terça-feira, 26 de junho de 2018

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poemas Escolhidos)


FLAUTA MÁGICA

No alto de minha Figueira
Pousa sempre um tico-tico
Que canta alegre em chorrilho
Quando coloco o CD
Do Altamiro Carrilho.

E o tico-tico de lá
Faz com ele o estribilho:
Canta, canta sem parar,
Ouvindo a flauta tocar
Do grande mestre Carrilho.

E eu fico extasiado
Em meio a tanta beleza,
É um momento encantado:
De um lado a natureza
No trinar do passarinho;
Do outro lado, com a flauta,
O mestre que tanto admiro
Faz magia com o chorinho:
Tocando seu Tico - Tico
O incomparável Altamiro.

A ROSA

Da rosa quero a essência,
O perfume que inebria,
 A pétala sedosa e macia,
A mais pura inocência.

Quero ser também o orvalho,
Que banha seu corpo vadio.
Nas noites de intenso frio
Quero ser seu agasalho!

Quero ser o colibri
A sugar seu doce mel
Ser o seu teto, seu céu,
Seu jardim, seu bem-te-vi.

Quero ser aquele espinho
Que a sua haste protege
Dos insanos e hereges
Que cruzam o seu caminho.

Quero ser o seu pretexto,
Seus enganos e desculpas
Quero ser todas as culpas.
Ser prosa do seu contexto.

ALAMBIQUE

Do bagaço o fogo faço
Para tocar a caldeira
Que esquenta que nem chaleira
Soltando fumo no espaço

Coloco a cana no engenho,
Transformando-a em bagaço.
Do caldo faço o melaço
Que depois vira cachaça...

E assim sai a purinha
Que passarinho não bebe
Mas que desce redondinha
E só toma quem percebe
O segredo da branquinha... 

E o engenho vai tocando
Fumaça na chaminé...
Cachaça é coisa nossa,
Pois agora virou bossa,
É produto brasileiro
Que agrada o mundo inteiro.
Uísque é pra Zé Mané…

CAMPANÁRIO
( Poema dedicado a Ipuca – São Fidélis / RJ – onde vivi minha infância)

Do alto do campanário
da minha pequena aldeia
avisto um lindo cenário
onde a saudade campeia.

Nele os seus campos floridos,
com as cores mais variadas,
vão salpicando as estradas
com seus toques coloridos.

No  peito tenho um vazio
remoendo o meu passado.
Manhã seca de estio,
no rosto os olhos molhados.

E os sinos badalando
anunciam minha dor,
cada toque ressoando,
no meu presente sem cor…

DOR DA SOLIDÃO

Não existe dor maior
Que a dor da solidão...
É dor cruel e perversa
Que não aceita conversa
E nem mesmo explicação!
É dor do só, do sozinho,
É carência de carinho,
Seu sintoma é a paixão.

E essa dor tão doída
Que tanto maltrata a gente
Chega assim tão de repente
Sem sequer bater na porta.
Para ela pouco importa
Se está matando o doente,
Se a "Inês é quase morta".

É uma dor que aniquila,
Que castiga, que maltrata,
É mais forte que a tequila
Mais ardente que a cachaça.
É pior que a dor que tomba,
Mais cruel que a dor que mata.

POEMINHA À PRIMAVERA I

A vida em traje a rigor
Está pronta para a festa...
Durou um ano de espera
O mundo multicolor
Que nos trouxe a PRIMAVERA!

Que essa estação tão linda
Desperte também o amor,
Fazendo brotar na gente
Um mundo cheio de luz,
O desejo mais ardente, 
O querer mais envolvente
Que nos encanta e seduz.

REMINISCÊNCIAS

Trago do tempo passado
O meu mais belo presente;
Dele sou enamorado,
Tive um passado contente.

Minha infância colorida,
Bodoques, atiradeiras
E banhos nas corredeiras
Do Paraíba do Sul.
O sol ardente brilhando
Num céu pintado de azul
Refletia no espelho
D’ água pura e cristalina.
Ah... que saudade que tenho
Daquela linda menina!

