segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 6


DEPOIS DE TUDO

Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DESEJO

As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DISTRAÇÃO

Cansado de buscar na terra o que procuro,
em meio do caminho encontrei o homem puro:
"Não viste, ó lenhador feliz que estás cantando
no teu rancho de palha, à luz da tarde morta,
não viste se passou, nem sabes quando,
uma princesa pela tua porta?"

"Eu estava cortando a lenha, lá no mato,
e devido ao rumor das árvores no vento,
e ao barulho sem fim das águas no regato,
não ouvi passo algum, nem canto, nem lamento
que me ferisse o ouvido e me pusesse atento,
a não ser. . . o rumor das águas no regato
e o barulho sem fim das árvores no vento. . .
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DITIRAMBO DA PAZ

quero paz
não
de pás
de cal
nem de pas-
maceira

quero paz
de pás
ao ombro
paz viva
paz
que mantém
o homem
em pé
na pers-
pectiva
do advir.

paz
de sempre
viva
muito viva
que cada um
de nós
cultiva
no peito
homem da
rua
ou na faina
do eito
lutando por
uma
madrugada
definitiva
= = = = = = = = = 

“É TARDE, É MUITO TARDE”

I
Todas as horas se
resumem num minuto.
Os pés me ficam juntos,
conciliados.
Todos os meus caminhos
se encontram em um só.
E eu fico nu de tempo,
nu de espaço.

Fico sendo eu, só eu.

Então aceito a hora,
a única entre todas
no mundo coletivo
que só seria minha.
Terrivelmente minha.
Mais que a de haver nascido.
Mais que a do amor.

Atravesso o horizonte
dos meus pés com a terra.
A minha própria noite.
O meu auto-retrato.

Fico sendo eu, só eu.
Vejam bem que sou eu.

Mas agora já é tarde.

II

Gastei o meu futuro
em coisas que não fiz.

A tarde é quase humana
quando em mim pousa. A tarde
atrozmente enfeitada
de cores, ainda arde;
porém, já não me engana.
É tarde. É muito tarde.

Só haveria um remédio.
Era o de ter prestado
mais atenção à vida.
Era eu ter consultado
mais vezes o relógio
Era o eu ter querido
mais a ti do que quis.

Mas gastei meu futuro
em coisas que não fiz.

É tarde. É muito tarde.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

ELEGIA RÚSTICA

Nasci para viver no mato: o chão da selva
todo se enrelva de um tapete luxuriante!
A folhagem, que baila em cima, a cada instante,
é uma pelúcia toda verde que descobre
os ombros senhoriais da floresta arrogante.

Acordo. Pelos vãos da choça, a alva derrama
como em fitas de cor, seus cabelos de chama.
Rodopiando no vento o arvoredo frufrulha
vendo-se, pelos vãos, a montanha cerúlea
onde o sol escorreu, em laivos de ouro e cobre.

Na manhã tropical, borrifada de orvalho
e manchada de terra, ou nestes coloridos
caminhos que percorro a pé, sem agasalho,
parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Há uma flor que me diz bom-dia em cada galho.

Ah! devo descender de algum Anacreonte
anônimo, de pés no chão, sapatos rotos,
que se nutriu de mel lírico e gafanhotos,
frutos tintos de sol, água pura de fonte,
satisfeito com o seu pequenino horizonte.
Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.

E então digo, ao meu eco: Ó Deus, ó estrela, ó vento,
eu vim buscar, aqui, um pouco de silêncio
para ver se ainda curo as feridas enormes
que a angústia de pensar me abriu no pensamento.

Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.
Só sei que sinto em mim o agreste encanto
de aqui viver, bebendo orvalho e ouvindo as coisas
as lindas coisas que me diz a alma confusa
toda enredada de cipós, do próprio mato:
o choro tagarela de um regato,
uma cigarra que cem vezes recomeça
sua clara canção intermitente
até ficar chorando escandalosamente. . .

E quando a noite vem, numerosa, selvagem,
a minha alma descansa em seus beijos eólios;
e pelos vãos da choça, através da folhagem,
são as estrelas a inocência dos meus olhos.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Recordando Velhas Cancões (Maria, Maria)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

Maria, Maria: Um Hino de Resiliência e Esperança por Milton Nascimento
A canção 'Maria, Maria', composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é uma obra que transcende o tempo com sua mensagem de resiliência e esperança. Lançada em 1978, no álbum 'Clube da Esquina 2', a música se tornou um dos clássicos da Música Popular Brasileira (MPB), sendo interpretada como um hino de força e coragem, especialmente para as mulheres brasileiras.

