segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Completamente desproporcionados)

ESTOU TENDO um caso com a Arno. Arno não é uma moça qualquer. É diferente. Linda, bonita, magrinha como gosto, esperta, elétrica, despachada... quando está ligada no que precisa ser feito, parece chegar aos píncaros dos 220 volts. Não estou falando de uma dondoca metida à besta. Faço referência à Arno, a Enceradeira de mamãe. Ela não sabe ainda da minha paixão avassaladora. Coisa antiga, desde o abençoado dia em que papai a trouxe aqui para morar embaixo do mesmo teto. Tudo começou numa tarde de sábado, quando Ambrosina, a nossa empregada, depois de escravizar a pobrezinha, fazendo com que trabalhasse duro, lustrando os assoalhos da sala e dos três quartos, lhe deu uma folguinha arrastando a infeliz para o banheiro de serviço colado à cozinha. Achei que chegara a hora de atacar. Não perdi tempo. Parti para o abraço: 

— Nossa, “migo”. Estou exausta! – balbuciou a prestimosa assim que me viu se encostando à sua beira.

— Dá pra perceber... - respondi sem pensar em coisa melhor a ser dita. 

— Ambrosina quer me ver morta e enterrada. Olhe para meu estado. Estou me sentindo um bagaço.

Procurei ser franco o melhor que pude: 

— Sinto pena de você.

Arno me cravou uns olhos compridos expressando profunda infelicidade: 

— Você?

— Sim! Não posso?

Arno armou alguma coisa para dizer. No último instante resolveu engolir o que pretendia me jogar em meio ao rosto. Talvez achasse que me deixaria nervoso ou mais abestalhado do que aparentava. Ponderou e mediu as palavras antes de voltar ao diálogo:

— Pode, claro que pode. Mas vocês, humanos, não têm sentimentos em relação a nós.  Somos máquinas, não comemos, não bebemos...

Fez uma pausa breve e concluiu, a tez agora tomada por um pranto silencioso:

— As nossas patroas fazem a gente de escravos. Trabalhamos pior que burros de carga.  No final das contas... Meu Deus do céu.

— Ei, não fale assim! Sei que dá um duro danado. Não é de hoje estou de olho comprido em você.

— De olho comprido? Como assim?

— Estou de butuca... quero dizer, meio que “vidrado”, ora bolas.

— Desenhe...

— Não saberia desenhar...

— Pois então fale.

— É que eu... deixa pra lá.

— Fale.  Seja o que for, vá em frente.

— Arno, me apaixonei por você.

A enceradeira de mamãe, ou melhor, a Arno caiu numa estrondosa gargalhada. Quando se cansou, voltou a me fitar, desdenhosa:

— Quer dizer que temos aqui um gurizinho apaixonado?

— Me leve a sério. Por favor!

— Espera que eu acredite?

— Pergunte ao seu Rossi, o Escovão...

— O que o senhor Rossi, meu amigo Escovão tem a ver com isto?

— Ele sabe de tudo.

— Tudo?

— Me abri com ele. Para quem mais?

— E por que ele?

— Porque é um senhorzinho em idade bem avançada. Sabe melhor que ninguém destas coisas.

— OK. Vamos supor que eu acredite.

— Deveria. Falo a verdade. 

— O que foi que disse exatamente a ele?

— Que me fascinei por você. 

— E ele?

— Achou normal, na minha idade. A certa altura me confidenciou que em anos passados, quando ainda moço, caiu de quatro por uma branquela linda e simpática que atendia pelo nome de Frigidaire. Era uma Geladeira.

— E ele ficou com ela?

— Não.

— Por...?

— Frigidaire se desvairou por um sujeitinho esquisito. Um tal de Britânia. Segundo ele, um Liquidificador metido a besta. Final das contas, a criatura sumiu do pedaço e ninguém mais soube dar noticias de seu paradeiro.

— E você acha normal um ser humano se alucinar por um eletrodoméstico? 

— Sim. Acho. Afinal de contas, cá entre nós, você é um pedaço de caminho desconhecido que todo homem em estado de insanidade gostaria de percorrer. Uma princesa bonita, séria, honesta, recatada, tem um porte majestoso, dá conta do recado sem reclamar... e sua tomada quando ligada no interruptor...

— Que mais?

— Quando não está trabalhando fica quietinha no seu canto. Não se mistura. É atenciosa, simples, e me parece...

— Continue...

—  Me parece ter um agastamento muito grande no peito. Uma coisa que machuca você e lhe deixa, às vezes, para baixo.

— Quanto a isto é verdade. Acertou na mosca.

— Então. Deixa eu me aproximar de você. Prometo que não irei decepcionar o seu coraçãozinho. 

Arno se extravasou num sorriso debilitado:

— Todos dizem a mesma coisa.

