sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 4


CONFITEOR


Sinto que não sou mau, nem tampouco sou bom.
Sou o que posso ser, igual aos homens todos.
Na ribalta da vida, entre aplausos e ápodos*,
canto salmos a Deus e salvos a Mamon!

Como o lírio que exsurge alvo e puro de lodos,
de eco simples que fui, tento chegar a som.
Sou um tanto Marat e outro tanto Danton,
um misto de Platão com vândalos e godos!

Não sou bom nem sou mau. Sou apenas humano.
Entre o instinto e o ideal, o sagrado e o profano,
minh’alma conturbada e atônita, vacila...

Por sentir que, afinal, em síntese perfeita,
para o Céu, que desejo, a porta é muito estreita,
para o Inferno, que temo, é muito longa a fila!
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* ápodos = gracejos, chalaças, zombarias.
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DEUS E O HOMEM

Do nada Deus fez Tudo a Seu critério e jeito:
o céu, a terra, o mar, o rio, a várzea, o monte,
as serras colossais que azulam no horizonte,
tudo fez o Senhor e viu que era perfeito!

Veio o homem, porém, e em tudo achou defeito.
Fez o muro e o curral; cercou o pasto e a fonte;
pôs esquadras no mar e sobre o rio a ponte,
e fez do egoísmo lei, da força fez Direito.

A marca de Caím foi-lhe estampada à testa.
Ventura já não tem, de Deus pouco lhe resta,
perdido das paixões no báratro* profundo...

Pelas leis naturais é de ninguém a terra!
Um só dia de paz vale as glórias da guerra,
um minuto de amor cura os ódios do mundo!
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* báratro = abismo.
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ENTRE O CÉU E O INFERNO

Já era o mundo mau antes do cataclismo
oriundo do Céu, que destruiu Sodoma...
Veio a Assíria depois - a fera que ninguém doma-
entre os homens e Deus mais alargando o abismo!

Na Grécia de Platão, a cicuta e ostracismo.
A pompa imperial dos Césares de Roma.
Entre Meca e Medina o alfange da Mafoma,
e as mil perseguições contra o Cristianismo.

Sempre o ódio e o terror, a vilania, o crime!
E o ouro que abastarda, e miséria que oprime,
tudo em nome do Bem, pela glória do Eterno...

E assim os homens vão sobre a face da Terra,
entre os hinos da Paz e os tambores da Guerra,
de olhos fitos no Céu, a caminho do inferno!
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VERSOS A UM POETA

Sufoca a tua dor! Cala o teu desalento
e mostra-te feliz, sem que no entanto o sejas.
Que não saibam, jamais, das íntimas pelejas
que te fazem perder todo o contentamento!

O que importa é sorrir em meio ao sofrimento,
levando o bom humor por onde quer que estejas.
Quanto gente, afinal, sem ter o que desejas
vive alegre e feliz como palmeira ao vento!

Deixa a vida correr sem mágoas e pesares,
como o altivo condor que desafia os ares
e fende o espaço azul das celestes planuras...

Como poeta és rei de um reino de magias!
Transforma, pois, em riso as tuas agonias
e em poemas de amor as tuas desventuras!
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VERSOS E ESTRELAS

Há no murmúrio humilde de um regato,
ou na fúria do mar que se escapela,
a mesma força poderosa e bela
que vibra exata, num sentido exato!

É da divina essência um substrato
Tudo o que a natureza nos revela.
Da rosa de Istambul à flor singela,
desde o condor ao sabiá do mato!

Do Eterno Ser tudo provém e emana.
Da pedra bruta à inteligência humana
tão só quem as criou pode entende-las.

Pois sendo Deus o Artista do Universo,
bem mais depressa do que escrevo um verso
compõe, no céu, Lusíadas de estrelas!

Fonte:
Athos Fernandes. Ofir. 1977.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.

Milton S. Souza (Loucuras do amor)


Tudo tem limite. E ela já vinha ultrapassando todos os limites há bastante tempo. Abraços longos e apertados que mexiam com os meus sentidos. Beijos no rosto, mas tão pertinho dos lábios que eu até podia sentir o gosto do seu batom. E mãos atrevidas que deslizavam por todos os caminhos do meu corpo, numa brincadeira infernal e audaciosa. E eu sempre  puxando o freio: afinal, ela era minha grande amiga, uma mulher casada e, para aumentar a distância, muito mais jovem do que eu. Mas tudo tem limite. Naquela noite, ela chegou sem avisar. Eu estava sozinho no escritório, trabalhando com a porta fechada por causa do calor e do ar condicionado ligado. E ela já entrou passando a chave na porta. Pela primeira vez, me premiou com um longo beijo na boca. O resto aconteceu ao natural...

O velho sofá serviu de leito para a nossa primeira noite de amor. Depois das cortinas fechadas, nos livramos rapidamente das roupas e mergulhamos naquela tão inesperada (ou esperada?) aventura. Uma tempestade de desejos soprou forte e levou para longe alguns raros receios que ainda permaneciam nos nossos corações. E nos entregamos totalmente, como se fôssemos dois adolescentes saboreando as loucuras que as nossas mentes inventavam e desinventavam. O tempo parou. E nós nos descobrimos depois, muitas horas mais tarde, ainda abraçados, como se os nossos corpos estivessem tentando manter para sempre a magia daquele instante. Em silêncio, nos vestimos e permanecemos de mãos dadas, olhos nos olhos, tentando dizer com o olhar tudo aquilo que as nossas palavras não conseguiam...

Esta foi a nossa primeira vez. Depois disso, vieram muitas outras. E sei que muitas outras ainda virão. Tenho certeza disso, porque o meu coração sempre muda de ritmo quando ela chega pertinho de mim. E quando nos abraçamos, sinto que o coração dela também está batendo apressadamente. É claro que sabemos os riscos que estamos correndo, pois este amor que inventamos para nós é proibido aos olhos do mundo. É por isso que vamos mantendo as aparências e agindo sempre como velhos e bons amigos. Mas naquelas horas em que conseguimos nos livrar de tudo o que nos rodeia, quando conquistamos alguns momentos só para nós dois, repetimos novamente, e com mais força ainda, todas as loucuras daquela primeira vez. E quando, por fim, nos separamos, já ficamos contando os dias, as horas e os minutos que faltam para que a gente possa estar novamente nos braços um do outro, para trocar e multiplicar este amor tão louco e tão nosso.

Exposição de Poesia e Fotografia "O Jardim da Felicidade" (Em Curitiba, 6 de novembro)

 

Em 06 de novembro (domingo), a partir das 10h30m, na Feira do Poeta de Curitiba (rua Coronel Eneas, 30, Largo da Ordem), será inaugurada a exposição de Poesia e Fotografia "O Jardim da Felicidade".  

Participam  poetas e contistas da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia), Sheina Lee Leoni Handel (Presidente), Elciana Goedert (Vice-presidente), Daniel Mauricio, Primeiro Secretário, Decio Romano, Segundo Secretário, e a Conselheira  Isabel Furini.

Os acadêmicos da Avipaf também foram convidados para participar do evento.

Enviaram poemas ou minicontos para a exposição: José Feldman e Maria Antonieta Gonzaga Teixeira, Luciano Dídimo. Solange Rosenmann, Amaury Nogueira, Devora Dante, Miriam Maria Santucci, Maria da Glória Colucci,  Marli Terezinha Andrucho Boldori, Rita Delamari, Atilio Andrade, Vanice Zimerman Ferreira, Igor Veiga,  Ilario Ieteka, Sonia Cardoso, Vera Lucia Cordeiro.

Elciana Goedert terá a seu cargo a organização do evento e do Sarau.  Daniel Mauricio será o Mestre de cerimônias. As fotografias que farão parte da exposição, são do poeta e fotógrafo Decio Romano. Na inauguração serão lidos e declamados poemas da exposição e de autoria dos participantes. A poeta Elciana Goedert convidará a todos os presentes para participar desse Sarau lendo ou declamando poemas.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Alcântara


Nas docas, as velhas fragatas e as canoas foram substituídas por veleiros e iates e os antigos armazéns do peixe recebem, agora, a visita dos notívagos da Capital. Mas, pelas vielas mais interiores, a Alcântara castiça – do Tejo e do Fado – continua a tentar resistir.

UMA PONTE DE CULTURAS

Uma “ponte” tinha de marcar o destino deste populoso bairro lisboeta. Na verdade, o seu nome vem do árabe e “Alcântara” significa ponte. Essa tal ponte fazia a ligação entre duas margens de uma ribeira que corria sob o que hoje é a Avenida de Ceuta, desaguando no Tejo.

