terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Vladimir Duarte Dias (Querência de Versos)

FRIO


Lá fora faz frio,
Sopra o vento,
Sacode árvores.
Lá fora faz frio.

Aqui no velho sobrado
Sentado no canto
Tal rebenque velho,
Abandonado,
Um homem está só.

Será que por dentro
Sem amor e alento
Seu corpo, sua alma
Não sente falta de alguém?

La fora faz frio,
Do lado de dentro
Será que esse homem
Não sente mais frio?
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VIVER

Que não seja só sofrer
Este meu pobre viver
Pois se viver é sofrer
Estou louco por morrer

Mas se é doce viver
Completo de paz e amor
Não quero saber sofrer
Aceito morrer de amor.
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VIDA

Martin Fierro não foi cantor
de versos de amor
Esqueceu aquele poeta
De cantar a primavera

Escreveu cantando louvores
De um gaúcho atormentado
Com o coração apertado
Compôs versos pilchados.

No mundo da nova era
O homem se fez quase quimera
Se vê e se faz muita festa
Poucos sentem a primavera.

Fonte:
Versos enviados por Anatoli Oliynik

Aluísio de Azevedo (Fluxo e Refluxo)


FACÉCIA* EM TRÊS ATOS

ATO PRIMEIRO


Cenário a duas tintas - branco e cor-de-rosa. A cena representa a plena ilusão de uns vinte anos em flor. Há formosas mentiras e claros sonhos de esperança voando pelo ar. Num doce clarão de aurora pestanejam, quase a fechar os olhos, as últimas estrelas. No primeiro plano crescem discretamente as primeiras violetas de junho e brotam em superabundância versos líricos, que ainda mal se firmam nos pés, ambos muito orvalhados, aquelas de rócio matutino e estes de lágrimas de amor platônico.

ELA e ELE

(Ele, primaveril e cato, contempla embevecido a natureza que desperta, e procura uma rima, Ela, outonal e bela, ardendo em dissimulados desejos, tem n’Ele os olhos postos e n’Ele concentra todo o seu enlevo).

ELA: (Tomando-lhe uma das mãos, sem que Ele dê por isso). Por que me não atendes, senhor dos meus pensamentos?... Por que me não arrancas com teus braços desta agonia que me mata?

ELE; (Distraído e trescalando o aroma da puberdade). Surgem ao longe sobre as montanhas os primeiros raios do sol... O mar deve a estas horas estar já crescido e belo, e a enchente há de trazer-me boa inspiração... Não fica longe a praia. Corramos!

ELA: Não! Atende um instante; atende por amor de Deus!

ELE: Ah! Estavas aí? Que de mim queres tu, mulher que eu mal conheço e encontro a cada passo em meu caminho?

ELA: De ti só a ti próprio quero.

ELE: Pois queres justamente o que te não posso dar.

ELA: Adeus.

ELE: Fica ao meu lado

ELA: Ingrato!

ELE: Impossível, filha; tenho que terminar o meu poema.... (Consulta o relógio) Cinco e meia! A preamar será às seis. Não há tempo a perder! Adeus! adeus!

ELA: Oh! Atende, meu amor! (Segura-o pelos braços). Não partas assim sem mais nem menos; tem pena de mim, que há longo tempo te sigo e te busco pelos cantos da cidade e recantos dos subúrbios, fazendo de meu desejo a sombra da tua indiferença. Não me escapes ainda desta vez, sem me deixares uma palavra de esperança... uma palavra ao menos!

ELE: (A olhá-la por cima do ombro). Uma palavra? Que palavra queres de mim?

ELA: (Arrebatadamente) Uma palavra de amor!...

ELE: Não tenho, filha... Minhas palavras de amor dei-as todas aos meus versos... Lê meus versos e contenta-te com isso... Já não é pouco... Adeus.

ELA: Cruel!

ELE: Adeus.

ELA: (Prendendo-o nos braços). Não! Olha! Escuta! Se não tens palavras de amor para me dar, dá-me então teus lábios, desses creio que não dispuseste ainda... Não sonegue o copo à boca do ébrio sedento!

(Ele sorri, e Ela, deixando-lhe os braços, cobre o rosto com as mãos e põe-se a soluçar).

ELE: (Perplexo, volta-se para Ela e passa-lhe a mão pelos cabelos). Então! então! Não te mortifiques desse modo, que isso me penaliza... Vamos! não chores, e deixa-me ir, preciso contemplar o oceano em preamar.

ELA: (Cingindo-o violentamente contra o colo e quebrando-lhe o frio sorriso dos lábios com um beijo ardente, que o penetra todo até à medula dos ossos). És meu!

(CAI O PANO)
 
ATO II

Cenário a duas tintas - cinzento e roxo. A cena representa a Dor. Há gemidos e suspiros soltos no ará ao fundo, um sinistro pressentimento de morte; no primeiro plano, flores murchas, estrofes inacabadas, contas de botica, receitas de médico e cautelas de casa de penhor. Numa das receitas lê-se o nome do Dr. Cabizo

CENA ÚNICA

ELE e ELA

(Estendida no seu leito de dor, com Ele ajoelhado junto à cabeceira). Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Sinto ir chegando a hora tremenda! Tento os membros tolhidos como os de ma estátua do Almeida Reis... Creio que o médico quando vier já me não encontrará com vida. E não haver em casa um coto de vela para me ajudar a morrer! Vá! acende tu um charuto, se o tens, e enfia-o cá entre meus dedos hirtos... Salvem-se os princípios!

ELE: (Com a alma a derreter-se em lágrimas). Cala-te, meu amor! Não vês que essas tuas palavras me despedaçam o coração? Tu viverás, minha vida! tu viverás em meus braços, à sombra dos meus beijos... Ainda nos restam a coleção completa do Lamartine e o Curso de Literatura do Sílvio Romero; vou torrá-los hoje mesmo!

ELA: Só deploro morrer, canalha de minha alma, porque te deixo aqui na terra, a ti, com esses olhos, com essa boca e com esses cabelos, com todo esse tesouro que era o bem da minha vida e a alegria da minha carne, e que, ai de mim! aí fica para as outras!

ELE: Não! não morrerás, ou morrerei contigo!

ELA: Ah! Fala-me assim! Muito obrigada, meu amor! Se eu com efeito esticar desta, não me deixes ir sozinha... bem sabes que detesto a solidão. Vem comigo; fecha-te comigo na mesma treva, unidos como em nossas noites de delírio, e penetremos juntos no frio mistério, como juntos descíamos ao fundo ardente do nosso amor...

ELE: Sim, sim, não te abandonarei, ainda que tenha de abandonar a vida! Hei de na morte conservar-me fiel ao teu lado, como fiel aqui me tens ao lado dos teus gemidos. Sem ti, de que me serviria a existência?!

ELA: Meu amor!

(Calam os dois, num supremo arranco, os lábios febris com tão formidável beijo, que até a própria Morte, que nesse instante sorrateira ia entrando pela Esquerda Alta, se espanta e foge).

ELE: Estás salva!

ELA: (Saltando da cama). Ai, filho! corre então à modista, para que me mande os últimos figurinos. Domingo há baile nos Tenentes do Diabo! Anda! Não percas tempo!

(CAI O PANO)
 
ATO III

Cenário a duas tintas - vermelho e negro. A cena representa a parte do Inferno conhecida vulgarmente pelo nome de "Ciúmes". Há dúvidas cruéis e desconfianças assassinas que se cruzam no espaço, bramindo ameaçadoras. Ao fundo terríveis pesadelos, ânsias de sangue e amargores de fel. No primeiro piano perfídias, ingratidões, móveis partidos, páginas rotas, versos em cinzas, muita volubilidade feminina e camélias frescas com um cartão de visita.

CENA ÚNICA

ELE e ELA

(Arrancando os cabelos, o olhar em brasa e o coração em carne viva). Oh! Cala-te! Cala-te por piedade! Agora já me não resta a menor dúvida - ele é teu amante

ELA: (Sorrindo indiferente, e de novo bela). Que seja... E daí?...

ELE: Ingrata! (Com uma explosão de soluços). Ó meu Deus, por que consentiste tu que, eu a salvasse da morte com os meus desvelos?. Por que consentiste que eu mergulhasse no lodo terciário, donde arranquei esta terrível náufraga que agora me estrangula?

ELA: Que incoerência a tua! Pode lá alguém ser amado quando solta pela boca todas essas ridículas asneiras que estás dizendo, e verte pelos olhos todas essas insuportáveis lágrimas que estás chorando? Náufrago és tu, que te afogas no próprio pranto. Não gosto de afogados, nem tenho jeito para salva-vidas. Adeus!

Não! Perdoa! Atende! Não me fujas assim; não te vás, sem me deixares ao menos uma palavra de arrependimento!...

ELA: De arrependimento? Impossível, filho! já não tenho palavras de arrependimento; gastei-as todas com a leitura dos teus versos. Adeus.

ELE: Dá-me então teus lábios! Não negues o copo à boca do ébrio sedento!