— Todos? Agora sou eu quem pede. Desenhe.

— Faz anos me apaixonei por um Limpador de Vidros. Estávamos indo de vento em popa.

— E certo dia ele não correspondeu?

— Não, meu lindo. O infeliz se embasbacou por uma Tábua de passar roupas. Belo dia foi limpar as janelas do quarto dela, meio que afoito, se descuidou... acabou despencando do oitavo andar e babau. Desde então, me tranquei dentro de mim mesma.

— Se abra para mim... todinha... 

— Promete me amar de verdade?

— Com todas as forças de meu ser.

A coisa criou raízes. Ambrosina me flagrou por diversas vezes fazendo estripulias com a Arno em meu quarto. Contou para meus pais. Num primeiro momento, meus velhos não levaram fé. Concluíram que a empregada tinha alguma birra comigo, pelo fato de estar lhe dando umas “cantadas” às escondidas. Um belo dia, papai chegou mais cedo do trabalho e me surpreendeu tomando banho agarradinho com a Arno. Uma semana depois foi a vez de mamãe me pilhar de calças curtas.  Ainda assim, as nossas cenas românticas duraram uns seis meses. Por derradeiro, a coisa degringolou. Os autores dos meus dias, chegaram à conclusão que eu havia perdido o juízo. De fato, enlouqueci. Acabei internado como maluco numa espécie de “hospital-sanatório-psiquiátrico” para doentes mentais. Seis anos se passaram, desde que me jogaram aqui. O pai e a mãe que se danem. Careço urgentemente ver, não só isto, reatar os carinhos e afagos com a minha doce Arno. Ou pirarei o cabeção.             

Fonte> Texto enviado pelo autor 

domingo, 19 de novembro de 2023

Trova ao Vento – 005

 

Mensagem na Garrafa – 39 –


Ady Xavier de Moraes
Rio Verde/PR

MULHER

És bela, não porque se fez bela,
mas porque tens no íntimo
o brilho de uma estrela
que durante o dia se esconde
e, durante a noite, no infinito,
mostra tua face que resplandece.

És linda, não porque se fez linda,
mas porque a natureza preparou
para nascer e brilhar.
Tu não precisas de arranjos,
porque uma flor já nasce
com toda a beleza, tenra
e perfumada.

És perfeita, não porque te fez perfeita,
mas porque a vida deu-te de tudo.
A simplicidade de um anjo.
A inocência de uma criança.
O carisma de uma rainha
quando sorri…
sorri com os olhos,
com os lábios, com o coração.

Mostras com muita esperança,
a vontade de vencer na vida
e não sabe da virtude que tens,
por isso, és linda, és bela,
como a flor do meu jardim.

Eduardo Affonso (A indesejada)

As coisas têm, como nós, uma roupa de ficar em casa, uma de ir à missa. Têm modos de quem come se servindo da panela, na cozinha, e modos de quem segura o garfo com o polegar e o indicador e não põe os cotovelos na mesa, na sala de jantar.

Por isso existem o favor e o obséquio, o beijo e o ósculo, o azar e a desdita (e o revés, a desventura, o infortúnio – o azar tem um closet inteiro).

Vejam a morte. É uma palavra áspera, ríspida, sem muita cerimônia, em trajes que não permitem entrever se tem peitoral ou seios, se tem cintura e quadris. É sem vaidade, e serve para qualquer vivente, bicho ou planta. Os preços podem estar pela hora da morte, muita coisa é questão de vida ou morte, ficamos pensando na morte da bezerra.

A morte é trivial. A morte é o fim, e ponto. E o que é o óbito? O óbito é a morte sem mortalha, é a morte em traje de gala.

Óbito vem do latim “obire”:  ir (“ire”) na frente, se afastando (“ob”).  É apenas partir antes.

A morte dói; o óbito vem com anestesia. Por isso, nas estatísticas da pandemia se prefere falar no número de óbitos, não em mortos, cadáveres, finados, defuntos.

O que também não seria problema: cadáver é, literalmente, “caído”. Defunto é o que cumpriu o que tinha que ser cumprido, pagou o que devia ser pago, completou seu tempo de vida. Finado é o que finou-se.

Além da morte e do óbito, temos ainda o falecimento. Falecer é, além de uma das palavras mais lindas do idioma, uma das mais falaciosas: falecer é enganar, fingir, ser infiel, não cumprir o trato.  Falecer, falsidade, falta e falácia têm a mesma origem (“fallere”). De onde também veio o desfalecimento, o desmaio – que, como o sono e o orgasmo, são pequenas mortes.

Por tudo isso, optamos pelo óbito, que não tem as mãos calejadas da morte, prefere o jaleco branco ao manto preto, o bisturi à foice. A morte é o fim; o óbito, uma ultrapassagem, uma precedência. Falecimento é um eufemismo (ninguém falece de covid, de acidente de trânsito, de bala perdida).

