sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Figueiredo Pimentel (O Peixe Encantado)


Roberto era muito trabalhador e serviçal. Sempre que alguém precisava dos seus serviços, prestava-os de boa vontade, sendo por esse motivo estimadíssimo toda a gente que o conhecia.

Tinha ele três filhas, cada qual mais bonita, principalmente a mais moça, de beleza extraordinária, chamada Marocas.

A pobre família vivia da pesca que o homem fazia todas as madrugadas, indo, durante o dia, vender o peixe pelas ruas da cidade próxima. O seu único sustento e de toda a sua numerosa família era a pesca. Parte da noite, até romper a manhã, Roberto passava pescando. Durante o dia, ia vender o peixe de casa em casa. À tarde tratava da canoa, das linhas e das redes. Feliz no seu negócio, trazia sempre a canoa cheia de peixes grandes e bons.

Um dia lançou a rede ao mar e nada trouxe. Lançou-a outra vez, e só vieram peixinhos peixinhos, que nada valiam.

No dia seguinte aconteceu-lhe o mesmo que na véspera. Deitou a rede diversas vezes; e, nada tendo conseguido, ia voltar para casa, desolado, pensando que naquele dia sua família não teria o que comer.

De súbito ouviu uma voz que partia do mar:

– Roberto, terás muito peixe, se me prometeres trazer o que avistares, assim que chegares à casa.

O pescador respondeu que daria, pois sempre chegava à praia, encontrava o cachorrinho de Marocas, que ia esperá-lo, latindo a saltando alegremente.

Tendo-o prometido, os peixes começaram a saltar para a canoa, e ele nesse dia obteve muito dinheiro com a sua venda.

De volta o pobre velho ia quase embicando à praia, contentíssimo por ter dinheiro para dar à família, quando ao olhar para a terra viu sua filha mais moça, Marocas, justamente aquela por quem tinha maior predileção.

Ficou desesperado, aturdido, triste, lembrando-se da promessa e chegando à casa contou à família o que se tinha passado.

Quando acabou de falar a menina respondeu:

– Meu pai, não chore por tão pouco. Eu vou e estou certa de que é para meu bem. Com certeza serei muito feliz, e demais minha família terá sempre com que se sustentar.

Roberto vendo como a filha se sacrificava por ele de tão boa vontade, ficou menos pesaroso. No dia seguinte, pela madrugada, embarcou com ela na canoa de pesca. Assim que chegou ao lugar onde ouvira a voz, as águas se separaram um pouco, e o pescador atirou Marocas, que desapareceu imediatamente.

Voltou para terra com a canoa cheia de peixes, sem ter sido preciso lançar a rede.

A moça foi ter a um palácio no fundo do mar, habitado pelo Rei dos Peixes, que fora quem havia falado ao pescador.

Encontrou aí tudo quanto lhe era necessário: salas e quartos mobiliados, vestidos riquíssimos e jóias de subido (exorbitante) valor. Entre essas jóias havia um anel de brilhantes, muito rico, com uma dedicatória feita pelo soberano dos peixes. Contudo, apesar de tudo isso, Marocas vivia tristíssima, porque não via pessoa alguma, principalmente os seus. O serviço da casa era feito por encanto, pois nunca vira um ser vivente no palácio, e os objetos estavam sempre em ordem.

Depois de já estar habituada àquela solidão, na noite, quando já estava deitada, a formosa Marocas ouviu ruído. Sentiu-se receosa, assustada, esperando ver entrar algum monstro, algum bicho que viesse matá-la. Sossegou, porém, ao ver entrar um enorme peixe, com uma coroa de ouro na cabeça. Era o rei dos Peixes. Entrou silencioso, quase sem fazer ruído, andando naturalmente em seco como se estivesse na água.

O rei entrou, e logo após saiu, aparecendo aos olhos deslumbrados da jovem um moço elegante e lindo, ricamente vestido à corte, com trajes de gala, que bem indicavam o seu nascimento real. Sempre calado, aproximou-se da moça e pôs-se a contemplá-la, enleado, maravilhado.

Marocas disse-lhe então:

– Príncipe, porque não vieste há mais tempo?

– Porque receei que, vendo um peixe tão feio, tivesses medo. Se vim hoje admirar tua beleza, foi porque julgava que dormias.

Desde esse dia, Marocas e o rei dos Peixes viveram juntos, completamente felizes. O serviço do palácio continuava a ser feito por encanto. O único ser vivo que a moça via era o Rei-peixe e sempre nessa figura.

Apenas uma vez, de sete em sete dias, deixava aquela aparência, para vir a ser o príncipe encantador, divinamente belo, que era em verdade.

Estavam casados havia já um ano, quando uma vez, Marocas lhe pediu, rogou, suplicou, insistentemente que a deixasse ir ver sua família.

– Podes ir, respondeu o príncipe, mas com a condição de só te demorares lá uma semana. Quando quiseres voltar, põe este anel no dedo, que imediatamente estarás aqui.

E deu-lhe um anel de aço.

A moça pôs num baú muita roupa e presentes que levou à família, e no dia seguinte quando o velho Roberto veio pescar, apareceu na canoa e foi com ele para terra.

Em casa ficaram todos muito alegres ao vê-la, e sua mãe e suas irmãs começaram a indagar como vivia ela; se estava satisfeita; se o noivo era bonito. Marocas respondeu que julgava que era, que não garantia, pois só via o príncipe de noite.

Lembraram-lhe, então, a conveniência de levar para o fundo do mar um pedaço de vela, para ver se o rei de fato era bonito. A jovem concordou. Ao sexto dia, chegando ao palácio, não dormiu à noite, esperando que o príncipe adormecesse primeiro que ela.

Assim que o ouviu ressonar, saiu da cama, com a vela acesa, e foi se certificar da beleza do noivo. Tendo porém, chegado a vela muito perto, deixou cair um pingo de sebo no peixe. Ficou trêmula de medo, receando que ele acordasse, e com o tremor, derramou mais outros pingos, os quais se transformaram em chagas.

O Peixe-rei acordou, sofrendo horrivelmente, e exclamou:

– Foste tu a causa destas chagas Se quiseres viver comigo, tens que me procurar num lugar muito distante daqui, chamado pico do Amor.

Assim que o peixe acabou de dizer essas palavras, desapareceu por encanto, e Marocas viu-se num lugar deserto, em meio de uma mata virgem.

Começou a caminhar muito triste; e, como estava fatigada, sentou-se debaixo de urna árvore, e ouviu esta conversa:

– O rei dos Peixes está muito mal e ninguém pode pô-lo bom, porque não sabem qual é o remédio necessário.

Disse outra voz:

– Nada mais fácil, basta apanhar três de nós, torrar-nos e colocar esse pó nas feridas.

Disse uma terceira voz:

– Ai de nós, se souberem disso!...

A moça levantou-se para ver onde estavam as pessoas que assim falavam. Ficou admirada quando viu três andorinhas, que conversavam no alto de uma árvore.

Armou um laço e apanhou-as. Imediatamente torrou-as, guardando cuidadosamente o pó.

Continuou a andar, até que chegou finalmente ao pico do Amor, por onde se entrava para o palácio do rei dos Peixes. Soube que ele estava quase para morrer e pediu que a deixassem falar com o rei, o que os criados não consentiram. Não desanimou. Insistiu outra vez, tanto, tanto, que conseguiu mandar-lhe um prato de mingau.

O príncipe começou a comê-lo, e quando pôs a segunda colherinha na boca, sentiu que havia um caroço misturado no mingau. Foi ver o que era, e reconheceu o anel que tinha dado à filha do pescador.

Ordenou que trouxessem a mendiga ao quarto e conheceu a moça. Dias depois já estava restabelecido, graças ao remédio das andorinhas que Marocas trouxera.

Voltaram ao Palácio do Mar apanharam todas as riquezas e foram morar em terra. Mandaram buscar o pescador Roberto e sua família, e casaram-se dias depois.