Na festa de São João
Quermesse e ladainha,
O namoro com a mocinha
Acelera o coração...
Fogueira, batata doce,
Milho cozido, quentão,
O céu todinho estrelado,
Gente soltando balão.

E esse tempo lembrado
Sei que nunca terá fim,
Eis que pela vida afora
Será para sempre assim...
Pois meu passado ficou
Guardado dentro de mim.

Malba Tahan (Duas Tendas do Deserto)

Perdido de meus companheiros — contava-me um árabe em Medina — caminhava um dia, sem rumo, pelo deserto, quando avistei uma grande tenda, junto da qual estava uma jovem muçulmana com o rosto velado por espesso véu.

Mal pousara em mim seus olhos negros e vivos, exclamou:

— A paz seja contigo, ó irmão dos árabes! Que procuras pelos caminhos de Allah?

Contei-lhe, em poucas palavras o que me acontecera e a razão por que me encontrava a vagar desnorteado pelo deserto, concluindo a minha narrativa com os versos famosos de Kháyyám:

— E neste infortúnio, ó formosa filha de Eva! A vagar, sem destino, tenho duas companheiras: a Fome e a Sede!

— Se assim é — volveu, bondosa, a rapariga — serás meu hóspede nesta tenda!

 E pediu-me que descesse do cavalo e descansasse um pouco, enquanto ia preparar-me um saboroso manjar.

 Tão meiga era a voz daquela boa criatura, tão amável a sua maneira de falar, que não hesitei em aceitar o convite e apeei do cavalo junto à tenda. Momentos depois surgiu-me a jovem, trazendo, num prato finíssimo, um pão delicioso, feito de trigo e de mel.

Graças à bondade da minha afável hospedeira, pude saciar a fome que já me atormentava, e beber, com grande satisfação, alguns goles de água pura e fresca.

Não me esqueci de agradecer ao Altíssimo a mercê que me proporcionara, conduzindo-me os passos até àquela sombra acolhedora; e, fora da tenda junto a um velho coqueiro, sob os olhares da jovem que não me desfitava, murmurei:

— Louvado seja Allah que fez nascer a bondade e o carinho no coração das mulheres!

E era minha intenção descansar mais algum tempo naquele aprazível lugar quando surgiu de repente, vindo não sei de onde, um homem de má catadura, com modos abrutalhados de salteador. Era o marido dá jovem e o dono da tenda.

Ao notar a minha presença, interpelou logo a esposa:

— Quem é esse homem? Que faz aqui?

— É um hóspede — replicou a rapariga.

— Não quero saber de hóspede! — replicou, com azedume. — Enxota-o já daqui, antes que eu perca a paciência!

Ao ouvir tal ameaça, montei a cavalo e fugi, a galope, daquele exaltado muçulmano!

Depois de caminhar muitas horas sem parar, cheguei, finalmente, perto de outra tenda que parecia maior e mais rica do que a primeira.

Uma mulher que se detinha junto à porta perguntou-me com visível rispidez?

— Quem és? Que desejas?

Contei-lhe que era um viajante transviado pelo deserto e pedi-lhe que me desse um pouco d’água, algumas tâmaras e uma côdea de pão.

— Em minha tenda não há lugar para hóspedes — atalhou logo. — Detesto chacais que nos importunam implorando água e pão!

— Uma mulher que se detinha junto à porta, perguntou-me, com visível rispidez: — Quem és? Que desejas?

Surpreendido por tão grosseiras e impiedosas palavras (Allah se compadeça daquela mulher), já ia afastar-me, quando surgiu por detrás da tenda um homem, de fisionomia bondosa, ricamente trajado. Era o marido daquela má criatura e o dono da tenda.

O cheique, aproximando-se de mim, estendeu-me amavelmente a mão:

— Bem-vindo sejas, ó desafortunado amigo! Serás meu hóspede e aqui terás pão, água e boa sombra.

