,
tonalidades tantas de permutar a visão;
Borboletas e raios chamejantes do sol,
o vento a embalar a natureza existente
E do outro lado vi uma sombra, gigante
De inicio, um susto... Enorme, abissal!
Eu olhei para o galho e bem no seu alto
avistei um casulo sendo ninado pela brisa
projetando no chão uma corporatura viva!

Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 33

CAPÍTULO III

Fazia dolorosa impressão ver sair todas as manhãs, pelos fundos da chácara de Teobaldo, aquele vulto sombrio todo envolvido em um velho sobretudo, a tossir esfalfado de trabalho e sem querer incomodar com a sua tosse os criados que ainda dormiam.

A nova existência do amigo como que o fizera ainda mais triste e mais só. Dantes tinham os dois sobeja ocasião para estar juntos, para se falarem, para trocarem entre si as suas confidencias; e agora mal se viam uma vez ou outra, casualmente, porque André insistia no escrúpulo de desfear o radiante aspecto daquelas salas, carregando para lá com o seu vulto desalinhado e feio. À noite, quando apareciam visitas, o que era muito freqüente, não havia meio de arrancá-lo do sótão.

Demais, para que iludir-se? Teobaldo não fazia grande empenho em apresentá-lo aos seus amigos, chegava até em presença destes a tratá-lo com uma certa frieza. — interesse em obrigá-lo a aceitar um canto de sua casa, não passava de um dos muitos rompantes de generosidade, que ele às vezes tinha quase que inconscientemente, e dos quais se arrependia logo sem nunca se queixar de si, mas do seu obsequiado.

Isto não quer dizer que Teobaldo agora estimava menos o Coruja; ao contrário — jamais intimamente o colocou tão alto no seu conceito; apenas, como homem vaidoso, não queria incorrer no desagrado de seus sequazes impondo-lhes um; tipão daquela ordem.

A borboleta, desde que lhe saem as asas, não gosta de ir ter com as antigas companheiras que se arrastam no chão.

— Não é dele a culpa... considerava André, sempre disposto a perdoar. — A borboleta precisa de sol, precisa de flores... Quem tem asas — voa; quem as não tem fica por terra e deve julgar-se muito feliz em não ser logo esmagado por um pé.

E, a contragosto, fazia-se mais e mais retirado e macambúzio.

Ao lado de Branca então chegara o seu acanhamento a causar dó; quando a formosa senhora lhe dirigia a palavra, ele parecia ficar ainda mais selvagem, mais desajeitado, atarantava-se, fazia-se estúpido, não encontrava posição defronte daquele primor de beleza, e conseguia apenas uivar algumas vozes confusas e quase sem nexo.

E no entanto sentia por ela um afeto extremamente respeitoso, uma espécie de adoração humilde e tácita; quando Branca passava por junto dele, Coruja reprimia a respiração, contraía-se todo, como se receasse macular o ambiente que ela respirava; e só se animava a encará-la enquanto a tinha distraída ou de costas, e isso com um profundo olhar de terna veneração.

— Achas-la bonita, hein? perguntou-lhe uma vez Teobaldo, batendo-lhe no ombro.

— É uma imagem... respondeu André.

— Entretanto, ela se queixa de ti...

— De mim?

— E verdade, desconfia de que não te caiu em graça.

— Ora essa!...

— Supõe que antipatizas com ela...

— Eu?...

— Sim e, vamos lá, coitada, não deixa de ter o seu bocado de razão: quase nunca lhe dás uma palavra e, quando acontece te achares ao lado dela, ficas por tal modo impaciente, que a pobrezinha receia ser importuna e foge.

— Bem sabes que infelizmente esse é o meu feitio; sou assim com todo o mundo, à exceção de ti.

— Sim, mas o que eu não admito justamente é que, para ti, minha mulher faça parte de todo o mundo! Quero que ela participe da exceção aberta para mim, que a trates pelo modo por que me tratas.

— Não é por falta de vontade, crê; mas não está em minhas mãos! — Procuro ser amável, ser comunicativo, e as palavras gelam-se-me na garganta, o pensamento estaca e uma cadeia de chumbo enleia-me todo, tirando-me até os movimentos; então sinto-me ridículo, arrependo-me de me haver mostrado; suo, lateja-me o coração e em tais momentos daria o resto de minha vida para sair de semelhante apuro. Outras vezes quero aproximar-me dela, dizer-lhe alguma coisa que lhe faça compreender o quanto a estimo, mas de tal modo me falece a coragem, que não consigo fazer um passo, nem encontro uma palavra para lhe dar.

