segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Vinicius de Moraes (Parábola do homem rico)


Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência - eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez.

Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher.

- Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo.

Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim:

- É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.

- Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios.

- Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.

Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.

- Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.

Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica:

- Não é uma beleza, poeta?

Fonte:
do Original: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez 1969.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVIII


SERENIDADE

Cheguei enfim a essa serenidade
de quem sorri condescendente,
do homem que não pragueja, na vaidade
de impor aquilo que hoje pensa ou sente...

Desprezo a inútil religiosidade
e o fanatismo histérico de um crente...
Nem vestirei jamais a liberdade
nos dogmas de uma força onipotente!

Não afirmo mentiras nem me exalto,
toda verdade por mais forte é incerta
e não convenço por falar mais alto...

Libertei-me! E afinal concluí, na vida,
que a verdadeira voz que se liberta
não afirma nem nega... mas duvida!

SOFRER POR SOFRER...

Parti. Quis te deixar abandonada
às lembranças do amor que nos prendeu.
Trouxe comigo, na alma torturada,
um ciúme atroz ciumentamente meu...

Fugi... fuga cruel, desesperada,
quando supus que nosso amor morreu...
Fuga inútil, se ainda és a minha amada,
se continuo inteiramente seu!

Não, não me livro deste amor nefasto,
nem dessa angústia, dessa luta, desse
ciúme que aumenta quanto mais me afasto...

E hoje concluí, fugindo de meus passos,
que sofrer por sofrer, antes sofresse
como sempre sofri... mas nos teus braços!

SOLILÓQUIO

A poesia chega forte como uma hemoptise.
Mancha de vermelho o papel  e se transforma em palavra.
Vem em golfadas, depois de longos períodos de ausência.
Rompe a inércia, abruptamente, como um objeto solto no ar!

Oh! a ânsia de não poder contê-la tantas vezes nas palavras,
vê-la desperdiçar-se, fugir, entranhar-se no chão,
como a água da chuva em terra seca.

Pequeninas e insignificantes taças são as palavras
de que disponho para servir meu pensamento.
Meu Deus!
como hei de conseguir conter nestas taças pequeninas,
feias e opacas, a torrente sonora e clara que não para,
que me afoga?

SONATA AO LUAR

Branca, tão branca, como se fosse feita
toda de luar,
- um luar humano...
- como se seu corpo fosse o maravilhoso teclado
de um piano
à espera de mãos de artista para o despertar

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
feito da espuma do mar,
mar de delícias, mar de meus anseios...
- adivinho a inquietação desse mar de mistérios
quando tremem as ondas vivas dos seus seios!

Branca, tão branca, como se fosse feita
da mais fina areia,
dessa areia que é luz embebida de sol
dessa areia que canta ao contato do mar!
Areia de unia praia impossível e desconhecida
numa enseada escondida
onde nenhuma vaga ainda foi se espraiar...

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
uma estátua vestida em mil véus de luar,
- branco luar de camélias e de lírios
que tem forma de mulher em meu olhar ;
um morno luar de amor, a viver em meus nervos,
como a lua, sobre os nervos deslumbrados
do mar!

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
num gesto heráldico e fino
um lírio esbelto no ar! ...
- um lírio de alma vermelha de rosa feiticeira
que abre os lábios úmidos, brejeira
para o sol beijar!

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
esta folha sem mancha onde escrevo os meus versos
a pensar,
- pensar que hei de compor na alvura de seu corpo,
versos do nosso amor, sem rimas nem palavras,
que ela só há de ler... a viver...
a vibrar...

Branca, tão branca, como o meu pensamento
antes de a encontrar.

SONETO À TUA VOLTA

Voltaste, meu amor... enfim voltaste!
Como fez frio aqui sem teu carinho....
A flor de outrora refloresce na haste
que pendia sem vida em meu caminho.

Obrigado... Eu vivia tão sozinho...
Que infinita alegria, e que contraste!
-Volta a antiga embriaguez porque voltaste
e é doce o amor, porque é mais velho o vinho!

Voltaste... E dou-te logo este poema
simples e humilde repetindo um tema
da alma humana esgotada e envelhecida...

Mil poetas outras voltas celebraram,
mas, que importa? se tantas já voltaram
só tu voltaste para a minha vida…

SUPREMA  IRONIA

Não digas que não sofro - o meu sofrer profundo
com um sorriso nos lábios muita vez apago...
A dor - é como a pedra que cai - vai pro fundo
sob a face serena e tranquila do lago...

Um segundo de pura alegria - um segundo
muitas vezes me basta, e já me dou por pago...
Se invejo, invejo aquele que não tendo um mundo,
tem mundo para além do olhar ardente e vago...

Que eu não ando a dizer que sofro e me atormento!
É covardia a gente maldizer-se à toa
a viver esta vida entre um ai e um lamento...

Eu, não! Bem sei que sofro, mas sofrer - que importa ?
Digo aos homens que o mundo é belo, a vida é boa!
E... suprema ironia... a minha voz conforta!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Vingança)

Obs: As palavras com *, a explicação está nas notas ao final do conto.
____________________________

Quando Madame d’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa trupe parisiense que fez as delicias dos frequentadores do Cassino Franco Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que Madame d’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin (farsante) qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América, endinheirada e feliz.

O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com Madame d’Arbois.

Por esse tempo dissolveu-se a trupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.

Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e Madame d’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária.

Ela era uma mulher bonita, alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam ambos desejar….
---

Tudo cansa. Ao cabo de um ano, Madame d’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companhia brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato, convidando-a, nada mais nem menos para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.

O jovem Comendador Cardoso pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte – Madame d’Arbois chamava-se Charlotte – não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!

– Mas não, mas não! Não é dinheiro, meu pobre querido – obtemperava Lolotte. – Sinto que farei uma coisa ruim se não voltar ao teatro! Bem ... vamos ver ... seja legal ... você tem que concordar ... (*)

Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo, e interveio com muito empenho:

– Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá: não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no banco todos os meses! Não vás tu privá-la desse pecúlio!

Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, Madame d’Arbois estreava-se no papel da protagonista de uma opereta.

Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas  coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo.
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Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim.

Uma vez encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia, que logo se retirou, dizendo:

– Adeusinho, comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado.

Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadoso da sua roupa!

Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se, quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista, perto do teatro.

Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.

O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não perdeu o sangue-frio, e começou a fingir que estava a ensaiar.

– É como vos digo, Princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus ermos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!…

Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à Princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco:

– Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!

E saiu arrebatadamente.

– E agora? – perguntou o cômico.

– Oh! Ele voltará! – afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo.

E foram deitar-se.
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O jovem Comendador Cardoso não voltou, e Madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família – mulher e filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!

Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as primeiras trinta representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia…
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A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em beneficio do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à "festa artística", anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde este nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.

Chegou a noite do espetáculo. Às sete horas e meia as torrinhas (*1), os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e toda aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas (*2) aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.

De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta ao mesmo tempo que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então que se escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O… o… 0k… das torrinhas… Eram nove horas.

Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture.

Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu.

Passaram-se alguns minutos.

Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu (*3) no proscênio (*4) e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram: Psiu! psiu! – e o barulho cessou.

– Respeitável público – disse o primeiro ator cômico – o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz Madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.

Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentando e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador.

De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contra-regra, costureiras, etc. – mandadas à procura de Madame d’Arbois.

Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando Madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse.

Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.

A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas pode ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.
---
 
Onde estava Madame d’Arbois?

No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de Princesa Briolanja, que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.

– Ah! Ah! – pensou a francesa com um sorriso de triunfo. – Voltou ou não voltou?

E abriu a carta:

"Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condição: deixarás de representar hoje no beneficio do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que ai te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficaras em minha companhia. Se não, não. – Cardoso."

Princesa Briolanja leu e releu esse bilhete.

Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas
letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação
feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se
saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?

Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes, desesperado, apelava para a paciência do público.
---

Ao entrar no hotel, Madame d’Arbois perguntou a um criado:

– O Comendador Cardoso?

– Não está, mas deixou um bilhete para Madame d’Arbois. A senhora?

– Sim, sou eu.

E a desgraçada leu o seguinte:

"Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. – Cardoso."
____________________
Notas do blog:

* No conto esta frase está em francês. Traduzi para melhor compreensão do que está escrito.
– Mais non, mais non! Il ne s’agit point d’argent, mon pauvre chêri – obtemperava Lolotte. – Je sens que je ferai une g’rosse maladie si je ne rétourne pas au théâtre! Eh bien… voyons… sois gentil… Il faut que tu y consentes…

*1 Torrinha – nos teatros, camarote ou galeria da última ordem de assentos, geralmente localizada no pavimento superior

*2 Chufa – gracejo; zombaria; mofa; sátira; caçoada; troça; brincadeira.

*3 Surdir – emergir; vir à tona.

*4 Proscênio – Parte anterior de um palco, que avança desde a boca de cena até seu limite de separação da plateia.


Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

domingo, 27 de outubro de 2019

Varal de Trovas n. 100


Carolina Ramos (O Anticlerical)


Dizia-se anticlerical. Tinha suas razões. Questionáveis umas. Outras, infelizmente, não. As vezes, um ou dois maus elementos conseguem estremecer as melhores conceituações dos mais radicais.

Embora dizendo-se anticlerical, tinha amigos padres. Bons amigos com quem conversava e trocava ideias. E com quem discutia sobre qualquer assunto, dentro da maior abertura e camaradagem que só as grandes amizades propiciam.

Veja-se o caso do padre português, canceroso, esquecido de todos, que o teve ao pé do leito, em seus derradeiros dias, revoltado com o ostracismo em que morria o velho sacerdote, seu amigo desde os tempos de congregação mariana.

Sim, tinha amigos padres. Amigos sinceros. Mas, embora retribuísse essa sinceridade, dizia-se anticlerical. Razões teria.

Natal! O avô anticlerical esperava as netas à saída da missa vespertina. Foi quando aproximou-se dele um rapaz de pés encardidos, descalços.

— Olhe, eu vim da Bahia... preciso de sapatos... procurei a Assistência Social e... mandaram que eu me virasse... me dê um dinheirinho, sim?

As netas chegavam. O povo escorria pela porta da igreja como água derramada escada abaixo.

Vestido informalmente, de bermudas, e sem um níquel sequer nos bolsos, o avô anticlerical não hesitou. Para surpresa das meninas, descalçou rapidamente o par de tênis novos e entregou-o ao pedinte, voltando descalço para casa, sem esperar pelo agradecimento.

Naquele fim de tarde, as guirlandas de luzes coloridas, dependuradas nas sacadas vizinhas, ganharam brilho especialíssimo. É que o Natal, de repente, ficara mais Natal do que nunca!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) I


1
Nunca fico sem remédio
para dor em casa.
Tenho vários livros de filosofia.
Para qualquer dor.
A qualquer hora.

2
Somos propensos
a praticar
a horizontalidade.
Quase rés-do-chão.

Mais alto devo subir,
mais alto devo olhar.
Goethe a sugerir.
E apregoar.

Pedras
penhascos
planaltos.

Planos altos.

Surgir
subir
sumir.

Praticar
a verticalidade.
Sempre.

3
Não sei se sou
apenas um
ou sou um
apenas.
Sei que sou
um.

4
De vez em quando
lavo
meu relógio de parede.
Em meio
a tanta sujeira
podridão
mesquinhez
falsidade
preconceito
brutalidade
insensatez
é bom termos
algumas horas
puras
limpas
saudáveis
verdadeiras.

5
No espelho:
- Puxa, cara, como você está bonito ?
Quantos anos tem ?
- Meu sorriso é a minha idade.
- Verdade ? Como assim ?
- Anos de vida se contam com paz de
espírito, alegria, otimismo, jovialidade,
e o sorriso na face.
- É... parece !
- Então sorria também. Sempre.

6
Leitor contumaz,
leio até mesmo
o que não me apraz,
e que
daqui a pouco
me satisfaz.

7
Indícios de primavera:
primeiros acordes
do pássaro desconhecido,
fantástico
cantador,
encantador
monástico.
Primeira monção
de setembro.

8
A vida é um rio
que segue
em meandros
na planície,
nas encostas,
nas montanhas.
Vêm pedras,
vêm flores,
vêm espinhos,
alternância
nos caminhos.
Somos um barco
a navegar
em águas
serenas,
rápidas,
caudalosas.
Calmarias,
rebordosas.
Rio somos, rio vamos.

9
Estuário
das leituras
de variadas fontes,
sempre mais
inundado
de águas-conhecimentos.

10
Em nome da cultura
masco palavras,
engulo ideias,
regurgito convicções.

Fonte:
Enviado pelo poeta.

IV Concurso de Trovas da UBT Cachoeira do Sul/RS (Trovas Premiadas)

UBT Seção Cachoeira do Sul orgulhosamente divulga os nomes dos vencedores do seu IV concurso de TROVAS

VETERANOS

Tema: Chuva


Bem-vinda a chuva que encerra
a seca triste, inclemente,
e rega o ventre da terra
para brotar a semente!
Francisco Garcia

A falta de empenho estraga
os sonhos de ser feliz
que a chuva do tempo apaga
o que a gente escreve a giz!
Arlindo Tadeu Hagen

O tempo às vezes destroça
o amor calmo...ou mesmo arisco:
o nosso foi chuva grossa
e hoje é apenas um chuvisco!
Edmar Japiassú Maia

Eu tentei — você bem sabe —
esquecer nossas andanças,
mas não há chuva que acabe,
com fogaréu de lembranças.
José Almir Loures

Age com calma e medida,
em dose certa e sensata...
mesmo a chuva que dá vida,
quando é demais, também mata!
Maria Marlene Nascimento Teixeira Pinto

MENÇÕES HONROSAS

As gotinhas transparentes
da chuva formam um véu
e, qual maná são presentes
que Deus envia do céu!
Alba Helena Corrêa

O tom da chuva parece
algum recado de Deus
ao julgar o tom da prece
que ele ouviu dos filhos seus.
Plácido Ferreira do Amaral Júnior

Sobre os lábios desprezados,
em meio a tanta aridez,
meus olhos, dois céus nublados,
prometem chuva outra vez...
Jerson Brito

É quando a chuva fininha
chega e molha a tarde lenta,
que a saudade vem, se aninha,
e a solidão mais aumenta...
Gilvan Carneiro