E fez-me apear do cavalo, convidando-me a entrar em sua tenda, e foi ele próprio quem me trouxe saborosas frutas e doces secos.

Achei graça à maneira como essa segunda acolhida contrastava com a primeira, inclusive a alternação de sentimentos dos dois casais, e pus-me a rir gostosamente.

— De que te ris? — perguntou ele.

Contei-lhe, sem nada ocultar, o que me havia acontecido na primeira tenda: a mulher me recebera bem, ao passo que o marido só tivera para mim palavras maldosas, cheias de rancor. E que o contrário, exatamente, sucedia então: a mulher me recebera mal e o marido fora para mim de uma bondade cativante e sem limites!

— Não lhe vejo motivo para admiração ou riso — respondeu-lhe o meu bom hospedeiro. — Até é bem natural que assim haja sucedido!

E como eu o fitasse muito admirado, ele acrescentou:

— Aquela mulher que te acolheu, na primeira tenda, é minha irmã, ao passo que o seu marido é irmão de minha mulher!

E concluiu, em voz baixa:

— Quantos lares há, pelo mundo, meu amigo, que são exatamente como as duas tendas que encontraste no deserto!

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida. 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Caldeirão Poético n. 11


Daqui Deste Âmbito Estreito

Daqui, deste âmbito estreito,
Cheio de risos e galas,
Daqui, onde alegres falas
Soam na alegre amplidão,
Volvei os olhos, volvei-os
A regiões mais sombrias,
Vereis cruéis agonias,
Terror da humana razão.

Trêmulos braços alçando,
Entre os da morte e os da vida,
Solta a voz esmorecida,
Sem pão, sem água, sem luz,
Um povo de irmãos, um povo
Desta terra brasileira,
Filhos da mesma bandeira,
Remidos na mesma cruz.

A terra lhes foi avara,
A terra a tantos fecunda;
Veio a miséria profunda,
A fome, o verme voraz.
A fome? Sabeis acaso
O que é a fome, esse abutre
Que em nossas carnes se nutre
E a fria morte nos traz?

Ao céu, com trêmulos lábios,
Em seus tormentos atrozes
Ergueram súplices vozes,
Gritos de dor e aflição;

Depois as mãos estendendo,
Naquela triste orfandade,
Vêm implorar caridade,
Mais que à bolsa, ao coração.

O coração sois vós todos,
Vós que as súplicas ouvistes;
Vós que às misérias tão tristes
Lançais tão espesso véu.
Choverão bênçãos divinas
Aos vencedores da luta:
De cada lágrima enxuta
Nasce uma graça do céu.


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, 
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Súplica

Dá-me, Senhor, a benção que resume
a certeza de que, crescendo aos poucos,
hei de chegar a ver o excelso lume
- privilégio dos bons, quiçá bem poucos!

Dá-me a graça de olhar, sem ter ciúme,
namorados aos pares, de amor loucos,
da saudade a esquecer o frio gume
e o coração no peito a dar-me socos!

Dá-me ver rosas, mesmo em vaso alheio,
a enfeitar este mundo, às vezes feio
- feio porque o egoísmo assim o quis!

Dá-me um punhado tenro de esperanças…
Dá-me o riso espontâneo das crianças…
- Mais nada eu peço, para ser feliz!


A Duas Flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!


A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


O Louco 

Deu a louca no louco,
e ele se pôs no quintal:
imagina que é outro.

A cara do louco tem cara
de todo mundo que passa.

Para o louco, tudo tem graça.

A graça do louco tem ares
de todo louco que empaca.

Para o louco, nunca tem maca.
Então, como se fosse costume,
ele vira um canário, que vira 
uma flor, que vira uma nuvem,
e o dia, louco, passa e desvira
o pobre louco em vaga-lume.

Deu a louca no louco,
e ele se pôs no quintal:
imagina que é louco.

domingo, 24 de junho de 2018

Trova 311 - Nei Garcez (Curitiba/PR)


Caldeirão Poético n. 10


REBELDIA

Para não repetir
o modelo
que me apresentaram,
escrevi roteiro contrário.
Fixação insana,
não ser igual.
Desperdício e cansaço.