— És um tipo!

— Sou um asno! Ah! Que se eu tivesse a tua presença de espírito, as tuas maneiras, os teus recursos.

— Com esse gênio, serias ainda mais infeliz!

— Não, seria ao menos compreendido; porque não sei que diabo tenho eu comigo, que ninguém além de ti percebe as minhas intenções ou acredita nos meus atos. Às vezes, quero ser meigo, quero mostrar que não estou contrariado, quero manifestar a minha simpatia ou o meu entusiasmo por alguém ou por alguma coisa e, em vez disso, consigo apenas convencer a todos de que estou aborrecido e que só desejo que ninguém se aproxime de mim, que não me fale, que não me incomode! E, todavia, não sou mau e todo o meu empenho é ser melhor do que sou.

— Ser melhor do que és?... Oh! Então é que serias deveras um tipo insuportável! Acredita, meu bom Coruja, que o teu defeito capital é a tua extrema bondade. A maior parte dos homens não te pode tomar a sério, porque não te compreende e porque te supõe um louco. Tens atravessado a existência a espalhar pelo chão, à toa, sem contar as sementes, punhados e punhados de boas ações. Pois hein! Qual foi de todas essas sementes a que vingou? — Nem uma única! Não porque não fossem perfeitas e sãs, mas porque não encontraram terra em que pudessem medrar! És um excêntrico, um aleijado, um monstro, tens o coração defeituoso, porque ele não é como o coração típico dos mais. E como, em semelhantes condições, queres ter amigos; queres ser ao menos suportado entre os homens? Já viste porventura uma pomba atravessar impunemente por entre um bando de corvos?... Se queres ser bem recebido no meio dos homens, se homem como eles ou pior; desculpa-lhes os vícios — imitando-os; afaga-lhes o amor-próprio, fingindo que os admiras; e dessa forma, se fores um forte hás de desfrutálos, e se fores um vulgar hás de viver com esse lado a lado, na mais doce harmonia e na mais deliciosa felicidade. Isso é a vida!

— Oh! Não me pareces o mesmo; nem acredito que abraces tão cínicas teorias; são falsas, nunca te pertenceram!

— Enganas-te, meu visionário, essas teorias foram sempre as minhas e nunca me conheceste outra, desde que caminhamos juntos por entre a enorme corja de nossos semelhantes; a diferença única é que dantes elas se manifestavam por outro modo, visto que eu me achava ainda no período da vida em que todo o homem, por pior que seja, tem no coração uma grande dose de altruísmo e belas aspirações...Eram efeitos dos vinte anos! Acredita, porém, que todas as aparentes generosidades que me viste praticar, todo o meu desprendimento por umas tantas coisas, todas as minhas abnegações, todas as minhas boas obras, todos os meus atos de heroísmo, e tudo que fiz e faço de nobre, de superior e digno, tudo foi e é feito para que eu melhor viva entre os meus semelhantes, a quem detesto, à exceção de ti e de Branca. Detesto-os, mas faço-me amar por eles; sei que me humilhando serei pisado; então, nem só me humilho, como ainda os rebaixo quanto posso! E contigo sucede justamente o contrário: amas todo o mundo e não consegues te fazer amar por ninguém. Humilhas-te por bondade; e eles respondem a isso — desprezando-te. A humanidade, meu amigo, em geral é baixa e vil, logo que encontra alguém que a respeita, julga esse alguém ainda mais baixo e mais vil do que ela; para lhe merecer alguma consideração é indispensável fazer o que eu faço e o contrário do que tu fazes — é necessário desprezá-la e só aceitar das mãos dela aquilo que serve para nos elevar e engrandecer-nos, rebaixando-a. O homem tudo perdoa aos seus semelhantes, menos o bem que estes lhe façam, porque — dever um obséquio é dever gratidão, e a gratidão jamais vem de cima para baixo, mas sempre vai de baixo para cima! Aceitá-la é aceitar uma atitude inferior. A grande filosofia da vida consiste, pois, em saber aproveitar todo o bem que nos queiram fazer, fingindo sempre que tão pouca importância lhe ligamos, que nem dele nos apercebemos, e fechar o coração a todos, para não obrigar quem quer que seja a nos ser grato!

