sábado, 29 de janeiro de 2022

Estante de Livros (Antígona, de Sófocles)


Sinopse:

Antígona é uma peça teatral escrita por Sófocles em 441 a.C. cujos fatos aconteceram por volta de 1.250 a.C., em Tebas na Ásia Menor, na qual exalta a coragem de uma princesa que enfrenta o rei arriscando a própria vida em defesa de um princípio.

Numa das mais belas e dramáticas tragédias já escritas, Sófocles devassa em toda a sua profundidade o amor, a lealdade, a dignidade.

O confronto entre Creonte e Antígona encena rivalidades centrais da experiência humana, a justiça e a injustiça, o direito natural e o direito positivo, a sociedade e o indivíduo, o Estado e a consciência, a prática e a moral, a submissão e a rebeldia, o masculino e o feminino, o velho e o jovem.

O enredo

A intriga da história começa com uma alusão à guerra dos Sete contra Tebas, na qual os dois irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, se confrontam em lados opostos na disputa pelo trono.

Ambos morrem no campo de batalha, mas aos olhos de Creonte, tio daqueles, Polinices é considerado traidor de Tebas e, por isso, não lhe são concedidas honras fúnebres.

A Decisão

Creonte, com a morte dos dois sobrinhos Etéocles e Polinices, torna-se rei de Tebas.

A sua primeira decisão como regente, foi enterrar o sobrinho Etéocles com todas as honras funerárias e deixar o corpo de Polinices insepulto. Para que se cumpra a sua decisão, decreta que a pena para a desobediência, é a morte.

A Contestação

Antígona, apesar do interdito do rei Creonte, quer sepultar o irmão Polinices e evoca para tanto um princípio da lei não escrita.

Antígona diz a Creonte que acima da Lei da Cidade existe a Lei Divina e que está acima das leis cósmicas incorporadas na ordem social.

A Desobediência

Antígona recusa-se a cumprir a ordem de Creonte e, considerando tratar-se de um dever sagrado dar sepultura aos mortos, infringe a ordem do soberano e realiza os rituais fúnebres a que o irmão tem direito.

As Consequências

Devido a este ato de piedade, Antígona é condenada à morte pelo rei de Tebas e encarcerada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem descende.

A ação impiedosa do rei será punida no final da tragédia: ao tomar conhecimento da morte de Antígona, Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, suicida-se.

Por consequência deste segundo suicídio, é a vez de Eurídice, mãe de Hêmon, decidir "morar eternamente no Hades".

O Impasse


Abre-se aqui um abismo entre a consciência do indivíduo que está aberta para a Lei Divina supra-cósmica e a consciência do meio social que está presa no meio da ordem cosmológica.

Este abismo gera um conflito entre a Lei dos Céus (dos deuses) que ela defende e a Lei da Terra (dos homens) que Creonte precisa fazer cumprir. Cria-se assim um impasse, resultante da contraposição entre duas esferas de poder: A Lei dos deuses e a Lei humana.

O Dilema

Todo o enredo da tragédia de Tebas gravita em torno desse dilema moral que dura mais de 3 mil e 250 anos e que faz de Antígona uma das mais importantes obras que dá os princípios basilares para o cristianismo:

Cumpre-se a Lei do Céu ou a Lei da Terra?

Considerações importantes

1. A falta de Antígona foi o de desrespeitar uma ordem do rei.

2. Creonte tinha razão quanto a defesa da Lei da Terra (Poder temporal), todavia sua decisão interferiu sobre a Lei dos Céus (Princípio espiritual). Logo, qual das leis deve ser cumprida?

3. Este dilema já dura 3.250 anos porque as duas posições são imprescindíveis para a humanidade.

4. Creonte era um governador e não um estadista* esse foi o seu maior problema.

* Estadista é aquele que consegue sacrificar a Lei da Terra em prol da Lei dos Céus.

5. É preciso considerar a hierarquia das leis divinas sobre as disposições humanas.

6. Imaginar que o humanismo é a solução para os problemas humanos é de uma ingenuidade incrível. Equipara-se ao raciocínio de uma criança de 8 anos.

7. Perder a noção do sagrado é a pior coisa que pode acontecer ao ser humano. Foi o que aconteceu com Creonte quando toda uma tragédia se abateu sobre a sua regência e sua família.

Conclusão

1. O ser humano pela sua condição de dualidade (Divina e Terrena), viverá permanentemente em conflito entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal de cuja ambiguidade não conseguirá sair jamais. Por essa razão que o problema já dura mais de três milênios.

2. Não há solução coletiva para o problema. A solução para conflito resultante da dualidade humana será sempre individual, pois não há solução fora do indivíduo, porque nada substitui a sua consciência individual das coisas.

Sobre o autor:

Sófocles (495 a.C. – 406 a.C.) nasceu e morreu em Atenas, na Grécia, e foi um dos maiores intelectuais da Antigüidade clássica. Autor prolífico e consagrado em seu tempo produziu cerca de 120 peças das quais restaram conservadas apenas 7, entre as quais Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, Ájax e Electra.

Fonte:
Texto de Anatoli Oliynik, em seu blog Anatoli: um blog cultural.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 545

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 50, 51 e 52


EXCESSO DE COMPANHIA


Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
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EXPERIÊNCIA

O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete
eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.

Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:

— Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.

O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
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FURTO DE FLOR

Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava, e eu furtei a flor.

Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida. Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.

Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.

Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:

— Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Rosani Abou Adal (Álbum de Poemas)

A BELEZA

Não tenhas medo
de te olhares no espelho
Ainda que seja meia-noite...
Não és nenhum lobisomem
Não és um Drácula, ou vampiro.
mesmo que fosses, não haveria
Nenhum terror
em ver tua imagem...
 
apenas iria resplandecer
tua beleza!...
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CONQUISTAS DA VAMPIRESA

És uma metuendo*-vampiresa
que recebeu título de Duquesa
por teres conquistado os mais nobres
Capas-pretas do Reino Vamp...
 
Os Presidentes da alta Cúpula
consagraram-te Marquesa...
Por teres conquistado
todo o exército canino...
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* Metuendo = que causa temor, que mete medo
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DRÁCULA PAIXÃO

A lua cheia vestiu-se
com uma capa de vampiro
Penteou seus cabelos
e fez um topete com gumex
Escovou os dentes
com o creme dental
“Amor-Vampírico”
E passou um perfume
hipnotizante
para conquistar
sua Drácula-Paixão
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LOUCA VIAGEM

És o bruxo que me enfeitiça
e ouriça minhas veias.
És o mago, que me fascina
com olhos alucinantes...
És o dragão que me conduz
a uma louquíssima viagem...
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LUA CHEIA DOS VAMPIROS

Sou o sol que nasce nas montanhas
A neblina das cordilheiras
Sou o vento que limpa os campos
Dos vampiros, a lua cheia...

Vou te atacar com meus dentes
e tu provarás o néctar
venenoso-transcendental
que carrego comigo.

E arderás em febre...
E eu serei a febre
que te mata.
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VÉRTICE DO APOCALIPSE

Sou a coruja perdida
da noite erótica-lunar.

A noite se está se pondo...
E a bruxa faz a poção mágica
em seu caldeirão-feiticeiro...
 
Ao tomar a essência dessa magia
adentrarei a noite misteriosa
em busca do amor
que se encontra
no vértice do apocalipse...
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Rosani Abou Adal, nasceu em 1960, na capital de São Paulo. Formada em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo e Publicidade e Propaganda - pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Especialização na USP - Artes Plásticas e Música, o enfoque multidisciplinar da sociologia e da arte. Edita com Adriano Nogueira (1928-2004) o jornal literário mensal Linguagem Viva, que circula mensalmente, desde setembro de 1989.
 
Exerce o cargo de vice-presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo. Autora dos livros de poemas Manchetes em Versos, Catedral do Silêncio, De Corpo e Verde e Mensagens do Momento.

Entre os diversos prêmios recebidos:
Prêmio “Ribeiro Couto” da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro com o livro Catedral do Silêncio - 1998;  
Melhor Jornal Literário do Brasil - IWA - International Writers and Artists - Buffton College - EUA - 1996;
Moção Honrosa da Câmara dos Vereadores de Piracicaba pelos Serviços Prestados à Cultura - 1987;
Prêmio Mulheres no Mercado – Categoria Literatura – promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Casa de Cultura de Santo Amaro – 2004;
Diploma em comemoração aos 200 Anos da Imprensa Régia pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 2008;
Diploma de Mérito Cultural e medalha do  Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais - MG - InBrasCI - Minas Gerais, em 2008.

 
Fonte:
Dados e poemas enviados por Isabel Furini.