Curiosamente, nos nossos dias, Alcântara é marcada por uma outra ponte: a ponte 25 de Abril. Alcântara foi local da batalha perdida por D. António Prior do Crato contra as tropas castelhanas, em 1580. E foi, a partir do início da expansão ultramarina, lugar procurado pelos monarcas e fidalgos. Primeiro, como ponto de passagem para Belém. Mais tarde, porque acharam ali locais privilegiados para casas de campo e centro de caçadas.

Foram, então, surgindo os principais edifícios do sítio que viria a ser o bairro popular e operário que conhecemos. Foi o caso do Palácio Real (no Calvário), da Igreja das Flamengas, dos Conventos do Calvário e do Livramento, da belíssima Capela de Santo Amaro, assim como o Palácio das Necessidades. Alcântara, cujas águas cristalinas terão atraído os povoadores, estava repleta de hortas, azenhas, e sulcada de vinhedos.

A Revolução Industrial trouxe-lhe a implantação de fábricas e de muitas habitações para os respectivos trabalhadores, transformando Alcântara num bairro operário e marinheiro. Ali se instalou uma das primeiras escolas industriais do país, a “Escola Marquês de Pombal”. Também ali, a rainha D. Amélia criou um dispensário, a partir do qual se iniciou a campanha contra a tuberculose em Portugal.

Alcântara participa das marchas desde 1932, com o patrocínio de SFAE – Sociedade Filarmónica Alunos Esperança, sediada neste bairro, na Rua de Alcântara. Devem-se à SFAE alguns dos grandes nomes do teatro amador, bem como de artistas que representam a coletividade na Grande Noite do Fado, organizada pela Casa da Imprensa. As suas atividades desportivas, em várias modalidades, constituem uma ocupação dos tempos livres dos jovens residentes no bairro, destacando-se o tênis de mesa, tendo a SFAE organizado o 1º torneio de Lisboa.
 
MARCHA DE ALCÂNTARA
“Alcânt’ra é diferente”

Música de Constantino Menino
Letra de Martinho da Silva

“Que linda Alcântara
Vem hoje a desfilar
Bonitas vão
As suas carvoeiras
Lisboa, Lisboa
Alcânt’ra sabe a mar
É moça gaiata
Nos gestos e maneiras.

Seus olhos são fogo
Que aquece o coração
calor que’spalha
Pelas ruas da cidade
Certinho compasso
Tem a sua canção
Alcânt’ra que canta
Lisboa sem idade.
(Refrão)

Olhai
Olhai p’rás carvoeiras
Alfacinhas brejeiras
Gaivotas a voar
Cantai
Cantai com o coração
Os tempos que lá vão
D’Alcânt’ra à beira mar.

A noite é de festa
Meu bairro é Alcânt’ra
Alcânt’ra é Lisboa
Alegre e sorridente
Voando, voando
A marcha que encanta
É mais popular
Alcânt’ra é diferente.

Na garganta o cantar
Do arrais pelo convés
Cantigas de amor
São trovas feitas ao Tejo
Bela carvoeira
traz ondas das marés
a alma se acalma
Lisboa ao dar-lhe um beijo”.
(Refrão)
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 17

 

Álvaro Posselt (Diário de Instantes) 1


a letra A tremeu na base
ao topar com outro A
teve uma crÀse
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Aqui tudo pode
Até a cabra
fica de bode
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A vida é o agora
Se alguém chegar atrasado
vai ficar de fora
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A vida não tem fim
Entre túmulos e flores
uma caveira acenou pra mim
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Curitiba não nos poupa
Ontem eu tomei sorvete
Hoje eu tomo sopa
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Escrever sem consulta
O bom é obedecer
à norma oculta
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Esta vida é um mistério
Perto da maternidade
também tem um cemitério
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Eu juro de pé junto
Com o calor na capela
suava até o defunto
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Gritei na caverna
Lá dentro
meu grito hiberna
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Inteligência não me falta
Veja como é elevado
o meu QI em caixa alta
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Literatura clássica
Seu Zé tenta ler a lista
da cesta básica
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Meu Deus, que desânimo!
Hoje quem vai trabalhar
é o meu heterônimo
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Meu violão me intriga
Morre de tanto rir
quando lhe coço a barriga
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Não cresceu com fermento
Para o pão ficar grande
usei lentes de aumento
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Não se empolgue
Na minha feijoada
só a orelha do Van Gogh
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Nas entrelinhas
destas linhas
só há estrelinhas
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Ninguém me liga
nem desliga
Ando meio stand by
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Nossa relação é quente
Toda noite na cama
um gato entre a gente
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Páginas do orkut
Essa tal de gramática
naum c diskut
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Para não perder o clima
peguei o verso de baixo
e rimei com o de cima.
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Pode ser a métrica
Para moldar estes versos
só com serra elétrica
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Reunião de família
Os ponteiros se ajustam
com o horário de Brasília
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Sentado no banco
o gato finge
que é uma esfinge
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Traiçoeira
Só dorme com o machado
Livro de cabeceira
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Fonte:
Álvaro Posselt. Tão breve quanto o agora. Curitiba: Blanche, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Malba Tahan (9a. Narrativa das Mil Histórias sem Fim)


Meu nome é Sind Mathusa. Poucos homens têm havido, na Índia, mais ricos do que meu pai e não sei de um só que o excedesse em inteligência, bondade e prudência. Sentindo-se, certa vez, assaltado de grave enfermidade, e na certeza de que os dias que lhe restavam na vida podiam ser contados pelos dedos da mão, meu pai chamou-me para junto de seu leito e disse-me:

— Escuta, ó jovem desmiolado! Atenta bem no que te vou dizer. És pela lei o herdeiro único de todos os bens que possuo. Com o ouro que te vou deixar poderias viver regaladamente, como um rajá, durante duzentos anos, se a tanto quisessem os deuses prolongar a tua louca e inútil existência. Como sei, porém, que és fraco para resistir aos vícios, e forte em seguir os maus exemplos, tenho a triste certeza de que muito mal empregarás a riqueza que vai em breve cair-te nas mãos. Quero, assim, fazer-te agora um pedido: se for atendido morrerei tranquilo e não levarei para a vida futura o tormento de uma angústia.

— Dizei-me, meu pai — respondi —, qual é o teu desejo. Quero ser mais repelente do que um chacal se deixar de cumprir a tua vontade!

— Meu filho, quero arrancar de ti um juramento. Vês aquele turbante cinzento que ali está? Vais jurar pela imaculada pureza dos ídolos e pelas asas de Vishnu (1) que se algum dia te sentires desonrado procurarás imediatamente a reabilitação que a morte concede aos infelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Jurei pelos ídolos e pelos complicados deuses da Índia que se me visse, no futuro, ferido pela mácula da desonra, procuraria a morte ao enforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fechando os olhos para a vida, integrou-se no Nirvana. Vi-me, de um momento para o outro, senhor de inúmeras propriedades, das quais auferia uma renda que chegava a causar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossa província. Passei a ostentar uma vida de luxo e dissipações; rodeavam-me, dia e noite, falsos amigos e bajuladores da pior casta que me induziam a praticar toda a sorte de leviandades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa, como habitualmente o fazia, em grande festa, vários e divertidos companheiros da nossa laia, um deles chamado Ishame, que adquirira considerável riqueza vendendo camelos e elefantes, convidou-me para uma partida de jogo de dados. A princípio a sorte me foi favorável; cheguei a ganhar num golpe o meu peso em marfim. Cedo, porém, perseguido por uma triste fatalidade, entrei a perder e os meus prejuízos excederam de mais de cem vezes o lucro inicial.

Com a esperança de recuperar o dinheiro perdido redobrei as paradas. Perdi novamente. Na progressiva loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nos azares da sorte as minhas joias, escravos e propriedades. Mais uma vez perdi, e ao nascer do sol sobre o Ganges nada mais me restava da herança de meu pai. Na certeza de que poderia contar com a generosidade e auxílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a garantia da minha palavra, uma grande dívida de honra, ao perder a última partida.

Procurei um jovem brâmane, filho de opulenta família e que sempre vivera a meu lado, no tempo da fartura, e pedi-lhe que me emprestasse algum dinheiro.