O príncipe desencantou-se de uma vez e nunca mais se transformou em peixe.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 422

 

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 2: O morto no caixão


DE VEZ EM QUANDO A GENTE precisa colocar em evidência a parte social da vida, ou seja, aquele eventual em que literalmente nos propomos a fazer um programa de índio, e por ser exatamente de índio, este nativo deverá literalmente surgir em cena paramentado, com tudo o que tem direito, como aldeia, arco, flecha, tacape, a borduna (clava), o chuço (lança) e etc, etc.

Com este pensamento, bem cotidiano à flor da pele, fomos acompanhar o amigo Varíola Pegajoso que havia perdido um parente e os funerais do falecido se daria logo cedo, numa bela manhã de um sábado radiante e apetitosamente convidativo à um banho de mar.

— Carretão — observou ele —, só vamos mesmo porque o cara era meu tio e acredito, minha tia ficaria deveras chateada se não me visse na hora do derradeiro adeus.

— Fique tranquilo, Varíola. Os amigos são para os momentos bons e ruíns. Saiba, desde sempre, estamos  junto nesta para o que der e vier.

— Tenho certeza que apesar do convite meio que esquisito —  observou ele, a certa altura — você irá gostar e quem sabe até se apaixonar ao ver uma prima minha, a Chiquinha do Catatau. Cara, um pedaço de mau  caminho!

Chegamos no ato fúnebre à hora exata em que o padre Bentão  celebrava a missa de corpo presente.

A capela estava lotada, com gente saindo pelo ladrão —  ladrão não, esta expressão é, sem dúvida alguma, uma modalidade vulgar e chula de falar, claro. O certo, seria, como de fato soa melhor, ‘com gente saindo à francesa’. Pois bem! O povo dava uma escapulida básica usando uma porta discretamente estratégica que desembocava para uma lanchonete com as iguarias mais apetitosas para um cemitério tido como o eterno Jardim da Paz.

Dona Canindé Formigão, esposa do ‘de cujus’, tia de Varíola Pegajoso, o rosto cerrado em transe, as vistas  derramadas à bom chorar, mostrava em meio às lágrimas, um par de olhos vermelhos como dois tomates recém colhidos. Apesar da imoderada dor ingente que a consumia, eles não deixavam de revelar o fulgor da sua juventude.

A triste senhora se fazia acompanhar de familiares próximos, entre os quais, Jericó, seu filho mais novo e, ao lado dele, um pedacinho engalanado de um aconchegante futuro promissor vestido numa saia azul celeste, com todos os tropeços que a vida ofereceria a quem tivesse a sorte e o prazer de cair nas graças daquela beldade.

De fato, neste ponto, o Varíola Pegajoso não medira esforços para descrever a belíssima prima Chiquinha do Catatau. A  exuberante fazia jus à fama que o meu amigo houvera feito de seu conjunto dos caracteres exteriores, figura extraordinariamente admirável e pecaminosamente infernal. Nos aproximamos a ponto de (à certa altura) nos juntarmos aos aparentados, quase a tropeçarmos nos regozijos que emanavam da bela Chiquinha Catatau.

O sacerdote, tecia comentários elogiosos sobre  o extinto e, exatamente naquele momento da nossa chegada, ele apregoava, à alta voz,  o seguinte:

— Estamos diante de um grande homem, dono de um coração magnífico, excelente pai de família, bom marido, católico incondicional, amigo de todas as horas, vizinho exemplar e colaborador assíduo da nossa humilde paróquia. A isto, acrescentaríamos um primoroso trabalhador ‘pau pra toda obra’ e peremptório cumpridor de seus deveres...

Foi nesta sequência da esparramação dos elogios, que a viúva  cutucou Jericó num cochicho vapt vupt. Toda a igreja, ainda que não quisesse, captou e fez escancarar as bocas cheias de dentes (e as banguelas também) irmanadas num Oh! retumbante e espantado, doido e único, ao tempo em a cônjuge varoa soltou o que parecia estar engasgado em sua garganta:

— Jericozinho, meu filho se aproxime ali do caixão de seu pai, discretamente...

E completou, sem mais delongas:

— Veja, estou pra lá de aperreada. Perceba, minha agonia. Confesso a você, com todo este rol  de mesuras e rasgação de sedas que o padre Bentão está trazendo à baila...

— Mas por que isto agora, mamãe?

— Filho meu, com toda certeza, quero crer estamos todos aqui velando o defunto errado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Isabel Furini (Poema 21) Escrever

  

Luiz Damo (Trovas do Sul) XIII


Água pura tem faltado,
lagos em estagnação,
nem o peixe foi poupado
de tamanha poluição.
- - - - - -
Através do sofrimento
também podemos crescer,
tão valioso ensinamento
é o que tem a oferecer.
- - - - - -
Cedo, sentimos saudade,
das coisas belas da vida,
fontes de tranquilidade
lembrando a paz já vivida.
- - - - - -
Conte um conto alegremente,
cante um canto de louvor,
sente e sinta lentamente
ressurgir novo valor.
- - - - - -
Dá-nos a força, Senhor,
pra podermos divulgar,
tua mensagem de amor
para quem necessitar.
- - - - - -
Dependem da preferência
todas nossas decisões,
umas com total prudência
outras sem as convicções.
- - - - - -
Estão nos primeiros passos
os segredos da vitória,
longe de quaisquer fracassos
descrevemos nossa história.
- - - - - -
Jamais se sinta culpado
de algo que não cometeu,
pois, pode ser perdoado,
se do mal se arrependeu.
- - - - - -
Não subornes a verdade
pois, dela dependerá
a força da liberdade
que sempre te guiará.
- - - - - –
Num encontro surpreendente,
bem antes da integração,
o desejo mais latente
talvez seja a interação.
- - - - - -
Num mundo controvertido,
pela vida, nós lutamos,
num semblante pervertido
pouco brilho constatamos.
- - - - - -
O desgosto de perder
não gere dor ou lamento,
muito pior é vencer
sem qualquer merecimento.
- - - - - -
O lar que não tem crianças
é como um jardim sem flores,
ao lar faltava esperanças
e ao jardim as nobres cores.
- - - - - -
O mundo nem sempre ensina,
o homem como deve andar,
aprende com disciplina
e um constante caminhar.
- - - - - -
O sino no alto das torres
num apelo às orações,
convida seus oradores
a umas breves reflexões.
- - - - - -
Os peixes vão se tornando
artefatos de ficção,
uns até se transformando
em bichos de estimação.
- - - - - -
Por menor que seja a dor
sentida por um doente,
é sempre confortador
ter a família presente.
- - - - - –
Primavera exuberante
refletindo tantas cores,
eterniza cada instante
no aroma das suas flores.
- - - - - –
Quando nos palcos, alguém
tudo promete fazer,
escutando, siga quem
lhe fizer sem prometer.
- - - - - -
Quem caminha quer buscar
algo traçado na mente,
mesmo às nuvens a ofuscar
não desiste, segue em frente.
- - - - - -
Se não chovesse, seria,
um deserto permanente,
vegetação não teria
e sequer algum vivente.
- - - - - –
Se hoje somos ambiciosos,
amanhã, nunca rivais,
uns dos outros respeitosos
porque à lei somos iguais.
- - - - - -
Sempre que for necessário
pelos mares navegar,
trace bem o itinerário
e aonde pretende chegar.
- - - - - -
'Se o conselho fosse bom
ninguém dava, mas vendia'.
E se fosse a solução
problemas ninguém teria.
- - - - - -
Se quiser frutos colher
não se canse de esperar,
deixe a planta florescer
pra depois frutificar.
- - - - - -
Sob a sombra da ignorância
a inveja senta e descansa,
espelhada na arrogância
rompe qualquer aliança.


Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Roberto Melo Mesquita (A Língua Portuguesa)


A Língua Portuguesa é um instrumento facilitador da organização do pensamento. Quem possui o conhecimento da estrutura da língua, tem plena consciência do que diz e automaticamente pensa melhor. A Língua é como a roupa: usa-se conforme a ocasião.

