quinta-feira, 5 de maio de 2022

Eduardo Affonso (Era uma vez)

Sempre fui uma negação para guardar nomes.

Para compensar, sou péssimo fisionomista.

Quando dava aulas, era comum ser abordado.

– Tudo bom, professor? E a minha nota?

O máximo que eu conseguia saber era que o jovem ou a jovem (ainda não existiam as jovens naquela época) era de alguma das turmas para as quais eu lecionava. E eram muitas.

Na hora da chamada, tentava fazer o cara-crachá para ver se, de tanto repetir, associava os nomes às pessoas. Em vão.

Conseguia gravar, no máximo, os melhores e os piores de cada sala. Os da fila da frente e os do fundão. O que significa que 90% permaneciam um mistério para mim durante todo o ano letivo.

Não era pouco caso. Era déficit meu mesmo.

Eu também trabalhava no Banco do Brasil.  E volta e meia me aparecia alguém perguntando:

– E o meu negócio, como é que está?

Eu não fazia ideia de quem fosse a pessoa, que dirá como estava o negócio dela. Que poderia ser uma renovação de cheque especial, uma aplicaçãozinha do saldo disponível em conta ou um empréstimo para comprar 200 vacas girolandas.

– Me veja um documento, por favor, só para eu confirmar se seus dados saíram certinhos.

– Estou sem a identidade aqui…

– Serve conta de luz, qualquer coisa que tenha seu nome.

– Estou sem nada.

– Então assina aqui só para eu aproveitar e conferir a assinatura.

E lá ia eu, torcendo para que a assinatura fosse legível, ou teria que consultar milhares de cartões de autógrafo – ou perguntar, discretamente, a alguém de confiança, “quem é aquele ali na minha mesa?”.

Na rua, cidade do interior, era batata:

– Transfere 50 mil da minha poupança pra conta, que vai cair um cheque amanhã. Depois eu passo lá e assino.

Eram tempos pré aplicativos via celular. O celular, inclusive, ainda era ficção científica.  Eu tinha que chegar ao banco e avisar que, se aparecesse um cheque em torno de 50 mil sem saldo na conta, era para falar comigo antes de devolver. Só assim eu saberia quem era o cliente. Ou ex-cliente, por minha culpa, minha máxima culpa.

Para facilitar as coisas, tenho nome duplo. Minha mãe queria Eduardo. Meu pai concordou até a véspera, mas, sem combinar nada com ela, incluiu Sidney na certidão. Ela, magoada, nunca me chamou de Sidney. Ele, talvez por arrependimento, talvez de pirraça, também não. Só fiquei sabendo que, além de Eduardo, era Sidney quando entrei na escola, e tinha que dizer que eu, Eduardo, estava presente quando a professora chamasse o tal de Sidney.

Então em casa eu era Eduardo, na escola era Sidney. Nas apresentações formais, Sidney; nas relações mais íntimas, Eduardo. Eduardo na Psicologia; na Arquitetura, Sidney.

Num sem número de vezes, me peguei ao final de uma carta ou com o dedo no botão de um interfone sem saber quem estava lá, o Sidney ou o Eduardo. Tinha que refazer mentalmente toda a história, lembrar de onde nos conhecíamos, pensar na pessoa falando meu nome para ver qual soava mais familiar na sua boca – e só aí assinava ou dizia quem era.

Mas, como nem tudo é desgraça na vida de um cristão, eu era tímido. E, como Deus é justo, e dá o frio conforme o cobertor, também gago. O que me tornava ansioso nas relações interpessoais – mas apenas em dois tipos de situação: quando tinha que falar com alguém presencialmente (porque a timidez me dava um branco) ou quando tinha que falar com alguém por telefone (porque a gagueira me dava um nó).

Venci ambas as limitações falando o mais depressa possível, tanto para não gaguejar quanto para acabar logo com aquilo. E fugindo do telefone como um carioca, no verão, foge da conta de luz.

Por isso comecei a escrever.

Escrevendo, não gaguejava. Podia usar à vontade palavras começadas com B. E as pessoas tinham o nome que eu quisesse. E eu era sempre Eduardo, nunca Sidney.

Nunca vi a escrita como uma escolha ou um dom, mas como uma espécie de salvação.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIX

Em plena vida e violência

 
Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?
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Em torno ao candeeiro desolado
 
Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua inconsistência indefinida.
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Enfia a agulha
 
Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta : (volto a folha
Com desconsolo).
Não ouviste nada.

Os meus poemas, este
E os outros que tenho _
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.

Mas dá-me um certo agrado
Sentir que tos leio
E que ouves sem saber.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E ler é esquecer.
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Entre o luar e o arvoredo
 
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a  brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
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E ou jazigo haja
 
E OU JAZIGO haja
Ou sótão com pó.
Bebé foi-se embora.
Minha alma está só.
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E, ó vento vago
 

E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.

Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!
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Epitáfio Desconhecido
 
QUANTA mais alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
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Era isso mesmo
 
ERA ISSO mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
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Eram Varões Todos
 
ERAM VARÕES  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.

Aparecido Raimundo de Souza (Pelo interfone)

O homem chega na portaria do prédio com uma porção de sacolas e embrulhos nas mãos. A poder de muito sacrifício consegue dar um jeitinho de alcançar o interfone. Toca. Uma voz feminina atende instantaneamente:

— Oi, quem é?

— Sou eu Rúbia, o Troncoso.

— Oi, cunhado, vou abrir.

Uma combinação de sons se ouve:

— Abriu?

— Não.

O pi, pi, pi, pi se repete:

— Abriu?

— Não.

Uma... Duas...

— Abriu?

— Não.

...Três... Quatro...

— Abriu?

— Não.

...Cinco... Seis...

— Abriu?

— Não.

— Escuta Rúbia. Vai ver você está acionando a tecla errada.

— Claro que não.

— Cadê o Popó?

— Saiu.

— Você não avisou a ele que eu viria?

— Por certo. Mas você conhece seu irmão. Disse pra mim que ia ao supermercado comprar cerveja...

— Tudo bem, cunhada. Aperta essa encrenca mais uma vez.

— Vamos lá. Abriu?

— Não.

— E agora, abriu?

— Não.

Rúbia se enfurece.

— Que droga! Abriu?

— Não.

— Troncoso, faz o seguinte. Chama novamente.

— OK.

O aparelho é imediatamente desligado. Troncoso repete a operação teclando o número do apartamento desejado. Desta vez um homem atende em meio a uma chiadeira medonha:

— Fala meu.

— Sou eu, mano. A Rúbia acabou de me dizer que você não estava em casa.

— O que? Quem?

— Rúbia...

— Tava no banheiro. Sobe ai.

Um apito estridente se ouve seguido do mecanismo liberando a porta.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não.

— Acho que esta droga emperrou. Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Popó, Popó, me escuta...

O dialogo de repente se transforma numa balbúrdia. Ambos desligam ao mesmo tempo. Troncoso espera alguns minutos. Consegue comunicação depois da quinta tentativa. É a cunhada, de novo:

— Oi, Rúbia, até que enfim.

— Quem é?

— Quem mais poderia ser? Sou eu, o Troncoso.

Abre logo essa droga de porta.

— Ta legal, Não precisa se irritar. Como você desligou, pensei que o portão estivesse aberto e você a caminho do elevador.

— Como vê, ainda aqui tentando entrar no prédio.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Rúbia, não é melhor você descer?

— Cunhado, tô praticamente pelada.

— Imagino. Por isso mentiu ao falar que Popó tinha ido ao supermercado.

— Mas ele saiu, de verdade. Juro. Estou sozinha.

— Rubinha, pelo amor de Deus, agora não. Eu vim trazer as compras pro churrasco de vocês numa boa. Manda o Popó descer ou faz isso você mesma... Tenho um amontoado de encrencas me esperando lá em casa.

— Troncoso, eu já te falei. Popó não está aqui.

— Tudo bem. O que é que eu faço com as sacolas?

— Por tudo quanto é sagrado, Troncoso. Suba.

— Então abre.

O barulhinho da geringonça quebra o marasmo da conversação: — Abriu?

— Não.

—Abriu?

— Não.

Rúbia desliga. Troncoso insiste. Um sujeito atende.

— Fala.

— Popó abre logo essa porcaria.

Estranhamente o som desagradável de antes volta a se manifestar entre os dois interlocutores:

— Meu amigo, aqui não tem nenhum Popó.