Lima Barreto (Ele e suas ideias)

Conheci-o no tempo em que trabalhava na Fon-Fon*. Era um homem pequeno, magro, com um reduzido cavanhaque, bem tratado, mas a sua tragédia íntima e interior só a vim conhecer perfeitamente mais tarde. Não foram precisos muitos dias, mas foram precisos alguns.

Andávamos por esse tempo na febre dos melhoramentos, das construções e, a todo momento, ele lembrava a este ou aquele jornal uma ideia.

Um dia, era uma avenida, outro dia, era uma ponte, um jardim e, de tal modo, a mania de ter ideias o tomou, que não se limitava a deixá-las pelos jornais. Ia além. Procurava em ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos, propondo tais e tais medidas.

Era um pingar de ideias diário, constante e teimoso.

É de crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher: “Filha, hoje tenho quatro ideias”, e saísse contente a procurar redações, deputados, proprietários, ministros, chefes de serviço, escorrendo ideias.

Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha, sessões, “enquetes”, autores para folhetim.

Os secretários já o temiam e, quando ele apontava na porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: — “Lá vem o homem que tem ideias”.

E ele não tinha nenhuma piedade, abancava-se ao lado do redator e, zás, duas ideias. Para aquela fecundidade, não havia quase tempo de gestação. Certas vezes, mesmo, entre duas ideias, brotava outra e, se esta era de um melhoramento urbano, enquanto a primeira era de coisa jornalística, ele deixava o secretário e corria ao prefeito.

O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário e fecundo homem e, logo que ele se fazia anunciar, o chefe da cidade dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá temos o homem das ideias”.

As suas ideias eram as mais disparatadas possíveis. Quase sempre eram inviáveis ou inúteis.

Ele tinha viajado, de modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel sobre o Tâmisa. E ao acudir-lhe, por exemplo, a ideia de desviar o Paraíba para a baía de Guanabara, corria às nossas autoridades em engenharia e pedia o parecer delas.

Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados, apavorados, diante das extravagantes inutilidades do homenzinho. Mas não se pode executar? Perguntava ele à menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia irradiava. Era de vê-lo nos momentos de concentração ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha então uma poderosa beleza, que empolgava e a tornava simpática.

Para levar os dias a destilar ideias, ele tinha que passar as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele se encontrava na função de ter ideias. E era pródigo, e era generoso, e era desperdiçado: pensava, tinha ideias e dava aos outros.

Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os filhos, os criados também tinham ideias. Quando lhe faltavam, recorria a eles.

Uma vez, o cozinheiro até lhe dera uma muito interessante: a dos bondes restaurantes; e ele correra logo à Light para lembrar a coisa.

Ocasiões havia que ele ficava desolado, desesperado e aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada podia sacar.

— Ah! Chiquinha — dizia ele —, hoje saio sem nenhuma ideia. Que vão dizer de mim? Estou desmoralizado...

Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que regozijo! A manhã ficava-lhe sorridente, cantarolava, arreliava...

No bonde, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava a conversa e pespegava:

— Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um grande melhoramento.

— Qual é? – indagava o amigo.

— Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado. Devia, por isso, a iluminação da cidade ficar mais perfeita.

E dizia a coisa bem alto, para que os vizinhos ouvissem. Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e tomava-lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo de sua imaginação.

Este homem singular, este homem que, no seu gênero era um Edison ou um Marconi, nunca foi apreciado. Os poderes públicos não tomaram na devida consideração os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração do público, e ele vive hoje — triste, abandonado, desolado, em uma pequena cidade do interior.

Estive com ele há dias, lá, e senti-me confrangido*, diante de sua desolação, do seu abatimento.

Conversamos sossegados debaixo de uma jaqueira úmida, e lembrei-lhe o seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste, olhou-me depois longamente e me disse:

— Que se há de fazer? Esta terra não estima seus filhos...

— Não é só aqui. — disse-lhe eu — Em toda a parte é assim.

— Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, há esperança de uma recompensa final, mas, no Brasil, que nos pode sustentar na luta?

E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho de ter ideias. Não era um Mário nas ruínas de Cartago, porque afinal ele estava em sua pátria, era alguma coisa mais angustiosa, como que o próprio desalento em pessoa.

Eu lhe respeitei a dor, fugi ao assunto e tivemos a conversar sobre umas várias e sem importância.

Entardecia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a sua deliquescência*.

Levantei-me para me despedir e ele veio até a porteira. Estivemos ainda parados, a ver a imensa sebe de bambus, curvados em nervuras de ogivas. Uma cigarra começou a estridular e os bambus agitaram-se em pouco, a um leve vento. Despedi-me afinal, mas, quando ia partir de vez, o homem me disse, de repente cheio de contentamento:

— Acabo de ter uma ideia.

— Qual é? — perguntei-lhe.

— O aproveitamento do bambu para encanamento d’água, nas cidades. Há economia e será uma fonte de renda para o Brasil.

Olhei-o atento, nada lhe disse e segui devagar pela estrada afora.
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NOTAS

*Confrangido = (sentido figurado) atormentado, aflito.

*Deliquescência = (sentido figurado) estado de decomposição; degeneração, decadência

*Fon-Fon = Revista brasileira ricamente ilustrada, repleta de caricaturas da época, idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, cujo início da circulação no Rio de Janeiro data de 1907. Lima Barreto foi assíduo colaborador da revista.


Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 19

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVI

DEIXO AO CEGO E AO SURDO  

Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
 
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência :
Nada que vejo é meu.  
 
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
 
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
 
E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.
 
Ah. tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.
 
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
 
Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?
 
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.
 
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
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DEPOIS QUE TODOS FORAM  

Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e minha agonia.
 
A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.
 
Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as  sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.
 
Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não  ser.
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DESFAZE A MALA FEITA PRA A PARTIDA!  

Desfaze a mala feita pra a partida!
Chegaste a ousar a mala?
 Que importa?  Desesperar ante a inda
Pois tudo a ti iguala.
 
Sempre serás o sonho de tim mesmo.
Vives tentando ser,
Papel rasgado de um intento, a esmo
Atirado ao descrer.
 
Como as correias cingem
Tudo o que vais levar!
Mas é só a mala e não a ida  
Que há de sempre ficar!
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DESPERTO SEMPRE ANTES QUE RAIE O DIA  

Desperto sempre antes que raie o dia
E escrevo com o sono que perdi.
Depois, neste torpor em que a alma é fria,
Aguardo a aurora, que já quantas vi.
 
Fito-a sem atenção, cinzento verde
Que se azula de galos a cantar.
Que mau é não dormir?  A gente perde
O que a morte nos dá pra começar.
 
Oh Primavera quietada, aurora,
Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria,
O que é que na alma lívida a colora
Com o que vai acontecer no dia.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Aparecido Raimundo de Souza (Irrefutável)


A PRISCILA CHEGA PARA O PAI assim que ele coloca os pés em casa e, na sua inocência dos onze anos, manda os questionamentos sem pensar duas vezes no que obterá como esclarecimentos às suas indagações:

— Pai, paizinho... posso lhe perguntar umas coisas?

— Claro, minha filha.

— O senhor me ama?

— Muito, Priscila. Você nem imagina o quanto!...

— Tem certeza, pai?

— Está duvidando do seu velho pai?

Priscila insiste, com certa veemência:

— Me ama como ama a mamãe?

— Amo as duas da mesma maneira, ou melhor, amo de maneiras e formas iguais. Só que, embora sendo amores iguais, são amores com perfis e sentidos diferentes.

— Como é lá isso, pai, se o senhor acabou de dizer que embora sendo amores iguais, têm sentidos diferentes?

— Vou tentar explicar de modo bem simples. O meu amor por você Priscila, é um amor de pai para filha. É aquele amor paternal, fantástico, puro, sem manchas, que está guardadinho, num cantinho oculto, escondidinho bem aqui dentro do meu peito. Que aflora no sopro do menor movimento que eu faça quando lhe beijo e lhe abraço. Em igual intensidade, o que sinto por sua mãe não se descreve... é verossímil.

— É o que, pai? Não entendi... vero... vero o quê?!

— Verossímil, filha. É aquele amor que parece verdadeiro e, na verdade é. Em outras palavras: o amor de seu pai pela sua mãe é um amor bonito e sincero, de um homem que ama uma só mulher e não a troca por outra, nem quer se desgrudar dela. Pede à Deus que seja para sempre. E que Ele proteja a união, e permita que fiquem juntos até que a morte os separe...

— O senhor tem certeza disso, pai? É de fato verdadeiro ou não?