A letra da música retrata a figura de Maria como uma representação de todas as mulheres, destacando suas lutas e a capacidade de enfrentar adversidades com determinação. A 'certa magia' e a 'força que nos alerta' mencionadas na canção podem ser interpretadas como a energia e a resiliência femininas, que inspiram e movem a sociedade. A repetição do nome 'Maria' reforça a universalidade da personagem, tornando-a um símbolo de todas as mulheres que, apesar das dificuldades, mantêm a fé e a esperança na vida.

A música também aborda a realidade de muitas pessoas que 'não vivem, apenas aguentam', sugerindo uma crítica social às condições de vida de muitos brasileiros. A 'dose mais forte e lenta' pode ser vista como as dificuldades diárias enfrentadas, mas que são suportadas com um sorriso, mesmo quando seria natural chorar. A 'estranha mania de ter fé na vida' é um traço cultural do povo brasileiro, que apesar dos desafios, mantém o otimismo e a capacidade de sonhar com dias melhores. 'Maria, Maria' é, portanto, um convite à reflexão sobre a força feminina e a resiliência humana, elementos essenciais para a superação dos obstáculos da vida.

Aparecido Raimundo de Souza (O labirinto de espelhos e o reencantamento do cotidiano)

 
EM UMA CIDADEZINHA nos cafundós do interior de São Paulo, cujas paredes se faziam altas, tipo as de um presídio de segurança máxima, uma centena de casas antigas se estendia por várias ruas de terra batida que começavam na pracinha em frente à estação de trem da antiga “Estrada de Ferro Sorocabana” e terminavam nas margens do Rio Iperozinho, importante afluente do Rio Sorocaba. Cada uma dessas casas, ostentava uma janela estreita sinalizando que no interior daquelas moradias se acumulava ao sabor do tempo inexorável várias doenças consideradas incuráveis. Na casa de número cinquenta e oito, por exemplo, abrigava uma jovem simpática, mas que todos consideravam uma “mala”. Não outra, senão a jovem e linda Loucura. Além de doente, “essa beldade” se diferenciava das outras moradoras das alvenarias próximas. A casa de número um, por exemplo, abrigava a insuportável Tristeza. A casa de número dez, se via às voltas com a ignominiosa (aterrorizante) Solidão. Na casa treze, a proprietária se fazia conhecida pela senhora Desgraça.  E assim, sucessivamente. 

A casa de número cinquenta e oito, a sua inquilina, a esfuziante Loucura, não tinha ouvidos, nem rosto, tampouco voz. No geral, seu quadro esquizofrênico se formava por conta de uma sombra negra que vagava à esmo, todas às noites. A famigerada saía a caminhar sozinha e se arrastava pelas vielas e becos, produzindo um sussurro estapafúrdico entre os lábios cerrados o que fazia crescer, e muito, o medo tétrico dos demais convizinhos. Diziam, à língua solta, que a criatura além de se chamar Loucura, cometia no decorrer do dia a dia, as piores barbaridades. Por conta, todos comungavam que essa “cidadã” se consubstanciava num mal incurável e pior, difícil de ser contido. No geral, uma enfermidade ingrata e impossível de ser arrochada. Para completar seu quadro tempestuoso, a sirigaita carregava um segredo escondido. Todos que paravam para dialogarem com ela, acabavam alienados e paranoicos. No coração da cidade, colada à igreja matriz, havia um casarão enorme do “tempo em que Judas ainda não havia perdido as botas.” 

Dentro dele, um grandioso labirinto de espelhos se fazia coerente e verossímil. Exatamente nele, a bendita Loucura, numa de suas caminhadas, para tranquilidade dos demais, ou melhor, de todos os radicados, a estrangeira se viu, por puro azar, encarcerada. Foi descuido. Com isso, o tal entrave dos espelhos que até então se mostrava austero aos menos desavisados, e claro, aos não curiosos, em face de se fazer alheio e indiferente à população aparentando um lugar de portas trancadas e venezianas intransponíveis, atapetados de grades circunspectas e cadeados de rostos solenes, passou a ser, de repente, uma válvula de escape —, ou melhor dito —, um remédio de bula benfazeja. O heteróclito, a bem da verdade, literalmente, não ia além de um lugar tranquilo e propício às reflexões. Quem entrava ali, diziam à boca miúda, jamais encontrava a saída. Pelo menos por algum tempo se fazia atarantado entre as versões distorcidas de si mesmo. 