ELA: Não. Isso foi noutro momento, à branca luz de uma aurora, já tão passada tomo a ilusão que me deste; agora, bem vês, é noite, noite funda e embriagadora, e tu, meu rapaz, não és companheiro para esta outra banda do amor. Volta ao faro das tuas rimas ariscas e às tuas madrugadas em jejum; vota sozinho, preciso mergulhar de novo nos meus mares negros, para cevar esta gulosa carne, que está caindo de fome.

ELE: Cruel! Perjura!

ELA: Qual perjura! Meu capricho por ti foi um mórbido sintoma. Hoje estou boa e não quero ouvir falar no que me lembre a moléstia.

ELE: Mas repara que é a morte que me dás com essas tuas cínicas palavras!

ELA: Pois morre tranquilo, filhinho; não estarei a teu lado para arreliar-te a hora extrema com os meus soluços, como desastradamente tentaste fazer comigo. Morre em paz. Adeus!

ELE: (Exalando o último suspiro). Deus te perdoe!

ELA: Ora até que afinal! Não há tempo a perder. O Cassino fecha à meia-noite e já passa das onze. Hoje é maré cheia, e a enchente deve trazer bom peixe... Corramos!

(CAI O PANO)
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* Facécia = chacota, gracejo, pilhéria.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. O Touro Negro. Escrito em 1903.

Estante de Livros (O Livro de Uma Sogra, de Aluísio Azevedo)


O Livro de Uma Sogra foi o último romance de Aluísio Azevedo, escrito em 1895, no Rio de Janeiro. O romance trata da vida de casada de Olímpia, uma mulher vinda de uma família tradicional, que na hora de casar a única filha, Palmira, começa a busca por um marido ideal para ela. Através de Olímpia que Azevedo discorre sobre o casamento, que é o principal tema do livro.

Dona Olímpia procura encontrar o segredo para uma vida conjugal feliz e duradoura. Para isso, ela pesquisa algumas obras que abordam o tema. Essa obra traz uma nova perspectiva ao mundo literário no século XIX e abre um novo olhar sobre o universo feminino com um ponto de vista da mulher sobre o casamento.

O romance é narrado em primeira pessoa, onde Olímpia, a sogra, que sem conhecimentos acadêmicos ou filosóficos, escreve uma tese sobre o casamento que deve ser seguida por seu genro e filha. Ela convence-se de que o mal do casamento não está na monogamia, mas no meio de exercê-la.

O livro provoca diversas emoções, sentimentos e sensações naqueles que são casados ou vivem as situações descritas. Desperta, a partir do título, curiosidade sobre o seu conteúdo; famosas são as anedotas que se contam das sogras.

Verdade ou ficção, a leitura do livro é capaz de provocar as mais conflitantes emoções naqueles que vivem a idealizar os sentimentos e as paixões.

O autor, Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, nasceu a 14 de abril de 1857, em São Luís do Maranhão, e pode ser considerado o maior representante da ficção naturalista no Brasil.

A partir da obra de Azevedo fixa-se nas letras brasileiras a preocupação com a realidade objetiva. A vida no fazer literário naturalista é representada através da ótica sistemática da ciência. A representação dos acontecimentos cotidianos e dos temperamentos preserva o tom determinista na análise, e as palavras de ordem são dissecar, documentar e observar.

Em Livro de Uma Sogra, a supremacia da natureza sobre a cultura fica demonstrada pela alusão às características físicas, biológicas e instintivas do homem separando as coisas da carne – incluídos os líquidos, odores e todos os fluidos corporais – das normas instituídas pela cultura burguesa.

O genro de Olímpia (a “sogra”) é observado como uma “espécime” de homem que satisfaz em representação fisiológica a forma material perfeita do corpo humano:

– “A conformação geral do corpo esteticamente falando, é simplesmente maravilhosa! Quando o vi nu, pensei ter defronte dos olhos uma estátua grega. Marte e Apolo fundidos, formando um homem.

Que belo conjunto de força e delicadeza anatômica! Nem sei como, com a degeneração da raça latina e com a crescente depravação dos costumes, ainda possa haver- no Brasil! um moço em semelhantes condições físicas! Verdade é que ele é de raça catalã!”

Além disso, a procriação humana é a verdadeira missão que a natureza exige de homens e mulheres: “procriar, e procriar bem”.

Estas e outras passagens fazem ver a maneira incomum que o naturalista Azevedo, através de Olímpia, utiliza para interpretar o laço matrimonial.

Também a crítica social está permeada por um pensar irônico que questiona as regras sem criticá-las, induzindo o leitor, pelas situações do texto, a desnudar a hipocrisia das convenções sociais: “O marido é sempre para a mulher uma garantia do presente e uma garantia do futuro; o amante é nada mais do que um incidente arriscado. O marido é uma conquista social; o amante é um sacrifício feito ao amor.”

Olímpia utiliza inúmeros argumentos para justificar suas ações que buscam afastar da convivência genro e filha: – “Que diabos de felicidade é então essa, que os casados aconselham a todos os seus amigos que a evitem?

Será isso egoísmo na ventura, ou falso vexame de confessar a própria desgraça?”

domingo, 23 de janeiro de 2022

Adega de Versos 67: Vanice Zimerman


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 44 –

Aurora ensolarada. Sons nas cercanias.

A corruíra no beiral. O alarido na florestinha  dá mostras de que a manhã será de musicantos da passarada. A sinfonia nos faz pensar na profusão que se transforma em diversidade sonora e nos enche o ser com tanta musicalidade. A pluralidade de sons nos faz bem, enfuna pensamentos e o próprio ser.

É a variedade que devemos praticar e apregoar. A abundância vária potencializa, enche, abastece os pensares, nossas idiossincrasias, o viver.

Vivamos vívidos viventes vida a fora.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (A insanidade de Marival)

Finais da década de 90, eu havia acabado de entrar na função de cobrador, na empresa Ingá. Certo dia, em meio aos trabalhos, chegou a notícia de um feito quase inacreditável, de tão louco. Vamos aos fatos.

A linha era a 49-(mas naquela época as duas linhas 49 eram designadas, e não me pergunte o porquê, por 49-3 e 49-4). O cobrador era o Marival, mulato invocado e conhecido por seus arroubos de fúria. O dia de verão estava especialmente quente; eram por volta das três da tarde, os ônibus da tinha ainda não possuíam ar condicionado. Para completar, o carro estava rodando 'no buraco', a muita distância do carro da frente, e já lotado.

O furioso Marival estava transtornado. As roletas ficavam na parte de trás do veículo, no meio do salão, e a lotação era tanta que nem uma brisa conseguia entrar pelas janelas e alcançar Marival. O bruto suava em bicas, o sol batia diabólicos 43 graus, e chegando à praia de Icaraí, pra fechar o caixão, um engarrafamento fora de hora...

O amigo Marival já estava sentindo tonteiras, e de saco cheio. De repente, ele se levanta da cadeira e dá um berro lá pra frente:

- Chicão, abre aí! Abre essa droga de porta e espera que eu vou ali...

O motorista Chicão não entendeu nada, mas abriu a porta e viu Marival pular e correr para a praia.

– Vai pegar troco no quiosque - pensou o velho Chicão.

Qual não foi sua surpresa quando, alguns segundos depois, um dos passageiros gritou:

- Motorista, o Cobrador mergulhou na água!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) XIII

AMOR E SAUDADE
 
Vou prosseguindo pelo meu caminho
em busca do meu sonho mais dileto:
- cantar feliz e amar qual passarinho,
que no seu ninho sente-se completo.

Correr ao vento, roupa em desalinho,
plantando amor e paz no meu trajeto,
quero encontrar um pouco de carinho
que me dê paz no mundo sem afeto.

Vejo, porém, que continuo o mesmo,
descrente, sem amor, vagando a esmo
sem encontrar a tal felicidade.

E os sonhos que sonhei em minha vida
vão acenando em triste despedida
cravando, no meu peito, esta saudade.
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ANTES QUE A NOITE CHEGUE...

Quando o sol se debruça no horizonte
deixando a tarde bela e mais fagueira,
antes que a lua, pelo céu, desponte,
a saudade se achega e faz trincheira.

Ao longe, em tom avermelhado, o monte
transmite uma quietude verdadeira,
trazendo ao coração o som da fonte
que canta, docemente, em corredeira.

Assim, vou recordando os tempos idos,
sonhos fagueiros, lindos e vividos,
que a memória jamais vai esquecer...

E, antes que chegue ao fim dessa jornada,
terei, por certo, em minha caminhada
muitos versos de amor para escrever.
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A VOZ DO TEMPO
 
O tempo vai levando cruelmente
vidas, amores, glórias e venturas.
Dissabores espreitam lá à frente
e os sonhos viram pó e desventuras.
 
Ao procurar motivo que contente
um coração cansado das agruras,
minha oração se eleva docemente
e busca a paz que desce das alturas.
 
Mas o tempo não para e nem descansa,
não permite sequer uma esperança
que me deixe mudar o itinerário...
 
Impossível fugir do meu destino
já traçado, talvez, desde menino:
Levar sozinho a cruz do meu calvário!
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ELOGIO AO SONETO

No meu viver de agitação, proscrito,
eu busco a paz para escrever um verso
e de alma pura, coração contrito,
procuro a melhor rima do Universo.