— Claro que sim, filha. Vou dar um exemplo prático. O amor que sinto por sua mãe é como o amor que você nutria por aquela bonequinha Barbie que você carregava pra baixo e pra cima. Você a amava incondicionalmente, ou seja, não ficava sem ela. Onde você ia, a levava com você, como se fizesse parte do seu corpo. Tenho certeza que se perdesse ou esquecesse, morreria de tédio e de solidão. Diga sinceramente para seu pai: você, três ou quatro anos passados, ficaria um minuto sem a sua bonequinha?

Priscila faz uma carinha triste. Concorda:

— Não, pai. A Barbie que o senhor me deu está comigo até hoje.

— Pois então, minha filha. Igual a você, eu não seria completo sem o amor da sua mãe. Ela é essencial. É dela... ou melhor, é dela que sai a minha felicidade e que me mantém vivo e respirando. Em outras palavras: é do coração de Virgínia que brota todo o amor imensurável que preenche a minha vida. Sem a sua mãe, seu papito aqui não seria ninguém... Por falar nisso, me ajuda a colocar os pratos na mesa para o jantar! Nossa Deusa está quase chegando do hospital. Não sei de onde tirou a ideia maluca de ser enfermeira...

De repente, Priscila muda completamente o rumo da conversa. A mesa quase pronta, faltando apenas as panelas, segue a curiosa com os questionamentos, todavia, agora, mais impertinentes e obsessivos:

— O senhor sabe que o pai da minha amiga Débora foi embora?

O sujeito treme imperceptível. Finge um espanto momentâneo, tipo assim, estranho:

— Ele foi embora? Desconhecia esse fato... acaso você atinou com o motivo, minha princesa?

Priscila fuzila o pai, muito rígida. De antemão conclui que ele está mentindo de forma descarada:

— Paizinho, todo mundo aqui no bairro comenta. Até os cachorros...

— De onde você tirou essa ideia maluca?

— Não é maluca, pai. Há duas semanas que o seu Murilo se separou da dona Iolanda e se mandou e o senhor é o responsável. A Débora me falou que foi por sua causa. Ela me segredou que dia sim, dia não, antes de “vim embora pra casa”, o senhor passa ou melhor, ainda continua passando na lanchonete deles e bebendo vários copos de cerveja. Depois você mais dona Iolanda despistam, somem lá pros fundos e trocam afagos... e se beijam... e num desses trololós, seu Murilo chegou mais cedo do trabalho e filmou vocês dois...

O pai da garota quase tem um piripaque brusco e inopinado. Perde a cor natural, se prostra branco, carece se sentar às carreiras, como se tivesse o corpo, dos pés à raiz dos cabelos, girando desordenadamente em torno do próprio eixo. Protesta:

— Mentira, minha filha. Sua amiguinha Débora é uma grande loroteira. Desculpa! Uma tremenda fofoqueira de mão cheia. Não dê trela ao que ela lhe conta. Se essa desgraça de conversa fiada chega aos ouvidos da sua mãe... Jesus, Maria, José... pelo amor de Deus, filha, esquece esse assunto... seu pai lhe pede por tudo quanto é sagrado.

Priscila, apesar dos poucos anos, tem uma cabeça à todo vapor e cheia de pensamentos coerentes e claros, bem coordenados e maduros para a sua idade. Examina o pai, o observa de uma maneira dura e decidida, como se, ao derradeiro, previsse a pior desgraça num tempo não muito distante:

— Não tem como pai. Tarde demais. Seu Murilo descobriu toda a verdade e puxou o carro para, segundo ela, não lhe “cortar na bala...”.

— Como foi que disse filha? Me cortar na bala? E por que o Murilo faria tal coisa?

A menina se posiciona ainda mais impenetrável. Seus traços se amuam num semblante de quase mulher adulta. Do nada, começa a chorar. Entre lágrimas, esclarece, a voz completamente embargada:

— Pai, eu não quero assustar o senhor. Mas olha: pega aqui o meu celular e assiste as filmagens que a Débora me mandou ontem a tarde, pelo WhatsApp...

—... Filmagens? Que filmagens, filha?

— Por favor, pai, veja os vídeos... e se prepara para a bomba. Como o senhor continua passando por lá, como se nada tivesse acontecido, dona Noca, irmã do seu Murilo ficou de saco cheio e viralizou as provas. Não sei como vai acabar essa confusão toda entre o senhor e minha mãe. O que sei, é que a tia da Débora, a maldita dona Noca, postou as sacanagens entre o senhor mais dona Iolanda para todo o grupo da família dela e da nossa, incluindo a mamãe... por falar em mamãe não deve ter visto ainda essas bandalheiras, apesar do tempo, porque tem mania de desligar o telefone quando está de plantão no hospital. Não fosse por isso e por conta dos infectados da Covid-19, que ela está cuidando, o senhor estaria no mato sem cachorro...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Mundo Interno)

Diariamente, portais, jornais e TVs exibem grandes legendas de centenas de milhares de casos sobre pessoas em suas diversas atividades, lícitas e ilícitas. Tais fatos, normalmente, chamam muito a atenção da maioria que faz questão de reproduzir os fatos.

Os assuntos relativos à vida externa, são muito abordados nas plataformas de mídias predominantes no mundo de agora, que nada deixam escapar. Já as questões internas são pouco exploradas.

Pensando nisso, Virginia Woolf, no seu livro, Ao Farol, que é considerada por muitos como sendo uma obra estranha, pois o foco do livro não está atento às ações dos personagens, mas sim, aos seus pensamentos, debruça-se sobre esse tema.

O romance se passa no período da primeira guerra mundial. Tudo começa com uma introspectiva família inglesa e seus amigos, que costumavam passar as férias numa casa de praia. A primeira cena descreve a matriarca da família, dona Julia Stephen, conversando com um dos seus oito filhos. O menino declara o desejo de ir visitar o farol, que ficava numa ilha isolada. A mãe diz que, se no dia seguinte o tempo estiver ensolarado, nada impedirá o passeio. O garotinho dá pulos de alegria, mas, infelizmente, o tempo amanhece nublado, prestes a chover, e o passeio precisa ser adiado.

No decorrer da primeira parte do livro, a história se baseia num único acontecimento: um jantar. Um evento simples, aparentemente banal, mas em seus interiores, os personagens pensam, sentem e respiram seus universos particulares.

Ao presenciar uma dona de casa à beira do fogão, logo perguntamos: “O que teremos de bom para o almoço ou jantar de hoje". E lá vai a mulher explicar o cardápio, no entanto, ninguém ou quase ninguém busca saber o que se passa na mente daquela pessoa enquanto cozinha. O mesmo acontece com todo mundo em suas outras tarefas. Mesmo que, concentrados em seus trabalhos, os indivíduos não cessam por completo os seus pensamentos, tampouco, repreendem o que estão sentindo.

Nesses momentos o fluxo do imaginário corre solto e, cada um vive a sua vida paralela a vida dos outros, amando, se conformando ou odiando suas realidades. O ser humano é riquíssimo por dentro. E seus pensamentos e sentimentos, deveriam ser mais respeitados e abordados.

Trecho do livro:

“Sentia, muitas vezes, que não passava de uma esponja encharcada de emoções humanas”.

Hei, você aí que está a pensar sobre assuntos exclusivamente seus, independente se o sentimento é bom ou ruim. Ame o seu universo, e tudo o que não for suportável, entregue nas asas do vento.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 13

 

A. A. de Assis (O lambuzento mimeógrafo do Príncipe)

Meados de 1965. Do hotel onde eu estava, de passagem pelo Rio de Janeiro, telefonei para Luiz Otávio*. Ele, desejando encompridar a prosa, convidou-me para jantar em sua casa, em Vila Isabel. Encontrei-o embrulhado num avental de borracha, todo sujo de tinta. Explicou: estava na lida em seu famoso mimeógrafo, imprimindo um boletim do GBT – Grêmio Brasileiro de Trovadores, precursor de nossa atual UBT.

Os que têm mais de 50 anos certamente se lembram do velho mimeógrafo a álcool, uma complicada engenhoca muito usada então nas escolas e escritórios. A correspondência de Luiz Otávio era tão volumosa que ele precisou instalar em sua biblioteca uma daquelas rústicas impressoras. Ficava ali às vezes até de madrugada preparando o material que pelo correio enviava aos trovadores de todo o Brasil e de outros países.

Hoje me ponho a matutar sobre o que aquele extraordinário apóstolo da trova faria se tivesse podido contar com os recursos do computador e da internet. Se com a pachorrenta maquininha de escrever e o lambuzento mimeógrafo conseguiu fazer da trova o maior sucesso literário do século 20, imagine se tivesse à sua disposição as facilidades com que agora contamos...