Nas chuvas ou na estiagem,
um pomar ao pé da serra
é um prêmio a quem tem coragem
de tocar as mãos na terra!
Renata Paccola

MENÇÕES ESPECIAIS

Quando a chuva é generosa,
torna-se farta a colheita
e a natureza orgulhosa,
de flores, frutos , se enfeita!
Alba Helena Correa

O relâmpago, o trovão,
a festa da agricultura...
A chuva engravida o chão
e do chão nasce a fartura.
A. A. de Assis

A chuva é drama e comédia,
pois, nessa dupla função,
se, às vezes, causa tragédia,
também dá vida ao sertão!!!
Maria Madalena Ferreira

A chuva leve e meu pranto
gotejando em sintonia
alternam, num acalanto,
a paz e a melancolia!
Renata Paccola

A chuva que cai lá fora,
parecendo tempestade,
é meu coração que chora
num dilúvio de saudade.
Antônio Francisco Pereira

NOVOS TROVADORES

Tema: Chuva

VENCEDORES


Cai chuva! Cai no telhado,
no chão e na plantação.
Faz brotar todo o roçado,
na secura do sertão.
Maria Eunice Silva de Lacerda

Na cidade, ela castiga,
irrita a população,
mas, na roça a chuva instiga
o verde a brotar do chão.
José Carlos Defilippo

A chuva é água corrente
que alimenta nossas vidas
para seguirmos em frente
limpando as fundas feridas.
Adilson Roberto Gonçalves

Ao som de linda sonata,
brilhando no meu rincão,
a lua, chuva de prata,
irriga o meu coração.
Regina Rinaldi

Comissão Julgadora:
Flávio Stefani,
Lisete Jonhson e
Marília Oliveira

PARABÉNS AOS VENCEDORES!!!

Fonte:
Jaqueline Machado (Facebook)

Academia de Letras de Teófilo Otoni (Convite para Solenidade de Premiação: 9 de Novembro)


CONVITE
 
Aos Membros Correspondentes da ALTO (Academia de Letras de Teófilo Otoni) classificados no IV Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho:

Amalri Nascimento, Rio de Janeiro – RJ
Antonia Aleixo Fernandes, São Paulo – SP
Caracy Teixeira Bessa, Salavador – BA
Carmelita Ribeiro Cunha Dantas, Aparecida de Goiás – GO
Celso Gonzaga Porto, Cachoeirinha – RS
Cláudio de Almeida Hermínio, Belo Horizonte – MG
Cláudio Rogério Trindade, Ijuí – RS
Érika Lourenço Jurandy, Rio de Janeiro – RJ
Evandro Ferreira, Caucaia – CE
Fátima Sampaio, Belo Horizonte – MG
Fernando Catelan, Mogi das Cruzes – SP
Isabel Cristina Silva Vargas, Pelotas – RS
João Bosco de Castro, Bom Despacho – MG
José Feldman, Maringá – PR
Juracy Nonato Ferreira, Santa Helena de Minas – MG
Lucivalter Almeida, Nazaré – BA
Marcelo de Oliveira Souza, Salvador – BA
Margareth das Dores Rafael Moreira Costa, Itambacuri – MG
Marina Barreiros Mota, Palmas – TO
Odenir Follador, Ponta Grossa – PR
Odyla Paiva, Rio de Janeiro – RJ
Paulo Roberto de Oliveira Caruso – RJ
Rosilene Alves, Padre Paraíso – MG
Sílvio Parise, East Providence – EUA
Teresa C.C. M. Azevedo, Campinas – SP
Valter Bitencourt Júnior, Salvador – BA
Vânia Rodrigues Calmon, Vila Velha – ES
Walter Luiz Cid do Nascimento, João Dourado – BA

Temos a elevada honra de comunicar a Vossas Senhorias que a premiação ocorrerá em sessão solene, em comemoração ao Dia Nacional da Língua Portuguesa, da Cultura e da Ciência (Leis 5.579/70 e 11.310/2006).

Local:
Plenário da Câmara Municipal de Teófilo Otoni,

às 19:00 horas, dia 09 de novembro de 2019(sábado).


Na impossibilidade do comparecimento, o estojo com Troféu, Medalha e Diploma será enviado, via correios, para o endereço indicado pelo autor. Solicitamos, apenas, uma contribuição, no valor de R$ 30,00 (trinta reais), referente à despesa postal para envio da premiação.

1º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

2º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

3º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

Os trabalhos classificados do 4º ao 15º lugares, em cada categoria, receberão diplomas de Menção Honrosa e Medalha.

Saudações acadêmicas,
PROF. WILSON COLARES DA COSTA
Secretário-Geral

Fonte:
ALTO

sábado, 26 de outubro de 2019

Luiz Carlos Felipe (Aqui Del Rey!)

                       
                                                  PARTE  I

Arrumou os livros, ajeitou  o gorro e dirigiu-se à porta.

Um último olhar à sala vazia.  As carteiras em fila... a mesa do professor sobre um estrado - o quadro negro, limpinho.  Na parede um  crucifixo.

Jesus tinha um braço quebrado.

O professor Queiroz sempre se referia a isto, dizendo:

- Como se ao Senhor não lhe bastassem todos os padecimentos... ainda mais este  - um braço quebrado!  E isto, há quanto tempo! Quase cinco anos! Precisamos dar um jeito!

José lembrava-se bem de quando ali chegara: - delgado, tímido... com o bornal a tiracolo...  Fora  sentar-se ao fundo.

Mestre Queiroz captou-lhe a timidez:

- Aqui na frente, meu rapaz!

Lá se fora ele sentar-se no primeiro lugar, passando ruborizado entre os meninos, que o observavam. E ali estava, até hoje.

Aplicara-se bastante naqueles anos. Estudava muito. Até já arriscava o Francês.

- “Bonjour Monsieur - Quelle heure est-il, s’il vous plâit? Il est midi. Merci, monsieur.  Au revoir. ” (*)

Ficava sempre mais um pouco, após as aulas, para aprontar as lições. Na aldeia, a chama do candeeiro turvava a vista.

Mestre Queiroz dissera ao sair:

- Apague a luz.

Retornara, pouco depois, abrindo  a porta, metera cabeça pela fresta e advertira:    

- Não te esqueças da luz.

Lá fora, os latidos o sacudiram.

Apagou a luz e saiu.

                                              PARTE II

 O pátio estava vazio, as folhas rolavam pelo chão.

 Agitando os galhos desnudos a aura noturna fazia soar melodia monótona.

 No céu escuro brilhavam, esparsas, algumas estrelas.  Montes delineavam-se  ao longe.

Sob um carvalho, preso à corrente, Quinteiro latia.

José aproximou-se, repartia sempre o seu farnel com o cão.

- Toma Quinteiro, aqui está o teu bocado.

- Opa!... devagar, malandro! Assim, me levas a mão!

O animal rosnava baixinho.

- Não queres conversa enquanto comes?!

- Ingrato, divido contigo a merenda e nem escutas o que te digo.

O cão, agora, espojava-se na terra.

- Tens razão em estar satisfeito. Já comeste... estás em casa... eu, porém, tenho que andar uma légua para alcançar a minha aldeia, o meu Bizarril (**).