Foi o caso da senhorita Loucura. É bom que se diga, nessa combinação intrincada, havia um homem. O nome dele, Emanuel.  Esse mancebo, ao contrário dos demais que não se aventuraram a entrar, se deu conta, que o tal emaranhado de espelhos dava a impressão de um cárcere. Negativo! Para ele, os cristais mostravam não o que todos pensavam ser o fim do mundo, ou o inferno encapetado, mas, seguramente, a liberdade verdadeira. Aquela que toda a cidade, por algum motivo injustificável se recusava a enxergar. Emanuel, por sua bisbilhotice, também se viu meio fora de foco e sem chão. Caminhava pelos vários corredores tomados por uma cadeia de substâncias inorgânicas falando com as imagens que replicavam seus trejeitos e caretas, contudo, nunca assinalavam a sua alma. Insatisfeito, ele sempre indagava, numa espécie de fobia incurável:

— Por que vocês não me apontam o umbral da serventia dessa droga para eu dar o fora?

Os espelhos seguiam silenciosos e não respondiam. No fundo, Emanuel, tinha plena consciência que a Loucura (a jovem recém-chegada e alguns passos atrás dele), não representava um monstro a ser trancafiado e, sim, uma parte da humanidade que clamava por compreensão. Ele via nos bugalhos duplicados da novata, a dor atribulada da rejeição flagelada, o peso desinquietante do receio suplicante  e a ansiedade desolada e apertada. Por outro prisma, descerrava também o alívio envolvente da beleza, e o encanto terno da diferença. Com o tempo, Emanuel se tornou parte integrante do dédalo (labirinto), tipo um guardião de todos os espelhos. Ele acolhia aqueles que a sociedade excluía mostrando que a Loucura, que chegara alguns dias depois dele, não se consubstanciava numa prisão. Ela se abria inteira num caminho novo. Se fundia numa estrada propícia para a liberdade. Em sua presença, todos que ingressavam no labirinto, encontraram não o fim, mas o início de uma jornada nova para aceitar a si mesmos. 

Com o passar do tempo, a cidade toda (lenta e gradativamente), aprendeu que o encarceramento da pobre e dócil Loucura não estava sustentado pelo atravanco (estorvo) da janela da sua casa de número cinquenta e oito. Menos ainda nos espelhos do labirinto. Tampouco nas barreiras que se erguiam dentro dele. A raia miúda, em sólido compacto, com o decorrer de um certo tempo, descobriu que a verdadeira liberdade, ou a genuína e real Felicidade, vinha não de se curar ou se esconder. Simplesmente a magia se agigantava e se expandia no cândido e bucólico “entender e aceitar.”  Muitos e muitos janeiros se passaram até que os espelhos se tornaram um símbolo de altivez e da esperança. Hoje é um lembrete brando de que a moça Loucura, quando abraçada, acarinhada, e amada, pode ser (e de fato é) a chave para desvendar os mistérios mais profundos da alma humana. Nesse tom de cores, as mais diversificadas, a cidadezinha nos cafundós do interior de São Paulo, outrora muda e monocromática, se tornou um mosaico de vozes e visões, onde a doce e amada senhorita Loucura não é mais uma prisioneira. Ao invés disso, uma excelente e exímia pintora das coisas boas da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fonte> Texto enviado pelo autor

domingo, 12 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov' Humor) 28

 

Vereda da Poesia = 5 =

Vanice Zimerman
Curitiba/PR

POÉTICO ABANDONO

As folhas de hera cobrem tuas paredes.
Portas, janelas e varandas,
Lembrando verdes demãos
de tintas,
Afagos a protegê-la das
intempéries...
A escada com nove degraus, ainda,
Preserva parte do mármore,
A porta principal, já sem a dourada
Maçaneta é aberta com facilidade,

E a cada passo, sinto a solidão -
Um silêncio especial espreita-me
Nos gastos tapetes, no piano
Deixado à própria sorte,
Sonhando com Debussy...
A alma da casa abandonada
Refugia-se em imagens e sons