A variação linguística ainda é considerada um tabu entre os próprios professores de português. E o que mais me incomoda nessa questão é o conceito irreal de que temos uma “unidade linguística no Brasil”. A verdade é que esse tabu prejudica em muito o avanço à construção da nossa educação. É preciso reconhecer a grande diversidade do português falado pelos nossos irmãos brasileiros por esse Brasil afora.

Somos mais de 210 milhões de falantes, marcados por variantes e não por uma língua comum, única, sem diversidades. Estamos vinculados a uma série de fatores de ordem geográfica, econômica, de escolarização, de faixa etária que influenciam fortemente nessa diversidade. E aptos a entendermos que, quando falamos em Língua Portuguesa, estamos falando de uma unidade que se constitui de muitas variações: diatópicas (nacionais e regionais), diacrônicas (de uma época para outra), diastráticas (de um grupo social para outro), diafásicas (de uma situação para outra) e diamésicas (de uma modalidade – oral – para outra – escrita).

Se uma pessoa usar em sua fala expressões como “fósfro”, “home”, “trabaiá”, “môio ingrês”, a maioria vai achar, inclusive professores, que ela está falando errado.

Com o emprego dessas expressões, somos levados a abordar apenas as variedades diatópicas e diastráticas, que por sua vez, se estendem sobre a linguagem urbana e a linguagem rural. Aqui é que aparecem os dialetos ou falares regionais. E é neste momento que me permito fazer uma incursão ao nosso dialeto caipira, sempre tão bem estudado por Amadeu Amaral e muito bem representado por Cornélio Pires como nos lembra a estudiosa professora Durce Gonçalves Sanches. Cornélio coletou inúmeros dizeres caipiras. Já Amadeu estudou linguisticamente esse fenômeno.

Assim, em “Nóis vai, nóis vorta, o preço do ônibo é o mesmo” vale a pena marcar o “r” retroflexo tão característico de região definida por isoglossas como sendo “região do dialeto caipira”. Já em “Faiz mar, tomá banho de mar?Num faiz; é só tomá cuidado com o sar, por causa do sor”, temos uma expressão marcada como “apenas fenômeno no dialetal” e não como erro. É o caso de “Sarta da carçada, sordado marvado, que lá vai porva".

Daí, concluirmos que "se uma pessoa usar em sua fala expressões como 'fósfro', 'home', 'trabaiá', 'môio ingrês', a maioria vai achar, inclusive professores, que ela não está falando errado". Lembrando que, enquanto os gramáticos (normativos) lidam com erro e acerto, os linguistas trabalham com adequado e inadequado.

O brasileiro de uma forma geral tem camuflado o preconceito racial. Nesse momento, temos de lembrar sempre que, na linguagem, são refletidos não apenas a maneira de pensar e a evolução dos acontecimentos, mas também os preconceitos e tabus sociais. A função social da linguagem é permitir a compreensão entre os membros de uma comunidade. Muitas vezes a palavra exata é constrangedora em determinados momentos, usando-se então uma expressão atenuadora, o eufemismo. O ato de roubar, por exemplo, é nomeado de acordo com a posição social do sujeito que o pratica. O gerente desvia o dinheiro. Já o marginal assalta o banco.

O prestígio da linguagem das classes sociais elevadas é enorme, pois a maneira de falar de um superior sempre parece a nós invejável e se apresenta como símbolo de uma vida suposta como ideal. Os hábitos linguísticos vindos do que a sociedade considera inferior são sempre desdenhados — seja pela região geográfica, seja pela classe social.

Os usos procedentes do Centro-Sul, do eixo Rio-São Paulo são logo socializados. Seu padrão de vida é tido como invejável e imitável, além de exportado pela TV para todo o país.

Segundo pesquisas, apenas 26% das pessoas entre 15 e 64 anos são plenamente alfabetizadas, isto é, têm domínio das habilidades de leitura e escrita. Essas pesquisas nos deixam muito preocupados. Mas a vida continua e queremos que a nossa educação melhore. Então, a escola precisa aprender a desenvolver nos alunos habilidades e competências, no seu processo de ensino-aprendizagem. Aprender a focar a formação acima da informação, transformar o aluno em cidadão participante consciente. Fazer com que ele desenvolva a capacidade de raciocinar, de interpretar, de interferir na realidade, de resolver os problemas do dia a dia. Ao construir o próprio conhecimento, a partir da observação, da manipulação, da pesquisa, da análise, o aluno vai vivenciar o conceito ao invés de recebê-lo pronto. Vai internalizar, chegando com mais profundidade ao conhecimento. A escola ainda há de realizar um currículo com conteúdos contextualizados, próximos da realidade do aluno, e trabalhados de maneira interdisciplinar, em conteúdos interligados.

E é bom que se diga que o domínio da leitura e escrita é fundamental para o aprendizado em todas as disciplinas. Ensinar a ler e a escrever é tarefa de toda a escola e não só do professor de Língua Portuguesa.

Fonte:
Língua e Tradição

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 421

 


Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 11



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor

Fernando Sabino (O Ricochete Telefônico)


“Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.”
Carlos Drummond de Andrade


TIRO o fone do gancho e uma voz me pergunta:

— Quem está falando?

Isso é que é eficiência — ainda nem disquei!

— Você. Não falei nada.

Desligo e tento de novo. Desta vez vou obtendo logo um sinal de ocupado, antes de discar.

O que eles querem é que eu desista. Não adianta, sou teimoso como uma mula.

Mais uma tentativa — desta vez não acontece nada.

Pois então vamos ver quem tem mais paciência.

Deixo o fone fora do gancho e vou cuidar da vida. De vez em quando volto para dar uma escutadinha.

Nada.

Ao fim de dez minutos, ganho a parada: obtenho uma linha.

Só que é daquelas que continuam tocando depois que a gente disca.

Então está bem.

Consigo outra. Novo sinal de ocupado depois de discar o número da estação.

Estou progredindo.

Com diabólica obstinação me submeto à provação do ricochete telefônico, ou seja, a sequência de insólitos fenômenos auditivos que faz do completamente de ligação uma loteria nem sempre esportiva:

— Eu gostaria de esclarecer umas dúvidas.

— Pois não. Com muito prazer.

— Sinal de ocupado antes da hora?

— Sobrecarga de chamadas. Congestionamento na estação.

— Aquela linha boba que não pára?

— Defeito no equipamento. O jeito é tentar outra.

— Chamada que não se completa?

— Sobrecarga.

— Número errado o tempo todo?

— Defeito.

Quando não é sobrecarga, é defeito. E aquele sinal de ocupado que vem depois que a gente liga, pensa que me enganam? Aquele sinal é falso, não está ocupado coisa nenhuma.

— Só nas novas estações acontece isso.

— E nas outras?

— Não acontece nada.

Estou falando com um representante da Companhia Telefônica Brasileira, da seção de Relações Públicas, para esclarecer umas tantas coisas. Pelo telefone, depois de meia hora de tentativas. Ele não falou propriamente assim, estou resumindo: foi amável, interessado e convincente, Quando soube que eu pretendia escrever sobre o assunto, se dispôs logo a colaborar. Disse que a CTB não estava tentando livrar a cara, pelo contrário: é a primeira a reconhecer que o sistema é deficiente e está procurando melhorá-lo. Por exemplo: este ano vão inaugurar novas estações, a partir de abril — uma por mês. O que quer dizer que haverá menos sobrecarga. Outras providências que estão tomando reduzirão os defeitos.

Mantivemos uma instrutiva conversa de quase uma hora, durante a qual não aconteceu nada: nem linhas cruzadas, nem ruídos (ou música, como costuma acontecer), nem queda de ligação, como se diz hoje em dia, quando a chamada pifa. Ao fim, eu estava satisfeito: conseguira falar ao telefone. Agradeci e desliguei. Não sem antes defender uma velha tese minha, segundo a qual uma das maneiras mais eficientes de melhorar os serviços telefônicos seria incentivar a utilização dos Correios e Telégrafos.