Acordei.
Soltei balaios
de rebeldias e sofrimentos.

Moldes vazios,
insinuo passos que são só meus
e jeito próprio de andar,
para escrever
outro enredo,
nova história...


INTERROGAÇÃO
                         
     Quem és?...Quem sou?...O que será de nós
na árdua corrida em busca do infinito,
o passo exausto impulsionado empós
de uma presença que se estende ao mito?!

Quem és?! Quem sou?! Indício ou negação
do feito máximo de um Deus, ou sonho
do Criador  que a Si pede perdão,
por ter plasmado um monstro assim medonho?!

O erro estende-se, a trama encobre a luz!
A treva expande-se, o desmando avança!
A fatuidade nega a voz da Cruz!
Falsos  ideais afiam sua lança!

Momento amargo!... A Humanidade, enfim,
trêmula indaga e teme os maus destinos!
Definha a última flor do seu  jardim,
espinhos vêm coroar-lhe os desatinos!

E sem saber quem sou... e, tu, quem és,
seguimos, de olhos fitos nas estrelas,
a empoeirar no solo os pobres pés
e a conter n´alma,  o anseio de colhe-las!


OCEÂNICA

Na partida, um oceano de revolta
cala meu peito em descontentamento.
– Vais aonde? – eu pergunto – onda tão solta? 
E ela me corta o coração por dentro.

Sou areia, sou rocha e, em meu tormento,
choro e declamo, e o fogo me devora;
qual vulcão que nos mostra o epicentro,
outro vulcão me nasce aqui por fora.

Na partida, eu prometo consolar-me
do vácuo que me tolhe. E, sem alarme,
no amor a Deus apenas me concentro.

Meu mundo é solidão, é só saudade
de quem levou minha tranquilidade,
de quem partiu meu coração por dentro.



EM FLOR

Circulo nesta alameda muito bela
e, por entre os bancos da praça,
existe em toda a parte, a graça
que aos olhos atentos se revela.

Não sei se minha - ou se é dela
a pureza de vista sem uma jaça
e essa doçura longe da desgraça,
no encanto desta árvore amarela.

Como se tudo fosse um colorido véu,
bem cortado contra o azulão do céu,
está um ipê (em flor) que contemplo.

E escassa é minha palavra, impotente,
para agradecer tal magnífico presente,
que embelezaria até o mais rico templo.


UMA LÁGRIMA DE AMOR 

Sonho com uma lágrima de amor, 
aquela que renova uma esperança, 
que traga para mim, nova aliança 
e me faça esquecer tamanha dor… 

Sonho com uma lágrima de amor 
que me inspire novo alento e confiança, 
aquela que me encha de bonança 
e expresse um sonho bom! Seja o que for. 

Uma lágrima de amor que inspire versos, 
rimas perfeitas, vendavais dispersos, 
que ressuscite os sonhos que mataste. 

Que leve os crepúsculos tristonhos, 
saudade das saudades dos meus sonhos
e a névoa das lembranças que deixaste.


CESSAR FOGO 

É minha livre e espontânea vontade
acionar o computador amigo
e no silêncio da criatividade,
eu digito a senha e, feliz, prossigo.

Com leveza, dou a palavra ao Sonho
que reage ante a Razão encrenqueira;
a briga antiga me torna tristonho,
ferido pela praxe rotineira.

O Sonho quer contar coisas de flores
sem reter sucata de desamores...
A Razão insiste em falar da vida,

dessa que, muitas vezes, é bandida.
E o Texto se zanga, se insurge e grita...
quer liberdade na palavra escrita!


MARÍLIA

Quisera ser, Dirceu, tua Marília,
a musa que inspira os versos teus,
saber que me dedicas tanto amor
que possa se juntar aos sonhos meus.