— Meu caro Sind — disse-me o brâmane conduzindo-me para o interior de sua rica vivenda —, chegas em péssima ocasião. Fui obrigado a enviar ontem, para resgatar uma dívida de meu pai, cerca de duas mil rúpias para Benares. Encontro-me inteiramente desprevenido. Lamento, portanto, não poder servir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavam por todos os recantos de sua casa. Havia narguilés riquíssimos e bandejas com inscrições que deviam valer alguns milhares.

— Nada disso é nosso — acudiu logo o brâmane, apontando para os adornos e enfeites. — É desejo de meu pai casar minhas irmãs com homens de boa casta, e para atrair os pretendentes alugou toda essa prata e esses tapetes bordados a ouro. Todos acreditam, desse modo, que somos ricos e que vivemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso amigo, disse-lhe com calculada frieza:

— Bem sabes que sou descendente de nobres e que meus avós pertenciam à mais alta linhagem da Índia. Declaro, pois, que para fugir da situação em que me encontro, estou disposto a casar com uma jovem fina e educada. Peço, pois, a tua irmã mais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:

— Pedes em casamento uma jovem que não conheces e que talvez não te aceite para esposo. Em nossa família os casamentos não são ditados pelos interesses pessoais; a mulher deve ser ouvida e suas inclinações pessoais levadas em linha de conta. Se desejas pagar dívidas de jogo com o dote de minha irmã mais moça, sinto dizer-te que estás equivocado, jamais aceitaria, como cunhado, um homem que se arruinou em consequência de uma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palácio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, não desanimei. Fui ter à casa em que morava um mercador chamado Meting, que era assíduo frequentador de minha mesa. De mim havia Meting recebido inúmeros obséquios e finezas, e muito dinheiro para ele eu perdera no jogo.

— Que desejas de mim? — perguntou-me. Disse-lhe que precisava de pequeno auxílio.

— Julgas que eu sou algum imbecil da tua espécie? — respondeu-me. — De mim não terás nem um thalung (2) de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por todos, e sem recursos para pagar o imenso débito que contraíra, abandonei o palácio e fui ter a um grande bosque nas vizinhanças da cidade. Era meu intento cumprir o juramento que formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belíssima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-me em um dos galhos mais altos, desenrolei o longo e belo turbante cor de cinza, amarrei uma das suas extremidades em outro galho que estava a meu alcance e fiz na outra extremidade um laço seguro em torno do pescoço. Todos esses preparativos trágicos executei-os com a maior calma, sentindo, embora, o coração opresso pela mais imensa tristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quando, ao reforçar o laço fatal que me estrangularia, notei que havia na ponta do turbante, por dentro, qualquer coisa de muito resistente. Que seria? Na esperança louca de encontrar ali qualquer coisa que me pudesse salvar, rasguei o turbante. Embora pareça incrível, senhor, devo contar: de dentro dele retirei uma carta de meu pai redigida nos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento. Vai à casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva por um milagre da desonra e da morte deve evitar o erro e procurar o caminho reto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase a correr fui ter à choupana onde morava o pobre Kashiã, apelidado “o tecelão”; recebi das mãos desse pobre homem a lembrança que meu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei, tão grande foi o meu assombro. Estava repleta de brilhantes, pérolas e rubis — alguns dos quais valiam mais que as coroas dos príncipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não soube dominar a tensão de que fui presa e chorei. Lembrei-me de meu bom pai, sempre generoso e prudente, que ao prever a minha desgraça usara daquele artifício para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter a caixa com auxílio da carta, e a existência desta só chegaria ao meu conhecimento se o turbante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo ao fundo do qual se atirara, assim me vi naquele momento. Depois de lançar aos pés do velho Kashiã um punhado de preciosas gemas, tomei a caixa e encaminhei-me para a cidade. Era minha intenção pagar todas as minhas dívidas e readquirir as minhas antigas propriedades. Quis, porém, a fatalidade que tal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bosque nas margens do Elir, encontrei sentada sob uma grande árvore uma jovem de deslumbrante formosura. Os seus olhos azuis tinham um pouco do céu da Índia com os reflexos mais verdes do mar de Omã. As faces eram como as da terceira deusa do templo de Yhamã. Os lábios da linda criatura tinham um encanto a que talvez não pudesse resistir o faquir mais puro e mais santo da terra. Com essas comparações não exagero a beleza da desconhecida; ao contrário, fico muito aquém da verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravam em ondas de indizível angústia.

— Que tens, ó jovem? — perguntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. — Qual é o motivo do teu pranto? Se para o teu mal há remédio, dentro dos recursos humanos, certo estou de que saberei livrar-te de qualquer desgosto!

Isso eu dizia tendo sob um dos braços a preciosa caixa, cheia de cintilantes pedras que me dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, a jovem olhou com surpresa para mim, segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe caía sobre os ombros, e, puxando-o para o lado, deixou a descoberto o colo e os braços mais alvos, ambos, do que as penas das garças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliz tinha as duas mãos cortadas junto aos pulsos!

— Ó desditosa criatura! — exclamei, a alma oprimida pela maior angústia. — Qual foi o bárbaro autor de tamanha crueldade? Conta-me a causa de tua desgraça, e fica certa de que poderás armar o meu braço com o ódio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:
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continua…
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Notas
1 Vishnu = Uma das muitas formas que os hindus atribuem às divindades. Vishnu é representadopor dez formas diferentes.
2 Thalung = moeda de ínfimo valor.


Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.

Jaqueline Machado (Joana D'arc: a guerreira menina, mulher)


Ela nasceu como nascem todas as crianças. Veio ao mundo para ensinar como se vive, para ensinar como se batalha.

Ó Joana, criança querida, que por meio dos seus pensamentos, com os anjos conversava. E conversava porque sabia ouvir o seu destemido coração. Na sua breve juventude foi chamada para defender seu povo e com bravura seguiu o seu destino.
 
Tinha Joana, doce menina, que expulsar os ingleses que estavam tomando uma terra, uma pátria, uma história que não lhes pertenciam. Costume comum dos homens da Terra, desejar vitória por meio de ganância e conflito. Mas Joana não pensava assim. Foi feita de coragem, esculpida de estratégia para a justiça servir. Procurou a ajuda de um experiente guerreiro, que devia enviá-la até o Delfim. Mas ele não confiou na sua missão e, de princípio, negou apoio. Mas passados alguns dias, vendo os arredores de sua aldeia sendo sitiados pelos invasores ingleses, chamou por Joana, lhe deu cavalo, armadura e uma carta para ser entregue a Delfim. Chegando ao destino, ela contou de sua missão e o Delfim concedeu uma tropa para vencer o povo inimigo, devolver a coroa ao seu rei e libertar o seu povo.
 
Aos 18 anos, a menina se fez guerreira. Uma guerreira que protegeu o seu próprio rei e que foi capaz de derrubar as estratégias dos renomados generais para colocar em prática as suas, e com seus guerreiros vencer os quase invencíveis ingleses. Libertou Orleãs e viu o Delfim receber de volta a coroa que um dia foi a ele confiada, e que por suas dispersões a deixou cair no chão para que o inimigo a apanhasse e brigasse por ela como se tivesse algum direito.

A festa da coroação marcou um grande momento de glória da menina valente, que amou e confiou por inteiro na sua trajetória. Pouco depois Joana foi pega por Borgonheses, inimigos que a venderam para os ingleses e que a aprisionaram. Mesmo presa, ela continuou firme, certa de que tudo seria como deveria ser. Dali saiu para o tribunal. Na tribuna foi acusada por supostas práticas de bruxaria. Os juízes, a ela perguntaram três vezes qual era o seu pacto com o demônio. E por três vezes Joana acendeu a chama do seu coração dizendo que não tinha pacto algum com o mal. Era a sua chance de liberdade.

Porém, ao ouvir a sua sentença de morte, humanamente se viu numa enorme agitação. E com a sua voz doce disse que confessaria o que desejassem. Joana, sufocada em meio a tanta impiedade e injustiça. quase desistiu da luta. Mas os seus anjos não a abandonaram. E em verdade nem ela tinha os abandonado. Voltou atrás e se entregou à justiça.

Com os olhos fixos a uma cruz, incorporou o seu corpo às chamas de uma fogueira em plena praça. E naquelas chamas, renasceu. Joana que na ocasião em questão tinha apenas 19 anos, podia fugir e viver sua juventude, não fugiu. Persistiu, defendeu seu povo dos invasores. Ela que pelo fogo renasceu para todo sempre ser: Joana D'Arc, a guerreira menina, mulher!

