segunda-feira, 13 de maio de 2024

Mensagem na Garrafa = 121 =

Lóla Prata
Bragança Paulista/SP

PLENITUDE

O anjo-menina pulou de nuvem em nuvem e apresentou-se para o plantão do serviço noturno. O santo encarregado designou-a a proteger várias pessoas, à quais fora ligada por humanos afetos familiares. A primeira que constava era o nome de sua mãe terrena. O anjo-menina saltitou em êxtase de cristalina alegria! Ora, cuidar da mãe temporal seria um acréscimo de graça à abundância de paz e luz que gozava desde a vinda para a eternidade...

Como todo anjo, era ligeirinha, voava, no sentido literal. Num milésimo de segundo desceu e reviu a mãe biológica descansando na cama: linda velhinha com cabelos despenteados, mas no semblante, os mesmos traços meigos.

O anjinho abraçou-a repetidas vezes enquanto a mulher sorria como se captasse os fluidos amorosos. Com certeza, sentia-lhe a presença, pois percorria com o olhar o ambiente semiescuro, tentando localizar a fonte de tal sensação. Seria a invisível presença da filhinha que partira há tanto tempo?

As duas deixavam-se penetrar de santo amor!

A pequena mensageira divina acomodou-se ao lado da anciã, acariciando-lhe os cabelos até ela adormecer, embalada pela repetição das Ave-Marias do rosário. Cumprida a missão, alçou voo, alegremente, em busca dos outros da relação do trabalho noturno.

Possuía a felicidade em plenitude!

Vereda da Poesia = 6 =


UM SONETO

Maria Santos Nascimento
Rio de Janeiro/RJ

Dilema

Eu que pensei ser livre como o vento,
não fraquejar em cada despedida,
aceitar meus fracassos sem lamento
e nunca me queixar das leis da vida…

Eu que pensei domar meu sentimento,
e ser, na luta, justa e destemida,
agora, com você no pensamento,
pouco importa vencer ou ser vencida…

O nosso bem-querer gera perigos,
mas, como só podemos ser amigos,
é fácil controlar as emoções…

Difícil é lutar contra a saudade
e acreditar que os elos da amizade
têm mais poder que a fúria das paixões!…
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UMA TROVA

Wandira Fagundes Queiroz 
Curitiba/PR

Quando aos luzeiros da fama
se agregam luzes do Bem,
há um brilho, a mais, que se inflama
e imortaliza também.
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UM POEMA

Rui Knopfli
(Rui Manuel Correia Knopfli)
Inhambane/Moçambique, 1932 – 1997, Lisboa/Portugal

PRINCÍPIO DO DIA

Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

 Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

 No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

 E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

 (Amanhã volto a experimentar).
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UMA QUADRA

Fernando Pessoa
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Tens um livro que não lês, 
tens uma flor que desfolhas; 
Tens um coração aos pés 
e para ele não olhas.

Artur de Azevedo (Uma amiga)

Dona Ritinha Torres, a mais ingênua e a mais virtuosa das esposas, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que seu marido namorava escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer, a profissão de modista.

Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava a sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

Como Dona Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a modista, que o namorava também.

A pobre senhora não disse nada; voltou para o seu quarto, deitou-se de novo, e à hora de costume simulou que só então despertava.

Tivera até aquela data, o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.

Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Umbelina de Melo, que se mostrou admiradíssima.

- Que é isto?! Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me!

E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...

- Oh, Ritinha! Isso é lá possível!...

- Não me disseram; vi, vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

- Olha que as aparências enganam...

- E os homens ainda mais que as aparências. – o pranto recrudescia. – E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!...

- Que queres tu que te faça? – perguntou D. Umbelina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.

- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!

- Disseste-lhe alguma coisa?

- A quem?

- A teu marido.

- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.

D. Umbelina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe as mãos, assim falou:

- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...

- Engana-me!..

— Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a sério.

— Achas então quê?...

— Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices (pilantragens) do Melo, e digo como dizia a outra: — Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que me o restitua quando se recolher ao lar doméstico.

— Filosofia no caso!

— Vejo que não sentes por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

— Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem consequências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

— Mas...

— Não há mas nem meio mas! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.

— Aceito de bom grado os conselhos, minha boa amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

— Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.
***

Logo que ficou sozinha, D. Umbelina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.

Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.

— Alô! Alô!

— Quem fala?

— O Sr. Venâncio está?

— Está. Vou chamá-lo.

Três minutos depois D. Umbelina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.

Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.

— Que é isto?! Que é isto?! – perguntou atônito.

— Sei tudo! – bradou ela. – Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!

Venâncio ficou alterado.

— A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse...

E agarrando-o com impetuosidade:

— Ah! Mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?...

— Isso é uma invenção tola... Eu não namoro modistas.

— Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, tremendo, nunca visto... — Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!...

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.

D. Umbelina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:

— Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...

E os dois amantes celebraram as pazes do modo mais definitivo possível.

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Umbelina:

– Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga...

E desceu.
***

Oito dias depois, D. Umbelina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Minha boa amiga. — Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio se levantou cedo, nem foi à janela. Deus queira que isto dure! Como sou feliz!
—  Tua do coração, Ritinha Torres.”

Fonte: Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado em 1897. Disponível em Domínio Público

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 6


DEPOIS DE TUDO

Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.
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DESEJO

As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
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DISTRAÇÃO

Cansado de buscar na terra o que procuro,
em meio do caminho encontrei o homem puro:
"Não viste, ó lenhador feliz que estás cantando
no teu rancho de palha, à luz da tarde morta,
não viste se passou, nem sabes quando,
uma princesa pela tua porta?"

"Eu estava cortando a lenha, lá no mato,
e devido ao rumor das árvores no vento,
e ao barulho sem fim das águas no regato,
não ouvi passo algum, nem canto, nem lamento
que me ferisse o ouvido e me pusesse atento,
a não ser. . . o rumor das águas no regato
e o barulho sem fim das árvores no vento. . .
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DITIRAMBO DA PAZ

quero paz
não
de pás
de cal
nem de pas-
maceira

quero paz
de pás
ao ombro
paz viva
paz
que mantém
o homem
em pé
na pers-
pectiva
do advir.

paz
de sempre
viva
muito viva
que cada um
de nós
cultiva
no peito
homem da
rua
ou na faina
do eito
lutando por
uma
madrugada
definitiva
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“É TARDE, É MUITO TARDE”

I
Todas as horas se
resumem num minuto.
Os pés me ficam juntos,
conciliados.
Todos os meus caminhos
se encontram em um só.
E eu fico nu de tempo,
nu de espaço.

Fico sendo eu, só eu.

Então aceito a hora,
a única entre todas
no mundo coletivo
que só seria minha.
Terrivelmente minha.
Mais que a de haver nascido.
Mais que a do amor.

Atravesso o horizonte
dos meus pés com a terra.
A minha própria noite.
O meu auto-retrato.

Fico sendo eu, só eu.
Vejam bem que sou eu.

Mas agora já é tarde.

II

Gastei o meu futuro
em coisas que não fiz.

A tarde é quase humana
quando em mim pousa. A tarde
atrozmente enfeitada
de cores, ainda arde;
porém, já não me engana.
É tarde. É muito tarde.

Só haveria um remédio.
Era o de ter prestado
mais atenção à vida.
Era eu ter consultado
mais vezes o relógio
Era o eu ter querido
mais a ti do que quis.

Mas gastei meu futuro
em coisas que não fiz.

É tarde. É muito tarde.
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ELEGIA RÚSTICA

Nasci para viver no mato: o chão da selva
todo se enrelva de um tapete luxuriante!
A folhagem, que baila em cima, a cada instante,
é uma pelúcia toda verde que descobre
os ombros senhoriais da floresta arrogante.

Acordo. Pelos vãos da choça, a alva derrama
como em fitas de cor, seus cabelos de chama.
Rodopiando no vento o arvoredo frufrulha
vendo-se, pelos vãos, a montanha cerúlea
onde o sol escorreu, em laivos de ouro e cobre.

Na manhã tropical, borrifada de orvalho
e manchada de terra, ou nestes coloridos
caminhos que percorro a pé, sem agasalho,
parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Há uma flor que me diz bom-dia em cada galho.

Ah! devo descender de algum Anacreonte
anônimo, de pés no chão, sapatos rotos,
que se nutriu de mel lírico e gafanhotos,
frutos tintos de sol, água pura de fonte,
satisfeito com o seu pequenino horizonte.
Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.