O desespero aperta, estou aflito...
Como escrever num mundo tão perverso?
A inspiração me acode com um grito,
e o meu soneto nasce, incontroverso...

Ao verbo de Camões me fiz escravo,
em busca da palavra me fiz bravo,
para dar ao soneto nova aurora...

Que o pavilhão tremule lá na praça,
e brilhando, qual pérola sem jaça,
reine o soneto pelo mundo afora!
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INTERROGAÇÃO

Quando nascemos, dizem que o Destino
já vem traçado para o ser Humano,
pois sendo assim, irado, recrimino,
porque no meu, parece, há um engano.

Como entender que o amor do ser Divino
possa me dar sentença de tirano?
Se a predestinação me fez cretino,
como me corrigir, se sou mundano?

Que culpa cabe a mim, se esta premissa
for verdadeira e a providência omissa
para me condenar sem indulgência?

Porventura, o que a vida nos promete
nada se cumpre e apenas nos remete:
- por que nos deu o senso e a inteligência?

sábado, 22 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 27: Newton Meyer

 


Humberto de Campos (Modas...)

A imprensa carioca tem mostrado, nestes últimos tempos, um desusado interesse pelo Japão. "A Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o Sr. Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem não admire, no Rio, as crônicas deliciosas que o nosso cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando para "O Imparcial".

Despertada assim a fome de pitoresco do público, não há, hoje, quem não deseje conhecer a terra do Mikado, com as suas "geishas", os seus crisântemos, as suas cegonhas azuis e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o Japão verídico ou de legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus grandes templos de porcelana.

Entre os curiosos desse gênero está, como era natural, o antigo engenheiro da Central do Brasil, Dr. Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da melhor prosperidade econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da filha viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria Otávia, botão de rosa de dezoito pétalas, que é, pode-se dizer, uma segunda filha do casal.

Interessado, dessa forma, pelo Império do Sol Nascente, o velho engenheiro perguntou-me, outro dia, se eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o Japão. Eu lhe falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs. Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:

- Mande-me o livro do padre. Deve ser mais fiel, mais de acordo com a verdade. E mande-me outro qualquer, de autor estrangeiro.

No dia seguinte remetia-lhe eu a "Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e uma obra de Mabel Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o titulo de "Jeunes filles et femmes au Japon".

Ontem fui visitar o meu velho amigo, a quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das três senhoras que lhe compõem a totalidade da família.

- Excelente livro, o do padre! - observou-me, de sopetão, o meu velho camarada. - Achei apenas um pouco exagerado, naquela parte em que ele diz ter visto os soldados de um destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista de toda gente, ao lado das baionetas.

- E o outro livro, o da americana? - indaguei.

- Também tem exageros, excessos abomináveis, como, por exemplo, esse em que a autora conta que, no interior do país, as camponesas trabalham ao sol, cultivando a terra, tendo sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à cintura, um leque, amarrado por um cordão.

- Como é essa vestimenta? - indagou

D. Odete, intervindo.

- Um chapéu de palha, e um leque à cintura. - repetiu o pai.

- E nada mais! - acentuou.

A essa informação, D. Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago, espantada:

- Meu Deus! Parece até "toilette" do Municipal!

Mas não terminou. Escandalizada com aquela heresia, a viúva interrompeu-a, protestando, logo, não em nome da decência, mas em nome do bom gosto:

- Oh, mamãe, assim, também, não!

E acrescentou, com horror:

- Onde a senhora já viu a gente ir ao Municipal de chapéu?!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Isabel Furini (Poemas Avulsos) III


FIM DE TARDE


Insignificante a vida humana...
sentimo-nos tão importantes
e somos gotas de água
(delirantes)
no imenso mar da eternidade.
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O FOGO DAS LETRAS

O fogo de Prometeu
despertou as almas

as almas escolheram palavras
para fazer acrobacias
e acenderam o fogo poético das Academias
eternizando a chama das letras

as Academias de Letras
são mestras do mundo
inspiram, orientam, motivam
e incentivam a busca do saber profundo
divulgam os livros
convocam leitores
alimentam os sonhos
dos literatos e dos poetas
engrandecem as almas
e aumentam o encanto
semeando a cultura, o amor e o espanto.

(3. lugar no Concurso da Academia Fluminense de Letras, em 2018)
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O POETA

Sonha com poemas
e acorda na noite,
escrevendo com os dedos
versos no ar.

Adora
navegar sobre ondas de folhas em branco,
velejar nos cadernos novos,
pular sobre areias de palavras,
correr na praia procurando o Verbo.
Livros, cadernos, papéis e mais papéis...

Continua a lutar com ondas indomáveis,
organiza os termos,
mas só ancora no oceano dos sentimentos.
Nesse instante,
o poeta compreende o poder do caos primordial.

(1. lugar no Concurso de Poesia de São José dos Pinhais, PR, 2002. Poema escolhido para o Projeto Leitura no Metro de Belo Horizonte/MG, parceria entre o Programa da A tela e o texto da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] e a CBTU [Companhia Brasileira de Trens Urbanos], 2007)
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POESIA DAS ASAS

(sons de asas ao vento)
dançando entre sombras
essa escultura ulula dependurada do teto

retrai-se o tempo
encolhe-se para observar o recinto
e pula entre os gravetos
dos minutos devorando-se a si mesmo
o passado entra pela janela de uma catedral
e invade o presente
(sons de asas ao vento)

(Poema inspirado em uma escultura de José Antonio de Lima, recebeu Menção Honrosa no XII concurso Fritz Teixeira de Salles, 2014)
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QUARTO SEM SOMBRA

esquecido do mundo Vincent pinta
(cartografia de subterrâneos anseios
tatuados no corpo e nas mãos )

o eu instintivo (adolescente)
extravasa emoções
extasia-se nas cores dos trigais
nas expressões dos rostos operários
nas luzes de Arles

pinta em um ritmo alucinante
pinceladas justapostas ganham vida
ele retrata seu quarto
obsessivamente

o quarto não tem sombras
ignora-as (elas o aterrorizam
com suas histórias)
mas as sombras
tentam entrar pela janela entreaberta
espreitam
(invisíveis)
desde as paredes do quarto do quadro do artista

a loucura perambula pela casa amarela

(Poema inspirado no quadro: O quarto, de Vincent Van Gogh – Outubro de 1888 – Museu Van Gogh, em Amsterdã = 1. Lugar no concurso da Academia Itapemense de Letras, SC, 2010)

Fonte:
Isabel Furini (org.). Os Melhores Poemas - 2020: Antologia. e-book.

Murilo Rubião (D. José não era)


"Vinde todos, ajuntai-vos,
povos indignos de ser amados."
(Sofonias, II, 1)


Uma explosão violenta sacudiu a cidade. Seguiram-se outras - menores e maiores. Desnorteado, o povo corria de um lado para o outro. Alguém que se conservara calmo no meio de tanta desordem gritou:

-  Não é o fim do mundo!

Eliminada a pior hipótese, surgiram novas conjeturas:

-  Para um bombardeio, faltavam os aviões.

-  Exercícios de artilharia?

-  Muito provável! - apoiaram alguns, apressados em explicar o mistério.

-  E os canhões? - indagaram os mais lúcidos.

Houve quem falasse de uma invasão misteriosa, para em seguida concordarem todos: D. José estava matando a esposa a dinamite.

Os populares hesitaram em aproximar-se do prédio. Após curto silêncio, vários estampidos foram ouvidos. Um vagabundo, que ainda não se emocionara com os acontecimentos, comentou:

-  Será que a dinamite foi insuficiente e ele recorreu ao revólver? Tornaram-se pálidos os rostos e, ansiosos, aguardaram o final do drama.

1  - Tragédia?

Não. D. José estava experimentando fogos de artifício.

Ninguém quis confessar o desapontamento nem o gasto inútil de imaginação que, naquela meia hora de terror, fora exagerado nos espectadores.

- Não a matou desta vez, mas ela não escapará de outra. Seu ódio por D. Sofia é incontrolável.

2 - D. José odiava alguém?

Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela, sim, detestava-o, irritava-se com os animais.

Infelicidade conjugal?

Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem.

Mas, entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso:

- Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro. Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma úlcera no estômago.

3 - A mais leve contestação, contrapunham-se novas acusações:

-  E os meninos, que choram noite adentro, famintos, espancados?

Falso! D. José perdera os filhos (cinco), vítimas da tuberculose. Agora recordava-se deles manipulando um aparelho que imitava o pranto infantil. E comovia muito mais que qualquer choro de criança.

4 - D. José falava sempre de um livro que estava escrevendo. Um livro sobre duendes.

Era um fabulista?

Não. Os duendes habitavam a sua própria casa, ao alcance de seus olhos.

Seria a mulher um deles?

5 - Um dia encontraram-no enforcado. Disseram imediatamente:

- É só fingimento. O nó está pouco apertado.

- Vejam que cara matreira! Está zombando de nós. Infâmia! D. José suicidara-se mesmo.

Por quê?

Todo o mundo fingiu não saber.