Fonte:
Texto enviado pela autora.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Isabel Furini (Poema 35): A gatinha malhada e a idosa

 

Francisco Pessoa (A Menina e sua máquina)


Vivíamos um maio da década de sessenta. Não sei se 1962 ou 1963. A idade já me embaça a memória.

Carolina, uma taciturna menina-moça, tinha como hobby a arte de fotografar. Um vistoso diploma de curso de fotografia por correspondência — talvez pela importância que ela desse ao mesmo —, era o único enfeite de paredes que tinha em seu quarto. Aluna do curso ginasial, destacava-se entre os colegas por sua aplicação nos estudos. Em toda solenidade de encerramento do ano letivo, abiscoitava uma medalha de ouro. Já se somavam quatro que ela guardava com cuidado extremo, envolvendo-as numa flanela, escondendo-as da ação oxidante da temida maresia que se alastra por todo o Mucuripe.

Dois anos haviam passado que ela iniciara um tratamento clínico para controlar uma enfermidade cardíaca tipo congênita. Talvez o seu jeito reservado de ser se justificasse por isso. Sentia-se em plena felicidade quando nos finais de semana empunhava sua máquina e pegava carona no vento em busca de uma folha morta que flutuasse a esmo ou, quem sabe, de uma borboleta mesmo das não tão belas mas que se mostrasse repousando sobre uma linda flor. A morte e a vida eram fielmente registradas pelas lentes da sua Olympus.

A cada dia, aos menores esforços, um cansaço se fazia mais presente, tomando-lhe as rédeas do seu estado de saúde e de espírito. Ou seria, através da extensão do telefone, uma conversa entre seu médico assistente e sua mãe, Dona Allzira. Fez questão de abaixar o fone quando um ilativo "Só transplante" feriu seu tímpano e ecoou, magoando o âmago do seu ser.

Não frequentava mais a escola, a laureada aluna campeã de notas. Enclausurava-se. Abatida, esperava resposta para os seus insistentes "porquês" endereçados a Deus. Certo domingo, talvez o derradeiro, ombreou sua Olympus e, a passos lentos, tomou o rumo do vasto campo junto à sua casa em busca da foto tirada no momento certo, aquele em que uma folha se desprende do caule e voa e cai, assim como a borboleta que perdeu as asas.

No dia seguinte, partiria no momento certo, sem sua máquina.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXV


A água que dá vida aos rios
e ao mar, forma de oceano,
pode causar arrepios
no indefeso ser humano.
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A idade não vem sozinha,
sempre vem acompanhada,
bem vestida, tal rainha,
mas na essência, esfarrapada.
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As plantações não garantem
colheita farta e serena,
a menos que todos plantem
sementes de vida plena.
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A vida, Deus o homem veste
e uma advertência lhe faz:
– Da terra, um dia vieste
e à terra retornarás...
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Do teu papel, não te abstenha
de exercê-lo com orgulho,
embora o que desempenhas
só tenha papel de embrulho.
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Entre mistérios e enigmas
o homem se encontra repleto
e por não ter paradigmas,
segue um eterno incompleto.
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Fruto de longa amizade,
a amarga dor incontida,
resultado da saudade
que fica após a partida.
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Mata à dentro ou campo a fora,
mata e preda, o caçador,
por que não deixar a flora
com fauna e sem predador?
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Na terra, tal passarinho,
o homem voa em liberdade,
seu fim: construir um ninho,
nos ramos da eternidade.
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Ninguém nasceu para a morte,
mas essa o mundo lhe deu
vida, sempre um grito forte,
que nunca, o fraco escondeu.
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Ninguém parta sem destino,
ou temer nunca chegar,
seja mais que um paladino,
alguém sempre a labutar.
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No contexto da razão,
toda emoção se rebela,
por saber que a decisão
poderá não ser a dela.
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No inverno, pela invernada,
sob um tenebroso frio,
cobre a relva, a alva geada
e o bafo vindo do rio.
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Nunca menospreze as flores,
nem delas tenha ciúme,
Deus ao conceder-lhe as cores
também lhes cede o perfume.
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O homem cria muitas lendas
revestidas da verdade,
que não passam de legendas,
sem qualquer profundidade.
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Ouvindo a chuva incessante
caindo sobre o telhado,
lembra o campo verdejante
sendo por ela molhado.
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Pomos muralhas nas terras
temendo o bicho feroz,
não sei se os bichos são feras
ou, se as feras somos nós.
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Quando na comunidade
partilhar se torna um fato,
com certeza, à humanidade,
será dado outro formato.
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Quem teu gesto interpretar
que o faça com discrição,
para não se equivocar
na sua interpretação.
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Queres conhecer alguém?
Concede-lhe algum poder!
Verás, mais do que ninguém,
quem procuras conhecer.
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Se à dor faltam atenções.
pode a tensão se acirrar.
E a melhor das soluções
é impedi-la a conspirar.
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Se os ventos sopram trapaça,
e no campo há espessa bruma,
segue em frente e jamais faça
das caminhadas, mais uma.
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Se um quarto estiver trancado
nem hesite em vê-lo abrindo,
porque nele, sossegado,
pode alguém estar dormindo.
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Tem medo o homem ao partir,
mais temor sente ao voltar,
lembrando que ao repetir
volta à tona a dor de andar.
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Uma alternativa apenas
tens de mostrar teu valor,
é fazer de obras pequenas
enormes gestos de amor.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Ajuda


No topo de uma das colinas de Lisboa encontra-se o bairro da AJUDA . Entre a fresca brisa do Tejo e os rumores das árvores do Monsanto. Ruelas castiças e casario simples que tornam o bairro um dos mais agradáveis da capital.

Outrora, considerada arrebalde de Lisboa, e caracterizada pela floresta e pela atividade pastorícia, a Ajuda ficou, desde cedo, ligada à realeza, transformando-se numa zona onde se misturavam as residências aristocráticas e as moradias populares. Segundo a lenda, a Ajuda começou a ser povoada quando se espalhou a notícia de uma aparição da Virgem a um pastor que lhe tinha pedido ajuda. Os devotos chamaram-lhe Nossa Senhora da Ajuda e a Rainha Catarina, mulher de D. João lll, mandou erigir uma ermida no local da aparição.

A freguesia nasceu no século XVl, com características tipicamente rurais. Rebanhos e pastores deambulavam por aqueles campos e os moinhos davam um cunho particular à paisagem. Foi D. João V quem procedeu à aquisição de três quintas na zona de Belém. Passando, assim, a pertencerem à Coroa muitas das terras que hoje cercam a Calçada da Ajuda. Porém, só com D. José l se fixaria ali uma morada real, devido ao terremoto de 1755. O monarca levou um susto com os estragos no Paço da Ribeira e mandou construir uma morada em madeira, mas esta não resistiu e cedeu. Em 1802, foi mandado construir o Palácio da Ajuda. E tão majestoso era o projeto que, do plano primitivo, só foi construída uma das suas quatro fachadas.

Atualmente, é nos seus esplêndidos salões que se realizam os grandes banquetes e festas oferecidos pelo Chefe de Estado ao corpo diplomático ou a outros visitantes oficiais. Ao lado do palácio, ergue-se o “Galo da Ajuda”, torre sineira cujo relógio começou a trabalhar em 1776. Foi também depois do terremoto que o Marquês de Pombal mandou plantar o Jardim Botânico, o primeiro de Lisboa, datado de 1768. Neste espaço foram plantadas espécies vegetais desconhecidas da população citadina e que suscitaram a curiosidade de vários investigadores. Hoje, o jardim está sob os cuidados do Instituto Superior de Agronomia.

Desde 1934, o Ajuda Clube assumiu a responsabilidade pela organização da marcha popular da Ajuda, que é ensaiada no Pátio do Bonfim. É também neste pátio que se realiza, todos os anos, o arraial. Um acontecimento que já é característico das populações locais. O Ajuda Clube foi fundado em 22 de Outubro de 1912. A sua sede situa-se na Rua do Jardim Botânico, nº 02 e, ao longo dos anos, tem desenvolvido atividades na área do desporto e da cultura, merecendo especial referência o “caratê”, o futebol de salão, a dança jazz, o tênis de mesa e o grupo de teatro.

MARCHA DO BAIRRO DA AJUDA

Letra de Raúl Ferrão
Música de Raúl Ferrão

“Ajuda bairro modesto
Mora na parte mais alta
Dava da grandeza o gesto
Se tivesse o resto
Que ainda lhe falta
Se um dia a sorte muda
Adeus brilhante passado
Nem há esperança que o iluda
Se o bairro da Ajuda
Não for ajudado.