- E se assim é...  Já é tarde...  vou andando.

O cão lambia-lhe as mãos.

- Até amanhã.

Ao chegar à porteira, virou-se. O prédio da escola destacava-se na escuridão.

Nunca aquele lugar lhe parecera tão amigo e acolhedor.

Pensou em voltar. Não o fez.

Deixou cair a aldrava e pôs-se a caminho.
 
                                                           PARTE III
 
Noite fria.   A vegetação úmida exalava um cheiro forte.

José respirou fundo e abotoou o abrigo. Tinha já caminhado mais de meia légua e uma sensação estranha o acompanhava.
         
Entretanto, não sabia explicar o que sentia.

Conhecia tão bem aquelas várzeas e, agora, tudo parecia diferente. Olhava para os lados e... nada via, apenas a  escuridão soturna.

O cascalho rinchava às suas passadas, único ruído audível naquela imensidão.

De súbito, parou, virando-se num repente.

Quatro pupilas o fitavam com fria agudeza. Tinham o fulgor de duas tochas ladeando a estrada.

Ao firmar a vista, distinguiu corpos fortes e peludos, caudas baixas, orelhas atentas,  em riste...  bocas enormes, abertas num sorriso lúgubre:

- Lobos !

O primeiro ímpeto - correr ... anulado pelas pernas rígidas e o estômago convulsionado. Continuou a caminhar, enquanto  sentia  o suor viscoso  escorrer- lhe pelo corpo.

Os olhos ardiam, a respiração opressa... José buscava controlar-se.

Seu pensamento correu até a aldeia, onde o avô, àquele tempo, já  o estaria  a esperar, ao pé do lume crepitante.

Lembrava-se de suas palavras:

- Quando te deparares com algum perigo, reflete e não temas! Controla-te! O medo é o pior dos  inimigos!

Tais palavras  ajustavam-se perfeitamente àquela situação! E o avô ainda  calcara no alerta:

- Reflete! - O que distingue o homem do animal é a sua inteligência. 

Por ouvir dizer, pelos homens da aldeia, que os lobos gostavam de conversar, José começou a falar em voz alta:

- Olá amigos. Como estão os camaradas?

Ato contínuo,  passou a assobiar, buscando acalmar-se.

Parecia-lhe estranho que aqueles animais se aventurassem por tais lugares, àquela época do ano. Iniciava-se o outono.  E ainda havia muita  caça nas serras distantes.

Certamente, os lobos não estariam famintos, ou já o teriam acossado.

Olhou para trás... Os lobos continuavam a segui-lo, a guardar sempre a mesma distância.

As faces abertas, pareciam sorrir, sinistramente.

Próximo à entrada do povoado, José apressou o passo.

 Já via as primeiras luzes dos lampiões  nas janelas das casas de sua pequenina aldeia.

Lembrou que restara um pouco do alimento que levara... Abriu o bornal e lançou as sobras no chão, na esperança de aplacar a voracidade dos lobos.

Em vão. As feras, indiferentes ao seu gesto, mais e mais se aproximavam.

Quase à entrada da aldeia, lembrou-se do grito de socorro lançado pela personagem de uma das  muitas histórias, contadas por seu avô.

Acelerou o passo, quase a correr e, já a adentrar a aldeia, pôs-se a gritar, com todas as  forças que tinha: -   AQUI DEL REY, AQUI DEL REY! (***)

Com alívio, viu os aldeões movendo-se em sua direção.  Vinham-lhe em socorro, com tochas acesas, ancinhos  e facões, num alarido forte  para enfrentar e espantar  as feras,  quase aos calcanhares de José que, por sua vez, já  sem forças, quase a cair, viu-se  amparado pelos primeiros conterrâneos.

 Os demais arremeteram com suas armas contra os lobos que rapidamente,  recuaram fugindo  pela várzea escura.

Conduzido à casa do avô, José, ao vê-lo à porta a sorrir, correu a abraçá-lo,  demoradamente.

Sentados, agora, ao calor da lareira, no aconchego de uma casa repleta de amor, o neto deixou que as lágrimas lavassem o seu rosto cansado, enquanto ouvia do avô aquelas palavras que jamais haveria de esquecer:

-  Teu rogo de ajuda  foi ouvido, José. Deus sempre esteve contigo!  
_________________
Notas do Blog:
(*) Olá senhor - Que horas são, por favor? É meio dia. Obrigado senhor. Tchau.

(**) Bizarril – fica em Portugal, situado a 9 km de Figueira de Castelo Rodrigo, na freguesia de Colmeal. É um lugar encaixado entre as Serras do Cerejal e da Marofa, do lado direito da estrada que segue para Pinhel.

(***) “Aqui Del Rey!” Antigamente, um pedido para ser acudido pelos homens (soldados) do Rei. Usava-se, unicamente, em casos onde havia reais ou pretensas infrações à lei. Tem o sentido de gritos de pedido de socorro. Equivale a «(venham) aqui (da parte) del-rey»


Fonte:
Conto enviado pelo autor.

Heitor Stockler de França (Poemas Avulsos) II


AO ARREBOL DA TARDE
A casa onde ela mora fica à beira
De um bosque de pinheiros e rosais…
Tem na porta da entrada uma roseira
E glicínias nas cercas laterais.

Quando à tardinha, nuances augurais
Marcam no poente a hora derradeira
De um dia que se foi como outros mais,
Levando a mágoa, os sonhos, a canseira.

Ela, a desabrochar, botão de rosa
Abrindo para a vida tumultuosa
As pétalas de seda cor de opala,

Medita, na alma excêntrica do amor,
Que quanto mais nos causa dissabor,
Tanto mais prende e ao coração nos fala!…

CRISÁLIDAS

Crisálidas? Oh! não. Borboletas do amor,
Borboletas ideais
Que têm nas asas de ouro, pólen sedutor.

Borboletas que quando adejam nos florais
De um sonho encantador,
Parece que se vão, entoando madrigais…

Crisálidas? Oh! não.
Borboletas azuis de antenas perfumadas
Como um cravo em botão!...

Borboletas douradas,
Tão douradas, talvez, como a nossa ilusão,
Borboletas douradas ...

De asas feitas de paina e pétalas de rosas,
Numa manhã de sol e brisas odorosas.

Volitai, volitai, ó lindas borboletas,
Entre festões de palmas e violetas!

Que este belo festim, faça em alacridade
A velhice vibrar, vibrar a mocidade!...

DELICIOSO ANSEIO

Que bom estar contigo, além, distante,
Num recanto propício a namorados;
Onde se possa andar de braços dados,
Na asa de um sonho casto e delirante.

Que bom sentir a estuar teu colo arfante,
Ouvir tua voz de arpejos modulados,
Beijar os teus cabelos ondulados,
Embevecido — aventurado amante.

Enfim, que bom poder guardar comigo,
O veludo do teu olhar amigo,
Na volúpia de tua sedução.

Para depois, na minha soledade,
Fazer dessa ventura uma saudade,
Perene, viva no meu coração!…

E SÓ PORQUE TE ESPERO

Canto as horas, minutos, conto os dias
Que faltam para vires, ó Setembro,
E quase desespero.
E só porque te espero
Se me     afigura que te distancias
E ainda, estás mais longe que Dezembro!