E então digo, ao meu eco: Ó Deus, ó estrela, ó vento,
eu vim buscar, aqui, um pouco de silêncio
para ver se ainda curo as feridas enormes
que a angústia de pensar me abriu no pensamento.

Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.
Só sei que sinto em mim o agreste encanto
de aqui viver, bebendo orvalho e ouvindo as coisas
as lindas coisas que me diz a alma confusa
toda enredada de cipós, do próprio mato:
o choro tagarela de um regato,
uma cigarra que cem vezes recomeça
sua clara canção intermitente
até ficar chorando escandalosamente. . .

E quando a noite vem, numerosa, selvagem,
a minha alma descansa em seus beijos eólios;
e pelos vãos da choça, através da folhagem,
são as estrelas a inocência dos meus olhos.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Recordando Velhas Cancões (Maria, Maria)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida
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Maria, Maria: Um Hino de Resiliência e Esperança por Milton Nascimento
A canção 'Maria, Maria', composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é uma obra que transcende o tempo com sua mensagem de resiliência e esperança. Lançada em 1978, no álbum 'Clube da Esquina 2', a música se tornou um dos clássicos da Música Popular Brasileira (MPB), sendo interpretada como um hino de força e coragem, especialmente para as mulheres brasileiras.

A letra da música retrata a figura de Maria como uma representação de todas as mulheres, destacando suas lutas e a capacidade de enfrentar adversidades com determinação. A 'certa magia' e a 'força que nos alerta' mencionadas na canção podem ser interpretadas como a energia e a resiliência femininas, que inspiram e movem a sociedade. A repetição do nome 'Maria' reforça a universalidade da personagem, tornando-a um símbolo de todas as mulheres que, apesar das dificuldades, mantêm a fé e a esperança na vida.

A música também aborda a realidade de muitas pessoas que 'não vivem, apenas aguentam', sugerindo uma crítica social às condições de vida de muitos brasileiros. A 'dose mais forte e lenta' pode ser vista como as dificuldades diárias enfrentadas, mas que são suportadas com um sorriso, mesmo quando seria natural chorar. A 'estranha mania de ter fé na vida' é um traço cultural do povo brasileiro, que apesar dos desafios, mantém o otimismo e a capacidade de sonhar com dias melhores. 'Maria, Maria' é, portanto, um convite à reflexão sobre a força feminina e a resiliência humana, elementos essenciais para a superação dos obstáculos da vida.

Aparecido Raimundo de Souza (O labirinto de espelhos e o reencantamento do cotidiano)

 
EM UMA CIDADEZINHA nos cafundós do interior de São Paulo, cujas paredes se faziam altas, tipo as de um presídio de segurança máxima, uma centena de casas antigas se estendia por várias ruas de terra batida que começavam na pracinha em frente à estação de trem da antiga “Estrada de Ferro Sorocabana” e terminavam nas margens do Rio Iperozinho, importante afluente do Rio Sorocaba. Cada uma dessas casas, ostentava uma janela estreita sinalizando que no interior daquelas moradias se acumulava ao sabor do tempo inexorável várias doenças consideradas incuráveis. Na casa de número cinquenta e oito, por exemplo, abrigava uma jovem simpática, mas que todos consideravam uma “mala”. Não outra, senão a jovem e linda Loucura. Além de doente, “essa beldade” se diferenciava das outras moradoras das alvenarias próximas. A casa de número um, por exemplo, abrigava a insuportável Tristeza. A casa de número dez, se via às voltas com a ignominiosa (aterrorizante) Solidão. Na casa treze, a proprietária se fazia conhecida pela senhora Desgraça.  E assim, sucessivamente. 

A casa de número cinquenta e oito, a sua inquilina, a esfuziante Loucura, não tinha ouvidos, nem rosto, tampouco voz. No geral, seu quadro esquizofrênico se formava por conta de uma sombra negra que vagava à esmo, todas às noites. A famigerada saía a caminhar sozinha e se arrastava pelas vielas e becos, produzindo um sussurro estapafúrdico entre os lábios cerrados o que fazia crescer, e muito, o medo tétrico dos demais convizinhos. Diziam, à língua solta, que a criatura além de se chamar Loucura, cometia no decorrer do dia a dia, as piores barbaridades. Por conta, todos comungavam que essa “cidadã” se consubstanciava num mal incurável e pior, difícil de ser contido. No geral, uma enfermidade ingrata e impossível de ser arrochada. Para completar seu quadro tempestuoso, a sirigaita carregava um segredo escondido. Todos que paravam para dialogarem com ela, acabavam alienados e paranoicos. No coração da cidade, colada à igreja matriz, havia um casarão enorme do “tempo em que Judas ainda não havia perdido as botas.” 