Não faz bem quem se demora
Nem quem vai cedo demais
Sei que vais à Boa-Hora
Mas vê agora
A que horas vais.
Passas ao pátio das Damas
E p’las Damas perguntas
Elas sabem que as não amas
Se por uma chamas,
vêm todas juntas.

Quem passar pelo Cruzeiro
E cruzar com os olhos teus
Acautele-se primeiro
Que há jogo matreiro
Nesses dois judeus.  
Quando vou p’lo miradouro
Ponho-me a mirar a rua
Não há por meu desdouro
Para meu namoro
cara como a tua.
(Refrão)

Ajuda é sempre bairro da alegria
Que a luz dia primeiro beija
Aonde a mocidade a golpes de vontade
Defende aquela graça que o bafeja
Conservar uma beleza primitiva
É tão altiva
que em nada muda
Seu nome anda a mostrar
Que é mau quem se gabar
Que nunca precisou ter uma ajuda “.

Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

Nilto Maciel (À Beira do Cais)


A lua bruxuleava nas ondas. Alfonso não parava de fumar, e a luz do cigarro às vezes semelhava outra lua. Figuras de contornos vagos surgiam e desapareciam nas águas. Sereias ou iemanjás. Quando apareceu Maria. Pediu cigarro e propôs beberem. “Besando al marinero que te quiere mármol amante nadador y puro, que por ti rasga el mar y en ti se muere.” Ela riu e gargalhou. Ora, não esperava conhecer naquela noite um estrangeiro.

Há muito tempo Alfonso Ordóñez se dedicava aos irmãos Pinzón. Acreditava em suas descobertas. Sobretudo no descobrimento do Brasil por seus compatriotas.

No bar pediu para sentar-se voltado para o mar, o cais. Ali, no Mucuripe, há 458 anos, Vicente Yáñez Pinzón plantou uma cruz. Maria riu de novo. Ora, tinha um irmão também chamado Vicente. Coitado, havia morrido. Plantaram-lhe uma cruz no lugar onde o mataram. A lua beijava o mar. A melodia das águas embalava os olhos de Alfonso. “!Rómpete, luna! En diez espejos rota...”

Chegado de Madri há poucos dias, Ordóñez planejava conhecer todo o litoral cearense, Aracati, o cabo Santa Maria de la Consolación e, sobretudo, pisar e fotografar a ponta do Mucuripe, o Rostro Hermoso, exatamente onde estiveram Vicente Pinzón e Diogo de Lope. No rádio um locutor driblava a língua com Garrincha, rolava bolas com Mazola, em delírio com Didi, êxtase nos pés de Pelé. No entanto, Maria bebia muito e anunciava o fim da noite. Junto ao bar havia uns quartos, e cama, sossego e banho. Pois, logo mais, José, seu homem, ressurgiria.

Alfonso bebia e falava, o tempo todo, de navegadores de antigamente. Escrevia um livro monumental — O Descobrimento do Brasil pelos Espanhóis.

Bêbados gritavam “Brasil, Brasil”. Mulheres pediam bebidas e se enroscavam nas pernas dos homens. Uma delas se pôs a dançar. Queria música. O jogo havia acabado. O dono do bar pôs um disco na vitrola: “Dolores Sierra vive em Barcelona à beira do cais”. Maria falava de dinheiro. Quanto o gringo lhe daria? Pois José não se conformava com ninharias. Chegava a surrá-la, quando ela não conseguia bom dinheiro.

Nas ondas do mar a lua bruxuleava ainda. Alfonso bebia e fumava e falava da cruz plantada por Pinzón. Ali, no Mucuripe, há 458 anos. No entanto, a seleção brasileira de futebol caminhava para a conquista da Copa do Mundo. “Viva o Brasil!”.

Maria não queria mais saber de antiguidades nem de futebol. Precisava ir logo para o quarto. José não gostava de muita conversa. Gostava dela, sim, porém do seu dinheiro também. Dolores Sierra um dia partiu para conhecer Dom Pedrito, que prometeu e não cumpriu. Aqui e ali ainda estouravam artifícios de fogo. Mulheres pediam bebidas aos homens. Os garçons corriam para lá e para cá. “Brasil, Brasil”. Dolores Sierra sorriu para um homem e ganhou a primeira peseta. Alfonso Ordóñez ria, de olho na lua. “Rostro Hermoso. ¿Qué mar hubiera sido capaz de no llorarte?”

E então Maria estremeceu. À porta do bar um vulto se plantou na penumbra, feito uma cruz de horror.
= = = = = = = = = = =
N.A.: Os versos em espanhol são de Rafael Alberti, extraídos dos poemas “Narciso”, “El arquero y la sirena” e “Platko”, todos de Cal y Canto.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Varal de Trovas n. 571

 

Filemon Martins (Traquinices de Menino)


Quando meu pai se transferiu com a família da Vila de Morpará para Ipupiara, eu tinha apenas 7 anos de idade. Morpará fica às margens do Rio São Francisco e Ipupiara, antigo Jordão de Brotas, fica mais para o agreste da Chapada Diamantina. Criança, não foi difícil minha adaptação à nova vida, nova escola, novos amiguinhos, novas brincadeiras na pequena cidade.

Em Ipupiara meu avô Gasparino Martins era proprietário de algumas roças, onde plantava e criava algum gado. Entre outras, havia o chamado Sítio do seu Doutor, como a população o chamava. Era um paraíso para as crianças, quando tudo nessa fase da vida é uma festa. Ali me criei, brincando, correndo e chupando mangas, laranjas. Um pouco mais crescido veio a fase de capturar e criar pássaros em gaiolas, tipo canários, pássaros-preto e papagaios ou periquitos.

Tornei-me fabricante de dois tipos de armadilhas usadas no interior da Bahia: arapuca e enxó. A arapuca é feita com varetas de galhos de árvores e arame. A base deve medir aproximadamente 40cm X 40cm. Daí em diante as varetas vão diminuindo seu tamanho e afunilando até o teto da arapuca. Sempre amarradas com arame para não se soltarem com o movimento da possível presa. Objetiva pegar pássaros, inhambus, codornas, juritis... Já a enxó é feita com tábua de tamanho aproximado de 40cm x 16cm. Um buraco (escavação) na terra medindo mais ou menos 17cm x 17cm e profundidade de 40 a 50 cm. São colocadas em ambos os lados uma tira de madeira comprida e estreita com um preguinho que ultrapassa a madeira e se encaixa na tábua, de tal forma que fique flexível para se movimentar para baixo e para cima quando necessário. Essa tábua e as duas madeiras estreitas devem ficar rente a terra coladas com massa de barro.

Feito isso, testa-se a armadilha colocando-se um peso equivalente a uma ave no local que fica o buraco previamente preparado. A enxó deve se mover e jogar o peso dentro do buraco, voltando em seguida para a posição original. Por fim, coloca-se terra do próprio local para encobrir a tábua e enganar a presa. É adequada para capturar inhambus ou Nhambus, como se diz na Bahia, codornas, juritis, preás e eventualmente alguma coisa indesejável. Foi o que aconteceu comigo.

Essas atividades me obrigavam a levantar cedo para ver se havia capturado alguma caça, porque outros moleques invadiam o Sítio e poderiam, antes de mim, levar a caça. De longe você poderia ver se pegou alguma coisa na arapuca, devido ao seu formato, mas na enxó isso não acontecia.

Certa feita, lá cheguei para conferir e observei que a enxó havia se movido, o que significava que peguei algo. Olhei próximo a armadilha e não vi nenhum rastro de ave, mas havia sinais de que algo rastejante passou por ali. Entendi a senha e com cautela e medo fui descendo a tábua devagarinho.

Pronto. Lá estava toda enrolada uma cobra coral. Pedi socorro a um adulto para que a retirasse de lá. De imediato mudei minha armadilha para outro caminho. Hoje, sabe-se conforme especialistas, que há a coral falsa e a verdadeira, ambas parecidíssimas. Mas, como saber se é venenosa ou não? Prefiro, ainda hoje, sair correndo…

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 9 –


ASA BRANCA

"Em nossa terra já se houve a voz da pomba."
(Ct. 2.12)


Asa-branca do sertão,
Foste, um dia, aprisionada,
Impiamente lacerada,
Por abutre sanguinário;
Teu encanto fora em vão,
Tua meiguice deprimiu-se,
Teu espírito extinguiu-se,
- Este abutre é funerário.