Mesmo sem saber etimologia, o sepultamento nos comove menos que o enterro. Enterrar é cobrir de terra; sepultar é apenas fazer desaparecer.  Por isso cremamos (reduzimos a cinzas), em vez de queimar os nossos mortos: cremar e queimar são a mesma coisa, mas sabemos a dor das queimaduras, desconhecemos a da cremação.

A morte é uma fatalidade. E fatalidade é uma sentença divina. Fatal é o que causa a morte (o óbito, o falecimento, o passamento, a ida para o mundo dos pés juntos, o abotoamento do paletó, o batimento das botas, a partida desta pra melhor, o envergamento do pijama de madeira, o embarque na derradeira viagem, a passagem para outro plano, o esticamento das canelas, a degustação de capim pela raiz, a transformação em purpurina).  Portanto, esqueça aquela história de “vítimas fatais”. A menos que a vítima tenha matado alguém, a vítima é apenas a vítima: fatal é a doença, o acidente.

E a vida. Porque a vida, sim, é fatal.

Fonte: https://tianeysa.wordpress.com/2020/04/28/a-indesejada/. 28 de abril de 2020.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 19 –


SEM CORPO, SEM ROSTO SEM CASTA

A minha língua é lusa, índia e africana...
A minha pele é negra, branca e é morena,
Minha estatura é grande, média ou pequena,
Porém meu sangue é vermelho e não me engana.

O meu cabelo é crespo, liso e ondulado...
E minha lágrima é salgada e cristalina,
O meu amor repousa na minha retina,
Mas quando acorda, desperta quem mora ao lado.

Sou brasileiro, do arco íris, tenho as cores,
As minhas dores são melhores ou piores
Que tantas outras, convivo com meus suores
e quando posso, reinvento meus amores.

A minha alma não tem corpo, roupa ou casta,
amar me basta, só preciso de um irmão
que pulse dentro do meu próprio coração,
pois minha dor, ao ver o amor, sempre se afasta.

Quem me estima, não compara, não precisa,
meu riso avisa toda vez que esse alguém vem,
e é esse amor sem casta ou cor que faz o bem,
que me convém, pois meu amor nunca agoniza.

Minha etnia é filha de todo mundo,
basta um segundo do melhor do meu irmão,
Para que eu veja, nele, o mesmo cidadão,
que faz, do irmão, o amor fraterno mais profundo.

Por isso, amigo, somos todos tão iguais,
que os ideais que tu possuis são como os meus
e se apelamos, ao sofrermos, por um Deus,
o nosso Deus é quem nos dá a mesma paz.
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SERES QUE AMAM

Que não se exijam - do homem ou da mulher -
Comportamentos similares ou distintos...
Há quem prefira degustar os vinhos tintos
Outros, que bebem o que a ocasião requer.

Que não se julgue, pela própria experiência,
O amor a dois... cada casal se ama a seu modo.
Quando eu estudo o meu amor, sempre me podo.
Por isso evito ver o amor como ciência.

Quem filosofa sobre o amor, sem "ter" amado
...ou "ser" amado... expressa apenas sofrimentos.
Em cada afeto existem novos sentimentos.
Cada casal tem seu jeitinho apaixonado.

Cada parede protege quem se liberta
No seu espaço de criar um universo
Sentimental... quando um casal está imerso
No ato de amar, jamais existe alma deserta.

Que não se julgue nem se ensine a ser feliz,
Quem é feliz com o amor que escolheu,
Ninguém ministra aquilo que nunca aprendeu
E só quem ama é sempre eterno aprendiz.

Há Capitús e há Bentinhos... e o Escobar?
E Madalena? ... que dizeis... vós, fariseus?
Que sois capazes de julgar o próprio Deus,
Apedrejando quem se ocupa com amar?

Tirai os olhos de vossas vãs fechaduras
E procurai amar sem falsos testemunhos,
Socando teclas como quem faz dos seus punhos
O autoflagelo de quem sofre e se tortura!

Seres que amam ou se amaram de verdade
Têm na saudade ou no momento da paixão,
A intimidade que abençoa um coração,
Quando a razão deixa o amor em liberdade!
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TESTAMENTO

Chegou o tempo inevitável da lembrança
...de repensarmos o que foi a nossa vida.
Se a mesma dor bate no amor, ele revida
com um sorriso necessário... de criança.

Doces memórias nos impelem a passados
...dourados... livres... onde os voos da inocência
ignoravam os arroubos da ciência
e preocupavam-se em criar sonhos alados.

Como brincávamos!!! ...tudo era tão bonito
movido apenas pela nossa ingenuidade
e hoje, imersos na leveza da saudade,
reinventamos nosso amor mais... infinito.