Ah, sim... mas o que eu queria mesmo dizer era que durante aquele jantar discutimos os primeiros detalhes com vistas à realização do I Festival Brasileiro de Trovadores, megaevento que em abril de 1966 reuniu em Maringá os mais badalados craques da trova de todo o Brasil na época.
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*Luiz Otávio = Príncipe da Trova.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 14 –

A ganância que te ilude
que te arrasta à solidão,
é a mesma falsa virtude
que esconde a luz da razão!
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Ah, se essa distância fosse
ponte, entre a nascente e a foz;
como seria mais doce
essa distância entre nós!
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A infância, é uma doce brisa;
passa logo, e de repente...
vem o outono e se eterniza
no chão da vida da gente!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Ao vê-lo, em meio aos escombros,
a ajudá-lo, eu me propus,
sentindo o peso nos ombros
do peso daquela cruz!
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Aquele retrato antigo
que o tempo tem castigado,
conversa sempre comigo
segredos do meu passado!
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A sensação dos afetos
que recebi de meus pais...
Oferto aos filhos e netos,
por serem todos iguais!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Busquei, na fonte de um templo,
a paz de um novo horizonte;
e achei essa paz no exemplo
que há no silêncio da fonte!…
= = = = = = = = = = = = = = =

Cada verso que desliza
entre esses meus cegos dedos,
numa trova sintetiza
seus infinitos segredos!
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Deus mostra ao mundo insensato,
injusto, cego e sem luz...
que o infinito amor, de fato,
coube entre os braços da cruz!
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É no silêncio das noites,
na cadência dos meus ais...
que a saudade em seus açoites
quebra o silêncio da paz!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Entre esperas e demoras,
vi passar tanta quimera!...
Que, a primavera das horas,
já nem é mais primavera!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Essa constante ansiedade
que ao fim da tarde, caminha...
é a velha dor da saudade
que eu sinto toda tardinha!
= = = = = = = = = = = = = = =

Exemplo bom é o exemplo,
que as almas bondosas dão,
rezando no altar do templo
pelas outras que se vão!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Lembrando canções antigas,
de volta ao meu velho chão...
vi muitas sombras amigas
na orquestra da solidão!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Meus dias!... Feliz por tê-los
na vida que se refaz,
no branco dos meus cabelos
aos ventos pedindo paz!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Na estrada em que a luz palmilha,
é que a verdade se inspira;
e ante a luz que, tanto brilha,
jamais, se esconde a mentira!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Não vi mais meus pirilampos,
poetas de luz do meu chão,
que iluminavam meus campos
nas noites de solidão!!!
= = = = = = = = = = = = = = =  

Na treva é que se carrega,
a dimensão do empecilho
da dor, que sente a mãe cega,
por não poder ver o filho!
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Num mundo de desiguais,
onde há tantos desenganos...
perde-se cada vez mais
os sentimentos humanos!
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Ousado e um tanto atrevido?
Mas confesso, e se não fosse...
jamais teria sentido
o mel de um beijo tão doce!
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Pelos teus gestos fanados,
para voltar não me peças;
sinto em teus sins, camuflados,
o olhar de falsas promessas!
= = = = = = = = = = =

Quanta lágrima sentida
no olhar da mãe peregrina,
regando as rugas da vida
nas rugas da própria sina!
= = = = = = = = = = =

Quanta lágrima sofrida,
e na alma, essa inquietude...
Por não ter feito na vida
tudo aquilo quanto pude!
= = = = = = = = = = =

Se a esperança é paz no outono,
sê paciente na espera;
que a flor desperta do sono
na eclosão da primavera!
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Se a flor da infância se afasta,
crê noutras flores bondosas;
que uma flor que o vento arrasta
não rouba a vida das rosas!
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Sei que a saudade não mata,
mas provoca pranto e dor;
qualquer saudade resgata
saudosos sonhos de amor!
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Sem saber se tu me esperas,
cada verso que componho,
tem sabor das vãs quimeras
do tempero do meu sonho!
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Velho mar, meu confidente,
entre nós, tudo se arruma,
quando a queixa que se sente
vaga entre os cachos de espuma!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Hans Christian Andersen (A menina que pisou no pão)


Era uma vez uma menina pobre, mas de natureza rebelde, que revelou más inclinações desde muito cedo. Quando pequenina, seu maior prazer era apanhar moscas e arrancar-lhes as asas, para vê-las depois andar se arrastando. Apanhava besouros e grilos e espetava-os em um alfinete. Punha depois uma folha de livro, ou qualquer pedaço de papel bem próximo dele, para que pudessem segurá-lo com as patinhas - só pelo prazer de vê-los agitaram-se e torcerem-se, na ânsia de se libertar do alfinete.

- O besouro está lendo - dizia a pequena Inger.  - Vejam como ele vira a página!

E, ao passo que ia crescendo, tornava-se cada vez pior. Era muito bonita, mas foi isso a sua infelicidade, sem dúvida.

- Será preciso um rude golpe para te fazer curvar a cabeça. - dizia a mãe - Quando era menor, muitas vezes pisoteaste meu avental. Receio que quando fores grande me pisoteies o coração!

E assim aconteceu.

Inger teve de ir para o campo, para servir em casa de uma família rica. Tratavam-na como se fosse filha e vestiam-na muito bem. Ia ficando cada vez mais bonita, mas o seu caráter não melhorava.

Um ano depois de estar lá, disseram-lhe os patrões:

- Deves ir visitar teu pais, Inger!

Ela foi, mas apenas com a intenção de se mostrar, para que vissem como andava bem vestida. Ao chegar aos portões da cidade, viu alguns moços e moças que conversavam à beira do lago e, sentada entre eles, sua mãe, com um feixe de lenha ao ombro.

Inger deu volta. Sentiu-se envergonhada de a ter por mãe - ela, tão fina! - Aquela velha esfarrapada, que juntava lenha no mato. Não ficou nem de leve compadecida, ao contrário, sentia-se irritada com aquilo.

Passou-se mais meio ano, e sua ama disse-lhe:

- Inger, é preciso que vás visitar teus pais. Leva-lhes este pão de trigo. Hão de ficar bem contente de te ver.

Inger vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos mais finos que tinha. Ergueu as saias, e caminhava com muito cuidado, para não sujar os sapatos. Certamente não merece censura por isso, mas quando chegou àquele ponto em que o caminho atravessa o brejo, e viu que estava todo cheio de lama, atirou no barro o pão que trazia, para passar por cima dele sem sujar os sapatos. Quando estava assim, com um pé sobre o pão e o outro erguido para dar mais um passo, o pão afundou-se, e foi se enterrando cada vez mais, até que desapareceu, levando-a consigo. E nada mais se viu ali a não ser o charco negro e cheio de bolhas.

Mas e a menina? Que foi feito dela?  Inger foi dar onde estava a mulher do brejo, que tem uma cervejaria lá embaixo. A mulher do brejo é irmã do rei dos Duendes, e tia da Bruxas, que são muito conhecidas. Muita gente tem escrito versos a respeito delas, outros pintaram os seus retratos, mas só o que sabemos a respeito da mulher do brejo é que quando o nevoeiro se ergue nos campos, no verão, é que ela está fabricando sua cerveja.

E foi nessa cervejaria que Inger caiu, mas lá ninguém pode permanecer muito tempo. Um carro de lixeiro é coisa suave, comparada com a cervejaria da mulher do brejo. O cheiro dos barris é o quanto basta para deixar uma pessoa doente, e estão tão juntos que não se pode passar entre eles. Além disso, onde há por acaso alguma frestinha, está cheia de sapos asquerosos e cobras viscosas. E foi entre todas estas horrendas imundícies vivas que caiu a pequena Inger. O frio era tão intenso que ela tremia, e já sentia os membros rígidos. O pão aderiu firmemente aos seus pés, e levou-a para baixo.

A mulher do brejo estava em casa. O velho Trasgo e seu bisavô encontravam-se lá de visita. A bisavó é uma mulher venenosa, e nunca está ociosa. Nunca sai sem levar o seu trabalho, e tinha-o à mão naquele dia. Estava ocupada em fabricar couro andejo para por nos sapatos das pessoas, de modo que quem os usasse não podia ter descanso. Bordava mentiras, e juntava todas as palavras inúteis que caíam no chão, para fazer dano com elas. Sim! A velha bisavó pode fazer tricôs e bordados muito finos!

Assim que avistou Inger pôs os óculos e olhou-a de alto a baixo, dizendo logo:

- Esta menina me interessa! Gostaria de levá-la, como lembrança da minha visita. Daria uma boa estátua para o corredor exterior da casa do meu bisneto.