Entanto, estás tão perto, à nossa porta
Sente-se o hálito da Primavera
Embalsamando os ares.
E logo que chegares,
Ressurgirá toda a verdura morta,
Na floração de gala que se esmera,

Bizarro mês dos poentes de rubi
E enluaradas noites vaporosas.
É sob o teu condão,
De eterna sedução,
Que a natureza vigorosa ri
Pela boca dos cravos e das rosas.

E só porque te espero
Se me afigura que te distancias
E, ainda, estás mais longe que Dezembro!
Mas, me conforto e já não desespero,
Porque hás de vir na pompa de áureos dias,
O rútilo Setembro!…

PRIMAVERA DO POETA

Nestas lindas manhãs edênicas de outubro,
De aroma de rosais e firmamento rubro,

Como é imponente o sol pelo infinito afora,
Após haver pintado o rosicler da aurora,

A Primavera é como uma mulher de gosto
Que aprimora o seu traje e a beleza do rosto . ..

É uma noiva feliz que desconhece a mágoa,
A espelhar-se no azul da transparência d'água.

Veste-se de esmeralda, ama o vivo das cores
E como pó de arroz usa o pólen das flores.

Banha-se de manhã no rócio perfumado
E traz sobre a cabeça a coifa de noivado.

Ela é o filtro do poeta e as tintas do pintor,
As cambiâncias da luz e os fascínios do amor.

Ó Primavera ideal, como vibro ao chegares,
Ao sentir-te no olor puríssimo dos ares,

Ao lembrar-me de ti, pensando que te vejo,
Parece-me que vou seguindo o teu cortejo.

E nessa ânsia febril de ver-te e de adorar-te,
Julgo que estou contigo aqui e em toda a parte.

Ó Primavera em flor! Neste justo alvoroço,
Eu deponho aos teus pés, meu coração de moço!…

  SONHO NUPCIAL
Manhã sublime aquela... que saudade!…
Como tocou minh'alma essa manhã.
O céu de anil se fez cor de romã,
Num arrebol de estranha claridade.

Julguei me, então, ria Hélade pagã...
Vi a aurora assistir com majestade
Romper o dia e ouvi, na imensidade,
Ecoar a flauta mágica de Pã.

E que vontade de partir...     Parti,
Para onde estavas a buscar-te, a ti,
Como quem busca um luminoso ideal.

E ao encontrar-te, que ventura imensa!...
Senti que dominei tua indiferença
E vislumbrei meu sonho nupcial!...

TEU CHALEZINHO
Teu chalezinho é um cromo, uma aquarela,
Mago arrebol que emerge da verdura...
Nele o teu fino gosto se revela,
Na estesia, na graça e na ventura.

Bem como a mim, a todos se afigura,
Que ali o teu sonho alcandorado vela,
Ante a maciez da calma e da doçura
De um céu azul que à noite se constela.

E é um bálsamo a quietude dos jardins,
Onde há essências de cravos e jasmins,
Narcóticos de estranha suavidade.

Vives, assim, no mais gracioso enlevo,
Como que à sombra de um enorme trevo,
Sob o fascínio da felicidade.

VENDEDOR DE JORNAIS

Olha o DIA, a GAZETA... olha o DIÁRIO
Em gritos estridentes anuncia
O garoto irrequieto, extraordinário,
Apenas o arrebol debuxa o dia.

Incauto, ao léu da sorte, pelo estuário
Da vida incerta, mesmo sem um guia,
É o sol da rua, o arauto-legionário
Do que a imprensa da terra noticia.

E embora caia a chuva, açoitem ventos
E frio glacial lhe tolha os movimentos
Do corpo forte, enérgico e jovial,

Corre a cidade em seu mister honroso,
Voltando à casa, à noite, vitorioso,
Como um Cruzado estoico do jornal!

Fonte:
Heitor Stockler de França. Curitiba e o sol: poesias. Curitiba/PR: Senai, 1983.
Livro enviado por Vânia Ennes.

David Martins (Frei João Sem Cuidados)


Frei João Sem Cuidados era, como pelo seu nome facilmente se depreenderá, um alegre fradinho simpático, despreocupado e um tudo-nada preguiçoso. Era anafado (gordo), tinhas as faces coradas e uns grandes olhos azuis de criança onde não havia lugar para a malícia. Quer chovesse, quer trovejasse, para Frei João todos os dias eram bons para louvar o Senhor Deus.

Um dia, o rei mandou que o trouxessem à sua presença.

- Ouvi dizer que tu és uma pessoa sem preocupações na vida - disse-lhe o rei.

- É verdade, Majestade! - respondeu o fradinho de sorriso prazenteiro, as mãos cruzadas sobre a barriga, pensando já nalguma moeda de ouro ou, melhor ainda, nalgum leitão assado com que o rei iria certamente presenteá-lo, depois de o ter feito vir até ao palácio.

- Não é justo - retorquiu o rei, decepcionado. - Tu, um simples frade, és tão feliz, e eu então, pela parte que me toca nesta vida, tenho tantas preocupações!

Enquanto o rei assim falava, o sorriso de Frei João ia esmorecendo.

- Pois, fica sabendo que amanhã terás que voltar aqui ao palácio e terás que me responder a três perguntar que te vou fazer.

- E que perguntas são essas, Majestade? - inquiriu Frei João, já apreensivo.

- A primeira pergunta é: «Quanta água tem o mar?». A segunda é: «Quanto pesa a Lua?» e a terceira: «O que é que eu estou a pensar?».

Frei João Sem Cuidados despediu-se e saiu, desta vez não fazendo jus ao nome por que era conhecido, já que o rei tinha efetivamente conseguido deixá-lo muito preocupado, pois não fazia a menor ideia das respostas que deveria dar no dia seguinte. Ele, habitualmente tão alegre e bem disposto, estava com um semblante tão infeliz que metia dó. Pelo caminho encontrou o moleiro, seu amigo desde sempre.

- Que tens tu, Frei João? Estás com uma cara que parece que te morreu alguém.

Frei João contou ao moleiro a conversa que tinha tido com o rei, as perguntas que Sua Majestade lhe fizera e a aflição em que estava por não saber o que responder.

- Ah, então, é só isso? Ora deixa cá ver o teu hábito que amanhã quem vai ao palácio sou eu, e não te preocupes, que o rei não há de ficar sem respostas para as suas perguntas.

No dia seguinte, o moleiro apresentou-se no palácio vestido de frade, com o capuz pela cabeça. O rei nem se apercebeu da troca de personagens, e logo perguntou:

- Ah, já cá estás! Então vamos lá a saber:  quanta água tem o mar?

- Saiba Vossa Majestade que será muito fácil saber-se quanta água existe no mar, mas primeiro terá Vossa Majestade que mandar tapar todos os rios que nele desaguam.

- Essa é boa! Então, e quanto é que pesa a Lua? - continuou o rei a perguntar.

- Saiba Vossa Majestade que a Lua pesa um quilo certinho, porque eu sempre ouvi dizer que ela tem quatro quartos - respondeu o moleiro.

- Está bem. Isso é verdade. E já agora, também me saberás dizer em que é que eu estou a pensar...? - voltou o rei à carga.