— Ta. Então me passa a Rúbia.

— Que Rúbia, meu chapa, que Rúbia? Pra qual apartamento discou?

— Cara, a hora que eu te pegar na minha frente você vai se arrepender de ter nascido. Abre essa droga.

Embora a desordem persista, os dois homens continuam a dialogar. Se é que se poderia chamar o papo dos dois de diálogo:

— Escuta aqui, palhaço. Vou descer e quebrar a tua cara.

— Eu é que vou subir e rebentar com a sua. Depois que tiver terminado, nem mamãe vai lhe reconhecer. E quer saber, Popó: Volta lá pra sua cama e continua com a farra.

— Que cama, que farra, seu filho de uma vagabunda?

O interfone é desligado abruptamente. Troncoso, pê da vida, resolve levar a sacanagem adiante. Se os dois queriam brincar e se divertir às suas custas, tudo bem. Entraria no clima, e, depois, no final, mandaria os dois para os quintos do inferno. Tocou, decidido:

— Oi, Troncoso?

— Não, é o chapeuzinho vermelho!

— Cara, você ainda está ai?

— Rúbia, me faz um favor?

— Claro. O que você quer?

— Vá pro inferno, sua vagabunda.

Rúbia, perplexa: — Troncoso, o que deu em você. Que bicho te mordeu?

— Antes que me esqueça. Sabe o que vou fazer com as compras de vocês? Jogarei no lixo aqui ao lado.

Um sujeito alto e magro, sem camisa, só de bermuda, tatuado dos pés a cabeça, pinta no hall de entrada.

Nas mãos do cidadão um revólver pronto para entrar em ação reluz sinistramente.

— Seu filho da mãe, você deve ser o tal do Troncoso que resolveu se dependurar no interfone do meu apartamento. Vou te mostrar quem vai sair lascado.

Troncoso não espera o rapaz acabar de descer o restante das escadas. Larga as sacolas ali mesmo na calçada, tropeça num cachorro, quase é atropelado por um carro que aparece do nada. Sem olhar para trás, bate em retirada a mil por hora.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para cornos avariados. São Paulo, SP: Editora Sucesso, 2010.
Ebook enviado pelo autor.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 3


 

Paulo Mendes Campos (Para Maria da Graça)

Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já  comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de  cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela  conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo  os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências.

Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice:"Gostarias de gatos se fosses eu?"

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o  fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram  e  dizem: "Minha vida daria um romance!"

Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mais devagar,  muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou  mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo.  Isso  acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos,  pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos  que parecem  hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma;  por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões.  Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação  de  achar  que  fracassamos  ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência,  que  tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este  se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei  castigada, afogando-me em  minhas próprias lágrimas".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Colunista do Morro. RJ: Ed. do Autor. 1965.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada da Poemas) – 5

ASPIRAÇÃO


“Ah, beija-me com os beijos
da tua boca." (Ct. 1.2)


Estes lindos olhos teus,
Azuis como o azul do mar,
Poderiam ser só meus...
- Como é bom poder te amar!

Nesta face de menina
Estou sempre a contemplar-te;
Como à sedosa bonina
Bem quisera acariciar-te!

Estes seios convulsivos,
Cheios de amor sem-par,
Estão sempre efusivos...
- Quem me dera te abraçar!

Estes lábios - rubra cor,
Continuamente a exalar
Anseios de um grande amor...
- Que delícia te beijar!
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ESTRELA DO MEU CÉU
"Tu és bela, tu és formosa.” (Ct. 4.1)

No céu da minha vida,
Há uma rara estrela;
Na imensa nebulosa
Deslumbra-me em vê-la.

Do mundo nada almejo,
Se a tenho sempre bela;
É luz do meu caminho
A minha alva estrela.

No abismo não te escondas,
- Adoro a minha estrela!
Perdido eu estaria,
Se não pudesse tê-la.

Sozinho, minha estrela,
O que podia eu ser?
- Seria escuridão
De eterno padecer.

Com vida de dez séculos,
Meu sonho nela eu pus;
A cada dia mais
Verei a sua luz.
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RAINHA DO ABISMO
"Eis que o meu amado vem aí, saltando sobre
os montes, pulando sobre as colinas."
(Ct. 2.8)


Solitária orquídea do rochedo altivo,
Que o penhasco alegras com teu magnetismo;
Tens a pedra tosca, por trono cativo,
Onde vives presa, rainha do abismo.

Muito maravilhas o penhasco feio,
Do surgir da aurora até ao entardecer;
Mas teu coração está de angústia cheio
Por não ter aquele que desejas ter.

Que vale o sorrir da brisa em teu semblante,
Que se faz presente pra te acariciar?
Sem meigos carinhos deste amor distante,
Tudo isso só pode te fazer penar.

O que mais fazer para te libertar?
Escalar montanha, além do abismo o horror?
Arriscarei tudo - quero te buscar!
Dar-te-ei uma vida repleta de amor.

Arriscarei tudo - vencerei o dragão!
Galgarei a escarpa - direção do norte;
Lutarei co'o vento - vencerei o tufão...
Vou salvar o amor - líbertar-te-ei da morte!
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SAUDADE
"Dize-me, ó tu, que meu coração ama,
onde apascentas o teu rebanho?"
(Ct. 1.7)


A minh’alma está cheia de dor,
Dor perene de acerba saudade,
De saudade do mais puro amor...
Estou triste qual triste albatroz,
Não preciso escutar nada mais,
Pois ouvir eu nem posso a sua voz.

Este vento assobia lá fora...
Lentamente meu dia passou...
Vem a noite calada, agora,
Sufocar minha vida tristonha
Com o meu pensamento angustiado
- Pesadelo acordado que sonha.

Nem as cordas sonoras da lira
Inspirar melodias puderam;
Só lamento pungente se ouvira
De uma vida que vive o temor,
E, distante da face querida,
A saudade tem sulcos de dor.

Que saudade do seu rosto lindo,
Desses olhos que olharam pra mim;
Eu a vejo formosa, sorrindo,
- Primavera corando-se em flor...
Que saudade da face excitada,
Fascinando-me em taça de amor.

Quero vê-la de novo bem linda,
Com seus braços repletos de vida;
No meu lar seja sempre bem-vinda,
Casa cheia de dócil encanto;
Contagiado será seu viver,
Expulsando, co'amor, o meu pranto.
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TUAS MÃOS
"Tua mão esquerda está sob minha cabeça,
e tua direita abraça-me." (Ct.8.3)


Ó suaves mãos, mãos afeiçoadas,
De puros gestos, carinhosas;
Ó níveas mãos, mãos abençoadas,
Que coisa as fez assim formosas?

Macia palma, aveludada,
O dorso - cheio de expressão...
O que será tem de encantada
A placidez da tua mão?

E brandamente com ternura,
Amigas mãos, quentes, me vêm;
Não é paixão, não é loucura,
Mas as tuas mãos - o que elas têm?

Volvem pra mim alegremente,
Como se, então, me dessem um beijo;
E no tanger mais complacente,
Com grande afeto eu sempre as vejo.

Mesmo de frágil compleição,
Fazem-me forte qual gigante;
Quanta magia em cada mão!
Por elas só, vou sempre avante.

Na branca palma da tua mão,
Soletro as sílabas da vida;
Eu vejo um "M" com paixão
- Centro do amor é a letra lida.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Sabino (Minha (in)experiência de cinema)

OS TEXTOS tinham de ser convencionais, cheios de lugares-comuns, pois os clientes não aceitariam qualquer inovação ou ousadia de linguagem. Cheguei mesmo a compor uma lista de palavras e expressões como arrancada para o progresso, esforço titânico, movimento ciclópico, desafio do futuro, e por aí afora, para os momentos de aperto. Difícil arte essa, a de escrever para não dizer nada, em que são mestres os editorialistas de jornal.

Eram narrativas do cinema comercial, em que me iniciei pela mão de Paulo Mendes Campos. Aquilo não tinha um mínimo de qualidade literária que me permitisse assinar o nome, mas era um meio de vida honesto como outro qualquer. Eu me lembrava sempre do que disse, creio que Sérgio Porto, quando recusaram um texto seu para televisão, porque não estava como queriam:

— Vocês me desculpem, mas pior do que isso não sei fazer.