A tristeza a dor suscita,
A campina chora a flor,
E saudade de um odor
Que se esvai em crime bárbaro.
Asa-branca, ressuscita!
Onde estás, ó ave rara?
Vem trazer doçura cara!
- Este abutre é sangue tártaro.

Asa-branca depenada,
- Que tragédia tenebrosa!
Esta garra criminosa
Faz do cão vil animal.
Tua candura - avermelhada...
Como é triste a tua face!
A vergonha é teu impasse!
- Este abutre é irracional.

Asa-branca, ressuscita!
Por ti chora a cachoeira,
Vê: Murchou a quaresmeira
Nas encostas dessas águas;
Até a pobre parasita
Abre os braços com ternura,
Esperando a rola pura
Vir calar as suas mágoas.
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ESTRELA D'ALVA
'"Mais deliciosos que o vinho são teus amores."
(Ct. 4.10)


O amor é sem fronteira,
Diz sempre o coração;
Fragrâncias seresteiras
- O amor é uma canção.

Mil dias são passados,
Momentos definidos;
No amor somos regados,
No amor fomos unidos.

E quando, em solidão,
Eu busco a luz que salva,
Contemplo na amplidão
A minha Estrela-d'alva.

Formosa é minha Estrela,
Igual não há no céu:
Eu quero sempre vê-la
Daqui do meu vergel.

Qual chama de uma vela,
Sou eu sempre a queimar;
Se não sonhar com ela,
Vou logo me apagar.

O olhar de quem me salva
Eu quero sempre ter;
Ó doce Estrela-d'alva,
Por ti vale o sofrer!

E eterna em pensamento
A Estrela em seu brilhar;
Mil preces - doce alento -
Nas ondas deste mar.
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MARÍLIA
"É gracioso o teu pescoço entre os colares de pérola.”
(Ct. 1.10)


... E tanto sonhou,
Donzela inocente,
Em ter um amor,
Sublime e clemente,
Que fosse exclusivo
Com muito calor,
De puro romance,
Só mesmo de amor.

Sonhou com amor,
Menina inocente,
E um novo Dirceu
Surgiu-lhe na frente,
Com seiva de vida
- Real salvador -
De puro romance,
Só mesmo de amor.

De um sonho visão,
Idílio de amor,
Beleza do lírio,
Rosáceas de odor.
Poema d'aurora,
Do autor juvenília,
Essência da ópera,
Oh, nova Marília!

O amor encontrou
Paixão neste amor,
Suspiros em versos,
Canção de louvor;
Se és a Marília,
Sou todo Dirceu,
Assino meu nome,
Marília, sou Eu!
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Marília: Personagem do romantismo poético de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), grande poeta da Inconfidência Mineira.
Dirceu: Personagem romântico da poesia de T. A. Gonzaga.
Juvenília: Obras ou escritos da mocidade de um autor.

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RECEIO
"Foge... como a gazela sobre os montes perfumados."
(Ct.8.14)

Dúvidas tenho e muito receio,
Quando te vejo fugindo assim;
Não há magia de olhar algum
Que possa, então, apresar-te a mim.

Chateado penso comigo mesmo,
Quando te vejo fugindo tanto:
E coração expulsando amor,
Que mal eu posso esconder meu pranto.

Que há contigo, meu grande sonho,
Pra estar assim a me repudiar?
Que crime foi que te cometi?
- Eu bem te quis... eu te quis amar.

Quando à tardinha caindo está,
Pra mim, voando, vem a saudade;
Sinto em minh'alma tua grande ausência,
Naquelas horas de eternidade.

Quando amanhece, nem posso crer,
Vou procurar-te - por Deus suplico;
Pra disfarçar este amor que dói,
Bem solitário a esperar-te eu fico.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares) Sinfonia de Lisboa


Lisboa na noite de Santo António, (12 para 13 de Junho) vem para a rua para o desfile das Marchas Populares dos Bairros de Lisboa. Tradicionalmente, este desfile dá-se na Av. da Liberdade, entre a Praça do Marquês de Pombal e a Praça dos Restauradores – mil metros. Sensivelmente ao meio da Av. da Liberdade, por alturas da estátua aos Combatentes da Grande Guerra, às portas do Parque Mayer, e em frente à tribuna principal, todas as Marchas fazem as suas evoluções em cantares e em marcações coreográficas. É Luz! É Cor! É Alegria!

Tudo começou em 1932 por iniciativa de Leitão de Barros, então diretor do “Notícias Ilustrado”, com o apoio de Norberto de Araújo e do “Diário de Lisboa”, que promoveu as primeiras marchas: “percorreram algumas ruas de Lisboa e entraram no Parque Mayer, onde fizeram demonstrações ao ar livre e no palco do Salão do Cine Capitólio. Concorreram a princípio 3 bairros (Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique) e ainda deram a sua adesão, outros tantos (Alcântara, Alfama e Madragoa).

Foi muito, para uma quase improvisação. Nesse ano, na marcha de Alcântara, figurou uma jovem humilde e ignorada, a mesma que, tempos depois, a cantar o fado, veio a marcar, de forma precisa, nas crônicas nacionais e estrangeiras: “Amália Rodrigues".

SINFONIA DE LISBOA
Música de Raúl Ferrão
Versos de Norberto De Araújo

“Lisboa é sempre
Namoradeira,
Tantos derriços
Que até fazem já fileira.

Não digas sim,
Não me digas não;
Amar é destino,
Cantar é condão.

Uma cantiga,
Uma aguarela,
Um cravo aberto
Debruçado da janela
Debruçado da janela.

Lisboa linda,
Do meu bairro antigo,
Dá-me o teu bracinho,
Vem bailar comigo.

(Estribilho – refrão)

Lisboa nasceu
Pertinho do céu
Toda embalada na fé.
Lavou-se no rio,
Ai, ai, ai, menina
Foi batizada na Sé.

Já se fez mulher
E hoje o que ela quer
É trovar e dar ao pé.
Anda em desvario
Ai, Ai, Ai, menina
Mas que linda que ela é !

Ó noite de Santa António !
Ó Lisboa de encantar!
De alcachofras a florir
De foguetes a estoirar.

Enquanto os bairros cantarem,
Enquanto houver arraiais,
Enquanto houver Santo António
Lisboa não morre mais.

Toda a cidade flutua
No mar da minha canção
Passeiam na rua
Retalhos da lua
Que caem do meu balão.

Deixem Lisboa folgar,
Não há mal que me arrefeça,
A rir, a cantar,
Cabeça no ar,
Eu hoje perco a cabeça.
===================
continua...
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

Aparecido Raimundo de Souza (Tantos depois...)


FAZ MUITO TEMPO, você mora nos meus sonhos. Desde pequena, desde os quinze, você povoa meu universo de quimeras e devaneios. É como se a vida toda eu já soubesse da sua existência, sem você sequer existir dentro de mim. Junto com a minha vida, você veio, todavia, não se concretizou como eu realmente queria, ou seja, como um presente caído do céu. Um presente que para mim seria de cunho valoroso e, como eu disse e repito, sonhei a vida toda, e por infelicidade, nunca me chegou de verdade às mãos.  Com o passar do tempo, diante de meu querer, de meu desejar, de minha aflição tão forte, intensa e imensa, você finalmente acabou se materializando e caindo diretamente no meu caminho.

Lembro, nessa época, raiava a doce primavera dos meus dezessete. Hoje, anos depois, que ironia! Nos tornamos adultos. Temos vida própria, vivemos na mesma rua, mesmo bairro... compramos no mesmo supermercado e quando temos alguma indisposição, a farmácia logo ali na esquina nos recebe de portas abertas. Lado paralelo, moramos no mesmo prédio. Dividimos a mesma portaria, falamos com os mesmos vizinhos, faxineiros, porteiros, subimos os mesmos elevadores e quando falta luz, dispomos das escadas cansativas que nos permitem descermos ou subirmos usando os mesmos degraus e corrimões. Só o que não coincidiu foi o pavimento de nossos lofts. Uma gota minúscula no oceano da vida, se visto pela lógica da estuporação anunciada.