6 - Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam:

-  Afinal, o que fazia esse D. José? Se não fumava, não bebia, não tinha amantes?

- Amava o povo.

- E o povo?

- Observava-o com ferocidade.

7 - Mais tarde erigiram-lhe uma estátua. Com um dístico: "D. José, nobre espanhol e benfeitor da cidade".

Derradeira mentira. D. José era um pobre-diabo e não possuía nenhum título de nobreza. Chamava-se Danilo José Rodrigues.

Fonte:
Murilo Rubião. Contos reunidos. Publicado em 1953.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 544

 

José Fausto Toloy (O taxista e as cartas de amor)


“Todas as cartas de amor são ridículas,
não seriam cartas de amor
se não fossem ridículas”
- Fernando Pessoa


Ponto de táxi da rodoviária de cidade do interior do Paraná. Do ônibus desce um senhor comum até com ar respeitável de bom caráter.

— O senhor pode me levar neste endereço?

— Sim, sou o primeiro da fila, mas se quiser escolher um carro melhor, mais novo...

— Não, não, o seu está ótimo, cheguei de viagem de longe e estou muito cansado, será apenas uma visita...

— Aqui está , rua Porto Alegre,1086, dizia perto de um bosque.

— Esta rua agora mudou o nome. É Theobaldo Blume, nome de padre falecido num acidente!

— Vou enfim conhecer alguém muito especial e estou ansioso...

— É a primeira vez no Paraná?

— Sim, mas vou conhecer minha musa, que escreve cartas maravilhosas, sensível, uma mulher encantadora que todo homem sonha amar.

– Sei, sei, que ânimo, hein! — retruca José e olha desconfiado pelo retrovisor do Ford Corcel Del Rey.

Chegando ao endereço, o carro para a alguns metros do portão da casa de alvenaria, com enfeites de pedra São Tomé e jardim bem cuidado.

— Tá bom aqui, assim pode ter privacidade!

— Tá ótimo, meu bom homem, já volto!

Depois de apertar a campainha uma senhora, tipo idade da loba, questiona:

— Pois não! Seja breve, porque estou com bolo no forno, sim!

— Você é Sandra dos Santos?

— Sim, sou eu e o senhor que deseja?

—Vendedor de Enciclopédia Barsa...

– Não interessa… filhos já crescidos.

– Mas gosta de poesia e curte Drummond?

– Não leio muito!

Olha a mulher do semblante aos pés e dá desenxabido tchauzinho, depois esbaforido, corre de volta para o táxi ofegante:

– Vamos, vamos, taxista, de volta para a Rodoviária que quero pegar o próximo ônibus de volta pra São Paulo, nesta cidade maldita jamais colocarei os pés...

— Mas, o senhor conhece essa senhora?

— Não! Nunca tinha visto antes! Achei que fosse, pelas cartas, moça romântica e linda, que citava Drummond, Vinicius, Pessoa e...

— Quem são essas pessoas?

– Poetas, claro, já que vi que é ignaro em cultura, semi analfabeto também?

– Não precisa ofender, senão te largo na rua, seu frustrado!

Segue silêncio entre os dois homens.

– Ei, moço , estaciona naquela esquina que vou espairecer um pouco. Que droga!

Saiu correndo desesperado e entrou no bosque! Esqueceu o bauzinho no banco! Será que errei o endereço e não era a pessoa que procurava...

Ao abrir o baúzinho José encontra as cartas de amor e começa a ler…
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Conto integrante do livro Andanças pelo Mundo da Palavra (Prelo em Amazon books)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Ronnaldo de Andrade (Colar de Spina)


Dia 10 de dezembro de 2021 fez dois anos que o SPINA veio à luz. Em comemoração, criei o Colar de Spina. Eu, enquanto criador dessa Nova forma poética, sinto-me feliz em ver sua solidificação acontecendo: Foram publicados no decorrer desse tempo (dois anos) cinco livros solos e duas Antologias exclusivamente de Spina (seis desses livros foram publicados em dois mil e vinte e um. Todos esses livros totalizam um 1.150 exemplares, sem contarmos com o sétimo livro, pois foi publicado em formato e-book e não sabemos a quantidade de exemplares), além de o SPINA marcar presença em coletâneas diversas, organizadas por outras pessoas, em revistas e blogs; estar sendo ensinado em escolas, estudado em Academias de Letras e outras entidades.

Fiquemos agora com as Regras e em seguida o Colar de Spina.

O Colar de Spina é constituído por um único título, o primeiro, e ele terá que fazer referência ao assunto (conteúdo) abordado nos oito Spinas que formarão o Colar. Antes do título é necessário colocar o cabeçalho COLAR DE SPINA ou Colar de Spina, mas o título tem que ser todo em maiúsculo. Cada texto precisa ser independente, ligado um ao outro somente pelo assunto (conteúdo), ou seja, um Spina não complementará o outro como se fosse estrofe subsequente.

É necessário que cada Spina tenha vida independente: sentido completo. Os Spinas precisam ser numerados e com espaço entre um e outro.

A primeira palavra do segundo Spina deverá ser uma trissílaba retirada da segunda estrofe do texto anterior, e assim se sucederá até o último. O último Spina, além de ser iniciado por uma acepção trissílaba retirada de um dos versos da segunda estrofe do Spina anterior, sua última rima deverá ser a palavra trissílaba que começou o primeiro Spina do Colar. No exemplo abaixo perceberemos que Atraque iniciou o primeiro Spina e finalizou o último.

O Colar de Spina pode ser composto por mais de uma pessoa. Sugiro que no máximo oito! 
 
Nota do Blog: A palavra trissílaba foi destacada em negrito para uma melhor visualização

COLAR DE SPINA

O VIAJANTE


Atraque seu barco,
atire-se nas águas,
viva esse instante.

Permita que a sereia cante
às dores de amores findos,
um hino para cada amante.
Depois siga avante. Vá, vá,
singrando o mar, ó viajante.

2
Singrando o mar,
furando as ondas,
avisto o barquinho.

Ele some assim, bem devagarinho,
naquele seu sobe, desce contínuo,
livre, semelhante a um passarinho.
Na bandeira levantada está escrito:
"Nenhum homem deverá ir sozinho".

3
Naquele oceano imenso,
emergido nas angústias,
vislumbrava o horizonte

desconhecido, sempre à sua frente,
como certo alguém guiando alguém
silenciosamente a caminho da fonte.
O Viajante, velho barqueiro solitário,
navegava tentando criar uma ponte.

4
Tentando se libertar
da intensa sensação
de amor tresloucado,

que faz do nosso peito
um hospício, da paz (ah,
a paz!) ser rio estourado;
sim, assim vai o homem,
sem o bem mais amado!

5
Hospício das águas,
às vezes... revoltas
ou pouco cristalinas,

que abriga saudades, lágrimas, dores
de amores colossais, intensos, findos;
almas tristes, felizes, velhas, meninas.
Esse oceano infinito acolhe andarilhos,
quais as tais locomotivas clandestinas.

6
Intensos têm sido
alguns dias atuais
que não evaporam

no ar, rápidos, como desejado.
As horas trazem infindo tempo,
são bichos (às vezes devoram
os momentos felizes) um tanto
famintos. No mar, elas choram.

7
Infindo caminhar terminal,
ectoplasma do reencontro,
utópica veracidade poética

sacodem no peito o coração
como um navio tantas ondas.
Nada mais há nessa dialética,
além de um recordar contínuo
ancorado na alma já diabética!

8
Recordar é: reviver,
reassitir aos filmes,
novo ritmo – tic-tac,

tic-tac – do órgão humano – tic-tac.
O passado distante faz-se, presente,
deixando tantas vezes em destaque
uma terna ingenuidade. Oh, viajante,
jamais nessas emoções se atraque!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (O Caso do Porco Subtraído)

O TÚLIO RESOLVEU entrar no sítio do velho Siqueira que criava porcos para abate e levar, na mão grande, um dos milhares que ele mantinha nos chiqueiros. Como a divisa da quinta do sujeito ficava perto da herdade onde morava com os pais, o criador de galinhas e plantador de café Bartolomeu Carrancudo, o rapaz fez um planejamento bem simples e objetivo para não ser pilhado em flagrante e tudo que esquematizara rolasse por água abaixo. No dia que botou na cachola ser o momento propício, se alinhavou para praticar, sem mais delongas, o que levou quase um mês sopesando pós e contras.

Este dia seria o domingo. Geralmente, nos finais de semana os empregados do comerciante (como os de seu pai) relaxavam a guarda, o que lhe daria uma excelente margem para penetrar nas contiguidades do velhote e subtrair um dos animais sem ser apanhado com a boca na botija. Portanto “flexível a investida”, concluiu satisfeito e seguro de si. Esperou dar meia noite. A partir daí, se armou de uma lona de plástico, pegou seu pequeno caminhão e partiu para o desafio. Já em terras alheias, se protegendo entre árvores, caindo aqui, tropeçando ali, chegou, finalmente, aos barracões onde ficavam instaladas as pocilgas.