Desse modo Inger foi à Terra dos Trasgos. Nem sempre as pessoas vão lá por esse caminho direto, visto que é fácil ir por caminhos mais extenso.

Era um corredor que nunca se acabava: dava vertigem olhar para diante ou para trás. Lá estava uma multidão ignominiosa, à espera de que se abrisse a porta da misericórdia, mas muito tinham que esperar! Grandes e gordas aranhas agitavam-se, tecendo teias de mil anos ao redor de seus pés, e aquelas teias pareciam parafusos, que a prendiam fortemente, como se estivessem amarradas com correntes de cobre. Além disso, todas as almas padeciam um eterno desassossego, um tormento perpétuo. O infeliz que tinha esquecido a chave do seu cofre, sabia que a deixara na fechadura. Mas seria um nunca acabar, se eu quisesse enumerar todas as torturas daquele lugar.

Inger sofria o tormento de parar em pé como uma estátua, com um pão colado aos pés.

- Foi o que ganhei, por querer conservar os sapatos limpos! - dizia ela consigo - Vejam como eles olham para mim!

Era verdade que todos olhavam para ela, e todas as suas más paixões lhes brotava, dos olhos, falando sem que os lábios se abrissem em palavras. Era uma visão terrível!

- Deve dar grande prazer olhar para  mim! - pensava Inger - Tenho um rosto lindo e belas roupas.

Voltou então os olhos para se ver. O pescoço também estava rígido. Mas oh! como se sujara na cervejaria da esposa do Brejo! Nunca se lembrara de semelhante coisa... A roupa estava coberta de lama viscosa, uma cobra se enroscara no cabelo e caía-lhe pelas costas. De cada prega do vestido espiava um sapo, coaxando sem parar. Era horrível! Mas sentia consolo, pensando:

- Todo os outros que se encontraram aqui embaixo, estão tão medonhos como eu!

Mas o pior era a fome devoradora que sentia, e não podia abaixar-se para tirar um pedaço do pão que tinha nos pés. Não! Não podia. Mãos e braços haviam endurecido, e todo o seu corpo era como um pilar de pedra. Só podia mover os olhos, mas isso, sim! Podia movê-los em redor e olhar para trás. E que visão medonha era aquela! Vieram as moscas, que lhe andavam por cima dos olhos, e por mais que ela pestanejasse, não iam embora. Não, as moscas não podiam sair, porque ela lhes tinha arrancado as asas, virando-as em insetos rastejantes.

Era um grande suplício da fome que a devorara por dentro; parecia-lhe que já estava completamente vazia.

- Se isto durar muito, eu não poderei suportar - pensou Inger.

Mas aquilo continuou, ela teve de suportar.

Foi então que uma lágrima escaldante lhe caiu sobre a fronte, e foi escorrendo pela face e pelo peito abaixo, até cair sobre o pão, e depois outra, e mais outra, e aquilo já parecia uma chuva.

Mas quem estaria chorando pela pequena Inger? Pois ela não tinha uma mãe na terra? As lágrimas de tristeza que uma mãe chora pelo seu filho sempre o alcançam, contudo, não lhe trazem alívio, elas queimam, e tornam o tormento cinquenta vezes pior. E a fome terrível de novo a assaltou, e ela sem poder apanhar o pão que tinha nos pés! Afinal experimentou uma sensação estranha: parecia-lhe que estava a se comer a si própria, e que já nada mais era senão um caniço oco, que conduz todos os sons. Ouvia distintamente tudo o que se dizia na terra a seu respeito, e tudo o que ouvia eram palavras duras.

Sua mãe, é certo, chorava triste e amargurada, mas dizia:

- O orgulho sempre precede a queda! Foi a tua infelicidade, Inger! Como magoaste tua mãe!

Não só sua mãe, mas todos na terra sabiam o que ela havia feito; sabiam que tinha pisado no pão e que submergira no paul. Souberam pelo pastor, que tinha visto tudo de cima do montículo onde se achava.

- Como afligiste tua mãe, Inger! - dizia a pobre mulher - Mas eu bem te avisei!

- Antes eu nunca tivesse nascido! - pensava Inger - Seria muito melhor para mim. As lágrimas de minha mãe não me servem de nada agora!

Ouviu também seus antigos patrões, pessoas tão boas, que tinham sido para ela o mesmo que pais, falando a seu respeito:

- Era uma menina pecadora. Não dava valor aos dons de Deus, e pisava-os aos pés. Será difícil para ela abrir a porta da misericórdia!

Mas Inger pensava lá embaixo;

- Deviam ter-me educado melhor! Deviam ter dominado a minha soberba, se eu a tinha.

Ouviu também uma canção que escreveram e que era cantada por toda a parte:
                 
                               " Menina tão arrogante.
                                 Que caminhou sobre um pão
                                  Pra não sujar os sapatos!"

- E terei de ouvir sempre esta velha história, e sofrer com isso! - pensava ela. - Mas os outros também deviam ser punidos pelos seus pecados. Haveria muito o que castigar! Oh! Como sofro!

E seu coração se endurecia ainda mais que a casca de fora.

– Ninguém poderá melhorar nada nesta companhia em que estou!  E eu não quero mesmo ficar melhor... Oh! Agora estão todos olhando para mim!

E Inge tinha o coração cheio de ódio e má vontade para com todos.

- Agora terão assunto para conversar lá em cima! Que tortura!

Ouvia as pessoas contarem, sua história às crianças, e estas diziam sempre:

- Malvada Inger! Era tão perversa que teve de sofrer tormentos!

E só ouvia da boca das crianças palavras duras.

Mas um dia, quando sentia o ódio e a fome a lhe roerem a casca vazia, ouviu o seu nome. Alguém contava a sua história a uma criancinha inocente, uma menininha, e a criança rompeu a chorar, ouvindo a história da orgulhosa e vaidosa Inger. E perguntou:

- Ela nunca subirá para a terra outra vez?

- Ela nunca tornará a subir para a terra. - disse a outra voz.

- Mas e se ela pedir perdão e prometer não tornar a fazer isso? - perguntou a criança.

- Ela não pedirá perdão. - disseram-lhe.

- Mas eu queria que ela pedisse! - insistiu a criancinha, que não aceitava explicações. - Eu dou a casa da minha boneca, para ela subir outra vez... É horrível o que aconteceu com a pobre da Inger!

Aquelas palavras chegaram ao coração de Inger, e parece que lhe fizeram bem. Era a primeira vez que alguém dizia: "Pobre da Inger!" Sem acrescentar alguma coisa a respeito das sua más ações. Uma criancinha inocente chorava e orava por ela, e aquilo lhe causava uma sensação estranha: desejaria chorar também, mas seus olhos não podiam derramar uma só lágrima, e isso ainda lhe aumentava o tormento.

Assim como os anos iam passando em cima, foram também correndo lá embaixo, sem que coisa alguma se modificasse: Inger já não ouvia falar tanto de si. Mas um dia percebeu um suspiro.

- Inger, Inger, quanto desgosto me causaste! Eu bem sabia que havia de ser assim!

Era sua mãe que estava moribunda.

Ouviu também o seu nome repetido pelos seus antigos patrões, e as palavras menos cruéis que sua ama disse foram estas:

- Chegarei a ver-te outra vez, Inger? A gente nunca sabe para onde irá!

Mas Inger sabia bem que sua ama, tão boa, tão virtuosa, jamais iria ter ao lugar onde ela estava.

Passou-se novo e longo período cheio de amargura. Inger tornou a ouvir o seu nome, e viu acima da sua cabeça duas coisas que pareciam duas estrelas cintilantes. Eram de fato dois olhos que se fechavam na terra, tantos anos se passaram depois que aquela criança tinha chorado tão sentidamente ao ouvir a história da "pobre Inger", que ela era agora uma anciã, a quem o Senhor chamava para o Seu lado. No último momento, quando a vida inteira da criatura lhe volta à memória, ela se lembrou das lágrimas que derramara por causa de Inger. E a impressão era tão clara na hora da morte, que a velhinha exclamou em voz alta:

- Senhor! Oxalá eu não tenha jamais, como Inger, calçados aos pés, sem o saber, teus dons abençoados. Oxalá também eu não tenha jamais nutrido orgulho no coração. Não me abandones agora na minha última hora!

Fecharam-se os olhos da velha dama, e os olhos de sua alma se abriram para ver as coisa ocultas, e como Inger tinha estado tão nitidamente presente nos seus últimos pensamentos, via agora quão profunda fora a queda da menina. E, àquela vista, desatou a chorar. Ficou, feito uma criança, chorando pela pobre Inger, no reino dos Céus.