Houve exceções, é lógico: num filme sobre a Sudene, por exemplo, que Paulo e eu fizemos a quatro mãos, conseguimos que aprovassem um texto bem razoavelzinho. Pelo menos na primeira parte, em preto e branco, sobre a miséria do Nordeste (a segunda parte, em cores, é que era sobre o esforço titânico da Sudene). É verdade que contamos com um colaborador de grande sabedoria: o Rei Salomão. O texto era todo composto de versículos bíblicos do Livro de Provérbios. Fomos muito cumprimentados:

— Vocês estão escrevendo bem à beça.

Por essa época havíamos resolvido juntar nossos talentos, achando que seria mais fácil assim. Quando ambos tínhamos encomendas, escrevíamos juntos as duas. Escrever não é propriamente o termo: elocubrar talvez vá melhor. O escasso material que nos davam como fonte de consulta vinha acompanhado de uma decupagem do filme em planos e sequências, com o respectivo tempo de duração. Cada linha datilografada correspondia a 5 segundos. Era tudo medido e calculado, quase que palavra por palavra. Parecíamos dois malucos:

— Me arranja aí três palavras. Estou precisando de alguma coisa assim: parará, pa-pá, pa-pá.

— Deixa eu ver. Por que você não põe só pá, pá e pá?

Foram pelo menos uns cinquenta filmes, que se não me deram experiência de cinema, pelo menos me familiarizaram com alguns aspectos práticos da produção: tinha de ver os copiões, às vezes acompanhar a montagem e sugerir modificações — cheguei mesmo a elaborar roteiros, para facilitar a redação posterior do texto.

O que era pouco, reconheço, para que eu passasse a me considerar um cineasta — coisa que não pretendia, e continuo não pretendendo ser. Mas deu para ver de perto o trabalho que é fazer um filme. Mesmo como aqueles, que estavam para o cinema-arte como um anúncio das Casas da Banha está para a Divina Comédia.

De filmes que nunca foram feitos, meu inferno está cheio. Não foram poucos os cineastas meus amigos (e digo de passagem: é tudo boa gente) que em diferentes ocasiões me encomendaram argumentos ou sugeriram que nos associássemos para fazer um filme. A princípio, seduzido pela perspectiva de experimentar um novo meio, eu levava a sério e me punha a trabalhar. Cheguei a escrever todo o roteiro de um semidocumentário do Rio de Janeiro visto por um chofer de táxi — encomenda de Alberto Cavalcanti, que depois se foi para a Europa e me deixou de roteiro na mão.

Para Carlos Thiré, escrevi uma comédia passada no carnaval, que não chegou a ser filmada porque ao fim fiquei sabendo que em vez de receber pelo meu trabalho, eu teria que assumir uma das quotas de financiamento da produção — e éramos só nós dois, por enquanto. Mais tarde, já macaco velho, continuei me associando a vários amigos do cinema, mas só em longas (e excelentes) conversas de bar. Tenho até hoje filmes em projeto com vários deles, de Luís Carlos Barreto a José Medeiros, de Hugo Carvana a Domingos de Oliveira. Com este, cheguei a descolar um financiamento na Columbia e, entusiasmados, marcamos encontro com Tom Jobim e Chico Buarque, que seriam os atores de nosso filme. Chico não apareceu e Tom não pôde levar a ideia a sério porque na época tinha problemas com um dente da frente.

Vários produtores já tinham querido antes comprar a história do homem nu para transformá-la num filme. Silveira Sampaio fora um deles, e seria engraçado vê-lo na tela interpretando pelado o papel que já representara (vestido) num sketch para televisão.

Hugo Christiensen insistia em fazer do homem nu uma das suas “crônicas da cidade amada”. Até que surgiu um produtor disposto a realizar o filme como eu queria. O diretor me parecia capaz, pelo sucesso obtido com outro filme seu — o qual não cheguei a ver, mas que todos me asseguravam ser muito bom.

Ficou decidido que minha colaboração não se limitaria a escrever o roteiro e os diálogos, mas me caberia também acompanhar o diretor em todas as fases de realização do filme, da escolha dos atores e locações às filmagens propriamente ditas, da montagem ao lançamento de estreia. Com isso eu me assegurava finalmente uma iniciação no cinema, e pela mão de um mestre. Discutimos longamente a história, chegamos a um acordo, e escrevi a primeira versão, que ele me devolveu com algumas sugestões. Fiz a segunda, que não passava ainda de um esboço mais desenvolvido, e fiquei aguardando que ele me respondesse lá de São Paulo. Enquanto isso, sacramentava em contrato com a companhia produtora a minha participação no filme, que incluía também uma participação no faturamento. E fiquei aguardando. Até que um dia uma das crianças chega em casa correndo, excitada:

— Estão filmando um homem nu lá na praia.

Intrigado, vou até a praia e dou com o Paulo José correndo pela areia diante de uma câmera. Não estava propriamente nu, mas com uma tanguinha da cor da pele. O diretor dava instruções à sua equipe, e quando finalmente me viu entre os curiosos que acompanhavam a filmagem, sorriu meio de lado:

— Pois é, estamos filmando...

Deixei então que filmassem e fui para casa. Não cheguei a ver o filme senão quando já estava sendo exibido no meu bairro, para uma plateia de meia dúzia de gatos pingados. Pouco depois, a companhia produtora falia e também não cheguei mais a ver a cor do dinheiro.

Com isso eu dava por encerrada a minha experiência no cinema, antes de iniciá-la — quando me surgiu David Neves.

Se David Neves não existisse, teríamos de inventá-lo — como dizia Dostoievski de Deus e outros dizem do diabo. Deixa correr frouxo! — me dizia ele próprio, quando nos tornamos amigos e eu insistia em que iniciássemos o nosso primeiro projeto a quatro mãos. Essa sugestão de tranquilidade, esse convite à descontração e ao descompromisso no trabalho quase chegou a se tornar uma espécie de lema da nova firma produtora: Bem-te-vi Filmes Ltda., fundada com o mesmo espírito que inspirara a sua antecessora no campo da literatura, a Editora Sabiá. Vamos trabalhar nos divertindo que ninguém é de ferro, se possível fazendo alguma coisa que preste, e se ganharmos um dinheirinho tanto melhor. Por que sabiá e depois bem-te-vi? Porque Rubem Braga gosta de passarinho, e ele não podia ficar de fora. Dele partira a ideia de fazer uns filmes sobre escritores brasileiros. . .

Mas o sabiá da crônica não quis saber mais de cinema, quando viu o filme que fiz sobre ele próprio em super-8, para experimentar. Foi um trabalhão dos diabos, que mobilizou outros amadores das vizinhanças, como Roberto Brancher e Adolpho Portella, que eram os donos das câmeras, o assistente Mosquito (Luiz Cláudio Franco) e ainda Romeu Tonini Filho, erigido em técnico de som, por possuir um excelente gravador. Baden Powell entrou com a música sem saber, e o texto era tirado de crônicas do próprio Braga na voz deste seu criado, já que ele se recusou a falar. Mas David Neves gostou:

— Você leva jeito.

E fomos juntos para Hollywood.

Ele queria assistir a um festival de cinema e eu queria fugir ao festival de equívocos que era então a minha vida. Para darmos à viagem alguma motivação profissional (e alguma sustentação econômica), faríamos uma série de crônicas filmadas, ou minifilmes, ou lá o que fosse, sobre a vida em Hollywood.

Acabamos filmando Alfred Hitchcock em seu escritório nos estúdios da Universal. Assim que o velho bruxo permitiu que o filmássemos, e com um barbeiro a lhe cortar o cabelo, “para ficar mais pitoresco” como ele próprio sugeriu, David pôs-se a empurrar móveis, remover objetos, transformando o elegante escritório do mestre na casa da mãe-joana. Por causa da pouca luz, ainda me fez segurar um imenso abajur em cima da cabeça do velho. E a cena da despedida, já à porta da rua, o próprio Hitchcock resolveu orientar e dirigir. Fui dirigido por Hitchcock! O que me deixou tão confuso que, ao vê-lo me estender a mão dizendo adeus e entrar, em vez de ir embora acabei entrando atrás.

Valeu a experiência de ver David Neves em ação:

— Vai, David: quando eu atravessar a rua você filma.

Tratava-se agora de mostrar como os motoristas americanos respeitam os pedestres. Só não fui atropelado porque Deus, que é brasileiro, respeitou a minha insensatez.