Tu e eu enlaçados, na campina
envolvidos, entregues ao afã.
Bucólica paisagem descortina
miragens, ao som das notas de Pã,

borboletas, pássaros e flores,
aromas, doces toques e sabores.
Cativa de teus braços tu me fazes!

Embevecido, Dirceu, te inclinas
e de meu corpo agora entorpecido
sorves todas as gotas cristalinas.


CAUSA MORTIS

Todo mundo que chegava 
ao velório do Candinho, 
penalizado, falava: 
- Morreu como um passarinho. 

Um bebum que ali se achava, 
curioso, entre o burburinho, 
a cada passo escutava: 
- Morreu como um passarinho. 

Chega alguém que, comovido, 
pergunta-lhe ao pé do ouvido: 
- De que a morte foi causada? 

E o bebum, em tom de prece: 
- Também não sei, mas parece 
que foi de uma estilingada.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Iroquês: A Busca da Cura)


Nekumonta, o guerreiro iroquês, nunca matou um animal por desporto e adorava as plantas e as árvores à sua volta. 


Quando uma terrível praga caiu sobre a sua aldeia, a sua bondade para com a Natureza foi recompensada.

O Inverno chegara à aldeia de Nekumonta e a neve era muita. Mas algo pior do que a neve viera visitar a aldeia nesse ano: uma praga terrível. Ninguém parecia imune - homens, mulheres e crianças tinham morrido por causa dela. Aqueles que ainda não haviam sido apanhados pela praga estavam cansados de cuidar dos doentes e de se despedir dos mortos.

Nunca houvera tal tristeza na aldeia. Maridos que perderam as mulheres. Mães que perderam os filhos. Irmãos que perderam as irmãs. Famílias inteiras arrasadas. Com a neve veio a praga... e com a praga veio a tristeza e o desespero.

Nekumonta perdera toda a sua família com esta doença terrível - toda, isto é, menos a sua bonita mulher, Shanewis. Mas agora ela apanhara a doença e os seus dias entre os vivos estavam contados. Ela chamou Nekumonta e insistiu para que ele a levasse para fora da aldeia.

Quando ele protestou, ela disse:

- Marido, sabemos que a morte virá, quer eu esteja agasalhada quer esteja ao ar livre num lugar onde possa ouvir os espíritos dos meus queridos mortos a chamar por mim. Por favor, por favor, faz o que te estou a pedir.

Assim, Nekumonta enrolou a sua amada em peles e levou-a para o ar livre, pousando-a num lugar limpo de neve. O céu cinzento encheu-se dos espíritos daqueles que haviam partido desta vida, e chamaram por Shanewis.

- Junta-te a nós! - gritaram. - Livra-te da dor e do sofrimento trazidos pela praga.

Mas Nekumonta não queria saber daquilo para nada.

- Não dê ouvidos aos chamamentos deles até eu voltar da minha busca - pediu à esposa moribunda. - Vê depois se a única alternativa é juntar-te a eles.

- Que busca? - perguntou Shanewis, a testa alagada em suor.

- Sabemos que Manitu plantou ervas medicinais - disse ele. - Vou procurá-las e trazê-las para ti e para o nosso povo.

- Vou ficar à espera, marido - disse Shanewis -, porque só tu conseguirás levar a cabo tal tarefa.

Para muitas tribos, Manitu significa o espírito que está em tudo desde as rochas e as plantas aos humanos. Para os Iroqueses, Manitu é o nome dado ao maior e mais poderoso de todos os deuses. As suas ervas medicinais curariam Shanewis... se o marido as conseguisse encontrar.

Com a mulher fora do calor do lar, Nekumonta partiu em busca das ervas medicinais.

Teria sido uma tarefa difícil no melhor dos tempos, mas tornou-se ainda mais difícil pela neve que cobria a maior parte das terras. Nekumonta teve de escavar na neve para tentar encontrar as ervas e nem sequer sabia onde é que elas estavam plantadas. Com os conhecimentos que tinha da Natureza, só conseguia imaginar onde é que elas provavelmente cresceriam.