Na previsão de um infarto fulminante
ou de um mal súbito iminente e sem aviso,
nosso sorriso idiota e... tão preciso
ainda teima em enfeitar o nosso instante.

Nós insistimos em criar nossas gravuras
mais pueris... mais inocentes... caricatas,
que apenas contam histórias que nem têm datas,
mas apresentam seus momentos... de ternuras.

São versos... esse é o derradeiro patamar
mais expressivo... são os túneis de memórias,
para que alguém, ao estudar nossas histórias
entenda, ao menos, nosso tempo de sonhar.

As forças faltam, nossos corpos cambaleiam,
Mas nossas mãos ainda insistem: digitamos
Ou escrevemos e, assim, reeditamos
O que sonhamos, esperando que nos leiam.

Que tolos somos! Quem se importa com vivências?
...nossa aparência é um retrato desfocado
De um novo tempo que despreza o passado
Abominando nossas vãs experiências.

Nosso legado? Um objeto precioso,
algum dinheiro, um imóvel, a mobília,
Um carro novo, algum tesouro... e uma família
Tão dividida, querendo o mais valioso.

Noras e genros, retirando suas capas,
Filhos e netos, disputando, após o choro,
O que deixamos... cada um criando num coro
Traçando planos sórdidos, criando mapas.

É inevitável percebermos nossas lutas
Por um futuro mais feliz e promissor,
Mostrando tudo que ensinamos sobre o amor,
Findar em cenas lamentáveis de disputas.

Melhor seria procurarmos a alegria
Na fantasia e só deixarmos aos parentes,
Nossas histórias infantis e adolescentes,
E alguns romances.... fragmentos de poesia.

Quem sabe, um neto ou um filho mais sensato
E mais sensível compreenda, de verdade,
Que a nossa vida só buscou felicidade
Na liberdade mais feliz de cada fato?

Quem sabe, um deles, nos pesquise mais a fundo,
E estude a história de cada antepassado
E compreenda que a memória é o legado
Mais importante e verdadeiro que há no mundo.

E que os desejos pessoais e as manias
Naturalmente humanas e mais prazerosas
Não sejam teses imbecis, pecaminosos,
Dos que acusam com cruéis hipocrisias!

Que nossas mãos ganhem asas de passarinhos
E haja carinho em nosso último estertor,
Para que alguém encontre o mapa desse amor
Que cultivamos na rudeza do caminho.

Que nos editem... não há outra alternativa
Que imortalize nossos modos de sonhar
E que respeitem nosso jeitinho de amar
Para que nossa liberdade sobreviva.

Fonte: Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Contos do Paraná (“Meu menino”, por Pedro Ramblas Filho)

O ônibus, como sempre naquele horário, comecinho da noite, estava abarrotado de gente. Operários, comerciárias, um que é um sujeito de terno desalinhado e pasta 007, estudantes… todos mudos, cansaço estampado nos rostos. De repente, uma ordem gritada lá na frente por alguém ao lado do motorista acordou os sonolentos e sobressaltou os acordados.

- Encosta que é um assalto! E fica todo mundo quieto, quero ver todo mundo manso!

O cano do revólver, a dois palmos da cabeça do motorista, tremia um pouco. No meio do ônibus, uma senhora ensaiou gritar. Foi calada por novas ordens nervosas:

- Quieta aí!

- Todo mundo calado!

O do revólver tinha dois comparsas, um na porta da frente e outro perto da porta do meio. O motorista encostou devagar no meio da quadra, na frente de dois terrenos baldios, perguntou ao do revólver se lá estava bom. O assaltante respondeu que sim e, sem desviar o revólver da cabeça do motorista, explicou como ia ser; com calma, um por vez em cada porta, os passageiros iam deixar o ônibus; na saída iam deixar bolsas, carteiras, anéis e relógios com "os companheiro"; que não se preocupassem, os documentos todos iam ficar no ônibus; que ninguém chamasse a polícia logo, senão o motorista "dançava"; que ninguém reagisse dentro do ônibus, senão também "dançava". 

O cobrador, nessas alturas já tinha sido limpado.

Devagar, como ordenado, os passageiros começaram a descer, deixando antes com os assaltantes tudo que fora pedido, mais as bijuterias, por via das dúvidas. Uma senhora gorda que chorava baixinho, desesperada que a aliança não saía do dedo, foi empurrada por um dos assaltantes:

- Vamos logo, dona, pode ficar com a aliança.

Por pouco, a gorda não se esborracha no chão.

Já tinha saído quase metade dos passageiros quando o do revólver encarou uma senhora de seus trinta e poucos anos, na fila para deixar a bolsa na porta da frente. Não foi bem uma encarada, mais um olhar de curiosidade. O assaltante insistiu alguns segundos sem tirar os olhos, a senhora era só medo.