Estou no décimo oitavo e você no décimo quinto. Apesar desse pequeno deslize de sucessões inevitáveis provocados pelos reveses da vida, tivemos sorte. Numa dessas correrias do dia a dia, nos esbarramos no hall de entrada. Você vinha da rua cheia de sacolas de supermercado, eu saia com as mãos entulhadas de processos. A força do seu coração se emocionou quando nos reencontramos. Algo além de nós, ficou marcado. Foi tão forte a emoção, tão densa a alegria, magnânimo o sabor do encantamento, enfim, se fez tão robusta e eficaz, tão inexplicável e fogosa a nossa “topada” não programada, que o susto caiu vencido ao nosso redor. Igualmente, como um doce enlevo, nos brindou os recônditos da alma de uma maneira que eu não saberia como explicar ou descrever.

Lembro que você se abriu por inteira. Se fez largada, como mala velha num sorriso amplo. Se fez faceira, angelical e, ao mesmo tempo, tão pasma e adulta, tão mulher, tão nós, que no momento seguinte ao reencontro, me flagrei boquiaberto, ressuscitando pensamentos pretéritos e os colocando no jardim da sua magnificência. Senti-me voltando no tempo, retrogradando aos bastidores do nosso antigo e adormecido romance. Logo em seguida, você se fez tão linda e charmosa, tão carente e dona de si, tão submissa e necessitada, que, por momentos, pensei tivesse saído do plano terrestre e ido parar num universo paralelo de eternidades plenas.

Sua voz, ao me reconhecer –, deu um grito de acordar ilusões e acredite, todo meu ser se derramou auspicioso em festa de sustos e semelhantes abalos efervescentes. Com você de volta ao meu mundo, desde então, cada espaço vazio dentro de mim se encheu do seu júbilo. Cada olhar, agora, é como se renascesse, no meu “eu”, a cada “mirada”, a cada “pegada”, a flor cálida da nossa paixão imorredoura. No hall do nosso prédio, desde esse dia inesquecível em que nos reencontramos, que nos reaproximamos, que reassumimos as almas apartadas, a partir desse momento excelso em que reatamos o elo que estava rompido, esquecido, quieto, adormecido e, mais que isso, no instante exato em que abrimos e reconstruímos a passagem secreta para os caminhos possíveis, mormente às sendas não acontecidas, os vales e as dimensões não percorridas...

Como num passe de pura mágica, nosso outrora, nosso ontem, nosso gostar voltou às carreiras. Pintou do nada. Regressou a todo vapor de onde se via refugiado. Formalmente fomos atrás, juntos, de mãos dadas, em busca do velho amor. Tudo em nossas vidas criou beleza e cor. O nosso derredor floresceu. Virou magia. Aliás, para ser completo, ao encanto dessa magia, só faltava o elo do carinho se juntar no mesmo patamar de nossas emoções. Desde esse fortuito e inopinado dia, fizemos de nosso “ontem”, um novo “agora”. Não somos mais velhas lembranças adormecidas. Figuras retóricas de filmes antigos de nós mesmos. Abandonamos, no passado as fotografias amarelas, os papéis pálidos no palco onde nosso romance se tornou uma peça de final feliz. Hoje, agora, nesse momento, bem sabemos, vivemos a realidade que a cada manhã se reacende mais forte e pujante, mais cálida e indestrutível dentro da nossa – ou melhor dito –, daquilo que juntos, rostos colados, corpos em transe, almas em festa, corações batendo na mesma pulsação paradisíaca, chamamos de F E L I C I D A D E.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 30 de outubro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 42

 

George Abrão (O formigueiro)


Na Rua Almeida Salim, próximo ao cemitério, num barracão rústico de madeira, funcionava um clube social denominado “Flor do Mato”, porém conhecido como Formigueiro.

Sua presidente era a Sra. Sebastiana que o dirigia com mãos de ferro, exigindo ordem e respeito, embora muitas vezes isso não fosse possível.

O prédio só tinha uma porta frontal de acesso e janelas somente de um lado, lado este que ficava sobre um barranco, sendo grande a altura até o solo. A falta de janelas na frente e nos outros lados era proposital, pois evitava que alguns dos frequentadores fugisse sem pagar a despesa pois a porta era protegida por “leões de chácara”.

No clube não havia luz elétrica, sua iluminação vinha de lampiões, presos às paredes que não conseguiam iluminar satisfatoriamente o salão.

Um rapaz resolveu ir a um dos bailes no clube. Arrumou-se e pegou escondido um paletó de seu cunhado que era o delegado da cidade.

Durante o baile como dançasse muito e estivesse muito quente pela falta de ventilação, tirou o paletó e colocou no espaldar de uma cadeira continuando a dançar.

Lá pelas tantas começou uma briga dentro do clube que logo se generalizou a tapas, socos e pontapés. Todos brigavam e garrafas começaram a ser atiradas.

O jovem não teve dúvidas, vislumbrou por uma janela, no lusco-fusco, um galho. Como era bem franzino subiu à janela e se atirou, agarrando-se ao galho. Era uma folha de bananeira e ele estatelou-se lá embaixo.

Apesar da dor da queda lembrou-se do paletó e então gritava;

- Podem brigar, podem se matar! Só não estraguem o paletó, pois é do delegado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Wadad Naief Kattar (Canteiro de Trovas)


A conquista nesta vida,
não se compra com dinheiro,
mas com fé e de paz provida
eu enfrento o mundo inteiro.
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A família é o maior bem
que Deus nos presenteou.
Os anjos disseram Amém!,
quando a minha ele criou.
= = = = = = = = = = =

A mulher, ninguém entende,
porque é sempre misteriosa.
é a imagem que ela vende,
sabendo que é enganosa.
= = = = = = = = = = =

A música é um emblema
importante da cultura,
como se fosse um poema
musicado de ternura.
= = = = = = = = = = =

Eliminei a saudade
e hoje vivo bem sozinho.
Conheço a tranquilidade
sem pedras no meu caminho.
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É meia volta, volver,
se tu cruzas meu caminho.
Se meu destino é sofrer,
prefiro sofrer sozinho.
= = = = = = = = = = =

Englobando a criação
do que Deus aqui deixou,
é a mulher confirmação
de quanto ele caprichou.
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Eu nunca temo o perigo,
não me amedronta a batalha.
A paz sempre está comigo
e essa força me agasalha.
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Hoje o frio me incomoda
muito mais que antigamente
pois já não mais me acomoda
o seu peito confidente.
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Meu amor eu encontrei
nos braços de uma qualquer.
- É destino, eu pensei,
de quase toda mulher.
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Meus avós são muito amados
minha bisavó também;
são todos abençoados
e como me fazem bem!
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Música, arte, cinema,
sempre envolveram a vida.
Fazem com que não se tema
a tristeza amortecida.
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Na jornada desta vida
já amei, sofri, chorei.
Hoje assopro a ferida,
disso tudo me cansei.
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O mais puro sentimento
à família eu dedico.
Mesmo que seja o momento
complicado, eu simplifico.
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O tempo passou... nem vi
que o destino me traiu.
Só no corpo envelheci,
pois a mente não seguiu!
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Quando a mulher fala e grita
tentando assim convencer,
é uma falha, ela acredita.
Basta chorar pra vencer.
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Quando estou em um dilema
a família é o meu esteio;
enfrento qualquer problema
com coragem e sem receio.
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Quem dera, Deus, eu pudesse
deter a morte bandida
e só elevar uma prece
pela dádiva da vida.
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Sabe o que é felicidade?
É a família em harmonia,
que após animosidade
sempre se reconcilia.
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Saudade do amor perdido,
pois sei que não volta mais.
É meu destino bandido
onde suporto meus ais.
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Se encontrar uma mulher
mostrando-se toda prosa,
vá como quem nada quer
e teste se é  “caridosa”.
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Sempre a saudade adivinha
a ausência de um amor
e tal qual erva daninha,
sufoca causando dor.
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Ser trovador é destino
ou é dom que Deus me deu?
Só sei que é um dever divino,
que ao cumprir, prazer me deu.
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 Só hoje conheço a paz
depois de muito sofrer
e até me sinto capaz
de voltar a me envolver.
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Tenho sempre na lembrança
dos tempos que longe vão,
meus avós  - eu tão criança...
que doce recordação!
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Tudo em você me fascina,
por isso vivo em pecado.
É destino, minha sina,
viver pedinte ao teu lado.
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Viva, ame e sobreviva,
mas a aprender a lição:
sempre a conquista afetiva
nos embaralha a razão.
= = = = = = = = = = =
 
Você que gosta de ler,
sempre buscando a cultura,
saiba que este prazer
é um vício que perdura.