- Vossa Majestade pensa que está a falar com Frei João Sem Cuidados, mas está a falar com o seu moleiro - e dizendo isto despiu o hábito.

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Antonio Carlos de Barros ("Queixinho de Merência")


 Palavras em negrito itálico, o significado está no vocabulário no final do texto.
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Em tempos distantes, nos verdes Pampas Gaúchos, eram meados do Século 19, o Brasil passava de Monarquia para República, a desigualdade tomava conta de tudo, e de todos.

Rosário do Sul tremeu, no lendário Touro Passo. Arroio Saicãnzinho, serviu de cenário para um “causo” maldito, de triste matiz. 

Na Serra do Caverá, Rosário do Sul, o Sol se escondeu de vergonha, e fugiu, ante ao fato infeliz entre os jovens, Thiago e Merência.

Eles iniciaram um namoro às escondidas do Patriarca, que ditava as normas, e possuía um coração de pedra.

Um amor escondido, mas um amor verdadeiro.

Merência, menina humilde, pobre, mas uma grande garota.

Thiago, filho de um rico Estancieiro moço bem sucedido com um grande sentimento por Merência.

Pai de Thiago assim que soube do namoro, não aceitou. Thiago respondeu o Pai e enfrentando o Patriarca disse que o namoro era sério e que iria se casar com a Merência.

Enfurecido o Pai e Patriarca, certo dia, mandou o filho para uma grande tropeada. Em seguida, contratou dois capangas e mandou matar Merência.

Merência estava na porta da fazenda, quando foi atacada e sequestrada. Os capangas levaram-na para um mato fechado, abusaram sexualmente dela, e logo depois a esquartejaram. A primeira facada foi no rosto, o queixo saltou e fixou-se em uma forquilha de uma figueira.

Com o passar das horas, os Pais de Merência, deram por falta da filha e juntamente com amigos, começaram a procurar nas sangas próximas, lagoas, peraus e canhadas, sem obterem sucesso nas buscas. Com o passar dos dias, notaram que o fiel cachorro da casa, todo dia entrava matagal adentro e voltava horas depois chorando para a casa. Começaram a desconfiar da atitude do cachorro. Até que resolveram chamar o Delegado de Polícia e em equipe, seguiram o cachorro. Tiveram sucesso na busca. Infelizmente o corpo foi encontrado, já em estado de decomposição. O vestido foi a única coisa que restou.

Quando Thiago voltou da tropeada, desesperado soube da triste notícia do desaparecimento da Merência. E enfrentando o seu Pai, acusa-o do desaparecimento da Merência. O Patriarca muito raivoso confessou o mando do crime ao filho, que acabou enlouquecendo, pois via assim, o seu grande amor terminado e não sentia mais o porquê de viver.

Três anos depois o queixo da Merência foi encontrado. O povo colocou o queixo em uma caixinha, e com muita devoção era velado de casa em casa, com rezas e pedidos para a Merência.

A Igreja Católica, através do seu representante local, não gostando da atitude do povo, e de todo o cerimonial, proibiu essa devoção e solicitou que o “Queixinho da Merência”, colocado dentro de uma pequena caixa, fosse sepultado no Cemitério local. Foi confeccionado então, uma pequena sepultura, e o Queixinho da Merência, finalmente sepultado.

Ele encontra-se, no Cemitério Municipal São Sebastião, na Cidade de Rosário do Sul, Rio Grande Do Sul, e ainda hoje é motivo de muitas visitas, rezas e pedidos de muita fé, para o Queixinho da Merência.

"E num triste amanhecer, a poesia abandonou o campo. O amor nem sempre é sorriso no rosto, às vezes traz dor, agonia e desgosto".
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OBSERVAÇÕES:

O Queixinho de Merência – foi um acontecimento real, filmado e apresentado pela RBS (Globo) com alguns artistas locais, como: Histórias Extraordinárias (2005) - Rosário do Sul. O vídeo está disponível no Youtube.
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Este “causo” foi editado pela Martins Livreiro, no Livro: “Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul”, da autoria de Antonio Augusto Fagundes.
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GLOSSÁRIO:

Arroio: riacho, rio pequeno.
Canhadas: vale, baixadas.
Caverá – Distrito de Rosário do Sul.
Pampas: denominação dada as vastas planícies Gaúchas.
Peraus: precipício, declive que dá para um rio.
Sangas: pequeno curso d’água, menor que um arroio.
Touro Passo – Distrito de Rosário do Sul.
Tropeada: conduzir tropa de gado, cavalos, etc.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Luís Delfino (Poemas Escolhidos) 1


A ARANHA

Quando na fina, complicada teia
A mosca prende as asas rutilantes,
E sente em cada pé uma cadeia,
Que ao céu lhe furta os voos iriantes,

‘Stringe... que quase o ergástulo baqueia:
Tempesteia, reluta alguns instantes:
Porém de longe a aranha escura e feia
Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes;

‘Stringe... revoa, cai: ’stringe, desata
As asas da esmeralda, e ouro, e prata,
Como lutara uma águia emaranhada,

E Prometeu: mas cede à força estranha.
Move-se então, caminha, chega a aranha.
E, antes que a empolgue, para inda aterrada.

A CEGA

A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada;
Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade;
Inventou-se o terror servindo à crueldade;
Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada.

Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada;
Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade;
Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade;
Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada.

Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia;
Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia;
Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz.

A força será sempre essa louca, essa cega
Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega,
E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?...

A COISA ESPANTOSA

Parar devemos dentro do universo:
Nele o humano saber tem seu limite...
Não há mais nada que a alma exalte, e irrite,
E torne o ser, que pensa, um ser perverso.

Helena, acaso Deus nos é adverso?
Quem pois nos farta o indômito apetite?
O mundo além do túmulo é diverso?
Julga alguém que esse mundo o nosso imite?

E o que é essência, causa, eternidade?
E essa causa sem causa, esse infinito,
Isso que não começa, nem acaba?

Em tudo está presente a Divindade...
Crê: adora... — Isso basta? Oh! sonho! oh! mito!...
Isso, Helena, isso tudo oprime, esmaga!...

A COVA

Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É preciso que caiba um longo travesseiro,
Para dormirem face a face, peito a peito.

Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que é muito longo sempre o sono derradeiro

Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero roseiras só, quero muitas roseiras;
Que ardam rosas em que seu corpo multiplica.

Que os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.

A DEUSA
O seu pescoço esplêndido e robusto
Implantado às espáduas fortemente,
Presta-lhe um ar olímpico e imponente;
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

E sustem-lhe a cabeça bela: é justo,
Porque dos deuses vem; e se presente
No andar, na voz, no riso negligente,
Mete em tudo, que a cerca, estranho susto.

Tão grande e superior ela parece,
Que não é muito a admiração e o espanto,
Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece.

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto,
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce,
A ti meus olhos, como a um céu, levanto...

A HORA DO ALMOÇO

Pelo sapê furado da palhoça
Milhões de astros agarram-se luzindo;
O pai, há muito, madrugou na roça:
A mãe prepara o almoço. — O sol é lindo.

Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa
O fumo dos tições; — anda zunindo
À porta um marimbondo; e fazem troça
As crianças com um ramo o perseguindo.