Dentro dele, um grandioso labirinto de espelhos se fazia coerente e verossímil. Exatamente nele, a bendita Loucura, numa de suas caminhadas, para tranquilidade dos demais, ou melhor, de todos os radicados, a estrangeira se viu, por puro azar, encarcerada. Foi descuido. Com isso, o tal entrave dos espelhos que até então se mostrava austero aos menos desavisados, e claro, aos não curiosos, em face de se fazer alheio e indiferente à população aparentando um lugar de portas trancadas e venezianas intransponíveis, atapetados de grades circunspectas e cadeados de rostos solenes, passou a ser, de repente, uma válvula de escape —, ou melhor dito —, um remédio de bula benfazeja. O heteróclito, a bem da verdade, literalmente, não ia além de um lugar tranquilo e propício às reflexões. Quem entrava ali, diziam à boca miúda, jamais encontrava a saída. Pelo menos por algum tempo se fazia atarantado entre as versões distorcidas de si mesmo. 

Foi o caso da senhorita Loucura. É bom que se diga, nessa combinação intrincada, havia um homem. O nome dele, Emanuel.  Esse mancebo, ao contrário dos demais que não se aventuraram a entrar, se deu conta, que o tal emaranhado de espelhos dava a impressão de um cárcere. Negativo! Para ele, os cristais mostravam não o que todos pensavam ser o fim do mundo, ou o inferno encapetado, mas, seguramente, a liberdade verdadeira. Aquela que toda a cidade, por algum motivo injustificável se recusava a enxergar. Emanuel, por sua bisbilhotice, também se viu meio fora de foco e sem chão. Caminhava pelos vários corredores tomados por uma cadeia de substâncias inorgânicas falando com as imagens que replicavam seus trejeitos e caretas, contudo, nunca assinalavam a sua alma. Insatisfeito, ele sempre indagava, numa espécie de fobia incurável:

— Por que vocês não me apontam o umbral da serventia dessa droga para eu dar o fora?

Os espelhos seguiam silenciosos e não respondiam. No fundo, Emanuel, tinha plena consciência que a Loucura (a jovem recém-chegada e alguns passos atrás dele), não representava um monstro a ser trancafiado e, sim, uma parte da humanidade que clamava por compreensão. Ele via nos bugalhos duplicados da novata, a dor atribulada da rejeição flagelada, o peso desinquietante do receio suplicante  e a ansiedade desolada e apertada. Por outro prisma, descerrava também o alívio envolvente da beleza, e o encanto terno da diferença. Com o tempo, Emanuel se tornou parte integrante do dédalo (labirinto), tipo um guardião de todos os espelhos. Ele acolhia aqueles que a sociedade excluía mostrando que a Loucura, que chegara alguns dias depois dele, não se consubstanciava numa prisão. Ela se abria inteira num caminho novo. Se fundia numa estrada propícia para a liberdade. Em sua presença, todos que ingressavam no labirinto, encontraram não o fim, mas o início de uma jornada nova para aceitar a si mesmos. 

Com o passar do tempo, a cidade toda (lenta e gradativamente), aprendeu que o encarceramento da pobre e dócil Loucura não estava sustentado pelo atravanco (estorvo) da janela da sua casa de número cinquenta e oito. Menos ainda nos espelhos do labirinto. Tampouco nas barreiras que se erguiam dentro dele. A raia miúda, em sólido compacto, com o decorrer de um certo tempo, descobriu que a verdadeira liberdade, ou a genuína e real Felicidade, vinha não de se curar ou se esconder. Simplesmente a magia se agigantava e se expandia no cândido e bucólico “entender e aceitar.”  Muitos e muitos janeiros se passaram até que os espelhos se tornaram um símbolo de altivez e da esperança. Hoje é um lembrete brando de que a moça Loucura, quando abraçada, acarinhada, e amada, pode ser (e de fato é) a chave para desvendar os mistérios mais profundos da alma humana. Nesse tom de cores, as mais diversificadas, a cidadezinha nos cafundós do interior de São Paulo, outrora muda e monocromática, se tornou um mosaico de vozes e visões, onde a doce e amada senhorita Loucura não é mais uma prisioneira. Ao invés disso, uma excelente e exímia pintora das coisas boas da vida.
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Fonte> Texto enviado pelo autor

domingo, 12 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov' Humor) 28

 