“Telefonavas, telefonavas”
Manuel Bandeira


Reconheço publicamente que sofro da síndrome de Graham Bell. Doença terrível no Rio de hoje — a dos maníacos como eu, que não podem passar sem um telefone: tornei-me sério candidato a uma temporada de cura e repouso no Pinel.

— E a linha cruzada?

— Contato nos cabos. Quando chove penetra umidade no cabo, e dá linha cruzada.

É o serviço telefônico mais barato do mundo: permite participar da conversa de uma porção de gente ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.

— Quantos telefones tem no Rio?

— Tem 12 aparelhos para cada 100 pessoas. Não pode se comparar a Washington, por exemplo, que tem 98, ou Nova York, que tem 60.

Não estou comparando, estou só perguntando:

— E quantos entre estes cem podem falar ao mesmo tempo?

— Vinte e cinco.

Considerando-se que estarão falando com outros 25, já são 50 — nada mal.

— Que acontece se os cem resolvem falar ao mesmo tempo?

— O sistema entra em colapso.

Como costuma acontecer quase toda tarde. (Dizem que a culpa é do jogo do bicho.) Tenho um amigo que conseguiu se livrar dos que o importunavam pelo telefone, pedindo que o chamem sempre entre cinco e sete da tarde.

“Meu telefone agora vive mudo
E o dela sempre em comunicação.”
Fox-canção de Orestes Barbosa


— E os macetes que o carioca inventou para conseguir ligação?

— Não adiantam nada. Bater no gancho para conseguir linha é sair do princípio de uma fila e entrar no último lugar. Prender o disco, forçar a sua volta, discar devagar ou depressa, acrescentar mais um algarismo — nada disso adianta. Tem gente que acredita até em discar com a mão esquerda para dar sorte. Ou com o dedo mindinho, sei lá.

— Conseguir telefonar ainda é uma questão de sorte?

— Mais ou menos: aumentou o número de usuários de maneira assustadora, fazendo com que o problema continue grave, apesar das melhorias.

Quer dizer que, tudo considerado, o serviço piorou porque o sistema melhorou.

— Para terminar, uma última pergunta: por que será que basta discar um número errado para que atenda sistematicamente uma alemã malcriada, de sotaque carregado?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) III


CONSELHOS

Não odeies um pobre que mendiga,
que ao mendigo, na mesa falta o pão;
é que Deus abençoa a mão amiga
que entre os trapos, se humilha e estende a mão!

A humildade suprema não castiga,
e oferece conselho a cada irmão;
prova sempre do pão, que alguém mastiga,
quando é feito da massa do perdão!

Abre as mãos, ergue os braços, cerra os punhos,
que entre os ecos da vida há mil rascunhos
de conselhos de amor pedindo paz...

Que os que guardam rancor dos infelizes,
ficam neles, profundas cicatrizes,
entre as marcas, que o tempo não desfaz!
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GRATIDÃO

Não maldigo da vida os atropelos
e nem posso do tempo ter desgosto;
devagar vai pintando os meus cabelos,
pondo riscos de rugas no meu rosto.

Passa a vida e no espelho posso vê-los,
e aceitá-los assim, estou disposto,
quanto é bom contemplar meus brancos pelos,
mas confesso, um pouquinho a contragosto.

São sinais estes meus cabelos brancos,
certamente, de muitos solavancos
que o capricho da vida me deixou...

E eu feliz igualmente a um beduíno,
corro atrás do fantasma do destino
que o feitiço do tempo me levou!
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INQUIETUDES

Vim pedir-te Senhor, de olhos abertos,
ante as luzes de velhos castiçais,
que os meus sonhos de amor, sejam libertos,
das algemas dos sonhos irreais!

Meu temor é o de ter sonhos incertos,
e entre sombras e anseios tão fatais,
os meus sonhos se tornem tão desertos,
que eu não sonhe contigo nunca mais!

Cada sonho na vida é um breve instante;
muitas vezes, de paz, de amor constante,
e, outras vezes, também cego e sem luz...

No altar-mor, como é bom que Cristo veja,
nós dois juntos, no altar da mesma igreja,
ajoelhados aos pés da mesma cruz!
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MÃOS

Esses traços, que tens em tuas palmas,
nessas mãos tão sensíveis, sem temores,
podem ser traços vindos, de outras almas,
entre as almas febris de outros valores!

Por favor, joga fora esses teus traumas,
vem comigo depressa e esquece as dores,
vamos juntos curtir, nas horas calmas
os prazeres da vida entre os amores!

O que eu quero é prender-me nos teus laços,
ser escravo da cruz dos teus abraços
entre as cruzes das mãos que sempre quis...

Se os teus dedos das mãos são tão audazes,
sem meus dedos, jamais serão capazes,
de escrever esses versos que te fiz!
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SAUDAÇÃO À CAPISTRANO DE ABREU

Capistrano de Abreu, grande arquiteto,
que, no mundo das letras, floresceu.
Maranguape, seu berço predileto,
foi a terra da luz, onde nasceu!

Nessa terra sagrada ele cresceu
foi um autodidata tão completo,
que no mundo da história, o que escreveu,
usou todas as tintas do alfabeto!

Ninguém pode esquecer que Capistrano
exaltou Maranguape, ano após ano,
berço eterno do altar de tanta glória.

Capistrano de Abreu virou poema
e entre os beijos eternos de Iracema
beija e abraça os portais de nossa história!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Proparoxítonas)


Há dois tipos de palavras: as proparoxítonas e o resto.

As proparoxítonas são o ápice da cadeia alimentar do léxico.

Estão para as outras palavras assim como os mamíferos para os artrópodes.

As palavras mais pernósticas são sempre proparoxítonas. Das mais lânguidas às mais lúgubres. Das anônimas às célebres.

Se o idioma fosse um espetáculo, permaneceriam longe do público, fingindo que fogem dos fotógrafos e se achando o máximo.

Para pronunciá-las, há que ter ânimo, falar com ímpeto - e, despóticas, ainda exigem acento na sílaba tônica!

Sob qualquer ângulo, a proparoxítona tem mais crédito.

É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.

O inclinado e o íngreme.

O irregular e o áspero.

O grosso e o ríspido.

O brejo e o pântano.

O quieto e o tímido.

Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.

Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.

Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.

É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.

Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.

Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.

(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)

Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.

É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.

O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.

Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.

Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.

O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.

Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.

O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a esse círculo do vernáculo – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?

Fonte:
Facebook Língua e Tradição

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 420

 



Olivaldo Júnior (O Aluado)


Conheci o aluado há muito tempo. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Morava num galho de árvore, na beira do rio. Comia os frutinhos que a mata lhe dava. Era um homem de mais ou menos trinta anos, pele escura pelo sol, olhos negros pela noite, com fiapos de luar em seus cabelos, tão sujinhos de memórias. Não falava nossa língua. Aliás, já não falava. Dizem que ficou assim depois de ter amado.

Não sei, mas o amor pode mesmo machucar. Não, o amor não. A paixão. A senhora dos corações humanos, ainda mais que o amor, esse bálsamo que os anjos de quando em quando deixam cobrir nossas feridas, a paixão é o que nos fere, muitas vezes mortal e irremediavelmente, sem dó. Assim estava ele, o aluado, em permanente estado apocalíptico, pós-paixão.

Conheci há muito tempo o aluado. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Hoje, os olhos dele são meus olhos quando o vejo, tenho o tal em minha vista. Canta, cantarola em língua própria seu hinário, de dor, de amor, de andor. Não sei se o perco de vez na escuridão, se lhe dou a mão para subir, não sei o que fazer. Hoje é lua cheia. Do edifício das estrelas, São Jorge desce e quer levá-lo. Ave, Maria, cheia de garças, levai o Homem a ser ave! Posso, da vista de casa, avistá-los. O aluado não quer ir, mas São Jorge insiste e ele vai. No dorso do cavalo branco, guerreiro, perdendo a guerra em paz, o aluado vai morar no Céu, enfim.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Carla Rejane Silva (Ritmo Desacelerado)

Andei por caminhos tortuosos em busca da paz.
 