O assaltante continuou, mas seu rosto foi se descontraindo, ensaiou um sorriso, os olhos brilharam, e então exclamou;

- Tia Carmen!!

A jovem senhora, apavorada, não conseguiu pronunciar palavra. O assaltante repetiu a exclamação:

- Tia Carmen!! Não lembra de mim? O Luiz, Luizinho, seu aluno lá da Graciliano, lembra?

A senhora olhou com curiosidade o assaltante, aos poucos seu rosto se descontraindo, tomando cor, os olhos ganhando brilho.

- Luizinho! É você mesmo, Luizinho! Mas como você cresceu, meu menino.

Nessas alturas, parara toda movimentação dentro do ônibus, passageiros e demais assaltantes, ainda sem entender bem a situação, pareciam avaliar o crescimento do 'Luizinho". Ele tinha coisa de 1,80 metro de altura, ombros largos, cabelos pretos, aparentava entre vinte e vinte e cinco anos. Pela primeira vez baixou o revólver, passou-o para a mão esquerda, a direita estendeu num respeitoso cumprimento.

A professora perguntou de sua vida, fingiu espanto, ao sabê-lo casado e já com dois filhos. Voltou-se então para os demais passageiros, agora já sorrindo, e fez a apresentação, com orgulho:

- O Luizinho. Meu menino mais inteligente e bonito, minha primeira turma de alfabetização, primeiro ano de professora, na Escola Graciliano Ramos, lá na Fazendinha... já passou tanto tempo, né meu menino?...

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

O nosso português de cada dia (Tudo normal)


"Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual..." Lembra? "Maluco beleza", sucesso inteligente de Raul Seixas. O que é ser normal? O que é uma situação normal?

Vamos ao dicionário: "1. Que é segundo a norma. 2. Habitual, natural".

Pois bem. Na última terça-feira [02/12/97], uma greve de motoristas e cobradores obrigou o prefeito de Sâo Paulo a suspender o rodízio dos carros. No rádio, um repórter disse que, "por decisão do prefeito, os automóveis de placas com final 3 e 4 podem circular normalmente". Normalmente? Ou anormalmente? Se levarmos em conta que a norma é que esses automóveis não circulem numa terça-feira, é mais do que óbvio que sua circulação foi anormal.

O fato é que existem muitas expressões que empregamos quase mecanicamente, às vezes por puro hábito, às vezes por parecerem requintadas. No caso de normalmente, expressão que - confesso — me dá arrepio, parece que as pessoas deram à palavra o sentido de "sem problema" ou algo semelhante: os carros podem circular sem problema.

Uma das expressões empregadas por quem quer ser ou parecer requintado é a ultra-intragável "a nível de", usada para tudo, quase sempre sem nenhum sentido. 

Uma funcionária de uma agência de viagens me disse que "a nível de aéreo, o senhor pode escolher entre...". Depois me disse que "a nível de hotel...". 

Um  médico afirmou que "o jogador sofreu uma contusão a nível de joelho". 

E alguém do Ministério da Agricultura garante que "a nível de feijão, a safra vai bem". Sem comentário.

Nesses casos, a expressão "a nível de" é tão útil quanto água em pó. A mesma inutilidade se vê na praga do "inclusive": "Estive na festa, inclusive vi sua prima". 

O vício é cão arraigado que as pessoas chegam a dizer que "o presidente inclusive incluiu no projeto o fim da estabilidade". 

Não é preciso muito esforço para usar adequadamente essa palavra, que — não custa lembrar — é o contrário de "exclusive": "Todos assinaram, o diretor inclusive".

Para fechar o time das pérolas, a deliciosa "enquanto". Não dá para engolir alguém dizendo "Eu, enquanto mulher, defendo...". Por que "enquanto mulher"? Será que o estado não é duradouro, definitivo? Enquanto indica basicamente ideia de simultaneidade: "Enquanto ele dorme pesado, eu rolo sozinha na esteira", diz a poética "Sem açúcar", de Chico Buarque.

Um outro vício é o de usar "enquanto que"; "O Palmeiras enfrenta o Santos, enquanto que o Atlético enfrenta o Internacional". Não caia nessa. Basta dizer "enquanto". E isso.

Por um dos mistérios que talvez nem a informática saiba explicar, em alguns exemplares da Folha de S.Paulo a última coluna [27/11/97] trazia a palavra "portanto" grafada em duas etapas (por tanto).

Boa ocasião para esclarecer o problema. Ou para não esclarecer nada, já que nem tudo em língua tem justificativa lógica. 

Como explicar que "por isso" é separado e "portanto" é junto? Grava-se a grafia e pronto. "Por isso" e "portanto" tem significado equivalente, mas grafia diferente.

Publicado na Folha de São Paulo em 04/12/97

Fonte: Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

Estante de Livros (“Os contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer)


Os Contos de Canterbury (também chamado Contos da Cantuária), é uma coleção de histórias (duas delas em prosa, e outras vinte e duas em verso) escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde Southwark (Londres) à Catedral de Canterbury para visitar o túmulo de São Thomas Becket. A estrutura geral é inspirada no Decamerão, de Boccaccio.

A coleção de personagens dos Contos da Canterbury é muito rica, com representantes de todas as classes sociais, e os temas são igualmente variados. Os contos são recheados de acontecimentos curiosos, passagens pitorescas, citações clássicas, ensinamentos morais, relacionados à vida e aos costumes do século XIV na Inglaterra. Escrita em inglês médio, a obra foi importante na consolidação deste idioma como língua literária em substituição do francês e do latim, ainda utilizados na época de Chaucer em preferência ao inglês.

Não se sabe ao certo quando foram escritos os Contos da Cantuária, mas menções em outras obras de Chaucer permitem concluir que a maior parte dos contos foi redigida a partir dos últimos anos da década de 1380 até a morte do autor, em 1400. De acordo com o que Chaucer explica no Prólogo Geral da obra, o plano original previa que haveria quatro contos por cada personagem. Chaucer morreu sem conseguir completar esse imenso plano, e assim a obra pode ser considerada inacabada. Além disso há um conto, o do Cozinheiro, que permaneceu sem o final.

Existem atualmente 83 manuscritos medievais dos Contos, com textos mais ou menos completos. Esse grande número de manuscritos é evidência da grande popularidade da obra ao longo do século XV na Inglaterra. Nenhum deles é do punho do próprio Chaucer, mas alguns parecem haver sido copiados por escribas pouco tempo depois da sua morte. Um dos mais importantes é o manuscrito Hengwrt, copiado entre 1400 e 1410 e quase completo, que preserva a linguagem de Chaucer com bastante exatidão. O manuscrito mais famoso, apesar de ter muitas edições que o afastam do original de Chaucer, é o manuscrito Ellesmere, belamente decorado com iluminuras.

A primeira versão impressa dos Contos foi publicada em 1476 por William Caxton em Westminster, seguida de outra em 1483. A obra foi, assim, a primeira grande obra em língua inglesa a ser impressa. Seguiram-se muitas outras edições ao longo dos séculos seguintes.

Os diferentes manuscritos da obra apresentam os contos em diferente ordem, não sendo sabido a ordem pensada por Chaucer. Alguns, porém, apresentam clara relação um com o outro, o que ajuda a estabelecer uma ordem de alguns contos, agrupados em "fragmentos".

Linguagem

Chaucer escreveu em inglês médio, mais especificamente no dialeto londrino, que com o tempo contribuiria para o dialeto adotado como padrão para a burocracia inglesa (o Padrão da Chancelaria - Chancery Standard). A pronúncia na linguagem dos Contos difere em muitos aspectos da pronúncia do inglês atual, o que dificulta a leitura do original pelo leitor moderno. A maior causa destas diferenças é que a chamada Grande Mudança Vocálica não havia ainda ocorrido completamente e, como consequência, muitas das vogais de Chaucer eram pronunciadas de uma maneira mais parecida com o latim, o italiano ou o português do que com inglês moderno. Por exemplo, a palavra "been" (particípio passado do verbo to be) era pronunciada "ben" (/be:/, com um longo "e") ao invés de "bin" (/bi:/, longo "i") como no inglês moderno.

Chaucer era um homem de letras culto e seus escritos demonstram grande conhecimento de obras como a Bíblia e o Romance da Rosa e autores como Ovídio, Dante, Petrarca e Boécio (deste último chegou a traduzir a Consolação da Filosofia ao inglês). Também era grande conhecedor de escritores ingleses contemporâneos, como seu amigo John Gower, e textos morais e religiosos diversos. Há referências a várias destas obras e autores nos Contos de Canterbury.

Em relação à forma narrativa geral, considera-se que a fonte mais importante de Chaucer na composição dos Contos foi o Decamerão, de Bocácio. Esta última obra também apresenta uma coleção de contos narrada por um grupo de pessoas, e vários dos contos do escritor inglês tem um paralelo na obra do italiano. A grande originalidade de Chaucer está no universo dos contos e dos personagens: enquanto no Decamerão os narradores de contos são nobres fugidos da peste negra, na obra de Chaucer encontram-se personagens de todas as classes sociais, desde o povo comum (moleiro, cozinheiro etc), religiosos (monge, prioresa) e nobres (cavaleiro, escudeiro). Cada um destes personagens narra um conto de acordo com sua visão de mundo, evidenciando a grande capacidade narrativa de Chaucer.

Argumento

A obra centra-se num grupo de viajantes que, saindo da pousada Tabard em Southwark (Londres), se dirigem à Catedral de Canterbury, com o objetivo de prestar homenagem ao santuário de São Thomas Becket, um bispo católico assassinado, em 1170, por partidários do rei Henrique II de Inglaterra.

Entre os viajantes está o próprio Chaucer. No Prólogo, o autor descreve em primeira pessoa os peregrinos reunidos na pousada, das mais variadas posições sociais e ofícios. As descrições são muito detalhadas, incluindo a aparência física, defeitos e virtudes de personalidade e dados da biografia. Os personagens incluem um cavaleiro e seu escudeiro, um mercador, monges, um frade mendicante, uma prioresa, um pároco, um vendedor de indulgências, um estudante, alguns profissionais liberais (um médico, um advogado, um jurista), um moleiro, um feitor, um cozinheiro, um marinheiro, um carpinteiro, um tintureiro, um tapeceiro, um marujo, um lavrador e uma viúva de cinco maridos. Assim, quase toda a sociedade medieval está retratada entre os peregrinos.

Ainda na pousada, por sugestão do hoteleiro, os personagens decidem passar o tempo durante a viagem contando histórias. Aquele que contar o melhor conto, na opinião da maioria, ganhará um jantar grátis. A partir desse ponto cada personagem conta um conto, de uma grande variedade temática, de acordo com a posição social de cada um. Muitos dos relatos são precedidos por um pequeno prólogo, e muitos são comentados entre os personagens depois de serem contados.

A variedade dos contos é evidente desde o início. O primeiro conto é o do cavaleiro, que narra uma história heroica típica dos romances de cavalaria da época, em que os valores principais são o amor cortês, a coragem e a honra. Segue-se o relato do moleiro, que conta uma história totalmente diferente, de caráter mundano e erótico e com uma linguagem de baixo calão, sobre como um estudante universitário engana o proprietário de sua casa para dormir com a mulher deste. Os contos que se seguem são de grande variedade, segundo a personalidade e o estrato social do narrador. O conto da Mulher de Bath, em especial, divide-se em duas partes: um prólogo, que cobre boa parte do capítulo e no qual a narradora, de nome Alice, fala de sua história e dos cinco matrimônios que contraiu ao longo da vida; e o conto propriamente, no qual se relata um episódio alegadamente ocorrido na corte do Rei Artur, em que um cavaleiro, após deflorar uma donzela, foi condenado a buscar a resposta de certa pergunta dentro de um ano ou seria condenado à morte.

No final da obra Chaucer incluiu uma retratação, em que desculpa-se a Deus e aos leitores pelo baixo nível moral de alguns contos.

Influência

Diz-se frequentemente que as obras de Chaucer em geral e Os Contos da Canterbury em particular contribuíram para que a língua inglesa se popularizasse como língua literária, uma vez que desde a conquista normanda da Inglaterra até o século XIV as línguas de maior prestígio no país foram o latim e o francês. É verdade, porém, que outros escritores contemporâneos de Chaucer também escreveram em inglês, de maneira que também é possível considerar os Contos como uma parte - importante - da tendência de adoção da língua vernacular como língua literária na Inglaterra de finais do século XIV.

Evidência da importância dada aos Os Contos da Canterbury é a existência de continuadores que adicionaram material à obra inacabada ou criaram contos novos. O Conto do Cozinheiro, deixado inacabado, foi completado por um escriba anônimo. Outra adição é o Conto do Camponês (Plowman's Tale), um conto anônimo do século XV incorporado a alguns manuscritos. Já o anônimo Conto de Beryn (Tale of Beryn), também do século XV, narra a chegada dos peregrinos à Canterbury e as aventuras amorosas do vendedor de indulgências. Um contemporâneo de Chaucer, o escritor John Lydgate, escreveu o Cerco de Tebas (Siege of Thebes, 1420) como um conto adicional dos Contos da Canterbury, incluindo a si mesmo como um dos peregrinos.

Os Contos foram impressos várias vezes a partir de fins do século XV, garantindo assim a influência da obra nas seguintes gerações de escritores ingleses. Um exemplo dessa influência é a peça teatral Os Dois Nobres Parentes, de William Shakespeare e John Fletcher, uma adaptação do Conto do Cavaleiro de Chaucer datada do início do século XVII. A escritora inglesa J. K. Rowling, reconhecida pela sua série Harry Potter, disse ter se inspirados nos contos para criar o livro Contos de Beedle, o Bardo, parte do universo da série.

sábado, 18 de novembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 19

 

Mensagem na Garrafa – 38 –

Criação da imagem por JFeldman com Microsoft Bing

Paulo Mendes Campos
Belo Horizonte/MG,1922–1991, Rio de Janeiro/RJ

MENINA NO JARDIM

Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama.

Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem. Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.

– Blá blé bli bá. – protestou a garotinha.

– É proibido pisar na grama. – explicou o guarda.

– Bá bá bá. – retrucou a garotinha com veemência.

– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.

– Buh buh. – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.

A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex”.

– Onde está sua mamãe?

A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.

– Que fizessem, deveriam fazê-lo. – disse o pai.

– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.

– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!

– E daí? Que tem isso?

– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela. – raciocinou a Lei.

– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?

O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:

– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.

– Buh bah. – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.

– Claro! – respondeu o pai.

– Que foi que ela disse agora?

– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 97

Ventos ventaram loucamente, o céu escureceu, negro negrume, primeiros pingos que se avolumaram e então o toró d'água. A galharia agitada, pássaros em pânico a piar, as calhas jorrando.  

O aguaceiro invadiu o anoitecer, assustou rosas e gerânios, encharcou os gramados, enquanto o ribeiro começou a roncar e a cascatinha ensaiou uma sinfonia da chuva. 

A ribalta, raios, relâmpagos. Sons e luzes na madrugada. Seres insones. Silêncio. Clareia a sexta quando Aurora desperta recebendo o amanhecer para outro dia de trabalho.

O sol desponta no horizonte.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

A. A. de Assis (1,5 milhão ou 1,5 milhões?)

Deve ter sido numa tarde de sábado, faz um bom tempinho. A gramática e a matemática, duas velhas amigas/rivais ou rivais/amigas, reuniram-se numa mesa de botequim para discutir um antigo problema. De logo uma disse pra outra: “Hoje só sairemos daqui depois de chegar a um consenso”.

A questão em pauta era a seguinte: o correto é dizer “1,5 milhão” ou “1,5 milhões?”. Pediram duas cervejas para lubrificar o raciocínio.

Na tentativa de já sair com vantagem, a gramática iniciou a contenda puxando a conversa para a erudição: “Temos que primeiro entender o significado das palavras ‘singular’ e ‘plural’, ambas herdadas do latim. ‘Singular’ (de ‘singularis’, derivado de ‘singulus’) significa ‘único’. ‘Plural’ (de ‘pluralis’, derivado de ‘plus’) significa ‘mais de um’. Daí temos que ‘’um’ é singular, ‘dois’ é plural”. Nisso a gramática e a matemática estavam de acordo. Um é, dois são; um milhão, dois milhões. Valeu um copo com espuma o bom começo do papo.

A briga subiu mesmo de tom foi quando entraram em jogo as frações. Se plural significa “mais de um”, então 1,5 deveria ser plural, visto que 1,5 é mais do que um. É um e meio. Um mais a metade de um. Ou seja, são duas porções – uma maior outra menor.

A discussão esquentou a tal ponto que o garçom chegou a ficar assustado, temendo que a qualquer momento as duas doutas debatentes esquecessem os bons modos e partissem para os tapas. Para abrandar os ânimos, ele por prudência serviu mais duas cervejas. Porém as duas senhoras (a gramática e a matemática) nem prestaram atenção na gentileza.

Era aquele tal de singulus, singularis, plus, pluris, pluralis... De que diabo estavam afinal falando? Uma e meia garrafa ou uma e meia garrafas? Na conta do garçom já eram quatro.

A gramática insistia: “Aquilo que vem depois de um número decimal iniciado por 1 (um) fica sempre no singular. Assim, até 1,9 dizemos ‘1,9 milhão’; daí por diante dizemos ‘2 milhões... 2,1 milhões... 3,2 milhões... 9,8 milhões...’’’

“Mas quem decidiu isso?”, quis saber a matemática.

“Eu decidi”, rebateu peremptória a gramática, sem contudo entrar em detalhes. Tá rindo?... Também eu acho empombada essa palavra “peremptória” – coisa de gente mandona. Mas se a gramática peremptou tá peremptado: “Alguém teria que dar a palavra final; então eu (a gramática), no uso das minhas milenares atribuições, resolvi que fração não conta; contam somente os números inteiros: 1,2,3,4,5... Entendeu?”.

“Entender não entendi muito bem não”, emendou a matemática, “mas vou fazer de conta que sim, visto que sua especialidade é mesmo complicar as coisas. Para mim é tudo mais simples: 2 mais 2 são 4, e ponto. Não há o que discutir”.

Resumindo: 1,5 “litro” de água “basta” para matar a sede, mas 10,5 “litros” de cerveja não “bastam” para pacificar duas cabeças sábias quando se atracam numa boa polêmica.

O garçom trouxe mais duas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 22.6.2023)

Fonte: Texto enviado pelo autor