Sammis Reachers (Sexto Sentido)

Isso me leva a recordar de outros episódios, agora divertidos, pelos quais passei. Eu ainda não relatei, mas Renato possuía algo que perturbava minha mente que, embora infantil, era leitora de enciclopédias e já manifestava a tendência racional-científica que fundou a frio nosso mundo tecno-científico e a tudo manieta, retifica e constrange. Esse algo era o que se costuma chamar de “sexto sentido”. Sim, aquele rapazinho que jamais entrara numa escola (não havia lei, ou a lei não tinha força que obrigasse a mãe dele, Bebete, a matriculá-lo), possuía um sinistro sexto sentido que o avisava, geralmente com apenas alguns segundos de vantagem, de que algo de ruim estava prestes a acontecer; que a jangada pirata iria naufragar, a aventura do momento estava em vias de dar errado.

Relato uma das mais prosaicas e inofensivas destas vezes em que tal sentido do "malandrim" nato se manifestou. Certa noite, ele me chamou para “darmos uma espiada” em frente da casa de uma certa menina, uma linda negrinha, que estava há pouco tempo no bairro.

Nato estava enamorado...

Acontece que a tal menina morava numa casa, a de sua avó, em que infelizmente (isso sempre é uma infelicidade quando acontece com a mulher de quem você gosta) moravam muitos homens – eram os tios dela, todos solteiros e ainda albergados em roda da saia da matrona.

Pois bem, lá estávamos nós, acocorados no mato em frente daquela casinha de telhas francesas e sem cercas. A rua estava deserta, pois o bairro naqueles tempos era menos povoado e a hora já ia avançando noite adentro; podíamos divisar, dentro da casa de janelas de madeira abertas, o trânsito dos moradores, inclusive da princesinha de ébano. Eu olhava para a rua de quando em quando, pois nossa atitude, embora de intenções inocentes, era também suspeita. Foi quando Renato, fulminado por seja lá que tição do céu ou do inferno, entregou o oráculo: “Tô com a sensação de que vai acontecer alguma coisa ruim...”.

“Que nada, a rua tá deserta e nós não estamos fazendo nada”, respondi. Um breve momento de indefinição foi suspenso pela aparição, ex nihilo, sim, direto do nada, de um dos tios da menina, bem na nossa frente. Como aquilo se deu? E era justamente Elias, o mais “brabo” dos moradores da casa. Renato foi apanhado pelo braço, e tomou uma salva de cascudos. Eu também levei o meu e me dei por satisfeito – bem, em geral eu ficava para trás e arcava com as consequências sozinho. As explicações sobre os puros sentimentos do jovem Romeu, ao invés de tocarem o coração de Elias, tiveram o resultado oposto, enfurecendo ainda mais o valentão. Se tivéssemos corrido quando o oráculo deu o alarme...

Carimbados de cascudões e devidamente jurados em caso de reincidência em tal “crime” – simplesmente observar o evolar de uma virginal donzela, veja você – partimos para nossas casas, contrariados por mais uma injustiça da vida.

Renato jurava “vingança” quando crescesse. Quanto a mim, bem, em boa parte de minha infância, receber um cascudo era como receber um bom dia.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Christopher Taylor (Como Escrever uma Análise Literária) 3. Método


ANALISE COMO SUAS EVIDÊNCIAS SUSTENTAM OS PONTOS PRINCIPAIS DO TRABALHO.

É necessário explicar por que as suas ideias são importantes. Para isso, mostre ao leitor que as evidências oferecidas por você se relacionam com o argumento principal.

Por exemplo, para completar o parágrafo após a citação oferecida, você poderia escrever:
Este mundo é pesado para os habitantes, "frio" e agourento, sem nem mesmo cor para quebrar a monotonia. Nem mesmo um dia ensolarado é capaz de aliviar esse sofrimento, e Orwell usa passagens como essa para estabelecer que esse mundo pode ser o futuro, uma realidade sem escapatória na fantasia.


ESCREVA A INTRODUÇÃO, CASO AINDA NÃO O TENHA FEITO.
Parte dela deve ser a sua tese principal, mas você também deve introduzir os pontos principais que gostaria de fazer em todo o trabalho. É importante atrair a atenção do leitor na introdução. Um exemplo:

"Imagine um mundo onde cada expressão facial, cada movimento e cada palavra dita é examinada incessantemente por um governo ditatorial. Qualquer pessoa que quebre as regras ou saia da linha é punido com frieza. Se parece com uma realidade sombria na qual ninguém gostaria de viver, pois essa era a intenção de George Orwell ao escrever o romance 1984, um livro que cria um futuro distópico no qual os cidadãos são controlado por um governo totalitário. Na obra, o uso de imagens e descrições para estabelecer o mundo sombrio é essencial para fortalecer a ideia de que o totalitarismo deve ser evitado a todo custo, algo que ele aprendeu vivendo na Espanha fascista e no momento político da época da Segunda Guerra Mundial".


FAÇA UMA CONCLUSÃO.
É importante finalizar o artigo retomando seu argumento e concluindo-o. Assim, os leitores conseguirão entender como tudo se encaixa.

Por exemplo:
"Para Orwell, o fato do nosso mundo poder estar seguindo rumo ao totalitarismo é desastroso. Esse destino, não importa se vindo da direita ou da esquerda, é algo que deve ser combatido por todos os cidadãos. No romance, ele mostra a conclusão lógica para um mundo controlado por totalitarismo e, através de recursos literários, leva o leitor para dentro desse ambiente. Após a leitura, é pouco provável que alguém iria querer participar de um governo que poderia trazer aquele mundo para a realidade".


VERIFIQUE SE O SEU ARGUMENTO FAZ SENTIDO, DO COMEÇO AO FIM.
Releia seu trabalho como se nunca tivesse lido o texto que está sendo analisado. É possível entendê-lo através das análises e evidências oferecidas por você? Caso a resposta seja negativa, revise o trabalho e acrescente o que for necessário.

Também é bom pedir que um amigo leia o trabalho e tente entender o texto que foi analisado. Remova todas as frases como "na minha opinião" ou "acredito que". É normal fazer uma análise tímida no começo do trabalho, acredite. Ainda assim, na hora de apresentar seus argumentos, é importante eliminar frases que demonstrem fraqueza e timidez, pois elas prejudicam suas opiniões e passam a impressão de que você não confia no que está escrevendo.


FAÇA UMA REVISÃO GERAL LENDO O TEXTO EM VOZ ALTA.
Fique atento aos erros identificados pelo corretor ortográfico, mas não dependa exclusivamente dele. A leitura em voz alta nos ajuda a desacelerar um pouco e identificar mais erros no texto.
Por exemplo, ao ouvir o texto, você conseguirá encontrar palavras erradas ou estruturas frasais confusas.


DEIXE OUTRA PESSOA REVISAR O TEXTO.
Um par de olhos novo é sempre bom na hora de finalizar um trabalho. Peça que um pai ou um amigo leia o seu texto e tente encontrar erros gramaticais ou de digitação.

DICAS
É muito importante compreender completamente a tarefa antes de começar a escrever sua análise.

REFERÊNCIAS
http://www.sjsu.edu/writingcenter/handouts/Literary%20Analysis.pdf
http://literary-devices.com/
https://writingcenter.tamu.edu/Students/Writing-Speaking-Guides/Alphabetical-Listof-Guides/Academic-Writing/Analysis/Analyzing-Novels-Short-Stories
https://writing.wisc.edu/Handbook/CloseReading.html
http://www.sjsu.edu/writingcenter/handouts/Literary%20Analysis.pdf
https://www.bbc.com/news/magazine-21337504
https://www.roanestate.edu/owl/writinglitanalysis1.html
https://www.bucks.edu/media/bcccmedialibrary/pdf/howtowritealiteraryana
lysisessay_10.15.07_001.pdf
https://www.edutopia.org/blog/reaching-literary-analysis-rusul-alrubail
https://writing.wisc.edu/Handbook/CloseReading.html#Theme
https://www2.southeastern.edu/Academics/Faculty/elejeune/critique.htm
https://www2.southeastern.edu/Academics/Faculty/elejeune/critique.htm
https://www.edutopia.org/blog/reaching-literary-analysis-rusul-alrubail
https://www2.southeastern.edu/Academics/Faculty/elejeune/critique.htm
https://www.edutopia.org/blog/reaching-literary-analysis-rusul-alrubail
https://www2.southeastern.edu/Academics/Faculty/elejeune/critique.htm
https://writingcenter.unc.edu/tips-and-tools/reading-aloud/


Fonte:
https://pt.wikihow.com/Escrever-uma-Análise-Literária