Do passado -
Continuo minha aventura -
Caminhada, sem pressa, com o olhar
E, curiosa, abro mais uma porta,
Encontrando, janelas sem vidros
Que deixam o canto dos pássaros
Mais próximos, fazendo parte
Da linda, mas esquecida, adega
As garrafas de vinho,
Sem rótulos e rolhas
(Nuas - vazias)
Ocupam prateleiras
Como se livros fossem -
Lunetas encantadas
Intocáveis,
Umas sobre as outras
Cobertas por camadas de poeira
Lembram uma segunda pele
Imagino diálogos entre
As garrafas e as partículas de pó,
E a sonolenta cadeira, sem palhas,
A observá-las...
Ah, esse aconchego da passagem
Do tempo, tatuando objetos e sonhos -
Tempo, que tudo desgasta, esmaece,
(Enferruja)
leva os sorrisos e, aos poucos
Ávida desaparece...
Choro com ela, sinto
Na casa adormecida
Um poético abandono,
Quem sabe,
Ela despertará
Em uma futura aquarela,
Quem sabe?

(Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021. Livro enviado pela poetisa.)

Mensagem na Garrafa = 120 =


Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quem sou eu?

Sou o que sou... triste, olhando os que me pisam na indecisão de aonde ir, esquecida pela mãe água, açoitada pelo pai vento, como num castigo de quem fez algo errado. Provação? No meu rego, antes para mim sagrado, agasalho um protótipo de homem que prometeu a fertilidade do meu solo. 

Ledo engano...

E, vendo-me hoje, sem o acalanto das noites antes bem dormidas, quando a lua na sua máxima circunferência com o seu ofuscante clarear, era a inspiração do artista que me cantava em prosa e verso, quedo-me faminta por um amor que deveria ter sido criado pelo nosso Grande Geômetra.

Orgulho-me em ser útero de pulmões, pois, dos meus filhos verdejantes, respira o homem o mais puro dos ares.

Às vezes, abraçada por cascalhos onde brotam vegetais teimosos, outras, afogada pela exagerada água que me asfixia, torno a viver, bendizendo ao meu Deus Sol, pronta, mais uma vez, a ser morada das raízes que alimentarão o corpo das ervas mesmo que daninhas.

E, no entrechocar de pás e enxadas que castigam, choro calada em oração pedinte para aqueles que lançam-me ao vento, dilacerando a minha epiderme mas, o meu interior, este sim, é protegido das agressões do homem que não pensa… E continuo a viver para protegê-lo.

Chamam-me TERRA, morada dos vermes, alimento dos homens.

(Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013. Livro enviado pelo autor.)

Caldeirão Poético LXXXVI


Francisco Pati

VEJO EM TORNO DE MIM, DE LADO A LADO...

Vejo em torno de mim, de lado a lado,
a desigual justiça repartida:
tanto vício tão bem recompensado,
tanta virtude mal reconhecida.

Aqui o ímpio sorri, sendo aclamado,
chora, além, a bondade que é punida.
Templos ao ódio, tronos ao pecado,
que de pecados e ódios se enche a vida.

Fujo do abismo que aos meus pés se estende,
o ouvido fecho a esse rumor profundo,
e, alheio ao que se faz e ao que se diz,

no meu silêncio que ninguém compreende
gozo longe dos homens e do mundo,
o orgulho e a glória de não ser feliz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Francisco Ribeiro

QUERÊNCIA

Querência é, para mim, o incêndio da alvorada,
os lances do Minuano, as cargas do Pampeiro;
a charla, o mate amargo, a carne chamuscada,
o pingo, a recolhida e o fogo do tropeiro!

Querência é, para mim, o estalo da queimada,
o tranco do boi manso, as manhas do tambeiro;
a cisma da tapera, o campo em flor, a estrada,
o pialo, a marcação e os "causos" do campeiro!...

Querência é, finalmente, o guasca bueno, guapo;
a china côr da terra, o rancho alevantado,
no topo da coxilha, em barro e santa-fé!

O chão que modelou o pulso do farrapo,
o mesmo que nos veio — e roto, e ensanguentado —
da ronda das Missões, do pó de Caiboaté!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Frota Pessoa

ROUXINOL DE TRANÇAS

Passas cantando, rouxinol de tranças,
essa eterna alegria gargalhando...
Canta! Tempo virá, que só lembranças
do passado feliz irás cantando.