Nessa jornada encontrei somente pedras e espinhos. Muitas vezes repousei minhas angústias e tristezas.  Quantas lágrimas sentidas derramei em vão  por esse mundo de Deus  afora. Foram tantos os percalços que perdi a conta. Na verdade penso que chorei por mim, por você,  ou melhor, por nós.
 
Hoje, nesse sacolejo da vida perene, ando devagar, sem pressa de chegar. Meus passos até pouco tempo eram rápidos, diminuíram com o passar dos anos. Meu coração que outrora batia descompassado, desordenado, descomedido, e despropositado, como numa dança sensual, hoje já não sustenta o mesmo ritmo.
 
Não podia ser diferente. Juntos “eu e Ele” passamos por muitas batalhas, tanto fisicamente como emocionalmente. Meu corpo idem, coitado, carrega grandes cicatrizes, marcas indeléveis que a vida sem piedade fez questão de deixar emaranhadas. Marcadas como um troféu dentro de mim...
 
Fui forte, me fiz guerreira. Lutei bravamente minhas guerras, como se o porvir nunca viesse a existir. Uma briga árdua com meu “eu” interior travei desordenadamente por anos infindáveis. Houve momentos, é bem verdade, que cheguei ao limite do desespero total, da angústia mórbida e da infelicidade. Quase desisti do meu desafortunado destino.
 
Porém, sempre segui em frente, mesmo com a alma em frangalhos, meu interior bagunçado, meus sonhos rasgados, mormente como um farrapo jogado ao léu. Meus pés descalços e calejados em face do caminhar por vias perdidas da vida confusa. Minhas mãos, hoje, enrugadas pelo sol e deterioradas pela chuva, apesar disso continuo seguindo... Seguindo...
 
Obtive algumas vitórias, verdade seja dita, muitas por excelência.  Também conheci o doce amargo das derrotas consecutivas infligidas a mim, todavia, consegui chegar aqui nesse lugar onde me encontro agora. E sinto, vejo como é bom e gostoso, repousar nos braços do sossego das minhas rugas... Sentir a maciez dos meus cabelos brancos...  

Apesar das vistas cansadas, me sinto completamente imersa, tranquila dentro de mim. Com a certeza absoluta que estou em paz comigo, com meu coração e principalmente, com a minha consciência e vida simples.

Fonte:
Carla Sonhadora (facebook)

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 5


A DESVENTURA É UMA ESCOLA...

Ao meu médico e amigo Dr. Francisco Gugliotti

A Desventura é uma Escola, ..
Curso de Aperfeiçoamento...
Dá Serenidade à alma,
e ao coração — sentimento...

Tenho vários companheiros
na minha infelicidade;
Inquietação, Incerteza,
mais o Silêncio e a Saudade…

O silêncio é doce amigo;
tenho-lhe grande amizade.
Mas dos outros não gostei.
Principalmente a Saudade…

A Saudade é implicante,
tem jeito dissimulado...
 Não sendo amiga da gente,
vive sempre ao nosso lado...

A desventura é uma Escola,
nem útil, não nego não...
Mas quem dera que chegasse
o dia da "Colação"...
****************************************

AO CREPÚSCULO

No meu quarto a brisa sopra
e a lâmpada rodopia…
O crepúsculo se insinua
bem de leve... Finda o dia...

Toca o Rádio... É Beethoven
numa triste melodia...
No meu peito sinto leve
agulhada, fina e fria…

Eu tão moço! Que tristeza!,..
E esta doce melodia,
a avivar minha incerteza
neste triste fim de dia!…
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CULPEM A VIDA...

"Deixa a tristeza de lado,
este tom sempre magoado,
de um Tempo que já morreu...
Este lirismo, hoje pobre,
do poeta Antônio Nobre,
de Casimiro de Abreu..."

…Mas nunca tem culpa a gente,
da vida que se viveu…
Eu não quis ficar doente...
Nem fiz o Destino meu...

Os meus versos são apenas,
reflexos de minhas penas,
o que eu já sofri enfim;
se lembram Nobre um momento,
culpem ao meu sofrimento,
à minha Dor... não a mim!…
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DESÂNIMO

Então é o fim? Ou fugirei ainda
de tão horrendo leito — a sepultura!?
Se aqui há tanto sol, e a vida é linda,
mais dói esta partida prematura…

E esta constante dúvida não finda:
"Meu Deus eu morrerei? Eu terei cura?"
Não é justo colher a flor que ainda
há de ser fruto, — a vida não madura…

Quase sempre nós temos um ideal;
e em sua busca tenho sido um forte!
Porém agora a luta é desigual,

e eu temo muito pela minha sorte!
Pois sei que é bem traiçoeiro este meu mal
e é sorrateira muito mais a morte...
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PERSISTÊNCIA

Se hoje, até velhos castelos,
bombas podem arrasar,
quanto mais os meus castelos
arquitetados no ar!...

Porém, por mais que estes dias,
sejam cruéis, intranquilos,
por mais também que os destruam,
tornarei a construi-los…
****************************************

POBRE LUIZ!

E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

…Quem sabe se ouço a voz desse soldado,
que eu vejo — com o olhar cheio de mágoa
perdido no Deserto ensolarado,
a pedir, quase morto, um pouco d'água!?

... Quem sabe se ouço a voz dessa velhinha,
que lá de sua tão longínqua terra,
pensa no filho e reza — coitadinha! —
para que acabe bem depressa a guerra!?...

...E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

…Quem sabe se ouço imprecações de Dor,
gemidos ou tremores de receio,
ou o barulho estranho de um motor,
de algum soturno avião de bombardeio!?

…Quem sabe (e eu a pensar sinto a mão fria!)
você, amor, que vive tão distante,
julga talvez que estou em agonia,
e pensa em mim agora nesse instante!?...

...E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

E amanhã, quando então sair, já dia,
de face branca e com olhar bem fundo,
hei de escutar, em frases de ironia,
a voz tola e inconsciente desse mundo:
"Se não deixar de vez esta boêmia,
verá bem cedo seu tristonho fim!"
"Sempre trocando a noite pelo dia,
vai muito mal, vai muito mal assim!"
"Está tão magro e pálido o infeliz!"
"Estas noites perdidas em orgia!
Pobre Luiz!"
— Oh! sim, pobre Luiz...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Contos e Lendas do Mundo (Entre as Rosas)

Era final de inverno...

Mais um ano havia passado e não se chegara a nenhuma conclusão.

Os partidários das diversas facções, dia após dia, perdiam-se em longas e intermináveis discussões sobre esta ou aquela candidata, sem chegarem a um consenso.

Decantava-se a beleza da papoula, as qualidades das alfazemas, o perfume dos cravos, as virtudes de pureza e humildade de lírios e violetas.

Tudo em vão. Num canto despretensioso do mundo, onde as espécies vegetais cresciam silenciosamente, um pequeno arbusto travava sua luta diária pela sobrevivência, alheio a toda sorte de discussões.

Conformada com sua forma tosca, retorcida, prenhe de espinhos pontiagudos e consciente de que nunca alcançaria a beleza de um dente-de-leão, acostumara-se a ser desprezada e humilhada, sem no entanto deixar de prestar atenção nas pequenas criaturas que dependiam de sua existência para sobreviver.

A elas dedicava a sua vida, emprestando a segurança de seu tronco e ramos para abrigar insetos das chuvas e ventanias.

Era feliz, pois, se não tinha a beleza, tinha a utilidade, e isso lhe bastava.

Naquela manhã fria de final de invernia, ainda não totalmente desperta da noite, a plantinha rude viu despregar do céu uma linda estrela cor de prata. Sorrindo, acompanhou-lhe a trajetória em arco perfeito pelo céu escuro, descendo, descendo, em direção à floresta ainda adormecida. Era tão suave e linda aquela forma que, instintivamente, todos na floresta: árvores, arbustos, pássaros e flores, acordados pela luz repentina, curvavam-se para vê-la passar.