Coruja ficou a refletir por alguns instantes, e depois disse:

— Estava bem longe de esperar de tua boca tais idéias, e confesso que te fazia na conta de meu amigo...

— E sou efetivamente; mas tu, repito, não és um homem e nem eu te falaria com toda esta franqueza se tivesses alguma coisa de comum com eles. Não me arrependo de haver aceitado os muitos obséquios que recebi de tuas mãos; juro-te, porém, que jamais terias ocasião de os praticar se eu em qualquer tempo chegasse a descobrir em ti a intenção de me fazeres grato ou reconhecido. Aceitava-os, confesso, porque tu, pela tua excepcional bondade, entendias que eu, só com recebe-los, prestava-te um grande serviço.

— E era.

— Não, em verdade não era; mas era como se assim fosse, porque tu assim o entendias.

— E o que não serei eu capaz de fazer para continuar a ser teu amigo?... Só a idéia de que não me repeles e não me condenas como todos os outros, todos, até mesmo a minha noiva; só essa idéia é já uma grande consolação para mim. Não imaginas meu Teobaldo, quanto me dói cada vez mais esta terrível antipatia que inspiro a toda a gente. Ainda há pouco, enquanto me falavas de tua mulher, dizia eu comigo: "Para que hei de aproximar, para que me hei de chegar para ela, se tenho plena certeza de que minha presença lhe é fatalmente penosa, e aborrecida?"

— Exageras! Respondeu Teobaldo. E para o que, vais ver!

E correu a tocar o tímpano.

— Que fazes? Perguntou o Coruja, aflito.

— Verás, disse o outro, e acrescentou para um criado que entrava:

— Pergunte A senhora se pode chegar até aqui.

— Não faças semelhante coisa... Exclamou André, entre suplicante e repreensivo, e muito sobressaltado: — Que não irá supor D. Branca!

— Suporá que endoideceste se continuas a fazer esses trejeitos e esses gatimanhos.

— Mas eu agora não posso me demorar... Voltarei daqui a pouco...

— Não seja criança! Espera.

Nessa ocasião, Branca assomava à porta do gabinete em que conversavam os dois amigos. Vinha deslumbrante de simplicidade e de beleza; não se lhe via uma jóia no corpo, nem uma só fita no vestido inteiriço, de cambraia; mas a sua pequena cabeça altiva e dominadora estava a pedir um diadema e as suas belas espáduas um manto de rainha.

Coruja, ao vê-la, abaixou os olhes e começou a respirar convulsivamente, como um criminoso que vai ouvir a sentença.

— Vem cá, minha flor! Disse Teobaldo, fazendo um gesto à mulher, senta-te aqui perto de mim.

Branca obedeceu e ele acrescentou:

– Muito bem. Agora tu, Coruja, senta-te deste outro lado.

Coruja adiantou-se muito vermelho procurando sorrir.

– Ora muito bem! repetiu aquele dirigindo-se à esposa; sabes para que te chamei? Para acabarmos por uma vez com unia tolice que observo entre vocês dois. Tu supões que o Coruja, o meu único amigo, não gosta de ti, e ele, o idiota! pensa que tu embirras com ele. Expliquem-se!

– Ora! sempre tens umas brincadeiras!... Resmungou André, muito atrapalhado; isto é coisa que se faça?...

– Pois eu, atalhou Branca sorrindo, não desgostei da brincadeira, porque receava, com efeito, que o Sr. Miranda...

— Chama-lhe Coruja, interrompeu o marido.

— Que o Sr. Miranda, continuou Branca, houvesse antipatizado comigo.

— Oh! Minha senhora ... Por amor de Deus... Longe de mim semelhante idéia ... Ao contrário, eu... Sim... Quero dizer...

— Então! Fez Teobaldo.

— Eu gosto muito da senhora...

— E creia que é pago na mesma moeda, respondeu Branca.

— Ora até que afinal! E agora, vamos! Um abraço! Exigiu Teobaldo.

A esposa ergueu-se imediatamente, e o Coruja, cada vez mais vermelho e comovido, caminhou contra ela com os braços moles, ofegante e sem encontrar uma palavra para dizer.

Foi necessário que a formosa senhora se resolvesse a ir em socorro dele e lhe cingisse os braços em volta das costelas.

— Bom! Concluiu o dono da casa, creio que agora estão feitas as pazes, e espero que de hoje em diante não terei de aturar as queixas de nenhum dos dois!
–––––––––––
continua…