Em meio a enorme manada dos “sus scrofa domesticus”* que se descortinou à sua frente, Túlio carecia, no menor tempo possível, escolher um quadrúpede artiodáctilo* que não fosse muito obeso para ser melhor conduzido, uma vez que seu regresso até onde deixara o transporte amoitado, se daria pela mesma leiva, todavia, aquela hora da noite, totalmente desconhecida. Havia um outro detalhe que não poderia ser esquecido. Talvez o pior deles. Dependendo do peso do bunodonte* “escolhido”, a sua caminhada se faria duplamente penosa. Baseado nessa teoria da balança invisível, pinçou o “doméstico” que achou moleza manobrar a sua “barrilesca” carga sem muito esforço. Com ele em volta do pescoço, embrulhado no plástico que trouxera, tratou de picar a mula.

Não contava com um pormenor. O infeliz do suíno “rufião” chafurdado em excrementos os mais diversos, tranquilo e em paz, retirado assim, à força, sem prévio aviso, no cômodo do descanso, em seu persigal*, é lógico, ao se ver fisgado, se abriu endoidecido em sons engraçados e bizarros. A voz do cerdo é, por natureza, um tanto esquisita, e, de certa forma, excêntrica. Ao se sentir em perigo iminente, o coitado mandou ver num enraivecido iiihhh... iiihhh... iiihhh... iiihhh... quebrando a quietude silenciosa da noite lúgubre e entenebrecida.

Na revinda (*regresso), Túlio usaria a mesma picada de acesso. Não tinha como atalhar. Por conta, o medo enorme que sentia em ser pego por funcionários triplicou. Afora isso, levado pela chatice enervante do mamífero resmungando atabalhoadamente, por entre guinchos e grunhidos, tais cantorias deixavam os seus nervos frangalhados, ou melhor, emporcalhados.

— Cala essa matraca. — Observou a certa altura – Precisa ficar dando banda com esses sons aborrecidos em meus ouvidos?

O rapaz cochichava com o suidae* como se a criatura fosse alguém de entendimento pleno que pudesse ouvir e assimilar os seus clamores e, por conta, no minuto seguinte, obedecer e fechar o comedor de lavagens. Faltava pouco para chegar ao marco que estabelecia os limites da saída e ganhar a liberdade. A alguns passos de colocar os pés para o sucesso da missão, jogar o porco na carroceria do seu VUC, da JAC, um V260 e dar partida no motor, faróis e lanternas se acenderam inundando (como se dia fosse) a escuridão mansa da noite amena.

Rifles apareceram do nada, apontados para a sua cabeça. Ouviu, entre risos e chacotas, a voz do homem que identificou, de primeira: ali estava, em carne e osso, o velho Siqueira, ou como todos, na localidade, o chamavam pelas costas, de “Napoleão”.

— Alto lá, seu ladrãozinho barato. Fique onde está. E antes que eu ordene a meus empregados que lhe deem uma lição inesquecível, me esclareça uma dúvida cruel: onde pensa que vai com o meu porco?

Túlio se deteve apavorado. As duas mãos a segurarem o gorduchinho desviado que viajava às costas, aos berregos, passaram a tremer desordenadamente. Com a quebra da compostura, exatamente pela vergonha de ter sido pilhado com o produto do crime grudado em seu suor, a sua fortaleza desmoronou. Em trote idêntico, sem ter como se segurar, uma súbita incontinência urinária lhe fez molhar pernas abaixo, numa espécie de desarranjo renal surgido de modo imprevisto.

— E ai, seu ladrãozinho de meia tigela! — repetiu a voz, desta vez mais forte. - Responda: onde pensa que vai com o meu porco?

O desditoso, além da falta de paciência (o Landrace não dava trégua, parecia estar cantando, em repeteco, “O Porco”, do Beto Jamaica), e, sobretudo, aviltado em não conseguir se premunir até a “moita” mais próxima, também viu lhe escapar, de roldão, a voz. Afônico, balbuciou, mais assaparantado* que um rato solitário a se ver diante de uma gataria pronta para manda-lo para a barriga:

— Por... por... por... co... se.... seu... Si... Si... Si... quei... ra... que por... cooooooo...?!

Final da história: Túlio levou uma surra memorável dos peões do estancieiro. A parcela da coça se fez sem perdão, ou seja, mais dupla e atordoante, notadamente quando os esculcas* identificaram o larápio e comunicaram ao patrão que o “meliante”, não era outra figura, senão um dos filhos do Bartolomeu Carrancudo, seu amigo do peito e confinante por aquelas paragens.
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VOCABULÁRIO
Artiodáctilo = Ordem de mamíferos ungulados com um número par de dedos. Inclui os porcos, os touros, os hipopótamos, os camelos, os veados, as girafas, os carneiros, as cabras e os antílopes. Assentam no solo os dedos revestidos por cascos. Caracterizam-se por o eixo do membro passar entre os terceiro e quarto dedos. Estes podem ser quatro, como nos porcos e hipopótamos ou, mais vulgarmente, dois, como nos fissípedes típicos. Todos os artiodáctilos exceto os porcos são herbívoros. (Infopedia)
Assarapantado = Que se assustou; assustado. Que está atrapalhado; pasmado.
Bunodonte = Em zoologia, chamam-se bunodontes aos mamíferos que têm dentes molares com cúspides arredondadas e pouco desenvolvidas, como o homem, o porco e o urso. (wikipedia)
Esculcas = sentinelas, vigias noturnos.
Persigal = curral de porcos; pocilga, chiqueiro. (Oxford)
Suidade = é uma família de mamíferos artiodáctilos. Esta família taxonómica inclui vários gêneros, nos quais se encontram espécies de animais domésticos, como o porco-doméstico, e selvagens tais como o javali. (Wikipedia)
Sus scrofa domesticus = porco doméstico.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Uma Tragédia no Amazonas, de Raul Pompéia)


Uma tragédia no Amazonas é uma novela envolvente que narra como o ódio e o desejo de vingança pode arruinar muitas vidas, e como uma pessoa pode ser odiada e amada ao mesmo tempo.

É cheio de detalhes, faz a pessoa sentir o clima selvagem e hostil vivido por pessoas que vivem na região do Amazonas, onde a lei raramente chega, e onde as pessoas muitas vezes fazem suas próprias leis.

Com maestria o autor narra a história de Eustáquio, sua esposa Branca, e a enteada Rosalina, que passaram a ser vitimas de perseguição, que incluíam tanto danos à propriedade da família, que ficava no vilarejo de São João do Príncipe no Amazonas, como tentativas de matar Branca e Rosalina. Curiosamente, em duas tentativas contra as mulheres, um misterioso protetor dá cabo dos agressores, o que não acontece com um escravo e um soldado contratados para defender a casa do subdelegado.

Começa por parte de Eustáquio uma caça aos agressores, aos poucos o editor traz a lume fatos que culminam com a identificação dos mesmos como sendo um grupo de negros que após assassinarem seu feitor e o dono da fazenda, saqueiam a sede e fogem, sendo capturados e presos pelo subdelegado, no entanto pouco depois eles fogem da improvisada cadeia, para a floresta, e começam a maquinar a vingança.

A morte de um dos escravos pelo misterioso defensor da família faz com que eles fiquem um pouco acuados, e passam dois anos sem fazer novas ameaças. No entanto a chegada ao vilarejo de salteadores espanhóis interessados em roubar Eustáquio, porque foram informados que ele possuía uma grande riqueza, reacendeu nos escravos fugitivos a chama da vingança, e encorajados pelos espanhóis voltaram a tramar contra a família.

Nesta ocasião, Eustáquio, que já não é mais subdelegado, passa a espionar o bando, descobrindo que tramavam atacar a casa no dia seguinte, recorre à ajuda do padre que no afã de proteger a casa indica quatro lavradores da cidade para reforçar a segurança. Eustáquio os contrata, sem saber na verdade que eles faziam parte dos seus inimigos, num plano do líder espanhol de infiltrá-los na residência de Eustáquio fato que o padre também desconhecia.

Enquanto aguardavam o ataque protegendo a casa, o padre revela que o misterioso protetor que por vezes defendeu a família, era na verdade um jovem que teve sua vida salva pelo pai de Rosalina, a enteada da família, só que embora salvasse o garoto o homem não sobreviveu ao acidente, em retribuição a isso o garoto vigiava a casa para proteger seus moradores.

Neste mesmo dia os vingadores conseguem invadir a casa, matam Branca, Eustáquio, bem como outros que ali estavam, incluindo uma criança que ainda a pouco havia nascido, filho de branca com Eustáquio.

Quando o jovem que protegia a família chega já é tarde e o malfeitor lhes tira a vida, e como última vítima Rosalina é barbaramente torturada e morta. Finalizando a história, o pai do jovem chega de uma viagem, mas já encontra todos mortos e o fim é dramático, com o pai ao lado do corpo do filho lamentando sua morte.

A história é cheia de detalhes, faz a pessoa sentir o clima selvagem e hostil vivido por pessoas que vivem na região do Amazonas, onde a lei raramente chega, e onde as pessoas muitas vezes fazem suas próprias leis.