Suas lágrimas e suas preces ecoaram na casca oca e vazia que encerrava a alma prisioneira e torturada, agora completamente vencida por todo aquele amor vindo de cima. Um anjo de Deus, chorando por ela! Por que lhe era feita esta concessão?

A alma torturada lembrava-se de cada ação terrena que praticara, e afinal desatou a chorar, e Inger chorou, como jamais fizera. Sentia-se agora cheia de tristeza pelos seus atos, chorou como se a grande porta de misericórdia nunca pudesse abrir-se para ela. Mas quando reconheceu isso em humildade e contrição, um raio de luz brilhou no abismo em que caíra.

O poder daquele raio de luz era muito maior do que o da luz do sol que derrete o homem de neve feito pelos meninos no jardim, e mais depressa, muito mais depressa do que se derrete um floco de neve dos lábios quentes de uma criança, dissolveu-se diante dele a forma petrificada de Inger, e como um passarinho voou com a rapidez do relâmpago para o mundo de cima. Estava muito assustado e tinha medo de tudo. Sentia-se vexado, receava encontrar o olhar de qualquer ser vivente, e procurou mais que depressa abrigar-se em uma fenda da parede.

Naquele esconderijo encolheu-se todo, tremendo da cabeça aos pés, não podia articular som algum, porque não tinha voz. E ali ficou muito tempo, antes que pudesse olhar com calma as coisas admiráveis que o cercavam. Sim, era na verdade admiráveis! O ar era tão suave e tão fresco, a lua brilhava com tanto fulgor, as árvores e arbustos exalavam tanto perfume! E além de tudo isso, já tão agradável, ainda suas penas estava limpas, tão brilhantes! Como toda a criação falava de amor e de beleza! O passarinho bem desejaria cantar alegremente, exprimindo todos os sentimentos que lhe brotavam no peito, entretanto não lhe era possível cantar. Teria gorjeado com a maior alegria, como os cucos e os rouxinóis fazem no verão.

O bom Deus, que ouve até os mudos hinos de louvor de um verme, compreendia também aquele cântico de gratidão que tremia no peito do passarinho, da mesma maneira que os salmos de David ecoavam no seu coração antes que tomassem forma em palavras e melodia. Aqueles pensamentos e aqueles cânticos sem voz foram crescendo e foram aumentando durante semanas. Deviam expandir-se, e à primeira tentava para praticar uma boa ação, achariam a saída.

Era o tempo da Festa de Natal. Os camponeses ergueram um mastro contra um muro e amarraram um feixe de aveia na ponta, para que os passarinhos pudessem ter um bom repasto naquele dia feliz.

O sol surgiu brilhante e iluminou o molho de aveia, e os passarinhos cercaram o mastro, pipilando. Foi então que daquela fresta da parede veio um pio fraquinho. Os sentimentos sempre aumentando do passarinho tinham achado uma voz, e aquele débil pipilar era o seu hino de louvor. Tinha despertado nele o pensamento de uma boa ação, e o passarinho voou, abandonando seu esconderijo. No Reino dos Céus era ele bem conhecido.

O inverno corria áspero, e toda  a água estava coberta por uma camada de gelo. Era com grande dificuldade que as aves e os outros animais encontravam alimento. O passarinho voava à beira da estrada, encontrava de vez em quando um grão de trigo nos sulcos dos trenós. Achava também alguns farelos de pão perto das hospedarias, mas comia apenas uma migalha, pois queria deixar bastante alimento para os outros passarinhos que ali aparecessem. Voou então para as cidades e espiava nas cercanias. Onde quer que alguma mão carinhosa tivesse espalhado migalhas de pão para os passarinhos, ele comia apenas uma só e deixava o restante.

No decorrer do inverno o passarinho tinha assim renunciado, em favor dos outros, tantas migalhas de pão que elas já igualavam em peso aquele pão inteiro que a pequena Inger calçara aos pés, para não sujar os sapatos. Então as asas cinzentas do passarinho ficaram brancas e foram se distendendo, e as crianças que viram aquela ave branca disseram:

- Lá anda uma gaivota, voando sobre o mar.

A ave ora mergulhava nas águas, ora voava e remontava muito alto. E, contra a intensa luz que brilhavam no espaço, não foi possível ver que fim levou.

As crianças afirmaram que ela entrou no sol.

Fonte:
Contos de Andersen.  In Contos da Tita.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Versejando 98

 

Lima Barreto (Quase doutor)

A nossa instrução pública cada vez que é reformada, reserva para o observador surpresas admiráveis. Não há oito dias, fui apresentado a um moço, aí dos seus vinte e poucos anos, bem posto em roupas, anéis, gravatas, bengalas, etc. O meu amigo Seráfico Falcote, estudante, disse-me o amigo comum que nos pôs em relações mútuas.

O Senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria. Ao sentar-se, assim falou o anfitrião:

- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê.

Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar. Vieram as bebidas e ele disse ao nosso amigo:

- Não sabe Cunugunde: o véio tá i.

O nosso amigo comum respondeu:

- Deves então andar bem de dinheiros.

- Quá ele tá i nós não arranja nada. Quando escrevo é aquela certeza. De boca, não se cava... O véio óia, óia e dá o fora.

Continuamos a beber e a comer alguns camarões e empadas. A conversa veio a cair sobre a guerra europeia. O estudante era alemão dos quatro costados.

- Alamão, disse ele, vai vencer por uma força. Tão aqui, tão em Londres.

-Qual!

- Pois óie: eles toma Paris, atravessa o Sena e é um dia inguelês.

Fiquei surpreendido com tão furioso tipo de estudante. Ele olhou a garrafa de vermouth e observou:

- Francês tem muita parte...- Escreve de um jeito e fala de outro.

- Como?

- Óie aqui: não está vermouth, como é que se diz "vermute"? Pra que tanta parte?

Continuei estuporado e o meu amigo, ou antes, o nosso amigo parecia não ter qualquer surpresa com tão famigerado estudante.

- Sabe, disse este, quase fui com o dotô Lauro.

- Por que não foi? perguntei.

- Não posso andá por terra.

- Tem medo?

- Não. Mas óie que ele vai por Mato Grosso e não gosto de andá pelo mato.

Esse estudante era a coisa mais preciosa que tinha encontrado na minha vida. Como era ilustrado! Como falava bem! Que magnífico deputado não iria dar? Um figurão para o partido da Rapadura.

O nosso amigo indagou dele em certo momento:

- Quando te formas?

- No ano que vem.

Caí das nuvens. Este homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão firmes conhecimentos!

O nosso amigo indagou ainda:

- Tens tido boas notas?

- Tudo. Espero tirá a medáia.

Fonte:
Lima Barreto. Crônicas. Publicado no “Careta”,  em 1915.

Vladimir Duarte Dias (Querência de Versos)

FRIO


Lá fora faz frio,
Sopra o vento,
Sacode árvores.
Lá fora faz frio.

Aqui no velho sobrado
Sentado no canto
Tal rebenque velho,
Abandonado,
Um homem está só.

Será que por dentro
Sem amor e alento
Seu corpo, sua alma
Não sente falta de alguém?

La fora faz frio,
Do lado de dentro
Será que esse homem
Não sente mais frio?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VIVER

Que não seja só sofrer
Este meu pobre viver
Pois se viver é sofrer
Estou louco por morrer

Mas se é doce viver
Completo de paz e amor
Não quero saber sofrer
Aceito morrer de amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VIDA

Martin Fierro não foi cantor
de versos de amor
Esqueceu aquele poeta
De cantar a primavera

Escreveu cantando louvores
De um gaúcho atormentado
Com o coração apertado
Compôs versos pilchados.

No mundo da nova era
O homem se fez quase quimera
Se vê e se faz muita festa
Poucos sentem a primavera.

Fonte:
Versos enviados por Anatoli Oliynik

Aluísio de Azevedo (Fluxo e Refluxo)


FACÉCIA* EM TRÊS ATOS

ATO PRIMEIRO


Cenário a duas tintas - branco e cor-de-rosa. A cena representa a plena ilusão de uns vinte anos em flor. Há formosas mentiras e claros sonhos de esperança voando pelo ar. Num doce clarão de aurora pestanejam, quase a fechar os olhos, as últimas estrelas. No primeiro plano crescem discretamente as primeiras violetas de junho e brotam em superabundância versos líricos, que ainda mal se firmam nos pés, ambos muito orvalhados, aquelas de rócio matutino e estes de lágrimas de amor platônico.

ELA e ELE

(Ele, primaveril e cato, contempla embevecido a natureza que desperta, e procura uma rima, Ela, outonal e bela, ardendo em dissimulados desejos, tem n’Ele os olhos postos e n’Ele concentra todo o seu enlevo).