No fim do primeiro dia, um coelho passou a saltitar por Nekumonta, enquanto ele, de joelhos, escavava a neve com as mãos.

- Sabes onde é que Manitu plantou as ervas que ajudarão a curar o meu povo? - perguntou Nekumonta, mas o coelho não sabia e continuou o seu caminho, deixando o seu rasto na neve.

Mais tarde, quando a escuridão surgiu no fim do curto dia de Inverno, o guerreiro iroquês avistou um urso-pardo a olhá-lo das profundezas da floresta. Nekumonta perguntou ao urso pelas ervas, mas o urso não sabia de nada, e desapareceu pesadamente por entre as árvores.

Na tarde seguinte, após uma longa caminhada, Nekumonta viu uma coelha a roer os rebentos de uma planta que despontava da neve. A coelha reconheceu-o e, sabendo que ele era amigo dos animais e não lhe iria fazer mal, não fugiu nem se escondeu.

Nekumonta afagou-a carinhosamente e disse:

- Todos na minha aldeia estão a morrer, e a minha mulher, Shanewis, está entre eles. Se sabes onde é que Manitu plantou as ervas medicinais, leva-me, por favor, até elas. São a nossa única esperança.

Mas a coelha não sabia onde é que Manitu plantara as ervas, de modo que arrebitou as orelhas e desapareceu na floresta. A história repetiu-se com todos os animais que encontrou. Ninguém o conseguia ajudar.

À terceira noite, Nekumonta estava prestes a desistir. Fraco e exausto, enrolou-se no seu cobertor e adormeceu.

Enquanto dormia, os animais da floresta reuniram-se.

- Nekumonta é um bom homem - disse o urso-pardo. - Só mata quando tem de ser, tal como os animais.

- E também trata das nossas terras com respeito - disse o coelho. Cuida das árvores e das plantas à volta dele.

- Acham que o devemos ajudar? - perguntou a coelha.

- Sim - disse o coelho. - Mas como?

- Talvez possamos pedir ajuda ao grande Manitu - sugeriu o urso-pardo. - Ele compreenderá que todos os seres vivos querem que Nekumonta seja bem sucedido na sua busca.

Assim, o coelho, o urso-pardo, a coelha e todos os outros animais juntaram-se numa clareira da floresta e pediram a Manitu para salvar Shanewis da praga. Manitu ouviu as suas preces e, sensibilizado pela lealdade dos animais para com um humano, decidiu ajudar Nekumonta.

Nessa noite, Shanewis apareceu em sonhos a Nekumonta - pálida e muito magra. Começou a cantar-lhe uma estranha e bonita cantiga, mas ele não conseguiu entender as palavras, que se transformaram de imediato no som de uma cascata.

Quando acordou, o som da cascata ainda lá estava com o seu coro de vozes cintilantes - tão pura e cristalina como a água da Primavera.

- Encontra-nos... Liberta-nos... Shanewis e o teu povo serão então salvos.

Mas apesar do som maravilhoso, não havia nenhuma cascata - nem sequer um pequeno riacho.

- Quem és tu? - gritou Nekumonta.

- Somos as Águas Medicinais - disse o coro. - Liberta-nos.

- Onde estás? - gritou Nekumonta, desesperado, pois o coro de vozes cintilantes ouvia-se muito perto, embora não o conseguisse ver.

- Liberta-nos - cantou o coro uma vez mais.

Com novo alento, Nekumonta procurou por todo o lado, mas não conseguiu descobrir as Águas Medicinais em lado nenhum... embora a voz do coro se mantivesse forte. Percebeu então porquê. As Águas Medicinais corriam mesmo por baixo dos seus pés. Eram uma nascente subterrânea!

Observado pelos animais da floresta, Nekumonta afastou a neve para o lado e golpeou o duro solo com uma pederneira, até que um jato de água se elevou no ar e começou a correr pela encosta abaixo. Descobrira as Águas Medicinais!