Em Uma Tragédia no Amazonas, ressaltamos três espaços, onde decorre a intriga na novela, a floresta, a casa e o roseiral. Todavia, dos três espaços apontados, é a floresta que recebe um tratamento discursivo e imagético mais acentuado, em princípio, por ser objeto da curiosidade de leitores urbanos e alimentar fantasias de aventuras e de expedições fascinantes e perigosas, e depois, por estabelecer relação direta com a criação e a manutenção da atmosfera trágica.

Sob certa perspectiva historiográfica, a representação discursiva e imagética da floresta amazônica, na novela de Raul Pompéia, alude tanto à retórica dos cronistas de viagem do século XVI quanto reproduz a retórica folhetinesca.

Ao seguir o roteiro de narrativa linear, Raul Pompéia reserva o primeiro capítulo da novela à descrição de dois espaços em que se desenrolará a história, um deles, é a floresta amazônica e outro é a casa de Eustáquio. Esses dois espaços contribuem para determinado desenrolar e desfecho do enredo. A floresta e a casa do protagonista recebem do escritor certo tratamento visual que torna evidente a natureza oposta e contraditória de ambos, a partir dos quais e nos quais se refletem conflito e tensão decorrentes da relação entre cidadão e natureza, civilizado e selva, estrangeiro e autóctone, agente da justiça e regime do instinto, da violência e da vingança. A representação da floresta sobrepõe à representação da casa e se constitui esfera em que esses polos opostos provocam estado de situação pouco esclarecida que conduz o protagonista a cometer erros e enganos, o chamado miasma para os trágicos gregos.

No desenrolar da novela, notamos algumas formas de representação da floresta, que pretendem intensificar a ideia de que trágico é o espaço. Já nos primeiros parágrafos, o narrador reproduz discurso semelhante aos dos cronistas de viagem ao fazer referência a alguns aspectos geográficos da região, o que atribui tom levemente informativo à descrição da natureza. No entanto, o aparente esforço do escritor em tornar verossímil a descrição do espaço cede à projeção da imagem poetizada e alegórica da Amazônia

Em princípio, o enredo da novela de Pompéia explora a temática da vingança para justificar o drama violento vivenciado por Eustáquio e sua família em plena floresta amazônica. Todavia, a chacina da família do subdelegado, de seus ajudantes e amigos mais do que representar a efetivação do plano de vingança de um grupo de bandidos, representa a replicação, em escala menor, do fracasso da utopia da formação da civilização brasileira a partir da ação do homem branco em explorar e dominar a floresta.

O drama violento vivenciado pelos personagens possibilita a alegoria da repetição desse fracasso que sugere que outros problemas históricos e sociais brasileiros se fazem presentes a partir do desenrolar da trama, tais como exploração e domínio da terra, formação de novas cidades no interior do país, ausência dos aparatos do Estado em locais extremos e isolados do país, e a problemática jurídica em torno da aplicação da lei em “terra de ninguém”.

Fontes:
Net Saber. Resumos.

Danilo de Oliveira Nascimento. A representação do espaço trágico em Uma Tragédia no Amazonas, de Raul Pompéia. Disponível na Revista Recorte. Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR. v. 12 - n. 1. jan -jun, 2015. (trechos)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 18

 


Carolina Ramos (O “meu” sanhaço)

De vez em quando é bom fechar os olhos ao panorama atual, com suas crises e cataclismos que nos puxam para baixo e abrir o cofre das lembranças, deixando aflorar o que venha de mais leve.

Desta vez, foi um sanhaço que saiu voando do baú em forma de crônica escrita há algum tempo, em apoio à surpreendente repercussão alcançada por outra publicada na imprensa local, na qual o autor falava de um sanhaço em sua vida. Crônica que acabou por motivar mais duas, de outros autores, levando-me à tentação de também dizer algo a respeito daquele que eu poderia chamar, possessivamente, de - "o meu sanhaço".

Todo interesse demonstrado pelas publicações que enfocavam essa avezinha silvestre, capaz de enfrentar com denodo as complicações da vida de uma cidade, veio provar que a sensibilidade humana, mesmo embotada pelas calamidades divulgadas todos os dias pela mídia, ainda não está de todo morta, permitindo algumas fugas pelas janelas da alma.

Mas... deixem que eu diga, solidária: - Sim, eu também tive um sanhaço em minha vida! Azul como um retalho de céu! Foi meu... por espaço mínimo, que talvez nem tenha passado de meros minutos, mas, valeu a pena... como vale a pena contar:

Tinha um amplo quintal na casa de meus pais. Coisa bastante rara em nossos dias. Casa com pomar, no qual não faltava a tradicional goiabeira de galhos acolhedores, permitindo escalada.

Casa com galinheiro - mais raro ainda! E, portanto, com direito a clarinadas de galo pela manhã! E até com pintinhos a bicar o ovo pelo lado de dentro... rompida a casca... o milagre da vida!

Coisas que hoje poucas crianças têm o privilégio de testemunhar, fora da área rural.

Coisas mágicas que, graças a Deus, meus filhos puderam presenciar por conta daquele quintal encantador, palco de cenas cada vez mais difíceis de serem vistas!

Ovos... nos supermercados. Galinhas... nas panelas, ou nos pratos, às refeições. E a tal clarinada dos galos?... Talvez, que ainda possa ser ouvida nas vizinhanças, vinda de uma dessas casas velhas que, paulatinamente, cedem espaço aos espigões de concreto, vítimas indefesas das pressões financeiras, enquanto as famílias se empoleiram, umas sobre as outras, em prédios espigados, às vezes tortos, como os daqui da orla santista.

- E o "meu sanhaço"... onde fica ele, após emaranhadas digressões sobre casas e quintais?!

Naquela tarde distante em que o irrequieto sanhaço entra nesta história, eu chegava serenamente ao amplo quintal de minha antiga casa, a meia quadra da praia, onde agora um prédio moderno exibe o garbo.

Levava o almoço para os dois gatos que, como sempre, me aguardavam com miados festivos. Foi quando, a meus pés, se abateu um punhado de penas azuis e asas agitadas a despertar pronto interesse dos bichanos ronronantes à minha volta.

Num átimo, recolho a ave! Biquinho aberto... debatia-se em desespero, garganta totalmente trancada por um grão de milho, o que exigia ação imediata. Sufocava!

Com o pássaro nas mãos, voei, atrás de uma pinça! Vencendo a ansiedade, trêmula e com extremo cuidado, consegui, com a ajuda de Deus, extrair da garganta bloqueada o grão assassino!

Aquele terrível grão que, sem matar a fome, quase matara o faminto! E que grande seria a fome daquela pobre ave... já que os sanhaços, frugívoros, alimentam-se apenas de frutos, não de grãos!

Com alívio, senti o oxigênio revitalizar os pulmões do pássaro aflito, que, estonteado, permaneceu por mais alguns segundos na concha de minhas mãos.

Asas ligeiras, logo depois o levariam de volta ao espaço, tão azul quanto ele, num maravilhoso voo de redenção!

Por ter resgatado da asfixia aquela pequena ave indefesa e por tê-la livrado das garras ávidas dos gatos, prontos para saboreá-la como sobremesa, guardo para mim, deliciada, a dupla e gratificante sensação de ter salvado, por duas vezes, aquela preciosa joia emplumada!

Assim, embora nunca mais o tenha visto, creio ter pleno direito de chamar o pequenino herói desta crônica, muito afetivamente de: - o "meu" sanhaço!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

I Prêmio de Trova da UBT – Dourados/MS (Trovas Premiadas)


NACIONAL/INTERNACIONAL

Tema: AFETO (L/F)

 NOVOS TROVADORES

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 VENCEDORES
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 1.
Ronaldo Dória dos Santos Junior

O vovô carrega o neto
cheio de amor e esperança.
Fragilidade e afeto
em formato de criança.

2.
Prof. Maia

Sob aquele humilde teto,
sem luxúria e sem tostão;
talvez haja mais afeto,
que numa rica mansão.

3.
Júlia Fernandes Heimann

Todo o afeto que lhe tenho
e tão profundo e sincero
que, às vezes, não o contenho
e, ao demonstrá-lo, exagero!

4.
Geisa da Silva Moreira Alves

Apaixonado eu descanso
no embalo do teu afeto,
pois nele encontrei remanso,
meu cais, meu porto e meu teto!

5.
Jorge Ribeiro Marques

Pobre morador de rua,
um ser humano sem teto,
precisa mais que uma lua,
um novo olhar, um afeto.

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MENÇÃO HONROSA
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1.
Solange Colombara

Plena em afeto, decanto
a saudade em desalinho.
O teu colo era acalanto,
tua voz, doce carinho.

2.
Prof. Maia

Não existe amor completo,
tendo falta de carinho;
amor que não tem afeto,
é incompleto, anda sozinho.

3.
Nely Cyrino de Melo

Meu coração inquieto,
quase em segredo, lhe diz:
-Preciso de seu afeto,
para poder ser feliz.

4.
Angela Maria da Silva Castro Stoller

Um afeto sempre externa
o que sente o coração,
uma ponte tão fraterna
que aproxima a relação.

5.
Angela Maria da Silva Castro Stoller

Afeto, gesto tão doce,
de intenso e grande valor.
Decerto  como se fosse
carinho em forma de amor.