ELA: (Tomando-lhe uma das mãos, sem que Ele dê por isso). Por que me não atendes, senhor dos meus pensamentos?... Por que me não arrancas com teus braços desta agonia que me mata?

ELE; (Distraído e trescalando o aroma da puberdade). Surgem ao longe sobre as montanhas os primeiros raios do sol... O mar deve a estas horas estar já crescido e belo, e a enchente há de trazer-me boa inspiração... Não fica longe a praia. Corramos!

ELA: Não! Atende um instante; atende por amor de Deus!

ELE: Ah! Estavas aí? Que de mim queres tu, mulher que eu mal conheço e encontro a cada passo em meu caminho?

ELA: De ti só a ti próprio quero.

ELE: Pois queres justamente o que te não posso dar.

ELA: Adeus.

ELE: Fica ao meu lado

ELA: Ingrato!

ELE: Impossível, filha; tenho que terminar o meu poema.... (Consulta o relógio) Cinco e meia! A preamar será às seis. Não há tempo a perder! Adeus! adeus!

ELA: Oh! Atende, meu amor! (Segura-o pelos braços). Não partas assim sem mais nem menos; tem pena de mim, que há longo tempo te sigo e te busco pelos cantos da cidade e recantos dos subúrbios, fazendo de meu desejo a sombra da tua indiferença. Não me escapes ainda desta vez, sem me deixares uma palavra de esperança... uma palavra ao menos!

ELE: (A olhá-la por cima do ombro). Uma palavra? Que palavra queres de mim?

ELA: (Arrebatadamente) Uma palavra de amor!...

ELE: Não tenho, filha... Minhas palavras de amor dei-as todas aos meus versos... Lê meus versos e contenta-te com isso... Já não é pouco... Adeus.

ELA: Cruel!

ELE: Adeus.

ELA: (Prendendo-o nos braços). Não! Olha! Escuta! Se não tens palavras de amor para me dar, dá-me então teus lábios, desses creio que não dispuseste ainda... Não sonegue o copo à boca do ébrio sedento!

(Ele sorri, e Ela, deixando-lhe os braços, cobre o rosto com as mãos e põe-se a soluçar).

ELE: (Perplexo, volta-se para Ela e passa-lhe a mão pelos cabelos). Então! então! Não te mortifiques desse modo, que isso me penaliza... Vamos! não chores, e deixa-me ir, preciso contemplar o oceano em preamar.

ELA: (Cingindo-o violentamente contra o colo e quebrando-lhe o frio sorriso dos lábios com um beijo ardente, que o penetra todo até à medula dos ossos). És meu!

(CAI O PANO)
 
ATO II

Cenário a duas tintas - cinzento e roxo. A cena representa a Dor. Há gemidos e suspiros soltos no ará ao fundo, um sinistro pressentimento de morte; no primeiro plano, flores murchas, estrofes inacabadas, contas de botica, receitas de médico e cautelas de casa de penhor. Numa das receitas lê-se o nome do Dr. Cabizo

CENA ÚNICA

ELE e ELA

(Estendida no seu leito de dor, com Ele ajoelhado junto à cabeceira). Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Sinto ir chegando a hora tremenda! Tento os membros tolhidos como os de ma estátua do Almeida Reis... Creio que o médico quando vier já me não encontrará com vida. E não haver em casa um coto de vela para me ajudar a morrer! Vá! acende tu um charuto, se o tens, e enfia-o cá entre meus dedos hirtos... Salvem-se os princípios!

ELE: (Com a alma a derreter-se em lágrimas). Cala-te, meu amor! Não vês que essas tuas palavras me despedaçam o coração? Tu viverás, minha vida! tu viverás em meus braços, à sombra dos meus beijos... Ainda nos restam a coleção completa do Lamartine e o Curso de Literatura do Sílvio Romero; vou torrá-los hoje mesmo!

ELA: Só deploro morrer, canalha de minha alma, porque te deixo aqui na terra, a ti, com esses olhos, com essa boca e com esses cabelos, com todo esse tesouro que era o bem da minha vida e a alegria da minha carne, e que, ai de mim! aí fica para as outras!

ELE: Não! não morrerás, ou morrerei contigo!

ELA: Ah! Fala-me assim! Muito obrigada, meu amor! Se eu com efeito esticar desta, não me deixes ir sozinha... bem sabes que detesto a solidão. Vem comigo; fecha-te comigo na mesma treva, unidos como em nossas noites de delírio, e penetremos juntos no frio mistério, como juntos descíamos ao fundo ardente do nosso amor...

ELE: Sim, sim, não te abandonarei, ainda que tenha de abandonar a vida! Hei de na morte conservar-me fiel ao teu lado, como fiel aqui me tens ao lado dos teus gemidos. Sem ti, de que me serviria a existência?!

ELA: Meu amor!

(Calam os dois, num supremo arranco, os lábios febris com tão formidável beijo, que até a própria Morte, que nesse instante sorrateira ia entrando pela Esquerda Alta, se espanta e foge).

ELE: Estás salva!

ELA: (Saltando da cama). Ai, filho! corre então à modista, para que me mande os últimos figurinos. Domingo há baile nos Tenentes do Diabo! Anda! Não percas tempo!

(CAI O PANO)
 
ATO III

Cenário a duas tintas - vermelho e negro. A cena representa a parte do Inferno conhecida vulgarmente pelo nome de "Ciúmes". Há dúvidas cruéis e desconfianças assassinas que se cruzam no espaço, bramindo ameaçadoras. Ao fundo terríveis pesadelos, ânsias de sangue e amargores de fel. No primeiro piano perfídias, ingratidões, móveis partidos, páginas rotas, versos em cinzas, muita volubilidade feminina e camélias frescas com um cartão de visita.

CENA ÚNICA

ELE e ELA

(Arrancando os cabelos, o olhar em brasa e o coração em carne viva). Oh! Cala-te! Cala-te por piedade! Agora já me não resta a menor dúvida - ele é teu amante

ELA: (Sorrindo indiferente, e de novo bela). Que seja... E daí?...

ELE: Ingrata! (Com uma explosão de soluços). Ó meu Deus, por que consentiste tu que, eu a salvasse da morte com os meus desvelos?. Por que consentiste que eu mergulhasse no lodo terciário, donde arranquei esta terrível náufraga que agora me estrangula?

ELA: Que incoerência a tua! Pode lá alguém ser amado quando solta pela boca todas essas ridículas asneiras que estás dizendo, e verte pelos olhos todas essas insuportáveis lágrimas que estás chorando? Náufrago és tu, que te afogas no próprio pranto. Não gosto de afogados, nem tenho jeito para salva-vidas. Adeus!

Não! Perdoa! Atende! Não me fujas assim; não te vás, sem me deixares ao menos uma palavra de arrependimento!...

ELA: De arrependimento? Impossível, filho! já não tenho palavras de arrependimento; gastei-as todas com a leitura dos teus versos. Adeus.

ELE: Dá-me então teus lábios! Não negues o copo à boca do ébrio sedento!

ELA: Não. Isso foi noutro momento, à branca luz de uma aurora, já tão passada tomo a ilusão que me deste; agora, bem vês, é noite, noite funda e embriagadora, e tu, meu rapaz, não és companheiro para esta outra banda do amor. Volta ao faro das tuas rimas ariscas e às tuas madrugadas em jejum; vota sozinho, preciso mergulhar de novo nos meus mares negros, para cevar esta gulosa carne, que está caindo de fome.

ELE: Cruel! Perjura!

ELA: Qual perjura! Meu capricho por ti foi um mórbido sintoma. Hoje estou boa e não quero ouvir falar no que me lembre a moléstia.

ELE: Mas repara que é a morte que me dás com essas tuas cínicas palavras!

ELA: Pois morre tranquilo, filhinho; não estarei a teu lado para arreliar-te a hora extrema com os meus soluços, como desastradamente tentaste fazer comigo. Morre em paz. Adeus!

ELE: (Exalando o último suspiro). Deus te perdoe!

ELA: Ora até que afinal! Não há tempo a perder. O Cassino fecha à meia-noite e já passa das onze. Hoje é maré cheia, e a enchente deve trazer bom peixe... Corramos!

(CAI O PANO)
= = = = = = = = = = = = =
* Facécia = chacota, gracejo, pilhéria.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. O Touro Negro. Escrito em 1903.

Estante de Livros (O Livro de Uma Sogra, de Aluísio Azevedo)


O Livro de Uma Sogra foi o último romance de Aluísio Azevedo, escrito em 1895, no Rio de Janeiro. O romance trata da vida de casada de Olímpia, uma mulher vinda de uma família tradicional, que na hora de casar a única filha, Palmira, começa a busca por um marido ideal para ela. Através de Olímpia que Azevedo discorre sobre o casamento, que é o principal tema do livro.