Correm, chilram, vozeiam, tropeçando
Num velho pote; — a mãe, zangada, ralha.
A avó lhes lança o olhar inquieto e brando.

No chão um galo ajunta o milho e o espalha,
Enquanto a um canto, as penas arrufando,
Põe a galinha num jacá de palha.

Fonte:
Luís Delfino dos Santos. Poesias. (e-book no Domínio Público)

Nilto Maciel (Nos Becos da Fantasia)


A rede rangia nos caibros. Ia e vinha, cadenciada. Ele olhava para o telhado, olhos perdidos. De tempo em tempo, dava novo impulso à rede, um dos pés no chão. O rangido se fazia mais acelerado e áspero.

Grande tolice embalar-se numa rede, quando havia um mundo inteiro em correrias. Àquela hora, seria enorme o burburinho nas ruas. Podia estar em qualquer delas, indo e vindo, à toa. Uma ou outra mulher sorririam para ele. Daí, quem sabe, nasceria um novo amor. E adeus embalos na rede, sozinho.

Não, não se sentia mais cansado. Tudo mentira, aliás. Nem cansaço nem sono.

Súbito freou o balanço da rede e saltou para o meio do aposento. Queria uma toalha. A mãe se inquietou. Outro banho? Não, só barba.

Num minuto, encheu a cara de espuma. A mãe resmungava. Um ou dois pequenos cortes no queixo. Como sempre.

Tal pressa, tal ânsia. A noite o chamava. Olhou para um lado e outro. Aspirou a alfazema do ar. Na esquina, uma saia tremulava.

Cachorros passeavam, indolentes, calados e imprudentes pelas ruas. Televisores nas salas cheios de galãs luzidios e heroínas glamorosas.

A saia da esquina desapareceu. Talvez tivesse ido jantar. Uma voz rouca gritava dores e amores.

Entrou no bar. Uma cerveja a mais não o engordaria tanto. Além disso, tinha sede. Em questão de minutos secaria a garrafa. Nada de pressa, porém. A noite apenas começava.

Contou casos, inventou, relembrou. O homem atrás do balcão ouvia e ria. Outra cerveja. O cantor continuasse a gritar dores e amores. Até motivava a lembrança.

A sede desaparecia. Porém, não havia pressa. Os galãs ainda se desdentavam na boca das heroínas.

Mais um caso pela metade, quando uma saia e um sorriso dobraram a esquina. Só podia ser ela. Sim, a dos seus sonhos. A esperada, a desejada. Daquela noite não escaparia.

Grande tolice embriagar-se num bar, quando havia um mundo inteiro de fantasias. E aquela moça escondida, medrosa, tão pura.
                                                                       ***

Nas primeiras noites, só promessas, beijinhos, afagos. Quando ia dormir, ela se retorcia na cama, mordia os lençóis, se arrepiava. Ele ia atrás de outras mulheres. Pagava e dormia em paz.

Depois, ela não mais se retorcia na cama, nem mordia os lençóis nem se arrepiava. Nem ele ia mais atrás de outras mulheres. Véu e grinalda ficavam para o futuro.

Passados meses e anos, vez por outra se encontravam. Ela ainda falava em véu e grinalda. Ele mudava de assunto, se aborrecia e ia atrás de outras mulheres. Ou voltava ao bar, para contar casos ao homem atrás do balcão e ouvir os gritos de amor e dor do cantorzinho.
                                                                       ***

No último carnaval, os dois brincaram juntos. Ele se fantasiou como pôde. Ela se vestiu de nudez. E foliaram, dançaram, pularam, como nunca. Ele bebia sem parar. Suava, cantava, cambaleava.

Súbito, parou no meio do salão. E gritou: não queria mais aquela mulher. Quem quisesse, levasse.

Ela se pôs a chorar. Ele ria, gargalhava, abraçado a fogosas colombinas.

Ela saiu. Na rua, os cães latiam. Era madrugada.

Sozinha, a fantasia suada, ela caminhava pelos becos. Uma voz rouca gritava dores e amores.

Entrou no bar. Tinha sede. O homem atrás do balcão ria.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Vinicius de Moraes (A Letra A: Palavra por Palavra)


Abacate: Fiz certa vez para a minha série de poeminhas infantis, um sexteto sobre essa fruta de que gosto muito e que pertence, segundo me ensina o verbete de mestre Aurélio, à família das Lauráceas - o que não é dizer pouco. O poeminha é como segue, e faz grande sucesso entre crianças de mentalidade coprófila e adultos de mentalidade de criança, como é o caso de meu amigo e compadre Chico Buarque:    

            A gente pega o abacate 
            Bate bem no batedor 
            Depois do bate-que-bate 
            Que é que parece? - Cocô. 
            Ô abacate biruta: 
            Tem mais caroço que fruta! 

      Mas eis que, de repente, surgem-me, no ato de escrever, confusas, dolorosas recordações ligadas a essa palavra. Vejo-me menino, na casa de meus avós paternos, à rua General Severiano em Botafogo, debruçado à grande mesa da sala de jantar, apreciando meu avô comer com delícia o seu abacate no ritual gastronômico cotidiano. Era toda uma cerimônia, as refeições de meu avô Moraes. Brando déspota baiano, cheio de bossa e filáucia, colocava-se ele à cabeceira, o guardanapo atacado ao pescoço, à moda antiga, e sem dizer abacate atacava os próprios, depois de cortá-los em duas metades, que enchia de açúcar até às bordas. E era de vê-lo traçando-os a colheradas, devagar e sempre, até a última epiderme. Depois, limpava, com um rápido gesto de ida e volta, a boca e o bigode branquinho, suspirava fundo e partia para o seu quarto de leitura, onde ficava o lindo oratório de minha avó. E ali se deixava ele no embalo da velha cadeira de balanço, de espaldar de palhinha, a ler pela milésima vez os folhetins de Michel Zevaco, de que eu era também leitor constante. Quantos títulos não lembro... Os Pardaillan, Buridan, Os amantes de Veneza, A torre de Nestlé... 

      - Ecco la saeta! 
      - La paro! 

      O italiano entrava nos duelos como cor local. Pardaillan aparava o que viesse, o herói de todo caráter, enquanto, pouco a pouco, o velho avô se ia desintegrando em sono. Eu chegava pé ante pé para espiá-lo de mais perto, como quem examinava uma múmia de museu. Que fenômeno, um velho! Mas não qualquer velho: um ancião espetacular, como meu avô Moraes, o rosto cortado em mil rugas descendentes e as pálpebras inferiores começando a cair; um velho com o dorso das mãos enferrujado e a pele do pescoço pendente, já meio solta da carne. 

      Meu avô Antero Pereira da Silva Moraes... Bendita a palavra que desencadeou tanta saudade e o trouxe de volta tão nítido como o vejo agora... a arrastar os pés ao longo do corredor, sem tempo e sem rumo - um macróbio total. Circundava-o sempre um aroma de sândalo ou alfazema, por isso que minha avó nunca se esquecia de espalhar, em seus gavetões, sachês perfumosos que lhe impregnavam a roupa. E sua vida era essa: vagar pela casa, o único território em que podia velejar com segurança. 