6.
Francisco de Assis Bento de Souza

Não seria racional
deixar os filhos sem teto.
Se até mesmo um animal
cuida dos seus com afeto!

7.
Anete Simões

A vovó, toda candura,
a sua netinha envolve,
cheia de afeto... doçura
que os males todos dissolve.

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VETERANOS
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Tema: EMPATIA (L/F)

= = = = = = = == = = = = = =
VENCEDORES
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1.
Lucília Alzira Trindade Decarli

Não sei dizer o porquê...
Nossa empatia age assim:
se eu sofro, dói em você;
você sofre... e dói em mim!

2.
Antonio Augusto de Assis

O poeta é intimamente
prisioneiro da empatia.
Toda dor que o mundo sente
ele sente em parceria.

3.
Maria Lúcia Daloce

Em tempos de carestia,
onde tantos passam fome,
uma palavra - empatia,
tem rosto, endereço e nome!

4.
Maria Lúcia Daloce

Nos momentos de alegria
e em tempos de provação...
demonstra ter empatia
quem sabe estender a mão!

5.
Arlindo Tadeu Hagen

Definição de empatia:
é aquilo que a gente sente
do jeito que gostaria
que sentissem pela gente.

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MENÇÃO HONROSA
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1.
Élbia Priscila de Souza e Silva

A empatia, meu irmão,
é uma chama que incendeia
as fibras do coração,
em favor da dor alheia!

2.
Ariete Regina Fernandes Correia

Olha o caminho do pobre
qual fosse de um filho teu,
empatia é o dom mais nobre,
que o bom  Deus nos  concedeu.

3.
Vânia Figueiredo

Empatia, muito além,
do que mera compaixão,
é entender a dor de alguém
sem julgamento ou sermão.

4.
Maurício Cavalheiro

Não ria da dor que aperta
seu inimigo, porque
a empatia sempre alerta:
— E se fosse com você?

5.
César Defilippo

Amor de mãe... empatia,
se o mal traz choro, empecilho,
pudesse transferiria
pra si própria, a dor do filho.

6.
Márcia Jaber

Gentil, tua mão inclina
ao irmão fraco ou doente:
a empatia é luz Divina
brilhando dentro da gente.

7.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho

A empatia acorda o amor
que adormece em cada ser,
ao fazê- lo sofredor,
vendo o próximo sofrer.

8.
Maria Helena Oliveira

Quando a dor do semelhante
nos toca profundamente,
a empatia nos garante...
O que é ser, de fato, gente!

= = = = = = = = = =
MENÇÃO ESPECIAL
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1.
Maria Madalena Ferreira

Como esperas harmonia
em vez de tédio ou rancor,
se não existe empatia
entre o teu e o meu amor?

2.
Renato Alves

Empatia é sentir junto,
é ser mais que solidário,
é sempre agir em conjunto,
cumprindo o mesmo fadário!!!

3.
Mário Moura Marinho

Empatia, em sua essência,
é ver com o coração
e sentir na consciência
o sentimento do irmão.

4.
Edweine Loureiro da Silva

A caridade - atenção! -
pode tornar-se vazia
se não repartes o pão
recheado de empatia.

5.
Edweine Loureiro da Silva

Votar é ter consciência
para não errar de novo:
eleja quem tem decência
e empatia pelo povo.

6.
Arlindo Tadeu Hagen

Talvez o mundo estivesse
do jeito que Deus queria
se, em nossas vidas, houvesse
um pouco mais de empatia.

7.
Maurício Cavalheiro

Justo e nobre é o coração
que em segredo, noite e dia,
ao pobre que pede pão
doa pratos de empatia.

8.
Jérson Lima de Brito

Empatia é doce amiga
presente no exato instante
em que um coração abriga
as dores do semelhante.

9.
Márcia Jaber

É, de Deus, o Filho eleito
e no amor que Lhe permeia,
empatia, em Seu conceito,
é doar- se a dor alheia.

10.
Luiz Antonio Cardoso

Quisera eu ser - da empatia -
elo perene e seguro,
a esculpir, no dia a dia,
mil pontes para o futuro!

11.
Dionazine Navarro

Para toda dor humana
só se pede uma magia:
trocar a frieza insana
por sementes de empatia!

Aluísio de Azevedo (Fora de Horas)


Ora! Para que lhes hei de contar isto? Histórias do Norte! Histórias de amor! Coisas que não voltam mais!

Era a última vez que eu ia ter com ela, e seria menos uma entrevista de amor do que um encontro de despedida; meus lábios pressentiam já ligeiro travor de lágrimas nos beijos que sonhava pelo caminho.

Fui. Ela me esperava à meia-noite, como de costume, espreitando por detrás da porta cerrada, descalça e palpitante de ansiedade e de susto. Eu costumava chegar furtivamente, cosendo-me à própria sombra pelas paredes da rua. Entrava, a porta fechava-se então de todo, surdamente, e nós ficávamos sendo um do outro até esgotar-se a noite. Ninguém desconfiava da nossa felicidade.

Vivia a minha amada em companhia de uma parenta velha, sua madrinha, viúva e rica, senhora de engenho, dona austera e venerável, devota até ao fanatismo. A madrinha idolatrava-a loucamente. A casa era grande, antiga e nobre, povoada de agregados, de mucambas e muitos fâmulos. Para chegar ao quarto da afilhada era preciso atravessarmos, eu e ela, de mãos dadas, na escuridão, longos corredores e varandas, com o calcanhar no ar, a respiração suspensa, os sapatos fora. Mas que prêmio era ganhar o fim dessa jornada aflitiva e tenebrosa! A alcova lá no fundo, isolada do resto da casa, dava janelas sobre um jardim de árvores floríferas, todo cercado de altos muros de convento e todo envolvido no doce mistério de uma fortaleza de amor.

Que delícia contemplar da altura das janelas silenciosas o céu todo orvalhado de estrelas, e beber o segredo da noite; cinturas presas, cabeças juntas, cabelos confundidos.

Ela não tinha mãe desde o berço e fora criada pela madrinha. Casara aos quinze anos e enviuvara aos dezoito. A nossa loucura principiou no calor das valsas e foi-se derramando num delírio de mocidade até àquela perfumada alcova, onde a nossa última madrugada recolheu no seio o eco dos nossos derradeiros beijos.

A madrinha não me podia ver.

Ressentimentos de devota: Eu nesse tempo, com pouco mais de vinte anos, supunha-me um batalhador predestinado a regenerar o mundo a golpes desapiedados contra as velhas instituições. Tinha o meu jornal republicano e acatólico e duelava-me, dia a dia, ferozmente, com os redatores de um órgão ultramontano e com os velhos jornalistas conservadores. Imaginem se a velha me podia ver!

Era por toda a cidade apontado a dedo, amado pela metade da população e amaldiçoado pela outra. Os devotos enfureciam-se comigo e os padres pediam ao diabo que me carregasse para longe da minha província.

Ouviu-os o demo. Tive de partir para o Rio de Janeiro. E foi nas últimas horas precursoras desse triste dia que os mais amorosos lábios de mulher gemeram contra os meus a dolorosa cavatina precursora da saudade.

Ai! quantas lágrimas nos ensoparam os beijos e quantos soluços nos cortaram os juramentos de fidelidade! Só resolvemos separar-nos quando o horizonte já nos ameaçava com a aurora, e lentamente nos afastamos do nosso paraíso, mais tristes e mais mudos que os dois primeiros amantes enxotados sobre a terra. Ao meu lado ela caminhava quase tão nua e certamente mais comovida e chorosa do que a primeira Eva.

– Espera! Espera ainda um instante, meu querido amor! – suplicava-me entre beijos desesperançados, na ocasião de abrirmos a porta da rua. – Espera! Diz-me um negro pressentimento que nunca mais nos veremos! Espera ainda! Um instante só!

Mas era preciso separar-nos. O dia não tardaria a repontar e eu tinha de estar ao lado de minha família ao amanhecer. O vapor largaria cedo. Os amigos viriam buscar-me logo pela manhã. Era preciso ir!

– Adeus! Adeus!

E arranquei-me dos seus braços, enquanto desfalecida e soluçante, ela se amparava contra a parede do corredor. E, para não sucumbir também, tratei de apressar a fuga e precipitei-me sobre a porta da rua.

Mas, que horror! A chave já lá não estava na fechadura. Alguém de casa tinha carregado ela.

– Ah! Foi Dindinha com certeza. - disse dolorosamente a minha pobre amada. – Meu Deus! Meu Deus!

E quase sem poder andar, de tão nervosa e trêmula, voltou ao interior da casa e tornou a ter comigo, para me segredar aterrada que havia luz no quarto da madrinha.

– Descobriu tudo! Descobriu tudo! – murmurou aflita. – Fechou-nos! Estamos presos! Estamos perdidos!

– E agora?… – perguntei, deveras agitado, lembrando-me da monástica altura dos muros do jardim.

– Não sei! Não sei! – foi a única resposta que lhe obtive.

Tornamos à alcova, mais tristes e mais lentos do que de lá saímos. A ideia da nossa separação não nos acabrunhava mais do que a de ficarmos juntos à força. Se me doía abandonar aquele doce paraíso de amor, não me atormentava menos ter de ficar lá dentro prisioneiro.