A estrela flutuou entre sorrisos, agradecendo a simpatia da floresta, até chegar perto do arbusto cheio de espinhos.

Aproximou-se lentamente da plantinha e falou-lhe docemente.

- Não te inscrevestes na eleição da rainha das flores, por isso vim pessoalmente buscar-te.

– Mas, senhora - gaguejou a planta - eu? Como posso aspirar a ser rainha de qualquer coisa, não vês o quanto sou feia?

- O Senhor da vida ordenou-me que viesse buscá-la.

- Se este é o seu desejo, aqui me tens, senhora.

E partiram em um rastro de luz, na direção do conselho das flores.

As demais candidatas riram-se da pretensiosa intenção daquele feio arbusto.

A plateia silenciou quando entrou no ambiente a primavera, anunciada pelo som de mil clarins.

O arbusto, espantado, reconheceu a estrela que a trouxera até ali.

- Então, senhores conselheiros - questionou a primavera - o Senhor da vida deseja saber se já encontraram a legítima representante de Seu reino!

- Não, senhora. Estávamos para decidir-nos, quando fomos interrompidos pela vaidade dessa planta sem qualidades que aí está. Veja! Quanta ousadia!

A primavera voltou-se para a plantinha que chorava de vergonha e humilhação e perguntou:

- O que mais desejas nesta vida?

E a planta respondeu entre lágrimas.

- Amar e ser amada.

A primavera, então, tocou os galhos espinhosos e, logo, botões surgiram dos galhos seminus, abrindo-se em mil pétalas sedosas, de perfume inesquecível.

– Qual é o teu nome? - perguntaram todos.

- Eu sou a Rosa.

Moral da Estória:
Quando o amor tocar os espinheiros do mundo, as rosas brotarão em cada alma.

Fonte:
Universo das Fábulas

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 419

 


Daniel Maurício (Poética) 7

 

Lygia Fagundes Telles (Então, Adeus!)


Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro:

— Vejo que aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: – Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos… Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.

— Volte sempre — pediu-me.

— Impossível — eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia… — acrescentei sem nenhuma esperança.

— E então, até logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.

Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?… “Então, adeus!”, ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma ideia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!…

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.

— Até logo! – eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.

Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”

Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.

Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.

— Boa noite!

Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.

— Que coincidência… — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer.— Eu não esperava vê-lo… tão cedo.

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.

Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho…”

Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:

— Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?

Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.

— Ah, não sei… Antes eu sabia, mas agora já não sei.

Fonte:
Figuras do Brasil. 80 autores em 80 anos de Folha. SP: Ed. Publifolha. Folha de São Paulo.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 6


adminimistério
 
Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?
****************************************

a lei do quão

Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
um jeito de chuva
à última branca de neve.
Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
A sombra máxima
pode vir da luz mínima.
****************************************

aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
****************************************

o mínimo do máximo

Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.
****************************************

saudosa amnésia

a um amigo que perdeu a memória

Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Cinco) Quando a Desculpa da Muleta é o Aleijado


O TELEFONE TOCOU DEZ VEZES. Na décima primeira, o sujeito atendeu:

—  Alôaaa...

O que ligava estava agastado e super nervoso. Pê da vida. Xingou o cara para quem telefonava, dos pés a cabeça. Só não chamou o desgraçado de santo. O que atendeu, ao contrário, se achava super tranquilo e de bem com a vida:

— Mexerica, seu filho de uma égua. Por que demorou atender? Infeliz, você nem imagina a minha preocupação. Quase tenho um piripaque.

— Fala ai, Polvilho. Fica calmo. Estava no banheiro. O que você  manda?

— Como o que eu mando? Tá me tirando? Fez o que pedi?

— Fiz. Ontem mesmo.

— Ah, tá. Deu tudo certo?

— Deu.

— Posso ficar tranquilo?

— Deve.

Polvilho ainda bufando de raiva e extremamente preocupado, procurou se acalmar:

— Desculpe ter me alterado. Achou fácil o endereço?

— Moleza! Com aquele mapa que me deu...

— E como foi o encontro  com o maldito Torresmo?

— Correu tudo bem. Como aliás, havíamos previsto. Ele pegou os cento e cinquenta mil reais, contou, recontou e chiou um pouco pelo fato de você ter demorado a dar sinais de vida. De resto, nada de novo.

— Graças a Deus! Jesus Cristo seja louvado.

— Só teve um detalhe que me pediu para lhe comunicar o mais urgente possível.

— Detalhe? Que detalhe.

— Você esqueceu os juros do mês passado. Ele quer que você mande para ontem.

— Que inferno, Mexerica. Esqueci a droga dos juros. Você pediu um prazo?

— Pedi.

— E ele?

— Foi meio imparcial. Deu até sábado. Nem um dia a mais, nem a menos. Caso você não se manifeste, ele irá lhe procurar pessoalmente ai no seu restaurante.

— Diabos, Mexerica. Sábado agora?  Espia, mano! Hoje é quarta.

— Eu sei. Fiz das tripas coração. Pedi quinze dias, ele virou bicho. Tem que ser sábado agora. Deixou isto bem sintetizado. O valor você já sabe. Vinte e cinco por cento do capital de cento e cinquenta mil reais.

— Com essa história de juros, acredito tenha pago e repago  o capital do amaldiçoado umas quinze vezes.

— Bem, ele disse que sábado é o prazo final. Mandou que você desse seus pulos. Preciso estar com o Torresmo às duas horas em ponto. Polvilho, meu prezado, não tenho nada com a sua vida. Mesmo assim, vou lhe dar um conselho. Conselho de amigo. Acho que esta é a hora. Procura se virar nos tais juros e ai você fica livre da agiotagem desse espertalhão.

— Farei isso, Mexerica. A propósito: você me ajudaria com um novo favor?

— Se estiver ao meu alcance...

— Por tudo quanto é sagrado. Não quero tornar a ver a fuça do Torresmo na minha frente. Você leva o dinheiro dos juros para mim? Sábado pela manhã, ai pelas oito, você vem aqui no restaurante  e pega comigo o valor. Combinado?

— Combinado, meu amigo.

Assim que Polvilho saiu de cena, Mexerica ligou correndo para a Melissa, sua namorada:

— Oi, gatinha. Arrumou as malas?

— Seu idiota. Claro que sim. Aliás, estão prontas tem mais de uma semana. E aí, quando vamos meter os pés na estrada?

— Neste sábado. Estou com as passagens.

— De verdade, amor?

— De verdade. Passa a mão nos seus cacarecos e se encontra comigo na rodoviária. Vou esperar por você em frente ao guichê da empresa. Não se atrase. Vamos pegar o primeiro. Lembra. Onze horas. Esteja lá.

— OK, meu amor. É certo mesmo, né?

— Ainda duvida de mim, Melissa. Beijos. Não esquece. Sábado agora. Vamos embarcar às onze em ponto. Se cuida.

— Você também, amor.  Te amo!
***************

Sábado às sete horas da manhã, Polvilho tornou a ligar para o Mexerica. Como sempre, a demora da criatura em atender. Quando ia tocar pela décima sexta vez, Mexerica se fez ouvir:

— Bom dia. Fala, meu amigo.

— Filho do tinhoso. Por que demora tanto em atender a esse  telefone?

— Porque estava com a minha velha, Polvilho. Você sabe como é. Mamãe não sabe das minhas tretas. E aí, está com a grana?

— Estou.

— Posso ir buscar?

— Agora.

— Está no restaurante?

— Sim. Pode vir.

— OK. Estou a caminho. Só o tempo de pegar um Uber.

No estabelecimento comercial, sem mais delongas Polvilho   passou a grana limpinha do tal do juro em aberto para o amigo Mexerica, como fez anteriormente com o capital:

— Te devo mais esta.

— Fique tranquilo. Você não me deve nada. Amigo é para estas coisas.  

— Confere, por favor.