Esgotado, Nekumonta saltou para as águas geladas e banhou-se nelas. Os poderes mágicos das águas deram-lhe força, e o cansaço desapareceu subitamente. Sentia-se mais forte que nunca.

Encheu um odre de Águas Medicinais e correu pela encosta abaixo até à aldeia. Os outros aldeões saíram a correr das suas tendas para o cumprimentar.

- Estamos salvos! - gritou. - Estamos salvos!

Em breve, toda a gente da aldeia tinha bebido e se tinha banhado nas águas e estava de novo de boa saúde, inclusive Shanewis. Agradeceram a Nekumonta do fundo dos seus corações.

Quando soube do papel que os animais tinham desempenhado, Nekumonta agradeceu-lhes a sua bondade. Em troca, os animais deram graças ao grande Manitu, que é, afinal de contas, senhor de tudo. Nekumonta e Shanewis viveram muitos Verões e tiveram muitos filhos.
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NOTA:

Iroqueses (em inglês e francês: Iroquois, pronunciado irocuá) ou Haudenosaunee 

Os iroqueses de antigamente eram primariamente nômades. Até o século XVII, formavam o que é atualmente chamado de nação iroquesa. Atualmente, esta nação indígena é composta pelos povos Seneca, Cayuga, Onondaga, Oneida, Mohawk e Tuscarora, formando uma confederação distribuída entre o Canadá e os Estados Unidos (principalmente no Estado de Nova Iorque e na província de Quebec). Esses grupos falavam línguas semelhantes e viviam perto uns dos outros. Algumas pessoas dizem que, pelo fato de ter durado centenas de anos, a Nação Iroquesa foi um dos exemplos que inspirou os fundadores dos Estados Unidos em sua organização política. Uma sexta tribo, a dos tuscaroras, se juntou à confederação em 1722.

Os iroqueses foram estudados, no século XVIII, pelo missionário jesuíta Joseph François Lafitau, que chegou a conviver com eles. Sua obra, Mœures des Sauvages américains comparées aux mœurs des premiers temps, publicada em 1724, descreve os princípios básicos da sociedade iroquesa, principalmente em relação a sua matriarcalidade e matrilinearidade. Lafitau abordou também os ritos de casamento, os jogos, lazer, doenças, enterros, língua, caça, educação e a divisão de trabalho entre os iroqueses, enfocando seus estudos na religião. Para ele, os iroqueses possuíam a sua religião (diferentemente de pensadores anteriores, que afirmavam que os índios não tinham religião alguma), embora esta não fosse tão organizada quanto a católica. Diz que os iroqueses, embora possuíssem religião, eram desprovidos de leis e política.

Ao estudar os iroqueses, Lafitau distinguiu características positivas (como a coragem) e negativas (como vingança e cobiça), inovando ao utilizar o método comparativo (embora não o tenha inventado) ao comparar os iroqueses aos heróis de Homero (na comunidade científica europeia da época, se idealizavam os gregos e romanos). Nesse sentido, Lafitau enaltecia os iroqueses, ao dizer que as construções náuticas desses povos eram parecidas, mas também os denegria, afirmando que a brutalidade dos heróis de Homero não se distinguia da ferocidade dos iroqueses, ferocidade esta que ele considerava como sendo inata. Mesmo assim, a importância se deu pelo fato de que Lafitau deixou os nativos mais humanos, diferentemente de pensadores anteriores (como Mandeville) que assemelhavam os nativos a monstros.

A Economia dos iroqueses se focaliza na produção comunal e ao sistema combinado de horticultura e de caçador-recolector. As tribos da Nação Iroquesa e outras do norte do continente americano que compartilhavam idioma (iroquês), como o povo hurón, viviam na região que hoje é o Estado de Nova York e a Região dos Grandes Lagos. Compunha-se de seis tribos de antes da colonização europeia da América. Mesmo não sendo iroquês, o povo hurón entrava no mesmo grupo linguístico e compartilhava economia com os iroqueses.

Fontes: