domingo, 16 de dezembro de 2012

Teatro de Ontem e de Hoje (Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas)


O espetáculo homenageia Chiquinha Gonzaga, numa biografia musical da compositora e abolicionista carioca. A peça, escrita por encomenda do Teatro Popular do Sesi a Maria Adelaide Amaral, tem sua primeira montagem em São Paulo, sob a direção de Osmar Rodrigues Cruz, em 1983. Quinze anos depois, comemorando os 150 anos de aniversário do nascimento da artista, o Rio de Janeiro apresenta uma remontagem modernizada, numa grande produção encabeçada pelo diretor Charles Möeller e o diretor musical Claudio Botelho. 

A peça de Maria Adelaide Amaral fala da vida pública da compositora que, em meados do século XIX, disse não aos papéis tradicionais da mulher, tornando-se profissional da música e envolvendo-se em todas as grandes causas sociais e políticas do seu tempo. A sua primeira montagem é de 1983 e tem direção de Osmar Rodrigues Cruz, cenografia de Flávio Império, protagonizada por Regina Braga, à frente de grande elenco, numa superprodução do Teatro Popular do Sesi, TPS. O texto apresenta 140 personagens, que a direção distribui entre os 32 atores do elenco, cada um se desdobrando em até seis papéis, numa chave cênica similar ao sistema coringa, de Augusto Boal. 

O cenógrafo Flávio Império fragmenta a cena ao máximo, empurrando-a para fora de seus limites em direção ao público, criando também diversos planos para atender as exigências do texto. Os figurinos, adereços, perucas e chapéus, compostos por mais de seiscentas peças, são divididos em cores: para as mulheres, os tons da primavera e para os homens predominam o branco e o preto. O espetáculo arrebata vários prêmios, dentre eles, Instituto Nacional de Artes Cênicas, Inacen de um dos cinco melhores espetáculos do ano, Molière de melhor autor para Maria Adelaide Amaral, melhor atriz para Regina Braga, Associação Paulista de Críticos de Artes, APCA de melhor cenografia e figurinos para Flávio Império, melhor direção musical para Oswaldo Sperandio, e APCA grande prêmio da crítica para Osmar Rodrigues Cruz, pelos 20 anos de trabalho à frente do TPS. Em mais de um ano e meio em cartaz, a montagem foi vista por cerca de 300 mil espectadores.

A montagem carioca ocorre quinze anos depois, passando por algumas modernizações, sob o título de O Abre Alas, com encenação de Charles Möeller e direção musical de Claudio Botelho. Nessa versão, encabeçada por Rosamaria Murtinho, Chiquinha Gonzaga, a militante da causa abolicionista, da campanha republicana e da luta pelo reconhecimento do direito autoral, é também destacada por seus feitos artísticos e sua participação política. 

Enquanto as cenas de diálogo apresentam o contexto histórico, as cenas musicais mostram a compositora. Nos diálogos, a atriz lança mão de uma interpretação levemente distanciada, que valoriza a clareza da argumentação. Nos números musicais, surge uma igualmente suave estilização, que investe na graciosidade dos movimentos.

O espetáculo recebe um tratamento de grande musical, com cantores, coro e linguagem grandiloqüente. As músicas de Chiquinha Gonzaga são misturadas a canções do diretor musical e de outros compositores da época. A crítica Barbara Heliodora, considerando que o trabalho de Rosamaria Murtinho é responsável pela única e "verdadeira tentativa de chegar perto da homenageada", condena quase integralmente o resultado final, principalmente sua grandiosidade: "Na verdade, as pequenas incursões de Rosamaria pelo canto são muito melhores (porque agradáveis) do que as dos supostos cantores".1 A crítica Mariângela Alves de Lima, que observa que a peça não permite ver a opressão feminina sofrida por Chiquinha, vê qualidades no texto e na montagem: "Mas há, na estrutura da peça, um lugar reservado para o exercício da fantasia, da imaginação e dos outros atributos humanos que, na verdade, alimentam o impulso para a participação na vida coletiva. A artista, poética e sonhadora, se expressa por números musicais. Dividindo com nitidez um plano dramático da militância, configurado nos diálogos, e o da criação, concentrado nos números musicais, o roteiro propõe uma complementaridade quase ideal para o gênero musical. (...) Espetáculo com muitas formas e com algumas formas nada discretas, deleitando-se com a engenhosidade da cenotécnica e da iluminotécnica, com a habilidade vocal dos seus cantores e músicos, funciona também como a celebração de um gênero teatral que deixamos de cultivar".2

Notas
1. HELIODORA, Barbara. Uma grandiosidade que não alcança Chiquinha Gonzaga. O Globo, Rio de Janeiro, 6 set. 1998.

2. LIMA, Mariângela Alves de. 'O Abre Alas' celebra a emancipação da mulher. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 mar. 1999.

Fonte:

Olivaldo Junior (Para Nós)


Tentei falar o que não posso. Tentei poder o que não falo. Tentei falar. Não consegui. Jamais adiantaria.

Para nós, nenhum pára-raios
daria um jeito no curto-circuito.

Somos fogo, mas se apaga
nossa história.

Sei que me apego,
mas não te pego.

Só me afogo, pois quem paga
toda a conta
sou eu.

Eu, que me meto a cantar,
que te canto adoidado,
mas não sei onde eu ando.

Ando sempre ao lado
de onde você não me nota,
de onde você faz de conta
que eu não sou amado.

Para nós, nenhum parabéns
faria efeito no longo descuido
que bem tivemos conosco.

Moji Guaçu, SP, dez de dezembro de 2012.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Idéias sobre o Teatro– Parte 2) O Conservatório Dramático


A literatura dramática tem, como todo o povo constituído, um corpo policial, que lhe serve de censura e pena: é o conservatório. Dois são, ou devem ser, os fins desta instituição: o moral e o intelectual. Preenche o primeiro na correção das feições menos decentes das concepções dramáticas; atinge ao segundo analisando e decidindo sobre o mérito literário — dessas mesmas concepções. Com esses alvos um conservatório dramático é mais que útil, é necessário. A crítica oficial, tribunal sem apelação, garantido pelo governo, sustentado pela opinião pública, é a mais fecunda das críticas, quando pautada pela razão, e despida das estratégias surdas.

Todas as tentativas, pois, toda a idéia para nulificar uma instituição como esta, é nulificar o teatro, e tirar-lhe a feição civilizadora que porventura lhe assiste. Corresponderá à definição que aqui damos desse tribunal de censura, a instituição que temos aí chamada — Conservatório Dramático? Se não corresponde, onde está a causa desse divórcio entre a idéia e o corpo?

Dando a primeira pergunta uma negativa, vejamos onde existe essa causa. É evidente que na base, na constituição interna, na lei de organização. As atribuições do Conservatório limitam-se a apontar os pontos descarnados do corpo que a decência manda cobrir: nunca as ofensas feitas às leis do país, e à religião ... do Estado; mais nada. Assim procede o primeiro fim a que se propõe uma corporação dessa ordem; mas o segundo? nem uma concessão, nem um direito. Organizado desta maneira era inútil reunir os homens da literatura nesse tribunal; um grupo de vestais bastava.

Não sei que razão se pode alegar em defesa da organização atual do nosso Conservatório, não sei. Viciado na primitiva, não tem ainda hoje uma fórmula e um fim mais razoável com as aspirações do teatro e com o senso comum. Preenchendo o primeiro dos dois alvos a que deve atender, o Conservatório em vez de se constituir um corpo deliberativo, torna-se uma simples máquina, instrumento comum, não sem ação que traça os seus juízos sobre as linhas implacáveis de um estatuto que lhe serve de norma. 

Julgar de uma composição pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis e à religião, não é discutir-lhe o mérito puramente literário, no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras no jogo da língua.

Na segunda hipótese há mister de conhecimentos mais amplos, e conhecimentos tais que possam legitimar uma magistratura intelectual. Na primeira, como disse, basta apenas meia dúzia de vestais e duas ou três daquelas fidalgas devotas do rei de Mafra. Estava preenchido o fim. Julgar do valor literário de uma composição, é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um
direito do espírito: e tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação. Contudo, por vezes as inteligências do nosso Conservatório como que sacodem esse freio que lhe serve de lei, e entram no exercício desse direito que se lhe nega; não deliberam, é verdade, mas protestam. A estátua lá vai tomar vida nas mãos de Prometeu, mas a inferioridade do mármore fica assinalada com a autópsia do escopro [1].

Mas ganha a literatura, ganha a arte com essas análises da sombra? Ganha, quando muito, o arquivo. A análise das concepções, o estudo das prosódias, vão morrer, ou pelo menos dormir no pó das estantes. Não é esta a missão de um Conservatório dramático. Antes negar a inteligência que limitá-la ao estudo enfadonho das indecências, e marcar-lhe as inspirações pelos artigos de uma lei viciosa. E — note-se bem! — é esta uma questão de grande alcance. Qual é a influência de um Conservatório organizado desta forma? E que respeito pode inspirar assim ao teatro?

Trocam-se os papéis. A instituição perde o direito de juiz e desce na razão da ascendência do teatro. Façam ampliar as atribuições desse corpo; procurem dar-lhe outro caráter mais sério, outros direitos mais iniciadores; façam dessa sacristia de igreja um Tribunal de censura.

Completem, porém, toda essa mudança de forma. Qual é o resultado do anônimo? Se o Conservatório é um júri deliberativo, deve ser inteligente; e por que não há de a inteligência minguar os seus juízos? Em matéria de arte eu não conheço susceptibilidades nem interesses. Emancipem o espirito, hão de respeitar-lhe as decisões.

Será fácil uma emancipação do espírito neste caso? — É. Basta que os governos compreendam um dia esta verdade de que o teatro não é uma simples instituição de recreio, mas um corpo de iniciativa nacional e humana.

Ora, os governos que têm descido o olhar e a mão a tanta coisa fútil, não repararam ainda nesta nesga de força social, apeada de sua ação, arredada de seu caminho por caprichos mal-entendidos, que a fortuna colocou por fatalidade à sombra da lei. Criaram um Conservatório Dramático por instinto de imitação criaram uma coisa a que tiveram a delicadeza ou mau gosto de chamar teatro normal, e dormiram descansados, como se tivessem levantado uma pirâmide no Egito. Ora, todos nós sabemos o que é esse Conservatório e este teatro normal; todos nós temos assistido às a o agonias de um e aos desvario do outro; todos temos visto como essas duas instituições destinadas caminharem de acordo na rota da arte, divorciaram-se de alvo e de estrada. O Conservatório comprometeu a dignidade do seu papel, o antes o obrigaram a isso, e o teatro, acordando um dia com instinto de César, tentou conquistar todo o mundo da arte, e entreviu também que lhe cumpria começar a empresa por um tribunal de censura.

Com esta guerra civil no mundo dramático, limitadas as decisões de censura, está claro, e claro a olhos nus que a arte sofria e cor ela a massa popular, as platéias. A censura estava obrigada a suicidar-se de um direito e subscrever as frioleiras [2] mais insensatas que o teatro entendesse qualificar de composição dramática. Este estado de coisas que eu percebo, inteligência mínima como sou, será percebido também pelos governos? Não é fácil de aceitar a hipótese negativa, porquanto evidentemente não os posso considerar abaixo de mim na ótica do espírito. Concordo pois, que os governo não têm sido estranhos nesta anarquia da arte, e então uma negligência assim, depõe muito contra a consciência do poder.

Não há fugir daqui. Onde está esse projeto sobre a literatura dramática apresentado há tempos na câmara temporária? Era matéria de contrabando, e as aspirações políticas estavam ocupadas em negócios que visavam outros alvos mais sólidos ou pelo menos mais reais. Esse projeto, dando um caráter mais sério ao teatro, abria as suas portas às inteligências dramáticas por meio de um incentivo honroso. Trazia em si um princípio de vida: lá foi para o barbante do esquecimento!

É simples, e não carece de larga observação: os governos em matéria de arte e literatura olham muito de alto; não tomam o trabalho de descer à análise para dar a mão ao que o merece. Entretanto o que se pede não é uma vigilância exclusiva; ninguém pretende do poder emprego absoluto dos seus sentidos e faculdades. Nesta questão sobretudo é fácil o remédio; basta uma reforma pronta, inteiriça, radical, e o Conservatório Dramático entrará na esfera dos deveres e direitos que fazem completar o pensamento de sua criação.

Com o direito de reprovar e proibir por incapacidade intelectual, com a viseira levantada ao espírito da abolição do anônimo, o Conservatório, como disse acima, deixa de ser uma sacristia de igreja para ser um tribunal de censura. E sabem o que seria então esse tribunal? uma muralha de inteligência às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a dignidade do tablado, porque infelizmente é fato líquido, há lá também uma dignidade.

O Conservatório seria isso e estaria nas linhas do seu dever e de seu direito. Mas no meio destes reparos, resta ainda um fato importante — a literatura dramática. Com uma reforma no Conservatório, parece-me claro que ganhava também a arte escrita. Não temos (ninguém será tão ingênuo que confesse esse absurdo) não temos literatura dramática, na extensão da frase; algumas estrelas não fazem uma constelação: são lembranças deixadas no tablado por distração, palavras soltas, aromas queimados, despidos de todo o caráter sacerdotal. Não podia o Conservatório tomar um encargo no sentido de fazer desenvolver o elemento dramático na literatura? As vantagens são evidentes — além de emancipar o teatro, não expunha as platéias aos barbarismos das traduções de fancaria[3] que compõem uma larga parte dos nossos repertórios.

Mas, entendam bem! inculco esse encargo ao Conservatório, mas a um Conservatório que eu imagino, que além de possuir os direitos conferidos por uma reforma, deve possuir esses direitos de capacidade conferidos pela inteligência e pelos conhecimentos. Não é ofender com isto as inteligências legítimas do atual Conservatório. Eu não nego o sol; o que nego, ou pelo menos o que condeno em consciência são as sombras que não dão luz e que mareiam a luz.

Um Conservatório ilustrado em absoluto é uma garantia para o teatro, para a platéia e para a literatura. Para fazê-lo assim basta que o poder faça descer essa reforma tão desejada.
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Nota:
[1] Escopro
Instrumento de ferro e aço com que se lavram madeiras, pedras, etc.; cinzel. 
[2] Frioleira
Tolice, parvoíce.
[3] Fancaria
Trabalho grosseiro, mal acabado; pacotilha.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Vivaldo Terres (Poemas de Amor e Dor)


FIM DE UM ROMANCE

O fim de um romance é de tristeza e dor, 
Eu conheço bem isto, porque já perdi, 
Na vida um amor. 

Como a gente sofre, como a gente luta, 
Para esquecer o amor perdido, que infelizmente, 
Já partiu pra longe, mas que sempre, 
Fica no peito escondido. 

Este amor que amei e que pelo qual, 
Ainda sofro, me traz o conforto, 
Por tê-la amado tanto, quantas, e quantas vezes, 
Eu também chorando, enxugava beijando, 
Dos seus olhos o pranto. 

APAIXONADOS 

Já faz um ano e meio que nós nos amamos, 
Com um amor sincero e verdadeiro, 
Bem sei que o nosso amor nasceu de um beijo, 
Beijo este quente e demorado... 
Que nos deixou tremendamente apaixonados. 

Nosso amor na verdade é maravilhoso, 
Quem não nos conhece sentem admiração, 
Por não compreender as nossas vidas, 
E por não poderem trazer a mesma alegria, 
Que nós temos no coração. 

Sempre, sempre, vamos nos amarmos, 
Com muito carinho e bastante fé, 
Temos certeza que tudo dará certo, 
E vamos ser sempre felizes se Deus quiser. 

TEUS OLHOS VERDES 

Teus olhos verdes, cor de esmeralda... 
Teus lábios vermelhos, cor de carmim, 
Inspiram-me desejos dos mais tentadores, 
Eu sei que não queres que seja, 
Mas eu vejo assim. 

És toda perfeita, de corpo atraente, 
Tua pele clara te faz linda demais, 
Faz que morra de amores por ti, 
Pois nunca tinha visto alguém igual. 

Tua simplicidade teu jeito de ser, 
Faz-te não querer ser notada ou amada, 
Mas quero que saibas que mesmo não tendo. 
Este direito eu tive a felicidade de entrares, 
No meu peito e fazeres morada. 

AMOR PURO 

Meu amor, tu pensas e até às vezes me dizes, 
Que o amor, não sendo puro, em si, não cria raízes. 
Foi pensando nestas frases, no teu modo de expressar, 
Que acabei acreditando que o amor, não sendo puro, 
Não chega a germinar. 

Mas o nosso amor querida, tu sabes o quanto é seguro, 
Nosso amor é o mais belo, 
E o maior amor do mundo.

Graças a Deus te encontrei, 
Quando mais eu precisava, 
Tu vieste em meu socorro, 
Quando tudo em mim faltava, 
A mim deste carinho, ternura e compreensão, 
Falando coisas tão lindas que alegrou-me o coração.

A TARDE ERA BELA 

A tarde era bela, o sol radiante. 
Tu estavas exultante de felicidade. 
O vento soprava teus belos cabelos. 
Mas tu não aceitavas tal leviandade. 

E o vento atrevido brincando contigo. 
Acariciava teu rosto com satisfação! 
Embora sabendo que não aceitavas, 
Mas ele não via outra predileção 

Até porque solitário e sem saber a aonde ir. 
Encontrou-te naquela tarde... 
E apaixonou-se por ti... 

Afagando teu rosto e os teus cabelos dourados. 
Partiu para muito longe solitário! 
E apaixonado... 

Fonte:
O Autor

Jornais e Revistas do Brasil (Correio de São Paulo: diário noticioso e informativo)


Período disponível: 1932 a 1937 
Local: São Paulo, SP 
  
Em outubro de 1930, Getúlio Vargas, à frente de uma coligação de forças oligárquicas do Rio Grande do Sul, seu estado, Minas Gerais e Paraíba, depõe o presidente Washington Luís, político fluminense, porém ligado à oligarquia paulista. O episódio ficou conhecido como Revolução de 30 e marcava o fim da chamada política do café-com-leite, por meio da qual as oligarquias paulista e mineira vinham se revezando no poder, e início de não poucas e profundas mudanças na política e economia do país. Essas mudanças se iniciaram já governo provisório presidido por Vargas, que alijou a maioria da oligarquia paulista do poder, assim como retardava a convocação de uma assembléia constituinte destinada a reordenar o país em bases liberais e democráticas.

 Estes últimos fatos, sobretudo, motivaram a reação armada dos paulistas, a chamada Revolução Constitucionalista. Homens, mulheres, estudantes, políticos, industriais e operários se uniram às forças militares (Exército e Força Pública) do estado contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas, o que resultou num dos maiores conflitos armados da história nacional, marco, até hoje celebrado, da história de São Paulo. Sem poder contar com a adesão prometida de setores dissidentes das oligarquias mineira e gaúcha e enfrentando as tropas maiores e mais bem equipadas do Governo Federal, os paulistas foram derrotados. Mas não saíram de mãos vazias: ainda que Vargas continuasse no poder, em 1933 seria eleita a Assembleia Constituinte, que promulgaria no ano seguinte a nova Constituição do Brasil

 Foi nesse contexto que surgiu, no dia 16 de junho, o Correio de São Paulo, diário com notícias corriqueiras, mas também com forte apelo político liberal e regionalista. Como praticamente toda a imprensa paulista, o jornal assumiu os ideais constitucionalistas das oligarquias, empresários e classe média paulistas.

 Escrevia o jornal no dia 6 de agosto de 1932, quase um mês depois de eclodir a “Revolução”:“As senhoras paulistas [que?] bordaram a bandeira nacional, ofertada ao grande encouraçado ‘S.Paulo’, símbolo augusto da força, patriotismo e unidade da extremecida Pátria, conclamam a brava oficialidade e valentes marujos desse invicto vaso de guerra para que comunguem conosco na campanha dos sacros ideais de liberdade e justiça contra a nefasta, ditadura que enluta, desgoverna e divide a nação. Concitando-os a se baterem pela causa que, neste momento épico da nacionalidade, empolga a alma de S. Paulo, Mato Grosso e das populações livres dos outros Estados, só pensamos em Deus e na Pátria em cujo altar imolamos nossa oferendas e orações, porque a nossa luta e os nossos sacrifícios são pelo Brasil e para o Brasil”.

 Nesse mesmo número, havia a gravura de um homem que apresentava estampado em sua camisa as iniciais M.M.D.C, de Martins, Miragaia, Drausio e Camargo. O acrônimo homenageava os mortos pelas tropas federais em maio daquele ano. Lia-se também na gravura: “Você tem um dever a cumprir consulte a sua consciência!”, mais um apelo à mobilização contra as forças federais.

 Com a derrota dos paulistas, a rotina de notícias foi voltando ao normal. Seção esportiva, filmes e peças em exibição e até seção de quiromancia por correspondência compunham as páginas do jornal. Inicialmente era publicado em quatro páginas, aumentou para seis e, por fim, oito páginas.

 O Correio de São Paulo circulou de 1932 a 1937 e teve como diretores Rubens do Amaral, Lelis Vieria, Riba Marinho e Pedro Ferraz do Amaral. De início propriedade da Empresa de Correio de São Paulo Ltda, tempos depois passou à Empresa Paulista Jornalística Ltda.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/correio-de-são-paulo-diário-noticioso-e-informativo

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 28 de abril: Noite de Abril


Que linda noite, meu Deus!

Fazia um luar magnífico. As estrelas brilhavam no azul do céu. As brisas apenas murmurejavam entre as sombras das árvores.

Era uma noite de abril, uma dessas belas noites da nossa terra, noites de poesia e de romance.

Estávamos no Passeio Público. Éramos dois, e conversávamos sobre tanta coisa, fazíamos tantos sonhos acordados, tantos poemas de imaginação, que nem sei dizer.

Há muita gente que prefere o dia à noite. Eu, ao contrário, sou da seita dos peripatéticos, e sigo neste ponto a opinião de Meri.

Não há coisa mais bela e mais poética neste mundo do que sejam as estrelas. O sol é um astro egoísta, incômodo, e que demais a mais faz-se de espião e quer intrometer-se em tudo. 

O sol causa dores de cabeça, queima as faces as mais mimosas, estraga as mais belas cores, obriga a gente a não sair de casa, rouba-nos o prazer de passar no campo, e gera um aluvião de insetos e mosquitos capaz de morder a todo gênero humano.

Decididamente prefiro a noite com as suas estrelas, com o silêncio de suas horas mortas, e as suas sombras pálidas e melancólicas.

É sempre de noite que temos as nossas melhores idéias; e quando se trata de tomar uma resolução importante, ninguém deixa de dormir sobre o caso.

Quanto à poesia, nem falemos. Se quereis sentir, se desejais ter inspirações, passeai de noite ao relento, conversando com as estrelas. Ficareis poeta por força.

O mesmo me aconteceu nessa noite de que vos falei. Conversávamos sobre música, sobre a representação dos Puritanos, sobre o teatro, e de repente senti em mim umas faíscas do fogo sagrado.

Lembrava-me da Charton, e parecia-me ouvir dessas belas volatas que brincam nos seus lábios, que se elevam gradualmente até confundir-se em ondas de harmonias, que morrem a pouco e pouco, e vão perder-se num sorriso ou num tênue suspiro que lhe parte o seio.

Muitas vezes faltavam-nos as imagens. Seria necessário recorrer a todas as artes, materializar o som, colorir a voz, dar corpo à música, para descrever todas as belezas desse canto inspirado.

Assim há umas notas que chamejam, irradiam como chispas brilhantes lançadas no ar; há outras que caem docemente como gota de orvalho da manhã. Umas são brilhantes que desferem raios de luz; outras são flores que exalam perfumes à noite.

Muitas sorriem, brincam com os lábios, aninham-se nas covinhas da boca, fazem mil travessuras, furtam um beijo – e fogem. Algumas suspiram, tremem, vacilam como  a lágrima que se desfia pelas faces, palpitam como um seio oprimido, e por fim vem expirar suavemente dentro d’alma.

Às vezes dir-se-ia que o beija-flor se aninha no cálice de uma rosa; outras que bate as suas asas douradas e se lança no espaço, colorindo-se aos raios do sol.

E todos esses arabescos e fantasias brilhantes que vos traça a imaginação, todas essas flores mimosas, esses raios de luz e esses lindos coloridos, não valem o drama cheio de emoções que se passa em vossa alma aos sons daquela voz harmoniosa.

Há muito tempo não tem o nosso teatro uma noite como a dos Puritanos; a representação correu  perfeitamente, e todos os papéis foram mais ou menos bem desempenhados.

Dufrene, o novo tenor, apesar da pouca extensão de sua voz, agradou. É um excelente artista, e canta com muito estilo e muita expressão. Estou certo que, quando estivermos habituados como seu canto, o ouviremos com muito mais prazer do que nas primeiras noites.

Bouché foi perfeitamente no seu pequeno papel. A sua bela voz produziu o melhor efeito no magnífico dueto do segundo ato.

A Charton excedeu-se. Graciosa nas expansões infantis de um amor feliz, sublime no desespero, natural nos desvarios da paixão, foi artista desde o começo ao fim. Havia naquele dia o quer que seja que a animava, que a excitava a obscurecer os seus triunfos passados.

No dia antecedente já tínhamos ouvido a Charton; mas despida de todo este prestigio do teatro, de toda esta fascinação das luzes e da cena. Nem por isso a achamos menos brilhante.

Foi isto domingo na festa de São Francisco. A igreja estava armada com toda a simplicidade. Apenas algumas grinaldas de rosas se destacavam pelas alvas paredes e caiam do teto em festões.

Uma meia obscuridade, empalidecida pelos raios dos círios, realçava o aspecto grave e simples do templo, e dava-lhe uma expressão de recolhimento e de santidade, que não têm ordinariamente as nossas igrejas em dias de festa.

As litanias sagradas e os sons do órgão se confundiam um momento; depois o silêncio se restabelecia, e uma voz harmoniosa erguia ao céu uma prece traduzida nalguma bela melodia que se casava perfeitamente com as palavras do ritual.

Cantou a Casaloni, o Bouché, o Gentil, o Arnaud, e finalmente a Charton.

Receávamos uma desilusão; pensávamos que, fora do teatro, o seu canto não tivesse o mesmo poder. Mas o verdadeiro artista tem n’alma o fogo sagrado, a centelha divina, que, no instante em que se anima, dá brilho aos seus olhos e expressão aos seus gestos.

Um concurso numeroso enchia a igreja e assistia com satisfação a esta solenidade religiosa de uma das ordens mais importantes desta corte.

Este ano muitos melhoramentos se introduziram, devidos ao zelo de um dos definidores, o Sr. Miranda. Além da simplicidade com que ele fez ornar a igreja, admitiu o costume europeu, e mandou colocar na capela-mor elegantes assentos para as senhoras.

Tudo preparado com muita singeleza e bom gosto, de maneira que as senhoras podem assistir às solenidades, sem estarem expostas aos empurrões da multidão que às vezes se apinha na igreja.

O hospital da ordem teve também um grande melhoramento com o serviço da iluminação a gás que já se acha estabelecido, graças à  generosidade de um dos definidores, o Dr. Isidro Borges Monteiro.

Estava em prática que o definidor incumbido do hospital carregava com a despesa da exposição anual que era costume fazer-se. Entendeu o Dr. Isidro que devia acabar com este precedente, que, além de não trazer utilidade alguma para a ordem, era excessivamente incômodo aos doentes. Nesta idéia dotou o hospital com a iluminação a gás, que monta a perto de dois contos de réis, e acabou com as exposições anuais.

Não foi, portanto, unicamente uma generosidade, mas um benefício real e muito proveitoso que o Dr. Isidro fez à ordem. O hospital pode ser visitado em qualquer dia pelas pessoas que solicitarem este favor; e estas poderão bem julgar do estado vantajoso em que se acha este estabelecimento.

Foi ainda por esforços destes dois membros da ordem que se acabou com o uso das mesas lautas e dos banquetes que se costumavam oferecer aos convidados depois da festa, fazendo assim da casa de Deus uma espécie de café ou de restaurante.

Neste ponto do meu artigo vi-me obrigado, pela primeira vez, a passar uma repreensão muito séria à minha pena, que desejava escrever uma dissertação sobre o culto da igreja.

Não houve remédio senão lembrar-lhe os desvios em que muitas vezes caem certas penas que escrevem sobre coisas de que não têm perfeito conhecimento.

Assim há nesta corte um periódico, de que nem sei o nome que se julgou habilitado a dirigir uma insinuação pérfida a um dos nossos mais distintos diplomatas, o Sr. Dr. José Maria do Amaral.

Responderíamos a este artigo, se não estivéssemos convencidos que o único nome do Sr. Amaral contém a maior defesa e o maior elogio que se possa fazer do seu caráter honesto a toda prova. Além de que, pessoa mais habilitada já mostrou todas as falsidades em que caiu o autor daquele escrito, o qual nem tem a coragem de sua opinião.

Batido com as suas próprias palavras, carregando com a responsabilidade de uma acusação grave feita contra um alto funcionário público, devia ou aceitar a discussão que lhe ofereciam, ou distratar-se do que havia dito. Não o fazendo, classificou muito claramente a natureza dessa insinuação.

Depois de lembrar este exemplo à minha pena, lembrei-lhe o que já lhe tinha acontecido a respeito do tudo e nada.

Lembrei-lhe que numa das revistas passadas tinha-me comprometido horrivelmente e feito cometer uma injustiça clamorosa contra um dos mais notáveis escritores do Brasil.

E tudo isso produzido por uma vírgula travessa que saiu do seu lugar e foi-se intrometer onde aonde não era chamada.

Eis o caso em duas palavras: Numa das revistas passadas escrevi eu com a melhor boa-fé e sem malícia o seguinte:

“Os homens que falam de tudo e nada, dizem têm aí um belo tema para dissertarem, etc.”

Agora, passando os olhos o meu artigo, fiquei pasmo: em lugar do que eu tinha escrito havia uma blasfêmia deste teor:

“Os homens que falam de tudo e nada dizem, têm aí um belo tema para dissertarem, etc.”

E por isso vem o homem citando as tais malditas palavras: “Os homens que falam de tudo e nada dizem!”

Eu que sou o primeiro a reconhecer (como ponto de fé, como dogma) a graça esquisita, a fina elegância, o bom gosto, o espírito delicado do sublime escritor do Jornal do Comércio, podia cair naquele contra-senso e avançar que ele fala de tudo e nada diz?

Fala de tudo!... Que insinuação pérfida! Como podia eu dizer semelhante blasfêmia, se ele só fala de si e dos seus amigos?

E nada diz!... Outra falsidade. Não só diz, mas rediz,  repete três e quatro vezes a mesma coisa. Queixa-se sempre de ser obrigado a escrever aquilo de que todos o desobrigam.

Só quem não tiver lido... Que disparate! Pois alguém pode deixar de ter lido o Tudo e nada? Não é possível! Depois da Quaresma, da Páscoa e das confissões, vem o tempo das penitências.

Já vêem os meus leitores que nunca foi minha intenção escrever aquele absurdo. A minha pena, que tem a balda dos calemburgos [1], fez, sem que eu o sentisse, uma transposição de vírgula, e arranjou-me assim este grave comprometimento.

O homem, porém, tomou o negócio ao sério; e, portanto, estou perdido. Que será de mim a lutar com uma pena que escreve com tinta simpática, e que por conseguinte tem a amizade de todo o mundo?

E por onde foi começar? Pelas minhas celebérrimas erratas! Que há de ser de mim? Fui meter-me no orçamento, eu que não estou habituado a somar o dinheiro da nação e a contar os emolumentos que às vezes se percebem pelos requerimentos das partes. É bem feito que o mestre me dê o quinau.

Demais, ele tinha justa razão de zangar-se. Eu ofendi-lhe  um privilégio exclusivo, usurpei-lhe um direito sagrado, ataquei um elemento essencial de sua existência, esbulhei-o [2] de um brevet de perfection, tirei-lhe um monopólio que ele exercia, enfim, errei sem pedir-lhe vênia e permissão.

E, antes que o ofenda segunda vez, vou mudar de assunto e falar de outras coisas.

O governo contratou finalmente a construção de um teatro com a primeira empresa que para este fim se organizou. Era tempo, porque o Provisório começa de novo a revoltar-se contra a permanência.

Na segunda-feira alguns barrotes do soalho entenderam que, estando passados os três anos de existência, tinham todo o direito de apodrecerem e partiram-se. E assim o fizeram, dando ao governo e à empresa um grande exemplo de exatidão e lealdade no cumprimento dos contratos.

A polícia, que assistiu ao fato, registrou-o, e, como o soalho estava no seu direito, assentou que seria uma violência inaudita o contrariá-lo.

Vejam que respeito se vota entre nós à lei dos contratos! Que boa-fé preside às convenções! O Teatro Provisório pode cair em cima das nossas cabeças, e ninguém tratará de prevenir semelhante desastre; porque enfim o edifício só tem obrigação de existir três anos e estes três anos estão concluídos.

Assim, pois, estamos bem servidos de teatros líricos; um está em projetos, o outro em ruínas. Veremos quem ganha a aposta: se o novo se construí antes do velho cair.

Quanto a mim, aposto pelo velho, apesar da boa vontade da empresa Pedro II, que se empenha em realizar a sua idéia o mais breve possível.

Desta vez deixemos em paz a política; os ministros estão muito ocupados com os relatórios. E um relatório vale por dez regulamentos.
––––––––––-
Notas:
[1] balda dos calemburgos
Mania de trocadilhos, de jogo de palavras parecidas no som e diferentes no significado, e que dão margem a equívocos.
[2] esbulhei-o
Despojei-o

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Carolina Ramos - Santos/SP (Epopéia)



Fonte:
RAMOS, Carolina. Destino: poesias. Editor: Cláudio de Cápua. Junho/2011.

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 2


Adelmar Tavares da Silva Cavalcanti
"Principe dos Trovadores Brasileiros"
(Recife/PE, 16 de fevereiro de 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 20 de junho de 1963)

" PARA O MEU PERDÃO "

Eu que proclamo odiar-te, eu que proclamo
querer-te mal com fúria e com rancor,
mal sabes tu como, em segredo, te amo
o vulto pensativo e sofredor.

Quem vê o fel que em cólera derramo
no ódio que punge desesperador,
mal sabe que, se a sós me encontro,
chamo por teu amor com o mais profundo amor...

Mal sabes que se acaso, novamente,
buscasses o calor do velho ninho
de onde um capricho te fizera ausente,

eu, esquecendo a tua ingratidão,
juncaria de rosas o caminho
em que voltasses para o meu perdão . . .

" UMA RAINHA E UM POETA "

E todo o teu amor comedimento,
calma que raciocina bem segura.
E eu, - não sei se ventura, ou desventura
sofreguidão, sou arrebatamento.

Pesas os gestos, medes o momento
em que olhes com carinho, ou com secura
E eu, prisioneiro da paixão mais pura,
sou como a folha com que brinca o vento ...

Amas como as Rainhas, Soberanas,
que receiam da Corte as vis intrigas,
e o boquejar de indiscrições profanes,

e eu, desprezando cortes e traidores,
como as cigarras, abro-me em cantigas,
e clamo, aos céus e terras, meus amores …
===================

Afonso Felix de Souza
(Jaraguá/GO, 5 de julho de 1925  – Rio de Janeiro/RJ, 7 de setembro de 2002)

" SONETOS DO AMANTE  II "

Eternizar o amor que fora eterno
embora só vivesse dois instantes:
um quando o céu me alcançou - a um céu sem antes;
depois, ao acender em mim o inferno;

banida do presente, em lago terno
voltes a me banhar e desencantes
o mar  que clama em vão, de ondas cortantes
partindo do meu ser, banhado o eterno.

Eternizar o amor  de um só momento
e quanto mais perde-lo, mais ganhá-lo.
e quanto mais ganhá-lo, mais alento

trazer no que recordo e no que falo,
para que possa, em febre e sem sentimento
em mármore e sem saudade, eternizá-lo.

" SONETOS ELEMENTARES "

Dentro de mim a música e da amada
olhos e gestos. O âmago da noite
esconde prantos, poderosos risos
inundam as paredes do invisível.

Sou eu - do mundo em roda enfim liberto,
as mãos sem tato, o espaço sem limites.
Anterior a mim, livre de sombras
das mulheres que amei, livre de mim.

E sinto que sou eu. Vejo no espelho
do meu passado os sonhos decepados,
coração e sentidos entre cárceres.

Livres no espaço sem manhãs e noites,
nossas almas se fundem no silêncio
onde do amor as músicas germinan-se.
=============

Afonso Lopes de Almeida
(Guanabara/RJ, 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 1953)

" MALDIÇÃO "

Maldita sejas tu, mulher querida
Tu, que ao repouso antigo me tiraste
e a minha alma de ingênuo deslumbraste
com o falso brilho de uma nova vida!

Maldita seja a boca apetecida
onde a sede de amor me saciaste,
taça em que de teus beijos me ofertaste
a capitosa e pérfida bebida!

Maldito seja o amor em que me enlaço
consciente, abandonando o meu descanso
minha antiga ventura, e minha paz!

Malditas, as palavras que disseste!
Maldito, o longo beijo que me deste
e este pungente gozo que me dás!

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Ricardo Azevedo (Versão de Conto Popular: O Rei que Virou Vaca)


Certa vez, um rei convocou os nobres da corte e declarou que era uma vaca. Os nobres ficaram assustados. O soberano disse mais: desejava ser morto e ter sua carne cortada e distribuída ao povo. 

Achando que o rei havia enlouquecido, os nobres convocaram os principais médicos do reino. Remédios e unguentos foram experimentados mas, infelizmente, sem nenhum resultado. 

Enquanto isso, o monarca piorava. Mugia o dia inteiro. Sujava o chão do palácio. De vez em quando, saía galopando, dando coices e cabeçadas.

Passado um tempo, o rei chamou novamente seus principais nobres e ministros. Parecia contrariado. Esbravejou. Disse que, porque suas ordens não haviam sido cumpridas, a partir daquele dia não ia comer mais nada. 

Uma nuvem negra pousou no futuro do reino. O povo, angustiado, acompanhava o drama de seu querido rei, cada vez mais magro, fraco e abatido.

Um dia, um famoso cientista apareceu no reino. Diziam que era um grande médico. Diziam que era um filósofo capaz de lidar com os mais intricados segredos da alma humana.

O sábio foi ao palácio examinar o rei. Deitado na cama, o monarca repetiu ao médico suas alucinações. Mugiu. Confirmou que era uma vaca. Confirmou que seu único desejo era ser morto, cortado e ter sua carne distribuída ao povo.

Coçando a longa barba, o sábio declarou que o rei tinha razão. Ordens reais eram leis que precisavam ser cumpridas imediatamante. Em seguida, abrindo a porta, chamou o açougueiro. Um homem imenso, vestido de branco, entrou no quarto com uma faca na mão. 

Perguntou onde estava a tal vaca.

– Estou aqui! – gemeu o soberano, exultante, com os olhos alegres de loucura. 

O açougueiro aproximou-se da cama. Levantou, cuidadoso, a perna fina e branca do monarca. Balançou a cabeça, decepcionado. Aquela vaca estava magra demais. 

De que adiantava matar um animal que era só pele e osso? Cortar o quê? Distribuir o quê?

– Primeiro – aconselhou ele –, é necessário que essa vaca aprenda a se cuidar, a comer, dormir direito e caminhar pelas montanhas, até ficar forte, alegre e cheia e saúde.

Dizendo que só voltaria quando a vaca estivesse no ponto certo, o açougueiro guardou a faca e foi embora. 

A partir desse dia, o rei decidiu alimentar-se de novo. Aos poucos, foi engordando, as cores voltaram a brilhar em seu rosto, ficou forte e acabou esquecendo de vez que um dia havia sido vaca. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Academia de Letras e Artes de Paranavaí (Lançamento da 1a. Coletânea Literária de Paranavaí)

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Domingos Olímpio (Luzia-Homem)


Análise da obra

 Publicado em 1903 e considerado um clássico do gênero Ciclo das Secas, da Literatura Nordestina, Luzia-Homem é um exemplo do Naturalismo regionalista. Marcado pela fala característica dos personagens,  Luzia-Homem mantém duas características clássicas do Naturalismo por toda obra: o cientificismo na linguagem do narrador e o determinismo (teoria de que o homem é definido pelo meio). A obra também se vincula ao realismo sertanejo, - que alguns chamam de regionalismo - apresentando com tintas carregadas o flagelo da seca em sua região, ao mesmo tempo que enfoca a força física e moral da sertaneja Luzia, criatura intermediária entre dois sexos, o corpo quase másculo numa alma feminina e que termina assassinada por um soldado quando se dispunha a amar ternamente outro homem. 

Temática da obra 

 A obra tematiza a violência e o sadismo que florescem como literatura naturalista. Há nuances de Romantismo na morosidade da descrição das paisagens, onde a natureza, às vezes, é madrasta principalmente por causa da seca. Explora a duplicidade da personagem principal, ela é bonita, gentil e retirante da seca, mas também tem força descomunal. No romance, Luzia integra um grupo de retirantes, e sua figura forte e personalidade marcante logo atrai a atenção dos homens que disputam o amor da heroína.

Estilo

 Estilo marcado pela objetividade, concepção de amor baseado na atração sexual, com ênfase nas características negativas das personagens, o Naturalismo legou-nos romances em que é possível perceber a grande influência de Darwin e A Origem das Espécies: o meio ambiente condiciona todos os seres, deixando sobreviver apenas os mais fortes. Por isso, a natureza de todos os seres, inclusive a do homem, seria determinada por circunstâncias externas. A vida interior é reduzida a nada. Em Luzia-Homem, tais pressupostos são nítidos, basta que se observe a caracterização e trajetória das personagens. Luzia, por exemplo, está fadada a sucumbir, pois num jogo de forças com o vilão, de nada valeu sua força física, assim como não valeram seus bons sentimentos e até a doçura de alma escondida atrás de tantos músculos. Tornou-se, portanto, vítima da fatalidade das leis naturais, que a impediam de ter outro destino. A morte como desfecho vem coroar esse determinismo, pois é a única saída possível para a personagem. Não há a menor possibilidade, nos romances desse estilo, de ocorrer um acaso ou ‘‘milagre’’, comuns em romances românticos, em favor da personagem. 

 Crapiúna, por sua vez, tem sua trajetória iniciada pelo interesse por Luzia, porém, um interesse que vai, aos poucos, se transformando em um caso patológico. Portanto, seu comportamento é coerente com sua obsessão e não há limites que o impeçam de realizar seu intento: ter Luzia a qualquer preço, não porque sentisse amor profundo, mas porque sua atração era sexual, cada vez mais atiçada pelas recusas da moça. Ele é, então, um personagem previsível, já que, pela lógica naturalista, seu destino também estava determinado. 

 Em tudo, o autor foi fiel à tendência literária da época: a rudeza e brutalidade das cenas, a crueza dos episódios, o entrechoque dos instintos, a intensidade das forças desencadeadas. A cena final do romance é exemplo perfeito dessas características: a violência que Crapiúna usa contra Terezinha e Luzia é assustadora. A reação de Luzia é ainda mais assustadora: arranca com as unhas um dos olhos de Crapiúna e morre com aquele macabro troféu entre os dedos da mão direita enquanto que, sobre o peito, misturados ao sangue que jorrava, murchavam os cravos que lhe dera Alexandre.

Personagens

Luzia, a protagonista, é do tipo mulher masculinizada, de músculos fortes, mas de sensibilidade aguçada. É taciturna, solitária, boa, corajosa, firme de caráter, constituindo-se num "símbolo da mulher cearense, heróica na sua luta contra o flagelo da seca, da emigração e da prostituição - como interpretou Abelardo Montenegro". 

Crapiúna é o mau soldado, excessivamente sensual e inconsciente. 

Teresinha, vítima de terceiros. 

Alexandre, o namorado, é bem delicado, bem como Raulino. 

Capitão Marcos e família, sensíveis ao sofrimento comum, conservam, entretanto, o orgulho patriarcal do fazendeiro.

 O principal defeito do romance Luzia-Homem consiste no "desnível entre a concepção e a execução, na grandeza daquela, na franqueza desta", como escreveu Lúcia Miguel Pereira. Na verdade, carece o romance de simplicidade de expressão. A linguagem usada é, muitas vezes, arrevesada e imprópria, prejudicada ainda por excessos retóricos. Por fim, Domingos Olímpio é um autêntico romancista regionalista com Luzia-Homem oferecendo-nos "uma visão retrospectiva da condição humana e social do sertanejo, lutando pela sua sobrevivência e a de seus próprios valores no meio, que o castiga, mas com o qual ele se identifica no sofrimento e na alegria"

Enredo

 O cenário é o interior do Ceará, nos fins de 1878, durante uma grande seca. Na construção da penitenciária de Sobral, pequena cidade do Ceará, muitos retirantes trabalham para não morrerem de fome. 