Vereda da Poesia = 5 =

Vanice Zimerman
Curitiba/PR

POÉTICO ABANDONO

As folhas de hera cobrem tuas paredes.
Portas, janelas e varandas,
Lembrando verdes demãos
de tintas,
Afagos a protegê-la das
intempéries...
A escada com nove degraus, ainda,
Preserva parte do mármore,
A porta principal, já sem a dourada
Maçaneta é aberta com facilidade,

E a cada passo, sinto a solidão -
Um silêncio especial espreita-me
Nos gastos tapetes, no piano
Deixado à própria sorte,
Sonhando com Debussy...
A alma da casa abandonada
Refugia-se em imagens e sons

Do passado -
Continuo minha aventura -
Caminhada, sem pressa, com o olhar
E, curiosa, abro mais uma porta,
Encontrando, janelas sem vidros
Que deixam o canto dos pássaros
Mais próximos, fazendo parte
Da linda, mas esquecida, adega
As garrafas de vinho,
Sem rótulos e rolhas
(Nuas - vazias)
Ocupam prateleiras
Como se livros fossem -
Lunetas encantadas
Intocáveis,
Umas sobre as outras
Cobertas por camadas de poeira
Lembram uma segunda pele
Imagino diálogos entre
As garrafas e as partículas de pó,
E a sonolenta cadeira, sem palhas,
A observá-las...
Ah, esse aconchego da passagem
Do tempo, tatuando objetos e sonhos -
Tempo, que tudo desgasta, esmaece,
(Enferruja)
leva os sorrisos e, aos poucos
Ávida desaparece...
Choro com ela, sinto
Na casa adormecida
Um poético abandono,
Quem sabe,
Ela despertará
Em uma futura aquarela,
Quem sabe?

(Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021. Livro enviado pela poetisa.)

Mensagem na Garrafa = 120 =


Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quem sou eu?

Sou o que sou... triste, olhando os que me pisam na indecisão de aonde ir, esquecida pela mãe água, açoitada pelo pai vento, como num castigo de quem fez algo errado. Provação? No meu rego, antes para mim sagrado, agasalho um protótipo de homem que prometeu a fertilidade do meu solo. 

Ledo engano...

E, vendo-me hoje, sem o acalanto das noites antes bem dormidas, quando a lua na sua máxima circunferência com o seu ofuscante clarear, era a inspiração do artista que me cantava em prosa e verso, quedo-me faminta por um amor que deveria ter sido criado pelo nosso Grande Geômetra.

Orgulho-me em ser útero de pulmões, pois, dos meus filhos verdejantes, respira o homem o mais puro dos ares.

Às vezes, abraçada por cascalhos onde brotam vegetais teimosos, outras, afogada pela exagerada água que me asfixia, torno a viver, bendizendo ao meu Deus Sol, pronta, mais uma vez, a ser morada das raízes que alimentarão o corpo das ervas mesmo que daninhas.

E, no entrechocar de pás e enxadas que castigam, choro calada em oração pedinte para aqueles que lançam-me ao vento, dilacerando a minha epiderme mas, o meu interior, este sim, é protegido das agressões do homem que não pensa… E continuo a viver para protegê-lo.

Chamam-me TERRA, morada dos vermes, alimento dos homens.

(Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013. Livro enviado pelo autor.)

Caldeirão Poético LXXXVI


Francisco Pati

VEJO EM TORNO DE MIM, DE LADO A LADO...

Vejo em torno de mim, de lado a lado,
a desigual justiça repartida:
tanto vício tão bem recompensado,
tanta virtude mal reconhecida.

Aqui o ímpio sorri, sendo aclamado,
chora, além, a bondade que é punida.
Templos ao ódio, tronos ao pecado,
que de pecados e ódios se enche a vida.