Filmamos o túmulo de Rodolpho Valentino e o de Marilyn Monroe, a calçada da fama e a casa de Carmem Miranda — uma Hollywood que não existe mais. Depois fomos parar no México e voltamos para o Brasil, com escala no Panamá e na Guatemala. Mal chegando, nos associamos para fazer um filme sobre o Paraguai. David me avisou logo, prevenindo-se a respeito das exigências de trabalho da nossa sociedade:

— Quando estou em casa eu não atendo telefone.

Não pude deixar de perguntar, com toda seriedade:

— E quando não está?

A série de dez filmes sobre escritores se tornou possível graças ao Banco Nacional. Os diretores do Banco nem pestanejaram quando lhes expus o plano e pedi que o patrocinassem assumindo o custo da produção. Aprovaram tudo de mão beijada:

— Pode ir em frente.

Começamos por Carlos Drummond de Andrade, que havia visto o filminho sobre o Rubem e havia gostado. Mal começáramos e meu sócio se manda para um festival na Polônia com ar de vou ali e volto já:

— Quinze dias, no máximo.

Dois meses depois me telefonava (do México), dizendo que estava a caminho. Nesse meio tempo me deixou nas boas mãos de Roberto Neumann, que até se deitar no meio da rua se deitou, para filmar o poeta. Fomos parar em Belo Horizonte, Itabira, Ouro Preto e Congonhas, à procura das raízes de Minas na sua poesia. Eu queria filmar um boi — a solidão do boi do campo — e a todo momento parávamos o carro na estrada:

— Olha ali um boi pastando.

— É uma vaca.

Acabamos filmando dezenas de Tutu Caramujo na porta da venda, a meditar na derrota incomparável. Depois, no Rio, o poeta na Avenida Rio Branco, na livraria, no café e sendo abordado por uma linda admiradora que hoje vem a ser minha mulher. No ônibus, tivemos de isolar no fim da linha meia dúzia de bancos, com a concordância do motorista, meio desconfiado, para enchê-los com a comparsaria:

— Quais são os nossos amigos que têm cara de passageiro de ônibus? — perguntou David, já de volta, reassumindo seu lugar atrás da câmera.

Recrutamos meia dúzia — entre eles Marco Aurélio Matos e minha filha Virgínia.

— Minha senhora, isto é uma filmagem, se incomodava de passar para o outro banco?

— Daqui não saio. Daqui ninguém me tira.

A velha tinha ido se sentar justamente no lugar reservado ao poeta, que ia entrar na próxima parada.

— Este filme está meio chato — disse ele, já à entrada do Ministério da Educação: — Vamos fazer umas brincadeiras. Eu me escondo atrás daquela coluna e ponho a cara de fora.

Depois foi a vez de nosso querido Érico Veríssimo em Porto Alegre. Eu não podia imaginar então que em breve o filme se tornaria um comovente documento vivo deste que foi, como disse Drummond de Milton Campos, o homem que todos gostaríamos de ter sido.

Pedro Nava, por sua vez, se portou como verdadeiro ator. Seguiu à risca as marcações, fez, falou e aconteceu. O grande memorialista, que por si só justificava a sua inclusão na série, teve lances do mais fino humor também na sua qualidade de médico:

— Quando me dizem que reumatismo não tem cura, eu digo: tem tratamento. Nada mais incurável que um sujeito sem perna, não é isso mesmo? Pois pode usar uma perna-de-pau — é um tratamento.

Afonso Arinos nos surpreendeu com a sua verve, logo ao princípio do filme, contando uma história de pintassilgos e bicudos, junto à gaiola de um canário. Isso numa produção Bem-te-vi! Era muito passarinho junto — sugeri que no fim do filme ele acabasse soltando o canário da gaiola.

— Soltar meu canarinho? Isso nunca.

Um periquito amarelo, que era mais barato, com jeito passaria por um canário. Compramos dois, e foi bom, porque Afonso Arinos, bicado na mão pelo primeiro deles, soltou-o antes da hora. Prudente de Moraes, neto, que assistia à cena, meio cético (já havia participado de outra), sugeriu:

— Acho melhor soltar o próprio diretor desse filme.

José Américo, filmado em João Pessoa, não nos deu trabalho algum. Ao contrário de Jorge Amado, em Salvador, que não parava quieto, queria que todos os seus amigos aparecessem, e a cada momento aparecia ele próprio com uma camisa diferente, cada uma mais colorida que a outra. Umas dez ou doze camisas, num filme de dez minutos!

Não havia continuidade possível: abria a porta com uma e surgia na sala com outra. Mas a esta altura eu já contava com novo sócio, Mair Tavares. Aquele índio calado e discreto, concentrado em frente à moviola*, para quem tudo menos que a perfeição é uma droga, na realidade vinha a ser um extraordinário montador. Com ele, durante dois anos a fio, aprendi finalmente alguma coisa sobre o delicado e fascinante ofício do cinema: um filme se faz na moviola.

Quando os amigos perguntavam por mim, que andava sumido, Rubem Braga dizia, como de alguém entregue ao vício:

— Ele hoje vive na moviola.

Aprendi alguma coisa mais, e a isso talvez se reduza a minha experiência: a indústria cinematográfica no Brasil está com 20 anos de atraso — no estágio em que se encontrava, por exemplo, há 20 anos, a indústria editorial. Não vou falar na insuficiência de recursos técnicos, na escassez de material e equipamento, na deficiência dos laboratórios, no estrangulamento da distribuição, na concorrência estrangeira, na precariedade geral de uma infra-estrutura ainda nos moldes artesanais. Direi apenas que o cineasta brasileiro que consegue terminar um filme e exibi-lo num cinema é para mim um herói.
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Moviola = mesa de edição ou mesa de montagem.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Adega de Versos 79: Francisco Neves de Macedo

 

Milton S. Souza (Mãe não se mata)

Um poeta escreveu esta delicada poesia para todas as mães: “Ah!, se Deus ouvisse um dia minha prece ingênua e doce, que fosse mãe não morria, por mais velhinha que fosse...”. Nestes versos, a mais pura verdade: as mães verdadeiras, de qualquer idade, não deveriam morrer, pois elas são os anjos que Deus colocou na vida dos filhos. Que pena que muitos filhos só vão se dar conta do valor imenso das suas mães quando elas já partiram para a eternidade. Que bom que ainda existem tantos filhos que reconhecem, durante a vida inteira, o valor desta mãe que Deus lhes deu...

 Na semana passada, na cidade de Gravataí, aconteceu um pequeno incidente que serve muito bem para mostrar o amor de um filho pela mãe. E este filho, envolvido no acontecimento, é um excepcional, com alguns problemas mentais. Um adulto que, por causa da sua doença, nunca deixou de se comportar como uma criança. Uma criança que anda por todo o centro de Gravataí e que conhece todo mundo. Uma criança grande que não perde uma peça de teatro, pois adora ver os outros representando.

E ele estava lá, naquela noite, o cine-teatro quase lotado. Prestava muita atenção em tudo o que acontecia no palco. Batia palmas para quase todas as cenas e o seu sorriso conseguia ser mais luminoso do que o lusco-fusco das luzes coloridas que davam mais vida para as cenas que se desenrolavam. Sentado na primeira fila de cadeiras, ele parecia ser o espectador mais concentrado entre todos os presentes. A peça encenada era um drama. E as partes foram se desenrolando com muita veracidade, fazendo crescer o silêncio dentro do teatro, conforme se aproximava o clímax da apresentação. A história terminava com um filho desferindo uma facada mortal na sua mãe. Foi exatamente no momento em que o ator levantou a faca para cravar no peito da apavorada mulher que o silêncio foi quebrado pelo desespero da voz do excepcional: “Não, não, não, mãe não se mata”, repetia ele, chorando e tendo que ser contido para não subir ao palco em direção ao espantado ator que estava com a faca. O espetáculo parou. Foi muito difícil convencer aquele menino-grande que aquela cena não era verdadeira e que nada iria acontecer para aquela mãe. Chorando, rodeado por tantos conhecidos, ele repetia: “Mãe não se mata, mãe não se mata...”.