 Uma linda morena chama a atenção de todos. É luzia que faz serviços de homem para poder receber ração dobrada, em virtude de ter a mãe doente em casa. Seu corpo é esbelto e feminino e, acostumada que fora na antiga fazenda do pai a trabalhar em serviços pesados, tinha muita força, fazendo o que muitos homens não podiam. Por isso recebera o apelido de Luzia-Homem. Recatada e silenciosa, não tinha muitas relações de amizade. No entanto, o soldado Crapiúna era apaixonado ou pelo menos atraído fisicamente com violência por Luzia. Esta não correspondia aos seus cortejos, desprezando-o e tornando o soldado cada vez mais obcecado por ela. 

 Tinha Luzia um amigo muito leal e respeitoso chamado Alexandre, rapaz bonito e educado, que trabalhava no armazém da Comissão. Teresinha era outra amiga de Luzia. Moça branca, de cabelos castanhos, que há muito havia fugido de casa e se prostituíra. 

 Certo dia passando com Teresinha pelo armazém, viram um tumulto e ao se informarem ficaram sabendo que Alexandre fora preso por causa de um grande roubo que houvera no almoxarifado do armazém. 

 Luzia e Teresinha, acreditando na inocência de Alexandre que estava na prisão aguardando o julgamento, levavam-lhe comida todos os dias. 

 Tempos após, Teresinha, tendo ido se esticar na rede, vê nos fundos do quintal o soldado Crapiúna abrindo um baú e apanhando uma bolsa de couro de onça contendo dinheiro. Teresinha passa a desconfiar do soldado, o mesmo acontecendo com Luzia a quem Teresinha contara o ocorrido. Outro dia Luzia encontra Quinotinha que lhe diz ter ouvido Crapiúna confessando ser o autor do roubo a uma mulher que o amava. Luzia, certa da verdade, antes de falar com Teresinha foi a te o Delegado e lhe contou tudo, o qual não acreditando muito, foi até o quintal da casa de Teresinha encontrando o baú com as coisas roubadas do armazém. 

 No julgamento, Alexandre foi absolvido e Crapiúna expulso da corporação. O ex-soldado, vendo a felicidade de Luzia, jurou vingar-se. 

 Teresinha encontra a família que a estava procurando pelo sertão e vão morar juntos na casa dela. 

 Passados esses acontecimentos, Alexandre propôs a Luzia irem morar na serra, levando a mãe dela e a família de Teresinha. Luzia, que começara a despertar para o amor de Alexandre que já a amava silenciosamente há muito tempo, fica feliz e começam a arrumar as trouxas. 

 Alexandre partiu no dia seguinte com a família de Teresinha para escolherem a casa. 

 Teresinha, Luzia, Josefina, Raulino e outros quatro homens foram na tarde do dia seguinte, 

 Teresinha saiu na frente para ajudar os outros na arrumação da casa. Os cinco homens carregavam a rede com D. Josefina e Luzia logo atrás. Ao chegar à serra, Raulino indicou um atalho à Luzia dizendo que eles levariam a rede com D. Josefina pela estrada. Luzia foi seguindo os passos de Teresinha no barro. 

 Andou ao redor de um morro até que chegou a um rio cheio de pedras e de água pura. Quando ia atravessá-lo ouviu um grito. Olhou a sua esquerda e viu Crapiúna, que havia fugido da cadeia e que estava segurando Teresinha pelo braço. Luzia atravessou o rio e gritou: 

 - Solte a moça, seu Crapiúna! 

 - Até que enfim nos encontramos, disse o bandido. 

 Largou Teresinha e avançou sobre Luzia, puxando-a e rasgando toda sua roupa. No desespero, Luzia reagiu cravando as unhas no rosto de Crapiúna, deixando desfigurado e tonto. Crapiúna arrancou uma faca e cravou-a no peito de Luzia. Despencando em seguida do penhasco. 

 Neste instante chega Raulino que vê Teresinha horrorizada e, olhando a sua direita, aproxima-se de Luzia, já com os olhos arregalados e sem vida.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/l/luzia_homem

Ruth Rocha (Quem tem medo de quê?)


Eu vou contar pra você
O que é meu maior segredo.
Há uma coisa no mundo
Que me mete muito medo!
Não tenho medo do pai,
Nem da mãe e nem do irmão.
Mas eu tenho muito medo
Do barulho do trovão!

Do trovão? Mas que bobagem!
Que medo mais infantil!
Quando o trovão faz barulho
O raio até já caiu...
Medo eu tenho, vou dizer...
De uma coisa muito mixa...
Mas o que é que eu vou fazer?
Eu detesto lagartixa!

Lagartixa? Vejam só!
Isso parece piada...
Nem ligo pra lagartixa!
Acho ela uma coitada!
Sabe do que eu tenho medo?
Que me dói o coração?
Até me arrepia a espinha...
Tenho medo... de injeção!

Ah, de injeção eu não gosto,
Mas não fico apavorado.
Existe só uma coisa
Que me deixa até gelado...
Do que eu tenho muito medo,
Que me deixa num apuro...
É uma coisa meio besta.
É ter de ficar no escuro...

Que medo mais bobo o seu!
Não tenho medo de escuro.
É só acender a luz
E pronto! Acaba-se o escuro!

Do que eu tenho muito medo,
O que me causa pavor,
É de pensar em vampiro.
Vampiro me causa horror!

Vampiro não me dá medo...
Acho que eu nunca senti...
Tenho medo do que existe!
E não do que eu nunca vi.

Mas existe uma coisinha...
Eu de medo até me encolho!
Eu tenho um medo danado
Mas é de pegar piolho!

Piolho é um bichinho à-toa...
Não complica nossa vida.
É coisa que a gente cura
Com sabão e inseticida!
Agora, mais perigoso,
Pra mim, até que leão,
Tenho medo é de cachorro,
Cachorrinho ou cachorrão!

De cachorro eu até que gosto.
Na minha casa tem três.
Agora, do que eu tenho medo
Eu vou contar de uma vez.
Não tenho medo de nada!
Nem de bicho nem ladrão!
Mas apesar de valente
Tenho medo de avião!

Avião é uma delícia!
Ando pra baixo e pra cima...
Não tenho medo nenhum,
Desde que era pequenina.
Mas peru, pato, galinha,
Galo, grande ou garnisé,
Tudo que é bicho de pena
Me põe de cabelo em pé!

Pelo que eu vejo, pessoal,
Ter medo não é vergonha.
Todo mundo tem um medo,
Que a gente nem mesmo sonha.
E eu agora vou andando,
Não temo bicho, nem homem!
Mas está chegando a hora
De aparecer lobisomem...

Fonte:
Revista Nova Escola