— Confio em você, Polvilho. Se não confiasse...

— Obrigado pela parte que me toca. Apesar do ladrão do Torresmo ter me arrancando as cuecas e as calças, agradeça a ele por ter me quebrado o galho. Alias, um galhão. Hoje, me livro desse verme para sempre. Tome aqui dois mil e quinhentos reais pelo transtorno que lhe causei.

— Qué isso, cara. Você é meu amigo.

—  Por isto quero que aceite. Sei que precisa. É um presente.

— Sempre vou estar às suas ordens, Polvilho. Se precisar, sabe onde me encontrar. A propósito: na volta tomamos uma cerveja?

— Se for uma só, estou dentro. Estes juros extras me deixaram a ver navios.

— Vamos fazer o seguinte. Eu pago uma e você promove a saideira. Fechado?

— Fechado, amigão. Vai com Deus. Que os anjos do céu lhe acompanhem! Depois me dê notícias.

Trocaram efusivos apertos de mãos e Mexerica pulou para dentro de um automóvel de aplicativo. Ligou para a Melissa imediatamente. A jovem atendeu, de pronto:

— Amor, estou indo para a rodoviária. Voa, minha princesa. Tá quase na hora do ‘buzuzão’ partir.

— Ok, lindo. Estou a caminho. Chego dentro de vinte minutos.
****************

Desde este sábado, Mexerica tomou chá de sumiço. Desapareceu do pedaço. Escafedeu, segundo amigos e vizinhos próximos,  para lugar incerto e não sabido, levando a sua namorada Melissa, à tiracolo. Como toda história que envolve grana alta nunca teve final feliz, esta não poderia fugir à regra. Uma semana depois Torresmo em carne e osso, baixou com a sua turma de guarda costas mal encarados no restaurante de Polvilho:

— Olá meu amigo Torresmo. Quanta honra! A que devo a sua tão amável visita?  — Vou mandar meus cozinheiros prepararem aquele almoço para você e seus amigos. Entrem, fiquem a vontade.

Torresmo, forte como um touro, não se ateve à palavrórios. Agarrou Polvilho pelo pescoço e o levantou no ar:

— Vim receber meu dinheiro, seu safado e caloteiro. Quero minha grana agora. Eu disse agora. Ou paga, ou reza.

Polvilho tentou falar... Sequer chegou a balbuciar:

— Torres... Tor... Res... Torres... Mo...  Eu te pa... Paguei tu... Tudo.

— Verdade?

— Mandei meu amigo Mexerica levar seu dinheiro. E ele...

— Tratei com você. O Mexerica que se exploda.

Foram suas últimas palavras. As extremas, a bem da verdade. Polvilho foi atirado carinhosamente dentro de um dos carros pretos que faziam parte da comitiva de Torresmo. Desde este dia, o coitado do Polvilho parece ter se dissolvido na água. Nunca mais foi visto.      

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 25 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 418

 


Contos e Lendas do Mundo (O Rio e o Mar)

Sobre as pedras brancas e lapidadas ele percorria. Percorria só, atento às ondulações em suas margens. Observando dia e noite a mata que o protegia. Sabia estar indo para algum lugar, mas não podia prever aonde daria seu curso.

Por vezes sentia-se só e alegrava-se quando os animais vinham nele beber. Dia e noite suas águas percorriam e desejava saber o porquê da sua natureza assim ser. Queria parar um pouco e desfrutar das mesmas coisas que todos desfrutavam na mata.

Um dia ao entardecer entristeceu-se e se pôs a chorar. Sentia muita solidão...

Suas lágrimas inundaram a mata, causando pânico aos que nela viviam:

- Rio, por que choras? Tua tristeza desequilibra a natureza na qual vivemos!

- Choro por sentir-me só. Enquanto todos possuem companhia, eu percorro sozinho, sem ninguém para falar, ninguém para brincar. E sinto medo, pois não sei para onde estou indo...


Todos na mata silenciaram diante da tristeza do rio. Também não sabiam aonde ele iria chegar. Não podiam ajudá-lo. E assim. Todos ficaram parados, vendo o rio passar...

Sua tristeza era profunda e não havia meios de ajudá-lo...

A chuva surgiu inesperadamente de dentro da mata e vendo a tristeza do rio, perguntou:

- O que lhe tira a paz, meu caro amigo?

- Não entendo minha natureza e sinto-me muito sozinho a percorrer por tantos caminhos que nunca chegam a lugar algum.


A chuva vendo o desespero do rio, afagou-o gentilmente com suas águas límpidas.

- Se choras por estares só é porque ainda não descobriste tua real natureza. Nada neste mundo está só, excluído do todo. Aceita tua natureza e percorre feliz em teu curso. És tão necessário quanto a mata e tudo que nela vive.
És tão necessário quanto o sol e tudo que na sua luz é banhado. Teu destino não está longe e quando o encontrares saberás que tudo tem uma razão de ser. Aceita a orientação que vem de dentro, ela sabe o percurso e sabe para onde estás indo.
Confia e tua confiança conduzir-te-á para tua alegria, para teu descanso, para teu reencontro com a tua verdadeira natureza. Quando chegares neste lugar estarás em paz, pois viverás com os teus iguais.

O rio recebeu a chuva com contentamento e tratou de seguir seu curso, confiante no que a chuva lhe falara.

Adiante, uma surpresa, percebeu que estava saindo da verde mata, caindo lentamente sobre um mar azul... Infinitamente azul...

Fonte:
Universo das Fábulas

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 10



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Mara Melinni (Cristais Poéticos) 1


CONJUNÇÃO

Quando escrevo, a minh´alma se desprende
Das arestas formais do corpo insano
E viaja, no instante em que se rende
Aos anseios do amor... Sem dor, nem dano.

Neste plano, onde o sonho se revela,
Face à espera que finda, vão-se os medos...
E no enlace do encontro – dele e dela,
Cada beijo murmura seus segredos.

Bem assim, vivo a vida simplesmente
Nos meus versos, buscando a própria cura
Aos anseios que a sorte me consente...

Hei de achar-me naquele que procura
Todo o encanto de amar serenamente
Um ao outro... na mesma criatura!
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CORES DE VIDA
 
Em cada manhã, quando o sol desponta,
Avisto no orvalho, sereno e manso,
Um pouco da vida, desnuda e pronta,
Que só de me olhar, revida e afronta
O sonho pequeno... Que eu não alcanço.

Sem sono e sem remo, sigo a proeza
Do azul que goteja nos madrigais...
Da luz do luar, eu sou fácil presa,
Sou fiel refém da minha tristeza,
Mergulho no mar... Sem deixar sinais.

Perseguindo o vento, sem direção,
Pinto de amarelo a chama silente,
Que desfaz o choro, livrando o chão
Das folhas de outono, a cada estação,
Quando a brisa chega... Na aurora quente.

Mas mudam as cores, muda o meu riso...
Vermelha é a rima mais que perfeita,
Que enfeita o meu céu, faz do paraíso
Berço do pecado, último juízo,
Lembrança de amor, amarga e desfeita.

Então mudo o curso, na longa estrada...
É verde a esperança, que habita em mim.
Revejo na vida, tantos sem nada,
Sua cruz, quantas vezes, triste e pesada,
Afoga o meu peito, é uma dor sem fim.

Assim, pinto branca a felicidade,
Apago a aquarela e renasce a paz...
No fundo da alma, a tela é a bondade
No branco da vida, eu sinto saudade...
Meu sonho incolor, hoje se refaz.

É tão colorido quando amanhece!
Meu verso reluz na névoa do dia...
O sol furta o brilho e o horizonte aquece,
Minh´aura vibrante estende uma prece...
A vida tem cor... Na cor da poesia!
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ESSE SIM, É O "NOSSO TEMPO"!


Meus versos não são profundos,
são bem rasos... Na medida
de cada gota que emana
da minha alma escondida...
Mas te conto o meu segredo:
falo de mim, sem ter medo...
Assim, sou feliz na vida!
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INTENSIDADE

No breve instante, que assim me invade,
Fecho os meus olhos pra me entregar...
No pensamento, descalça e leve,
Caminho em busca de te encontrar...