Os atores, mesmo parando de representar, foram aplaudidos pelo público. E quem ganhou mais aplausos foi exatamente aquela mãe que o nosso menino-grande “salvou a vida”: ela desceu do palco e veio, docemente, como faria qualquer mãe, dar um abraço no rapaz excepcional que fez o espetáculo parar. E ele só parou de chorar quando sentiu que aquela mãe estava ali, sã e salva, sem nenhum arranhão. “Mãe não se mata”, ainda repetiu mais uma vez, colando o seu rosto molhado no regaço daquela mulher desconhecida que lhe provocara tanta emoção. Um pequeno incidente. Mas que serviu para mostrar a grandeza do amor de um filho por uma mãe. Na visão clara daquele moço excepcional, não existe nada mais grave do que matar uma mãe. Foi por isso que ele gritou bem forte, para todo mundo ouvir, que “mãe não se mata”. Foi por isso, também, que ele ganhou a maioria dos aplausos: por ter conseguido dar um final feliz para aquela bonita peça teatral.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XIV

A DESCONHECIDA


Ela chegou, sorriu. Não disse nada
e foi entrando sem pedir licença.
Depois, falou em tom de uma sentença;
"Eu vou fazer daqui minha morada."

Que conversa maluca e atrapalhada,
não vou brigar nem quero desavença
e mostrando tristeza e indiferença,
eu saí pela porta escancarada.

Depois, voltei e vi por uma fresta,
o clima que reinava era de festa,
muita música e alegria de verdade.

Um dia, ela partiu sentenciando:
contigo estive e andavas poetando,
— não soubeste que sou tua metade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LEMBRANDO O LAVRADOR

Eu me levanto cedo e abro a janela
para ver o romper da madrugada,
a Natureza em festa se revela
numa canção de amor bem orquestrada.

O Universo, de luz, parece tela
por um pintor supremo, executada,
tornando-se elegante passarela
onde faz coro a alegre passarada.

O sol desponta, quero uma caneta,
mas a enxada é que vem para a retreta
e quer dançar comigo no roçado...

A enxada tine e estronda pelo eito,
vou capinar a terra do meu jeito
só amanhã, que agora estou cansado!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MEU AMOR

Quando surge, no céu, a luz da lua
espalhando seus raios pelo chão,
eu me transponho para aquela rua
onde te dei amor, meu coração.

Desde então, minha vida te cultua
no prazer de viver esta emoção,
e espero que a rotina não destrua
nosso ninho de amor, nossa paixão.

À noite, o céu de estrelas se ilumina,
um convite à ternura que domina
e cresce o sentimento entre nós dois...

E no leito de amor, onde deslizo,
sinto o prazer que vem do paraíso,
por que, então, adiar para depois?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MEUS PESARES

Faz tanto tempo, eu me recordo agora
do amor sonhado quando jovem era,
mas que partiu levando a luz da aurora
deixando sem amor minha tapera.

Chorei e muito quando foste embora
ao constatar que a vida não espera,
e tive medo, um medo que apavora
quando se perde o amor na primavera.

Quanto tempo passou. Hoje cansado,
a lembrança avivou o meu passado,
já não procuro mais outra ilusão...

Restou somente esta saudade louca
dos beijos que deixei em tua boca,
e esta mágoa de amor no coração!
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PERSISTÊNCIA

Sou persistente como o garimpeiro
que busca a joia rara e deslumbrante,
cavando a terra, construindo aceito,
para encontrar, altivo, o diamante.

Sou incansável pelo tempo inteiro,
busco a palavra e o brilho fascinante
do verso ardente, puro e verdadeiro
que brilha como o sol, inebriante.

Ninguém me deterá neste garimpo,
irei, se for preciso até o Olimpo
buscar minha divina inspiração.

E nestes versos pobres, mas floridos
meus sonhos ficarão mais coloridos,
oriundos do Amor, do coração!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: Molly Whuppie e o Gigante)

Era uma vez um casal, que tinham muitos filhos, mas não conseguiam comprar carne para todos, então pegaram as três crianças menores, que eram todas meninas, e as abandonaram na floresta.

As meninas caminharam, caminharam e não conseguiram ver casa alguma. A noite surgiu e ficaram com fome. Viram uma luz e seguiram naquela direção até encontrar uma casa. Bateram à porta, e uma mulher abriu e perguntou:

– O que desejam?

As crianças responderam:

– Por favor, deixe-nos entrar e comer alguma coisa.

A mulher disse:

– Não posso fazer isso, já que meu marido é um gigante e mataria vocês se as encontrasse quando chegasse em casa.

Elas imploraram ainda mais:

– Deixe-nos descansar um pouco, – disseram – e partiremos antes que ele chegue.

Então a mulher as acolheu, as meninas sentaram-se diante do fogo e ela lhes deu leite e pão, mas mal haviam começado a comer quando ouviram uma forte batida na porta e uma voz terrível, dizendo:

– Fe-fi-fo-fum. Sinto cheiro de sangue humano. Quem está com você, mulher?

– Três criancinhas com frio e com fome, – disse a esposa – e logo irão embora. Você não tocará nelas, homem.

O gigante nada disse, comeu um lauto jantar e ordenou que as crianças passassem a noite ali. Acontece que o gigante tinha três meninas, e elas iriam dormir na cama com as três estranhas.

A caçula das três meninas abandonadas se chamava Molly Whuppie e era muito inteligente. Percebeu, antes de irem para a cama, que o gigante colocara cordas de palha em volta do pescoço dela e do pescoço das suas irmãs, e ao redor do pescoço de suas filhas passara correntes de ouro.

Molly tomou cuidado para não adormecer e esperou até ter certeza de que todos dormiam profundamente. Então, rastejou para fora da cama e tirou as cordas de palha do pescoço dela e de suas irmãs, tirou as correntes de ouro do pescoço das filhas do gigante. Então passou as cordas de palha no pescoço das meninas do gigante e as correntes de ouro no seu próprio pescoço e nos das irmãs e voltou a se deitar.

No meio da noite, o gigante se levantou, armado com uma enorme clava, e foi tatear os pescoços em que pusera as cordas de palha. Estava escuro. Arrancou as próprias filhas da cama e deu com a clava nelas até morrerem. Depois voltou a se deitar, pensando que dera conta do recado muito bem.

Molly refletiu que era hora de sair dali com as irmãs, então as acordou e disse que ficassem quietas e saíssem da casa de fininho. Todas saíram sãs e salvas e correram, correram sem parar até o amanhecer, quando avistaram uma mansão.

Acontece que era o castelo de um rei. Molly entrou e contou sua história para o rei, que disse:

– Molly, você é uma garota esperta e se deu bem. Vou lhe pedir para voltar à casa do gigante e roubar a espada dele, que fica pendurada na cabeceira da cama. Darei sua irmã mais velha em casamento para o meu filho mais velho se você fizer isso.

Molly prometeu que tentaria roubar a espada.

Voltou, deu um jeito de se esgueirar para dentro da casa do gigante e se escondeu debaixo da cama. O gigante voltou para casa, comeu seu lauto jantar e foi dormir. Molly esperou até que ele roncasse, saiu do esconderijo debaixo da cama, estendeu o braço por cima do gigante e retirou a espada; mas, quando passava a espada por cima da cama, fez um barulhinho, e o gigante acordou e pulou.

Molly saiu da casa correndo e levando a espada. E correu, correu, até chegar à Ponte de um Fio de Cabelo. Molly passou, mas o gigante não, e ele gritou:

– Infeliz Molly Whuppie! Nunca mais volte aqui.

E ela gritou também:

– Mais duas vezes, monstro, irei para a Espanha.

Então Molly levou a espada para o rei, e sua irmã mais velha se casou com o filho mais velho dele.

Então o rei disse:

– Você se saiu bem, Molly, mas poderia se sair ainda melhor roubando a bolsa que fica embaixo do travesseiro do gigante, e então eu casaria sua segunda irmã com meu segundo filho.

Molly disse que tentaria.

Então rumou para a casa do gigante, esgueirou-se para dentro e se escondeu debaixo da cama, esperando até que o gigante tivesse terminado seu jantar e roncasse, ferrado no sono. Ela deixou seu esconderijo, enfiou a mão embaixo do travesseiro e tirou a bolsa, mas, na hora em que estava saindo do quarto, o gigante acordou e correu atrás dela. E Molly correu, correu, até chegarem os dois à Ponte de um Fio de Cabelo, e ela passou, mas o gigante não, e disse ele:

– Infeliz Molly Whuppie! Nunca mais volte.

– Mais uma vez, monstro, irei para a Espanha.

Então Molly levou a bolsa para o rei, e sua segunda irmã se casou com o segundo filho dele.

Depois disso, o rei disse a Molly:

– Molly, você é uma garota esperta, e caso se esforce ainda mais e roube o anel que o gigante usa, darei você em casamento para meu filho caçula.

Molly prometeu tentar. Então lá foi de volta para a casa do gigante e se escondeu debaixo da cama. Logo o gigante retornou e, depois de comer um lauto jantar, foi para sua cama e em pouco tempo já estava roncando alto.

Molly deixou seu esconderijo pé ante pé, procurou por cima da cama e, com muita coragem, segurou a mão do gigante. Daí puxou, puxou, até que conseguiu tirar o anel do dedo; porém mal o havia tirado quando o gigante se levantou, agarrou-a pela mão e disse:

– Agora a peguei, Molly Whuppie. Se eu tivesse feito tanto mal a você quanto você fez para mim, o que faria comigo?

Molly respondeu:

– Eu o enfiaria em um saco e colocaria dentro o gato, o cachorro, uma agulha, linha e tesoura. Depois colocaria o saco sobre o muro e iria para a floresta; escolheria o pedaço de pau mais grosso que encontrasse, voltaria, tiraria o saco de cima do muro e lhe daria pauladas até que morresse.

– Molly – disse o gigante –, vou fazer exatamente isso com você.

Então ele pegou um saco, colocou Molly lá dentro junto com o gato, o cachorro, uma agulha, linha e tesoura, colocou-o sobre o muro e foi para a floresta escolher um pedaço de pau.

Molly gritou dentro do saco:

– Oh, se você pudesse ver o que estou vendo!

– Oh – disse a mulher do gigante –, o que está vendo, Molly?

Porém Molly não respondeu, apenas continuou a dizer:

– Oh, se você pudesse ver o que estou vendo!

A mulher do gigante implorou que Molly a deixasse ver o que a garota via. Então Molly pegou a tesoura e fez um buraco no saco; levou consigo a agulha e a linha e pulou para baixo, ajudando a mulher do gigante a entrar no saco, e então costurou o buraco.

Já em cima do muro, a mulher do gigante nada viu e começou a pedir para descer de novo e sair dali, mas Molly não deu ouvidos e se escondeu atrás da porta. O gigante voltou para casa com um enorme tronco de árvore na mão, içou o saco para baixo e começou a bater nele com toda a força.

Sua mulher gritou:

– Sou eu, homem!

Mas o cachorro latia e o gato miava dentro do saco, e ele não reconheceu a voz da esposa.

Então Molly saiu de trás da porta, e o gigante a viu e correu atrás dela. Ele correu, e ela correu, até chegarem à Ponte do Fio de Cabelo, e Molly passou por ela, mas ele não conseguiu e berrou:

– Infeliz Molly Whuppie! Nunca mais volte aqui.

– Nunca mais, monstro – ela respondeu –, nunca mais voltarei para a Espanha.

Então Molly levou o anel para o rei e se casou com o filho mais moço dele, e nunca mais viu o gigante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Molly Whuppie é um conto de fadas inglês ambientado na Escócia. Uma versão Highland, Maol a Chliobain , foi coletada por John Francis Campbell. Como há uma relação entre os dois contos e uma variante irlandesa, "Smallhead", concluiu-se que o conto era de origem celta.

Fonte:
Contos e Lendas do Mundo. 2007.

50° Jogos Florais de Niterói (Prazo: 30 de junho)


TEMAS:

Âmbito Nacional/ Internacional: Jubileu de Ouro

Novos Trovadores: Tesouro

Âmbito Estadual (Rio de Janeiro): Ventura


REGULAMENTO:

1 – Trova com 4 versos de 7 sílabas métricas, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, rima perfeita e sentido completo.

2 – Uma trova inédita.

3 – Envio por sistema por e-mail ao Fiel Depositário

Nacional:
Talita Batista
e-mail: (talitabatista2012@hotmail.com).

Estadual:
Andréa Motta
e-mail: (andreamottactba@gmail.com).

Novos Trovadores:
Renato Alves
e-mail: (rajesy@hotmal.com).


4 – Prazo: 30 de junho de 2022.

5 – Serão desclassificadas as trovas: fora das especificação acima, quando houver quebra de sigilo em relação ao autor, fora do prazo, plagiadas, não inéditas e outras ocorrências julgadas graves.

6 – Premiação:

Certificado e troféu ou medalha para os classificados nas 3 categorias: Vencedor, Menção Honrosa e Menção Especial.

Premiação Total:
40 Certificados, 40 Troféus ou Medalhas, a saber: 15 para o âmbito Nacional e Internacional, 15 para o âmbito Estadual, 10 para os Novos Trovadores e 40 Livretos contendo as trovas classificadas, para os trovadores premiados.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Versejando 110

 

Júlia Lopes de Almeida (A casa dos mortos)


A Francisca Júlia da Silva


Que frio e que negrume!

E eu ia andando no meio da treva, corajosa e firme, em busca daquela que me deu a vida, que me criou nos seus seios, que me enchia as faces de beijos e me vestia a alma de alegrias.

Eu estava agora faminta, mal vestida, mal consolada, cheia de mágoas, saudosa do seu afago quente e doce, da sua palavra cheirosa como o mel da abelha em tronco de especiaria.

E fui andando na treva, seguindo uns passos que eu ouvia, não sei de quem, não sei para onde.

Nem uma estrelinha orientadora; tudo era mudez; só aqueles passos diante de mim: tan, tan, tan, tan, como marteladas através de uma parede grossa!

E fui, sem medo, até que os passos pararam e uma porta se abriu sem rumor, larga e macia. Veio uma rajada; encostei-me ao umbral e divisei então, a uma luz frouxíssima, uns vultos mal definidos, quase apagados.

Perto de mim um homem, embuçado como um esquimó, tirou da cabeça um fardo e pousou-o no chão; depois, voltando-se, disse-me com uma voz soluçada como o vento na ramaria de um salgueiro:

– Por que vieste atrás de mim? Esta é a casa dos mortos. Vai-te embora! A estrada negra é proibida aos vivos; és a primeira que a percorre toda sem ter morrido...

Sombras esparsas iam tomando formas humanas e vinham curiosas, lentas, resvalando, debruçarem-se sobre o meu corpo, em atitude de espanto. Eu resistia ao pavor e sôfrega perscrutava tudo, em busca daquela que me deu a vida, que me enchia as faces de beijos, que me embalava com as suas palavras mais cheirosas que o mel das abelhas em tronco de especiaria.

– Quem procuras? perguntou o mesmo homem, cujos traços eu não percebia sob a projeção do capuz.

– Minha mãe.

O som da minha voz fez fugir em revoada todas aquelas figuras de névoa, como a badalada de um sino em torre coberta de passarinhos. Eu mesma tremi, estranhando a vibração das minhas palavras, tal a clareza e a vida da minha voz ecoando entre os fracos murmúrios das outras, de um tênue sopro de brisa. Então lá do fundo, do meio de um amontoado de novelos alvadios que se dissipavam aqui para se ajuntarem acolá, a minha mãe veio até mim, sorrindo, com o seu vestido caseiro, a sua bela carne rosada, gorda e fresca como nos tempos em que eu repousava no seu largo seio a minha cabeça sonhadora e febril, e ela me alisava os cabelos com as suas mãos formosíssimas.

Radiante, atirei-me para beijá-la; ela, porém, sempre tão pronta em receber os meus carinhos, paralisou-me com um gesto:

– Não me toques! Não me beijes! Todo o meu corpo se desfaria ao mais leve contato... Terias horror da minha carne e desmaiarias se os meus lábios se unissem aos teus. Para que vieste procurar-me? Foge, meu amor, o teu lugar é lá, na vida, na febre, na luz, no sofrimento. Vai sofrer. Saudades? tinhas saudades? Pobrezinha! Esquece; não há nada que valha o esquecimento. Eu nunca te apareceria, se não viesses procurar-me. Fizeste mal ao meu repouso, porque, vendo-te, eu não te posso apertar ao meu seio! E as tuas irmãs! E Ele?!

Eu chorava; e não perdia um só dos seus gestos. Lembro-me de que ela quis dar-me uma fruta, e que sorriu depois com amargura, vendo desfazer-se entre os seus dedos lívidos a fruta que me estendia.

– Até os mortos têm ilusões... eu esquecia-me... disse ela com a sua voz tão outra, apenas audível, como um murmúrio de vento muito ao longe...

Então eu vi, eu vi que todas aquelas sombras flutuantes cercavam o fardo que o homem de capuz pousara no chão; eram dois caixões com defuntos; em um ia uma virgem, no outro um homem... Ela era branca e fina, com umas madeixas negras sobre a túnica pálida e uma haste de nardos nas mãos postas em cruz. Ele era igualmente pálido, e moço, e belo, com a sua linda cabeça loira pousada em violetas.

A Morte, em pé, muito alta e muito esguia, diante dos dois caixões, lançava-lhes uma bênção vagarosa, larga, com dizeres que eu não entendia.

Minha mãe explicou-me:

– Só o amor perdura além da morte. Aquilo é a celebração de um noivado. Os dois corpos ficaram lá embaixo, intactos, rígidos, mas aqui as duas almas estarão sempre unidas; e se voltarem à terra voltarão juntas e para o mesmo laço. Serão eternamente presas uma à outra; almas felizes, raras! Vês? Quem não amou na vida não tem nem a doçura da saudade para amenizar-lhe a tristeza deste exílio. Repara para as virgens sem noivos; que ar de lamento que elas têm! Essas nunca voltarão à terra, porque da vida não trouxeram lembrança. Só quem amou traz para o mistério da morte um aroma de sonho. Tudo mais é poeira que o vento leva, e espalha, e não se torna a encontrar... Vai-te embora!

Os olhos de minha mãe tinham um brilho de lágrimas, e eu estendi-lhe os braços ansiosos, e logo o seu corpo se tornou imaterial, diáfano, como se de névoa fosse. Então o homem do capuz, cujas feições não vi, pegou-me pela mão e trouxe-me para fora, para a estrada, onde eu caminhei entre duas longas filas de ciprestes negros e de anêmonas roxas. Caminhei, caminhei, sem sentir o solo sob os passos cansados; e quando abri os olhos deste estranho sonho tinha o rosto coberto de lágrimas e as mãos em cruz sobre o coração.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Silveira Carvalho (Caderno de Trovas)


Assim longe, triste, opresso,
nunca maldisse a distância,
porque por ela é que eu meço
a tua e a minha constância.
= = = = = = = = = = =

Como esse dia, não creio,
que haja outro igual para mim!
Ah! se o viver fosse cheio
de dias cheios assim...
= = = = = = = = = = =

Desperta...Eu trouxe uns versinhos
para cantar ao teu lado:
recordações, retalhinhos,
do teu, do nosso passado...
= = = = = = = = = = =

Deus! Senhor de astros e mares,
do mundo supremo dono,
porque fizestes luares
e porque nos destes sono?
= = = = = = = = = = =

Disse, olhando o céu turquesa:
"porque o sol está longe assim?".
Vinhas. Voltei-me... Surpresa !
Vi o sol junto de mim.
= = = = = = = = = = =

Já houve um tempo risonho
em que eu tanto fantasiava,
que até parecia um sonho
o dia em que eu não sonhava.
= = = = = = = = = = =

Porque na trova inocente,
que tanto agrada à mulher,
a gente conta o que sente,
a gente diz o que quer...
= = = = = = = = = = =

Quando em carta a alma se expande,
o meu suplício é cruel:
falar de um amor tão grande
em tão pequeno papel!...
= = = = = = = = = = =

Quem ama, para dar provas,
deve três coisas cumprir:
tocar violão, fazer trovas
e, havendo luar, não dormir.
= = = = = = = = = = =

Se escuto gorJeios suaves,
se fito o céu - vasta umbela -
vendo astros e ouvindo as aves,
lembro a voz e os olhos dela.
= = = = = = = = = = =

Tenho, a lembrar os dispersos
castelos que outrora ergui,
a pasta cheia de versos
e os versos cheios de ti.
= = = = = = = = = = =

TROVAS ENCADEADAS

Ando pensando, e receio
que de pensar crie ruga,
porque modo, porque meio
Deus uma estrela me aluga.

Quero, do mundo afastado,
gozar a lua de mel:
Deus não perturba um noivado
para cobrar aluguel...
= = = = = = = = = = =

Outrora, quando eu vivia
indiferente ao amor,
a dor tanto me feria
que me acostumei com a dor...

Mas hoje - é surpreendente!
- vivendo amado por ti,
sofro muito, justamente
porque nunca mais sofri...
= = = = = = = = = = =

"Preciso falar-te. Espero
que tu venhas hoje aqui".
"Eu também falar-te quero,
sem falta irei", respondi.

Fui ... Não falei, nem falaste..
E ainda hoje estou pra saber
porque foi que me chamaste,
e o que é que eu tinha a dizer.
= = = = = = = = = = =

Santo Antônio foi tentado
quando pelo mundo andou,
mas resistiu ao pecado,
morreu, foi ao céu, gozou...

Se isto hoje fosse santinha,
se ele te visse, garanto,
que entre os santos da folhinha
não haveria este santo.
= = = = = = = = = = =

Se vou à missa, - é esquisito:
só sendo proposital:
mal me ajoelho e te fito
o padre fecha o missal!...

Isto já me causa alarde,
terá ódio o padre a mim?
Ou sou eu que chego tarde
e a missa é curtinha assim?

Fonte:
Adelmar Tavares et al. Descantes. Recife/PE: Tipografia da Imprensa Oficial. 1a. edição publicada em 1907.

domingo, 1 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 557

 

Therezinha Dieguez Brisolla (Nem Pensar...)

Escurecia quando ouviu as batidas na porta da sala. Olhou pela janela e ao ver o estranho lá fora, teve medo.

Fechou a cortina e ali ficou, certa que com a demora, desistiria de esperar.

Ouviu, novamente, as batidas bem mais insistentes. Aproximou-se da porta e testou a fechadura. O medo cresceu e o seu coração descontrolou-se quando uma voz, fraca e cansada, disse o seu nome.

Reconheceu o timbre da voz e lembrou-se das inúmeras vezes em que ela segredara, em seus ouvidos, juras e promessas de amor.

Depois, tornara-se áspera e rude, destruindo, um a um, seus mais belos sonhos!

Fingiu calma ao abrir a porta, devagar... O homem, à sua frente, era uma sombra daquele que, um dia, levado por louca paixão, a abandonara.

O rosto magro e encovado, os cabelos grisalhos e o andar vacilante...

Aparentava o dobro de sua idade.

Ele entrou, caminhou em direção à cadeira de balanço e sentou-se pesadamente. Chorando, explicou-lhe as razões de sua volta... falou de seu amor e arrependimento, pediu-lhe perdão por suas faltas e implorou que o aceitasse em sua casa.  

Olhou-o por longo tempo... teve pena e cedeu aos seus apelos. Afinal, ela estava na presença do seu primeiro e único amor!

Deixou-o ficar... Ele levantou-se e aproximou-se dela. Amparou-o e caminharam para o quarto. Esperou que se deitasse, ajeitou o travesseiro sob sua cabeça e estendeu o lençol sobre o seu corpo...

Ele acompanhou os seus gestos de carinho e os seus olhos adquiriram o antigo brilho! Com um sorriso sedutor puxou-a para perto de si e tentou beijá-la. Desvencilhou-se... Apagou a luz, encostou a porta devagar e caminhou com passos firmes para o seu quarto.

Pela primeira vez, em tantos anos, dormiu com a certeza de que aquele adeus fora definitivo! A sua volta, deu-lhe essa certeza... Ele bateu à sua porta e ela lhe deu abrigo... falou de seu amor e ela fingiu acreditar... voltou arrependido e ela lhe deu perdão. Mas, quanto ao seu amor... Nem pensar...

Fonte:
Texto enviado por Luzia Brisolla Fuim.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 3

ÁRVORE


Verde bandeira desfraldada ao vento,
árvore amiga, o olhar que te procura
busca repouso e vai achar alento
na sombra que lhe estendes lá da altura!

A sede abrasa! E o fruto sumarento
entregas, com requintes de ternura,
a quem poda a raiz, que é teu sustento
e do solo te traz a seiva pura!

Ramos erguidos, a abraçar o espaço,
tua ânsia de dar não tem cansaço!
Tua bênção de amor não tem medida!

E embora tanto dês e nada colhas,
com o verde pincel de tuas folhas,
vais colorindo de esperança a vida!
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E O CARNAVAL COMEÇA

Rompem-se os diques da alma. Nas retinas,
confundem-se as visões do Bem e o Mal.
Momo sacode os guizos! Nas esquinas
e nos salões, estronda a bacanal!

No entanto, há mais Pierrôs e Colombinas,
Palhaços e Arlequins, na vida real,
que os que atiram confetes... serpentinas,
alegria a fingir no Carnaval!

Cinzas! Máscaras rolam! Mas... só a morte,
a derradeira máscara é quem tira.
Momo sorri - talvez da própria sorte!

E o amargor numa dúvida se expressa:
- O Carnaval findou?! - Cruel mentira!
– A vida marcha... E o Carnaval começa!...
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PROTESTO DO RIO

Quando Deus fez surgir, do nada, o mundo,
recortou-o de rios que em Seu plano
tinham valor imenso e tão profundo
quanto o fluxo arterial do corpo humano!

A terra floresceu. O amor fecundo
povoou lares. E o homem, sempre ufano,
o Éden que recebeu tornou imundo,
semeando em cada canto o desengano!

Ar e águas poluiu... E os próprios veios,
com seus desmandos, vícios e mazelas!...
E hoje... os rios ocultam, em seus seios,

as angústias das vozes sufocadas
pelos surdos gemidos das sequelas,
num protesto de artérias infartadas!
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SECA...

O sol delira! Abrasa! A terra exangue
abre os lábios sedentos! Sem valia,
os rios secam, veios nus, sem sangue,
sugados pelo solo em agonia!

Pele crestada, passo frouxo e langue,
o retirante segue... tem por guia
uma esperança de que o céu se zangue,
lançando sobre a terra a chuva fria!

Chovesse... e voltaria ao mesmo beco...
que enfrentar a caatinga é seu destino!
Mas a chuva não vem... O pranto é seco!

Reza!... O sol, em delírio, mais abrasa!
O céu rubro gargalha! E o nordestino
parte... deixando a própria alma em casa!
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VELHO RIO

Deslizas velho rio, amargo e silencioso,
a esconder bem ao fundo a injúria e a dor calada.
Cresceste manso, puro! E o teu caudal piscoso
refletia o esplendor da luz da madrugada!

Quantas milhas coleaste! Fértil, dadivoso,
quantos lares supriste! E se a sede saciada
afugentou a seca, esse fantasma odioso,
tiveste, em paga injusta, a face maculada!

Hoje segues tristonho... sujo... moribundo,
tendo no seio o estigma e na alma dolorida
essa angústia de seres lixeira do mundo!

Velho rio... Depois de tanto desengano,
entendo porque, enfim, protestas contra a vida
e afogas tua dor no abismo do oceano!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

Renato Benvindo Frata (Timidez)

Ela saiu, vassoura em punho e com golpes ligeiros foi varrendo os ciscos e as flores de sibipiruna que o vento desprendera, forrando o chão. Seus pés magros, meigos e descalços pisavam de manso o tapete dourado e macio, envolvidos pelas flores. Nem precisava varrer àquela hora, mas o fazia de caso pensado.

Porém, da fresta de uma janela improvisada do celeiro de madeira, transformado em quarto por estrita necessidade de separar e acomodar os empregados solteiros dos casados na colônia da próspera fazenda de café, dois olhos apaixonados acompanhavam o vai e vem dos movimentos, o corpo esguio de silhueta alegre que parecia bailar com a vassoura nas mãos.

Cantarolava e estava linda. Aliás, era-o sempre, de segunda a segunda, com ou sem a vassoura a varrer flores e ciscos. Paixão que ele curtia e que mantinha guardada a sete chaves travada no coração, desde que chegara com a leva dos novos trabalhadores daquela safra que se iniciava, e que fora colocado ali no abrigo de outros solteiros com quem dividiria o espaço.

Era tímido demais para deixá-la perceber os seus sentimentos nascidos à primeira vista. Mal se limitava a uma troca de cumprimentos - que respondia à meia voz, quase num muxoxo, e o rubor já lhe subia esquentando a face e molhando os sovacos. Que aflição!

Bem que na frente ao espelho ensaiava um "olá" mais meloso e lhe dirigia um sorriso aberto, desses que atraem, mas, e a coragem, onde estava? E se ela não aceitasse o flerte e o dispensasse? Passaria o resto da vida escondido. Melhor seria continuar a admirá-la à distância, mesmo "lambendo com a testa", sonhando com ela nas viagens de pensamentos nem sempre pudicos, mas que o deixavam cada vez mais apaixonado.

E como se sabe, a paixão endoida um peão sozinho num celeiro! Ato contínuo ela se agachou, apanhou um punhado das flores, olhou-as como a contemplá-las, cheirou-as e as prendeu, fazendo um lindo buquê na palma da mão. Depois, virando-se para a direção onde ele se encontrava, abriu um maravilhoso sorriso. De dentro do quarto o grande susto foi seguido de muita apreensão. Como ela poderia tê-lo descoberto se ninguém além dele sabia do amor que lhe devotava? Jamais admitira espalhar o segredo tão nobre, íntimo, enclausurado e controlado por sua timidez. Daí a cisma.

Afastou-se apressado da janela, pôs as mãos no peito, sentiu o coração agitado, a garganta seca e a respiração ofegante. O suor desceu, pois tinha sido descoberto e isso o desconcertou. Uma eternidade com a incerteza inundando-lhe a alma se passou até que, num misto de coragem, curiosidade e desejo, voltou à janela. Gritou de pavor e recuou. Do lado oposto, um lindo par de olhos azuis ocupava agora a mesma fresta. Então, constrangido, obrigou-se a abri-la; e a moça mais que depressa lhe estendeu a mão cheia de flores e disse: "São nossas. Que bom que está aí a me olhar. Cheguei pensar que hoje você não tentaria me ver".

Momentos depois o lençol do quarto/celeiro estava salpicado de flores amarelas amassadas por corpos suarentos. O resto a minha timidez não me permite contar.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (“Insônia”, de Graciliano Ramos)


Publicado originalmente em 1947, Insônia é o sexto livro de Graciliano Ramos. A obra reúne treze contos ― “Insônia”, “Um ladrão”, “O relógio do hospital”, “Paulo”, “Luciana”, “Minsk”, “A prisão de J. Carmo Gomes”, “Dois dedos”, “A testemunha”, “Ciúmes”, “Um pobre-diabo”, “Uma visita” e “Silveira Pereira” ―, nos quais temas muito caros ao autor se evidenciam, como morte, envelhecimento e injustiça social.

Insônia mostra como o ser humano reage a situações diversas, revelando suas fragilidades e angústias.

As histórias desta obra estão repletas de inquietudes existenciais que oferecem ao leitor a possibilidade de confrontar a própria realidade, acompanhado sempre do estilo que consagrou Graciliano Ramos como um dos maiores autores brasileiros, e que já é conhecido dos leitores: a economia vocabular, a secura emotiva e a precisão psicológica.

Graciliano é muito econômico na narração dos acontecimentos, preferindo descrever de maneira indireta as emoções dos seus personagens (quase sempre com problemas de relacionamento e com dificuldades para externar suas emoções) e as situações do que expor os fatos. Com isso, cada conto se torna mais uma trama de cunho psicológico do que uma explanação factual. Há pouquíssimos diálogos nas tramas (quando há, eles são monossilábicos e pouco representativos). A sensação é que cada personagem vive uma vida solitária, completamente desvinculada dos demais. Parece que estamos lendo um testemunho (a maioria das histórias é em primeira pessoa). O livro tem, assim, certo ar documental.

Talvez tenha sido exatamente essa a intenção de Graciliano Ramos: demonstrar todo o seu incômodo em relação à vida com uma narrativa opressora e angustiante. E nada mais natural do que transmitir essa sensação provocando-as no leitor. A história que abre o livro, “Insônia”, por exemplo, é um belo conto. Descrevendo, em primeira pessoa, os pensamentos de um homem que sofre para dormir à noite, acabamos sendo jogados para a cama com aquele indivíduo. Somente quando compreendemos as angústias do sujeito, passamos a entender suas ações. Todas as suas frustrações e moléstias são sentidos por nós, leitores.

Um ponto interessante da obra é a mudança de cenário. Dessa vez, Graciliano Ramos abandona o sertão para abordar a cidade. Quase todas as tramas são ambientadas na região urbana (provavelmente o Rio de Janeiro, cidade onde o escritor morava naquele momento). Assim, temos uma nova perspectiva do autor, que ficou exatamente conhecido por retratar o cenário rural e sertanejo.

Fontes:
Amazon
– Trechos da resenha de Ricardo Bonacorci, disponível em Bonas Histórias