E ela, perplexa, chorava, chorava, apertando a cabeça entre os formosos braços, numa angústia sem esperança de salvação. Urgia, porém, tomar qualquer partido decisivo: o dia estava a chegar e eu não podia amanhecer ali, tendo de seguir para o Rio de Janeiro e embarcar dentro de poucas horas!

Afinal, a minha companheira de agonia muniu-se de coragem e foi bater de leve, muito de leve, no quarto da madrinha.

Silêncio.

Tornou a bater.

Bateu a terceira vez.

– Quem está aí?

– Sou eu, Dindinha. Abra por favor…

– Que quer a senhora?

– Nada, Dindinha… Eu queria a chave da porta da rua…

– Para quê?

– Não me pergunte, Dindinha, por amor de Deus! e dê-me a chave… Peço-lhe por tudo que Dindinha mais deseja no mundo!…

– Não dou!

– Minha Dindinha

– Não! Não!

– Abra a sua porta ao menos…

E esta súplica foi já toda embebida de lágrimas e soluços.

A velha veio à porta e eu então pude espiar lá para dentro. Era um pequeno aposento, bem arrumado e limpo. Havia uma cômoda com um oratório, onde luzia uma lâmpada que era única a iluminar o honesto e tranquilo dormitório. Pelas paredes aprumavam-se quadros de santos, contrastando com o retrato a óleo de um tenente de cavalaria, mal pintado, mas de olhinhos vivos e que parecia sorrir lá da sua moldura para a viuvinha, com o ar escarninho assim de quem diz: “Tu então, pequena, fizeste a tua falcatrua e foste apanhada, bem?… Pois é bem feito!”

A velha, assentada de novo na sua rede, conservava a fisionomia fechada e parecia implacável.

A afilhada, procurando esconder nos braços nus a pecadora nudez do colo, desfazia-se em lágrimas e nelas repisava as suas súplicas, jurando que nunca mais, nunca mais! Por tudo que houvesse de sagrado! Reincidiria naquela feia culpa!

– Não!

– Tenha pena de mim, Dindinha!…

– Quem é que estava aí com a senhora?!

A moça calou-se, de olhos baixos, arfando-lhe por sob a cambraia da camisa os seios atormentados.

– Diz ou não diz?

– É… é… Para que Dindinha quer saber?… Dindinha vai ficar zangada se eu disser…

– Diga quem é!

– Dindinha saberá depois…

– Pois então retire-se já daqui! Saia da minha presença!

– Não… Não… Eu digo… É…

E ouvi o meu nome balbuciado a medo no ouvido da velha.

Um charuto aceso, que lhe metessem pela orelha, não lhe produziria tanto efeito.

A devota teve um frouxo de tosse convulsa.

– Com efeito! – rosnou afinal, contendo a custo uma explosão de cólera. – Com efeito! Pois é esse alma perdida, esse ateu, esse monstro, que a senhora introduziu velhacamente em minha casa?!

– Tenha paciência, Dindinha… Ele parte esta manhã mesmo para o Rio de Janeiro…

– Paciência?!… É boa! Esse herege há de ficar aqui preso e só sairá com alto dia e na presença do senhor vigário geral e dos padres da Sé, a quem vou chamar! O público há de ver e apreciar o escândalo, para vergonha sua e para castigo dele! Paciência! Sim, hei de ter paciência, mas será para desmascarar aquele pedreiro livre!

A velha tinha chegado ao auge da cólera e já falava em voz alta.

Vi o caso perdido.

E a minha pobre cúmplice, de pé ao lado da rede, descalça e apenas resguardada pela trêmula camisa, abaixou ainda mais o rosto e deixou que as suas perdidas lágrimas lhe corressem ao suspirado resfolegar do peito.

A velha conservava-se inflexível. Mas a afilhada chegou-se mais para junto dela e pousando carinhosamente uma das mãos nos punhos da rede, começou a embalá-la de leve, e começou a murmurar num flébil queixume ressentido:

– Dindinha, entretanto, não devia fazer assim comigo… Dindinha bem sabe o muito que lhe quero e o muito que a respeito… Mas Dindinha devia lembrar-se de que enviuvei com dezoito anos e tenho apenas vinte… devia lembrar-se de que sou moça e que o rapaz a quem amo não pode sequer aproximar-se de Dindinha…

– Confiada!

– Devia lembrar-se que… certa noite. (e abaixou mais a voz) quando eu era ainda pequenina e dormia no mesmo quarto com Dindinha… já depois que meu padrinho se separou de vosmecê… o tenente Ferraz, que ali está pintado na parede, saltou a janela do nosso quarto e Dindinha o recebeu nos braços, depois de ter ido verificar se eu estava dormindo…

– Cala-te, doida!

– Eu estava bem acordada, mas fiquei quietinha na minha rede, fingindo que dormia, só para ser agradável à Dindinha… e ouvi todas as palavras de ternura que o tenente disse ao ouvido da Dindinha.. E nunca falei disto a ninguém… Ouvi tudo! Por sinal que o tenente dizia: “Eu te amo, minha flor! Eu te amo como um louco! Se quiseres quê…”

Mas a velha interrompeu-a.

– Cala-te! Cala-te! disse.

A sua fisionomia tinha pouco a pouco se transformado com as palavras da afilhada e ia ganhando um triste e compassivo ar de desconsolação. Os olhos relentaram-se-lhe de saudade com aquele frio recordar do passado.

Quando a rapariga quis continuar as suas revelações, ela interrompeu-a de novo com um fundo suspiro e acrescentou com a voz quebrada pela comoção:

– Cala-te, minha filha!… Aí tens a chave… Abre-lhe a porta… Vai! vai, antes que amanheça… E deixa-me só! deixa-me ficar só

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 12

 

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) VI


Os títulos dos poemas são de versos de Mário Quintana in "A rua dos Cataventos".

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ESTÃO PARADAS COMO NOS VITRAIS

Estão paradas como nos vitrais
Essas horas de risos e de folguedos
Éramos pardais violando os arvoredos
E que, em bandos, comiam pelos trigais.

A correr, não parávamos nos sinais
Chilrando como indomáveis passaredos
Rijos, iguais ao mais forte dos rochedos
Sem conhecer as urgências de hospitais.

Foi-se o tempo que em nós pôs uns pares de anos
E deixou tantos males e tantos danos
Quebrando a força dos juvenis assomos,

Asas frouxas de penas desalinhadas
Já não largamos mais nessas debandadas;
Somos só a saudade do que já fomos.
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EU PINTAVA TREZENTOS ARCO-ÍRIS

Pintaria trezentos arco-íris
No céu de chumbo desse teu futuro
Para que ele não fosse tão escuro
E alegre com a sorte, tu te rires.

É tempo de a tristeza despedires
De veres o que está além do muro
E que o teu sol rebrilhe, grande e puro
Para que à luz te vejas e te admires.

A chuva misturada com o pranto
Vai, da alma, lavar o desencanto
Que em dias já passados tu tiveste.

Enfrenta cada dia sem temer
Que a vida só te paga com prazer
Aquilo que primeiro tu lhe deste.
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FORAM LEVANDO QUALQUER COISA MINHA

Foram levando qualquer coisa minha
Os ocasos que eu tanto apreciava
Como se o sol morrendo envolto em lava
Me roubasse o que em minha alma eu tinha.

De cada vez que a luz, régia rainha
Do meu olhar carente se ocultava
Levava o que mais rico em mim achava
Até do meu ser não restar nadinha.

Corpo seco, sou concha de molusco
Solto à beira da praia onde eu busco
A minha alma por quem ando a penar,

E se o destino não me deixar tê-la
No fim de cada tarde eu venho vê-la
À hora em que o sol cá se vem deitar.
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SOBRE A MARGEM TRANQUILA DE UM AÇUDE

Sobre a margem tranquila de um fresco açude
Fez uma pausa longa o Tempo, a acalmar
Exausto de correr sempre a vindimar
Risos, vontades, crenças e juventude.

Também eu me detive nessa atitude
De conceder a mim mesmo esse vagar
Vergando-me ante mim, não sendo eu altar
Num gesto de humildade que me desnude.

Temos andado os dois sempre de mãos dadas
Desperdiçando as horas, que são sagradas
Em correrias loucas e sem sentido.

Vejo agora que me expus ao grave risco
De fazer desta vida um pequeno cisco
E chegar ao fim sem nunca ter vivido.
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TU DEIXASTE A LEITURA INTERROMPIDA

Tu deixaste a leitura interrompida
Nas linhas de um parágrafo qualquer
Quando foste atender uma mulher
Que à porta perguntava por guarida.

O livro que tu lias era a vida
Prosseguir a leitura era mister
Mas tu, que sempre acolhes quem vier
Disseste que a visita era querida.

Não lhe viste esse olhar desfigurado
Nem a foice cravada no cajado
Quando ela em tua casa se instalou.

Para te dar trouxe as trevas e um açoite
E ao partir, logo nessa mesma noite
Com ela, de mãos dadas, te levou…

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.