Fujo do abismo que aos meus pés se estende,
o ouvido fecho a esse rumor profundo,
e, alheio ao que se faz e ao que se diz,

no meu silêncio que ninguém compreende
gozo longe dos homens e do mundo,
o orgulho e a glória de não ser feliz.
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Francisco Ribeiro

QUERÊNCIA

Querência é, para mim, o incêndio da alvorada,
os lances do Minuano, as cargas do Pampeiro;
a charla, o mate amargo, a carne chamuscada,
o pingo, a recolhida e o fogo do tropeiro!

Querência é, para mim, o estalo da queimada,
o tranco do boi manso, as manhas do tambeiro;
a cisma da tapera, o campo em flor, a estrada,
o pialo, a marcação e os "causos" do campeiro!...

Querência é, finalmente, o guasca bueno, guapo;
a china côr da terra, o rancho alevantado,
no topo da coxilha, em barro e santa-fé!

O chão que modelou o pulso do farrapo,
o mesmo que nos veio — e roto, e ensanguentado —
da ronda das Missões, do pó de Caiboaté!
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Frota Pessoa

ROUXINOL DE TRANÇAS

Passas cantando, rouxinol de tranças,
essa eterna alegria gargalhando...
Canta! Tempo virá, que só lembranças
do passado feliz irás cantando.

Esses que vivem mágoas soluçando,
e que jamais cantaram de esperanças,
esses talvez que se aborreçam quando
passas cantando, rouxinol de tranças.

Mas eu, que tive os risos da ventura,
e cantei as cantigas que a ternura
costuma pôr na boca das crianças...

Quero-te bem por toda essa alegria,
que, com teus risos cheios de harmonia,
passas cantando, rouxinol de tranças.
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Gastão Neves

EU

Nasci na Grécia antiga, da odisseia,
dos templos e dos deuses imortais.
Os sete sábios tive por plateia
e fui o que pisou salões reais.

Vi os últimos dias de Pompéia
nas orgias febris das bacanais.
Fui ardoroso amante de Frinéia;
Praxíteles e eu fomos iguais.

Nasci na Grécia antiga — fui deus grego!
Quando nos braços teus tive aconchego,
fui tudo que na Grécia deslumbrou.

E atravessando os tempos, como esteta,
não sou mais que a ilusão de ser poeta,
sendo apenas um homem que sonhou!
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Heitor Lima

ASAS

O que torna mais triste o céu sangrento,
ao pôr-do-sol, são as partidas, são
os adeuses dos pássaros, ao vento,
numa incerta e fugaz palpitação.

Ah! Quantas vezes, no apressado ou lento
voejar de aves que vêm e aves que vão,
tocam-se duas asas um momento
e afastam-se em contrária direção...

Também os nossos corações, um dia,
se encontraram: no ocaso rubro ardia
o incêndio dos amores imortais.

E — asas, na tela acesa do sol poente —
um no outro eles roçaram levemente,
para não se encontrarem nunca mais!
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Ivo dos Santos Castro 

FAZE DE CONTA...

Faze de conta que eu jamais te disse
algo que te expressasse o meu amor;
faze de conta que, com tal meiguice,
de mim não mereceste um só louvor...

Faze de conta, enfim, que fiz tolice
em jamais exaltar o resplendor
da tua fascinante brejeirice,
que fez de mim um poeta, um sonhador...

Apaga da memória os meus lamentos!
Faze de conta que os meus sentimentos
calo-os por invencida timidez...

Embora saibas que és a minha amada,
faze de conta que eu não disse nada,
 ... e deixa-me dizer tudo, outra vez!
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Jacy Pacheco

GRATIDÃO

Eu te agradeço — e sem constrangimento—  
o bem que foste para mim: poesia,
rumor festivo em meu isolamento,
bravura ao coração que sucumbia.

Com a calma com que vejo, ao fim do dia,
o sol agonizar num céu sangrento,
também o teu silêncio eu pressentia:
eu esperava o teu esquecimento.

Um grande bem não dura a vida inteira,
hoje, voltando à antiga nostalgia,
desfeito o sonho da alma cancioneira,

posso te agradecer a caridade:
com as esmolas de amor que eu recebia
vivi momentos de felicidade.
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Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.