      Nós, meninos, tínhamos cuidado para não esbarrar nele, em nossas correrias, de vez que o corredor era o desaguadouro natural de nosso tropel faminto, quando nos chamavam para a mesa. O velho, ao sentir que algum pé-de-vento o cruzava, dava uma leve guinada de proa, fazia uma lenta meia-volta parada e seguia mecanicamente em sua esteira, agarrado por cabos imponderáveis àquela vida infantil que passava à toa. Tudo nele parecia realizar-se num mundo acústico, onde os sons chegassem como num aparelho de surdo subitamente conectado. Uma porta batia, alguém berrava por alguém, o cachorro ladrava - e desencadeava-se em seus tímpanos uma tempestade que o fazia retornar ao mundo dos vivos. Sua máscara frouxa assumia um ar dramático e ele, transtornado, perguntava, numa voz pânica e trêmula de náufrago pedindo socorro: 

      - Que foi? 

      Às vezes parava, incerto sobre o rumo a tomar, desligado de tudo. Seu rosto ensimesmava-se, num desesperado esforço de ver, como se estivesse mirando um poço sem fundo, e depois exprimia espanto, pois o medo do desconhecido parecia de repente tomá-lo. Girava os olhos, então, dentro da cratera rubra das pálpebras soltas, como a buscar onde se ater. Ficava assim, a mover devagar a cabeça para um lado e outro - um bicho velho diante de sua própria morte. 

      Depois, refeito o vazio, ele reunia novas forças e saía em seu passinho miúdo e arrastado, de volta à cadeira de balanço como um velho barco ao ancoradouro. Ali, com um máximo de cautela para não cair, sentava-se bem devagarinho, num exercício cujo resultado parecia deixá-lo feliz, pelos esgares que fazia. Puxava a manta sobre os joelhos e, pouco a pouco, deixava pender a cabeça. Que pensamentos poderiam então tomá-lo? Talvez lhe chegassem, em fragmentos rútilos, as risadas claras das mulheres que teve - e muitas foram, ao que parece...; talvez os rufos e as clarinadas das paradas militares a que tanto gostava de assistir. 

      E era doce, nessas horas, depois que o sono vinha, ver chegar toda branquinha, toda curva, a sua eterna velhinha que se deixava estar um pouco junto ao umbral, queimando a sua cera antiga numa chama de amor quase apagando. E depois de mirá-lo algum tempo, ela ia, minha santa avozinha, e se ajoelhava ao pé do oratório, onde ficava a tatalar preces ausentes, os olhos postos com infinita devoção no Menino Deus, em sua manjedoura, ou em Nossa Senhora da Conceição, sua xará celeste, perdida na visão de beatitudes que não conheceu em vida - pois, segundo consta, em matéria de mulher, meu avô não deixou passar ninguém. Mas ela o amava, o velho sacripanta, de um amor tão puro de esposa, que eu posso vê-la neste instante, mesmo mergulhada na visão do Ser Egrégio, a cuja mão direita deve sentar-se agora, linda e modesta como sempre, tendo ao lado seu velhinho todo elegante em seu paletó de alpaca - e cuja entrada no Céu só obteve pelo muito que rezou e por todo o bem que fez em vida. Pois o velho não era de brincadeira.

Fonte:

Antonio Cabral Filho (8. Colar de Trovas) Tema: Criança


Organização: Adriano Bezerra,  Aurineide Alencar e Maria Zilnete.

01
Urge esperança de um dia
ver criancas a cantar
hinos da democracia,
*declamando o verbo amar*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

02
Declamando o verbo amar
com toda sua inocência 
criança  vive a sonhar
*tendo paz de consciência.*  
(Neiva Fernandes – RJ)

03
Tendo paz de consciência,
toda criança é feliz,
descobre na eficiência,
*o que a natureza diz.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

04
O que a natureza diz ?
que criança quer um ninho,
que na vida é aprendiz,
*que  precisa de carinho!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

05
Que precisa de carinho
o mundo tem consciência,
criança que tem seu ninho
*cresce com benevolência.*
(Aurineide Alencar – MS)

06
Cresce com benevolência 
a criança desde cedo.
Que o sorriso de inocência 
*não se apague pelo medo.*
(Antonio Francisco Pereira – MG)

07
Não se apague pelo medo
na vida não é assim; 
a criança tem enredo:
*ser amada até o fim!*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

08
Ser amada até o fim - 
Júlia, de seu pai, o quis.
Ele nunca está a fim! 
*Faço-a eu mesmo então feliz!*
(Oliveira Caruso – RJ)

09
Eu a faço,  então  feliz
na proteção  do Senhor... 
pois é Deus mesmo  quem diz
*que a criança  tem valor.*
(Neiva Fernandes – RJ)

10
Que a criança tem valor
e precisa ser feliz
livre de qualquer pavor
*e viva como aprendiz.*
(Prof. Roque – RS)
   
11
E viva como aprendiz
na nossa escola da vida
isto o vate sempre diz
*para a criança querida!...*
(Luiz Cláudio – RN)

12
Para a criança querida,  
daremos o nosso amor,  
protegendo a sua  vida,   
*na  Luz que vem do Senhor!*
(Neiva Fernandes – RJ)

13
Na luz que vem do Senhor
sejam sempre iluminadas
com carinho e muito amor
*por seus pais sejam amadas.*
(Adriano Bezerra – RN)

14
 Por seus pais sejam amadas,   
no carinho mais profundo;
      jamais ser abandonadas,     
*ao relento deste mundo.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

15
Ao relento deste mundo
vemos data consagrada
pra criança é mês fecundo
*chamo Aparecida amada!...*
(Luiz Cláudio – RN)

16
Chamo Aparecida amada
nos momentos de aflição,
para que não falte nada
*para a criança e nação.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

17
Para a criança e nação
venha a paz tão desejada
com a santa intercessão
*da nossa mãe consagrada.*
(Adriano Bezerra – RN)

18
Oh nossa mãe consagrada!
Olhai por nossas crianças,
que façam o que Lhe agrada
*e tenham fé e esperança.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

19
Que tenham fé e esperança,
no futuro da nação .
Não deixemos a criança, 
*sem amor ao nosso Chão!!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

20
Sem amor ao nosso chão
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia.*
(Adriano Bezerra – RN)

TROVAS DO FECHAMENTO

*A*
*Sem amor ao nosso chão,*
mas fé  na Virgem Maria: 
respeitando nosso irmão 
*urge a esperança  um dia.*
(Neiva Fernandes – RJ)

*B*
*Sem amor ao nosso chão,*
crianças sem alegria,
sonho um mundo em união;
*urge esperança um dia.*
(Maria Zilnete de M. Gomes  – RJ)

*C*
*Sem amor ao nosso chão,*
a criança perderia
amor e dedicação, 
*urge a esperança um dia!*
(Gleyde Costa – RJ)

*D*
*Sem amor ao nosso chão,*   
não há paz nem alegria,
pois a nossa solução,            
*urge a esperança um dia.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

*E*
*Sem amor ao nosso chão*
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia!*
(Adriano Bezerra – RN)

*F*
*Sem amor ao nosso chão*
nada até me arrepia
vamos dar as nossas mãos,
*urge a esperança um dia.*
(Madalena Cordeiro – ES)