Noite de lua, eu toda sua...
Sinto os teus passos, na madrugada...
O abraço quente te faz presente...
No beijo teu, fico embriagada...

Faz tanto tempo, tanto tormento,
Mas a distância nos faz querer
Viver de novo o sonho sereno
De um amor que nunca vai se perder.
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LIBERDADE

Eu quero ser livre...
Sentir o vento que percorre o mundo
Beijar meu rosto todo, sem pecado.

Eu quero ser livre...
Ouvir o mar cantar ao pé do ouvido,
Riscando na areia meu corpo molhado.

Eu quero ser livre...
Gravar na nuvem do céu todo o encanto
Do meu sonho mais bonito, nela desenhado.

Eu quero ser livre...
Apreciar a forma e o cheiro da rosa
Que nasceu formosa, num jarro quebrado.

Eu quero ser livre...
Escrevendo versos soltos, controversos,
Transpondo minh’alma num papel riscado.

Eu quero ser livre... E hoje eu sei que sou...
Pois a liberdade sentiu solidão...
Sofreu de saudade por quem tanto amou,
Embalada à voz do seu coração...
E por tanto amar, enfim,
Foi amando assim, que se libertou!
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NOITE

Sonho de imensa noite
Embebeda meu ar
Cenário perfeito
Pra te encontrar...

Hoje imagino
Te pinto, te sinto
E você, tão distante
Aventura errante...

Apesar dos pesares
De esquecer-me
De guardar-me
Te quero incessante...

E, profundamente
Vivo, presente
Imerso na intensidade
Do desejo que te sente.
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SAUDADE

Fecho os olhos
Te encontro
Na imensidão do meu ser...
Que saudade!
É verdade...
Como eu queria te ter!
Faz tanto tempo
Do último momento
Mas nunca pude esquecer...
Hoje eu queria
Viver de novo
Toda aquela magia
Eterna sensação de alegria...
Fazer da distância
Um caminho bem perto
Fazer desse sonho
Um instante certo
Onde eu simplesmente
Estivesse com você...
Onde novamente
Eu pudesse te ter.

Fonte:
Mel Versos

Rachel de Queiroz (Viagem de Bonde)


Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha cheio, mas como diz, empurrando sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez encaixasse metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo. Assim mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela conseguiu se insinuar, ou antes, encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os ombros e os quadris à direita e à esquerda, quando o bonde parou em outro poste, o soldado repetiu o tal slogan do encaixe, e foi subindo – logo quem! – uma baiana dos seus noventa quilos, e mais uma bolsa que continha o fogareiro, a lata dos doces, o banquinho e o tabuleiro. E aquela baiana pesava os seus noventa quilos mas era nua, com licença da palavra, pois com tanta saia engomada e mais os balangandãs, chegava mesmo era aos cem. E esqueci de dizer que junto com ela ainda vinha uma cunhãzinha esperta que era um saci, que se insinuou pelas pernas do pessoal e acabou cavando um lugarzinho sentada, na beirinha do banco, ao lado de uma moça carregada de embrulhos e que assim mesmo teve o coração de arrumar a garota. Também o diabo da pequena conquistava qualquer um, com aquele olho preto enviesado, o riso largo de dente na muda.

Esqueci de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No reboque, atrás, a confusão parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro e outro, e havia um crioulo de bigode à Stalin, muito distinto, tinha cara de dirigente no Ministério do Trabalho, que muito sub-repticiamente viajava sobre o pino de ligação entre os dois carros ou, para dizer melhor, com um pé na sapata do carro-motor e o outro na sapata do reboque. E quando o condutor aparecia para cobrar a passagem, se era o condutor da frente ele punha os dois pés no reboque, e se era o condutor do reboque que vinha com o “faz favor” ele então executava o vice-versa. Sei que não pagou passagem a nenhum dos dois e devia fazer aquilo por esporte; não tinha cara de quem precisa se sujar por cinquenta centavos; esporte, aliás, que todo o mundo aprova e aprecia, pois quem é que não gosta de ver se tirar um pouco de sangue à Light? E aí o bonde andou um bom pedaço sem que ninguém mais atacasse a plataforma.

A turma que chegava, ocupava-se agora em guarnecer os balaústres, formando com os pingentes uma superestrutura decorativa. Mas, alcançando-se o abrigo defronte à Central, quase chegou a haver pânico. Porque no momento em que a multidão da calçada assaltava o veículo, a baiana quis descer, e não era façanha somenos desalojar aquela massa da pressão onde se encastoara, sem falar na pressão de baixo para cima feita pelos que tentavam subir, contra quem pretendia descer. Mas afinal já a baiana aterrissara na calçada e o vácuo por ela deixado era instantaneamente ocupado com uma violência de sorvedouro, o condutor tocara o seu tim-tim de partida, quando ressoaram uns gritos agudos cortando o ar abafado. Era o pequeno saci de olhos pretos a clamar que o povo subindo não a deixara descer. E a tensão geral explodiu em cólera e ternura, e todo o mundo tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam a corda do marcador de passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em puro linguajar da Mouraria, uma voz berrava: – já se viu que brutalidade, impedir a criança de descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia, o motorneiro, para ajudar e mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a tocar aquela espécie de sino que fica embaixo do pé dele. E enquanto os passageiros compassivos desembarcavam a garota, um senhor, que vinha em pé no meio dos bancos, pôs-se a declamar que era assim mesmo, que motorneiro, condutor e fiscal, em vez de se aliarem com o povo, não passavam de uns lacaios da Light, mas quando chegasse na hora de pedir aumento de ordenado haviam de querer que a população ajudasse com aumento nas passagens. O povo é que é sempre o sacrificado. E o condutor aí se enraiveceu também, e começou a convidar o homem para a beira da calçada, e o senhor disse que não ia porque não se metia com estrangeiros, e um engraçadinho deu sinal de partida e o motorneiro (que já estava por demais chateado) partiu mesmo, deixando o condutor em terra, vociferando; só foi dar pela falta quando chegou com o carro bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor corria o guarda começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde aberta para os carros em direção contrária.

Parecia o dia de juízo, o bonde parado, os automóveis buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o pessoal do bonde rindo que era ver uns demônios. Afinal o bonde partiu, tudo pareceu acalmar um pouco, mas aquele senhor em pé que xingara os pobres empregados da Light de lacaios do polvo canadense mostrou que era homem afeito a comícios, não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava acostumado a falar até em meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo acontecia porque o Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional – sim, meus senhores, constitucional! – da mudança da capital da República. Imagine que delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos burocratas, dos automóveis dos políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com ele a alcateia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros! Isso aqui ficava mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria embora, e que maravilha o Rio com um milhão de vagas nos transportes, um milhão de vagas nas residências, um milhão de bocas a menos, para comer o nosso mísero abastecimento! As favelas se acabam automaticamente, o arroz baixa a quatro cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os Ministérios com todas as suas marias candelárias. Pensando nos ministérios – será apenas um milhão de gente que nos deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um milhão! O que virá em muito boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões!

E aí o bonde inteiro aplaudiu, cada qual só pensava na vaga a seu lado. E, se aquele bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de Janeiro, houvesse uma revolução. Talvez o povo do Rio de Janeiro desse ordem de despejo para o seu Governo, lhe apanhasse os trastes, lhe apontasse a estrada, que é larga e vai longe. Mas, feliz ou infelizmente, o bonde era pequeno e, apesar de conter tanta gente, não dava nem para um bochincho. E o Governo, pensando bem, também é de carne como nós – e só um coração de ferro tem coragem de deixar este Rio, assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem transporte, sem luz e sem água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado:

– Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar de lá? Céu é céu, de qualquer jeito…

(Publicada em 1953)

Fonte:
O Melhor da Crônica Brasileira – 1. RJ: José Olympio, 1997