Dona Olímpia procura encontrar o segredo para uma vida conjugal feliz e duradoura. Para isso, ela pesquisa algumas obras que abordam o tema. Essa obra traz uma nova perspectiva ao mundo literário no século XIX e abre um novo olhar sobre o universo feminino com um ponto de vista da mulher sobre o casamento.

O romance é narrado em primeira pessoa, onde Olímpia, a sogra, que sem conhecimentos acadêmicos ou filosóficos, escreve uma tese sobre o casamento que deve ser seguida por seu genro e filha. Ela convence-se de que o mal do casamento não está na monogamia, mas no meio de exercê-la.

O livro provoca diversas emoções, sentimentos e sensações naqueles que são casados ou vivem as situações descritas. Desperta, a partir do título, curiosidade sobre o seu conteúdo; famosas são as anedotas que se contam das sogras.

Verdade ou ficção, a leitura do livro é capaz de provocar as mais conflitantes emoções naqueles que vivem a idealizar os sentimentos e as paixões.

O autor, Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, nasceu a 14 de abril de 1857, em São Luís do Maranhão, e pode ser considerado o maior representante da ficção naturalista no Brasil.

A partir da obra de Azevedo fixa-se nas letras brasileiras a preocupação com a realidade objetiva. A vida no fazer literário naturalista é representada através da ótica sistemática da ciência. A representação dos acontecimentos cotidianos e dos temperamentos preserva o tom determinista na análise, e as palavras de ordem são dissecar, documentar e observar.

Em Livro de Uma Sogra, a supremacia da natureza sobre a cultura fica demonstrada pela alusão às características físicas, biológicas e instintivas do homem separando as coisas da carne – incluídos os líquidos, odores e todos os fluidos corporais – das normas instituídas pela cultura burguesa.

O genro de Olímpia (a “sogra”) é observado como uma “espécime” de homem que satisfaz em representação fisiológica a forma material perfeita do corpo humano:

– “A conformação geral do corpo esteticamente falando, é simplesmente maravilhosa! Quando o vi nu, pensei ter defronte dos olhos uma estátua grega. Marte e Apolo fundidos, formando um homem.

Que belo conjunto de força e delicadeza anatômica! Nem sei como, com a degeneração da raça latina e com a crescente depravação dos costumes, ainda possa haver- no Brasil! um moço em semelhantes condições físicas! Verdade é que ele é de raça catalã!”

Além disso, a procriação humana é a verdadeira missão que a natureza exige de homens e mulheres: “procriar, e procriar bem”.

Estas e outras passagens fazem ver a maneira incomum que o naturalista Azevedo, através de Olímpia, utiliza para interpretar o laço matrimonial.

Também a crítica social está permeada por um pensar irônico que questiona as regras sem criticá-las, induzindo o leitor, pelas situações do texto, a desnudar a hipocrisia das convenções sociais: “O marido é sempre para a mulher uma garantia do presente e uma garantia do futuro; o amante é nada mais do que um incidente arriscado. O marido é uma conquista social; o amante é um sacrifício feito ao amor.”

Olímpia utiliza inúmeros argumentos para justificar suas ações que buscam afastar da convivência genro e filha: – “Que diabos de felicidade é então essa, que os casados aconselham a todos os seus amigos que a evitem?

Será isso egoísmo na ventura, ou falso vexame de confessar a própria desgraça?”

domingo, 23 de janeiro de 2022

Adega de Versos 67: Vanice Zimerman


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 44 –

Aurora ensolarada. Sons nas cercanias.

A corruíra no beiral. O alarido na florestinha  dá mostras de que a manhã será de musicantos da passarada. A sinfonia nos faz pensar na profusão que se transforma em diversidade sonora e nos enche o ser com tanta musicalidade. A pluralidade de sons nos faz bem, enfuna pensamentos e o próprio ser.

É a variedade que devemos praticar e apregoar. A abundância vária potencializa, enche, abastece os pensares, nossas idiossincrasias, o viver.

Vivamos vívidos viventes vida a fora.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (A insanidade de Marival)

Finais da década de 90, eu havia acabado de entrar na função de cobrador, na empresa Ingá. Certo dia, em meio aos trabalhos, chegou a notícia de um feito quase inacreditável, de tão louco. Vamos aos fatos.

A linha era a 49-(mas naquela época as duas linhas 49 eram designadas, e não me pergunte o porquê, por 49-3 e 49-4). O cobrador era o Marival, mulato invocado e conhecido por seus arroubos de fúria. O dia de verão estava especialmente quente; eram por volta das três da tarde, os ônibus da tinha ainda não possuíam ar condicionado. Para completar, o carro estava rodando 'no buraco', a muita distância do carro da frente, e já lotado.

O furioso Marival estava transtornado. As roletas ficavam na parte de trás do veículo, no meio do salão, e a lotação era tanta que nem uma brisa conseguia entrar pelas janelas e alcançar Marival. O bruto suava em bicas, o sol batia diabólicos 43 graus, e chegando à praia de Icaraí, pra fechar o caixão, um engarrafamento fora de hora...

O amigo Marival já estava sentindo tonteiras, e de saco cheio. De repente, ele se levanta da cadeira e dá um berro lá pra frente:

- Chicão, abre aí! Abre essa droga de porta e espera que eu vou ali...

O motorista Chicão não entendeu nada, mas abriu a porta e viu Marival pular e correr para a praia.

– Vai pegar troco no quiosque - pensou o velho Chicão.

Qual não foi sua surpresa quando, alguns segundos depois, um dos passageiros gritou:

- Motorista, o Cobrador mergulhou na água!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) XIII

AMOR E SAUDADE
 
Vou prosseguindo pelo meu caminho
em busca do meu sonho mais dileto:
- cantar feliz e amar qual passarinho,
que no seu ninho sente-se completo.

Correr ao vento, roupa em desalinho,
plantando amor e paz no meu trajeto,
quero encontrar um pouco de carinho
que me dê paz no mundo sem afeto.

Vejo, porém, que continuo o mesmo,
descrente, sem amor, vagando a esmo
sem encontrar a tal felicidade.

E os sonhos que sonhei em minha vida
vão acenando em triste despedida
cravando, no meu peito, esta saudade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

ANTES QUE A NOITE CHEGUE...

Quando o sol se debruça no horizonte
deixando a tarde bela e mais fagueira,
antes que a lua, pelo céu, desponte,
a saudade se achega e faz trincheira.

Ao longe, em tom avermelhado, o monte
transmite uma quietude verdadeira,
trazendo ao coração o som da fonte
que canta, docemente, em corredeira.

Assim, vou recordando os tempos idos,
sonhos fagueiros, lindos e vividos,
que a memória jamais vai esquecer...

E, antes que chegue ao fim dessa jornada,
terei, por certo, em minha caminhada
muitos versos de amor para escrever.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

A VOZ DO TEMPO
 
O tempo vai levando cruelmente
vidas, amores, glórias e venturas.
Dissabores espreitam lá à frente
e os sonhos viram pó e desventuras.
 
Ao procurar motivo que contente
um coração cansado das agruras,
minha oração se eleva docemente
e busca a paz que desce das alturas.
 
Mas o tempo não para e nem descansa,
não permite sequer uma esperança
que me deixe mudar o itinerário...
 
Impossível fugir do meu destino
já traçado, talvez, desde menino:
Levar sozinho a cruz do meu calvário!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

ELOGIO AO SONETO

No meu viver de agitação, proscrito,
eu busco a paz para escrever um verso
e de alma pura, coração contrito,
procuro a melhor rima do Universo.

O desespero aperta, estou aflito...
Como escrever num mundo tão perverso?
A inspiração me acode com um grito,
e o meu soneto nasce, incontroverso...

Ao verbo de Camões me fiz escravo,
em busca da palavra me fiz bravo,
para dar ao soneto nova aurora...

Que o pavilhão tremule lá na praça,
e brilhando, qual pérola sem jaça,
reine o soneto pelo mundo afora!
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INTERROGAÇÃO

Quando nascemos, dizem que o Destino
já vem traçado para o ser Humano,
pois sendo assim, irado, recrimino,
porque no meu, parece, há um engano.

Como entender que o amor do ser Divino
possa me dar sentença de tirano?
Se a predestinação me fez cretino,
como me corrigir, se sou mundano?

Que culpa cabe a mim, se esta premissa
for verdadeira e a providência omissa
para me condenar sem indulgência?

Porventura, o que a vida nos promete
nada se cumpre e apenas nos remete:
- por que nos deu o senso e a inteligência?