Esses que vivem mágoas soluçando,
e que jamais cantaram de esperanças,
esses talvez que se aborreçam quando
passas cantando, rouxinol de tranças.

Mas eu, que tive os risos da ventura,
e cantei as cantigas que a ternura
costuma pôr na boca das crianças...

Quero-te bem por toda essa alegria,
que, com teus risos cheios de harmonia,
passas cantando, rouxinol de tranças.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Gastão Neves

EU

Nasci na Grécia antiga, da odisseia,
dos templos e dos deuses imortais.
Os sete sábios tive por plateia
e fui o que pisou salões reais.

Vi os últimos dias de Pompéia
nas orgias febris das bacanais.
Fui ardoroso amante de Frinéia;
Praxíteles e eu fomos iguais.

Nasci na Grécia antiga — fui deus grego!
Quando nos braços teus tive aconchego,
fui tudo que na Grécia deslumbrou.

E atravessando os tempos, como esteta,
não sou mais que a ilusão de ser poeta,
sendo apenas um homem que sonhou!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Heitor Lima

ASAS

O que torna mais triste o céu sangrento,
ao pôr-do-sol, são as partidas, são
os adeuses dos pássaros, ao vento,
numa incerta e fugaz palpitação.

Ah! Quantas vezes, no apressado ou lento
voejar de aves que vêm e aves que vão,
tocam-se duas asas um momento
e afastam-se em contrária direção...

Também os nossos corações, um dia,
se encontraram: no ocaso rubro ardia
o incêndio dos amores imortais.

E — asas, na tela acesa do sol poente —
um no outro eles roçaram levemente,
para não se encontrarem nunca mais!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Ivo dos Santos Castro 

FAZE DE CONTA...

Faze de conta que eu jamais te disse
algo que te expressasse o meu amor;
faze de conta que, com tal meiguice,
de mim não mereceste um só louvor...

Faze de conta, enfim, que fiz tolice
em jamais exaltar o resplendor
da tua fascinante brejeirice,
que fez de mim um poeta, um sonhador...

Apaga da memória os meus lamentos!
Faze de conta que os meus sentimentos
calo-os por invencida timidez...

Embora saibas que és a minha amada,
faze de conta que eu não disse nada,
 ... e deixa-me dizer tudo, outra vez!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Jacy Pacheco

GRATIDÃO

Eu te agradeço — e sem constrangimento—  
o bem que foste para mim: poesia,
rumor festivo em meu isolamento,
bravura ao coração que sucumbia.

Com a calma com que vejo, ao fim do dia,
o sol agonizar num céu sangrento,
também o teu silêncio eu pressentia:
eu esperava o teu esquecimento.

Um grande bem não dura a vida inteira,
hoje, voltando à antiga nostalgia,
desfeito o sonho da alma cancioneira,

posso te agradecer a caridade:
com as esmolas de amor que eu recebia
vivi momentos de felicidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Eduardo Affonso (Féchion quae sera tamen)

Eu sabia que um dia estaria na moda. Nem que demorasse meio século, mas estaria.

É que minha mãe era costureira e avessa a desperdício. Costurava no capricho, mas aproveitando cada centímetro quadrado de tecido.  Seus bolsos eram invisíveis – melhor dizendo, camuflados, seguindo o mesmo alinhamento da estampa do resto da camisa.  E olha que os anos 60 e 70 foram pródigos em estamparias lisérgicas. Pois minha mãe ia lá e fazia os bolsos, as palas, os punhos em perfeita sincronia com o resto.

Claro que sobrava pano. Se fosse pouquíssimo, servia para forrar botões (tínhamos uma máquina de forrar botão que também servia para esmagar dedo de irmão mais novo). Se fosse pouco pano, virava colcha de retalho. Uma sobra maior virava camisa pros filhos, vestido pra filha.

Nem sempre o que sobrava era suficiente para uma camisa inteira. Mas – e aí é que entra o primeiro parágrafo – nada que não pudesse ser resolvido com duas ou três sobras diferentes.

Felizmente minha mãe tinha bom gosto, e me fazia camisas com as costas lisas e a frente estampada. Toda lisa, com bolsos, mangas e colarinho em composê. Inventava modelos, cortes, recortes e firulas que, quem visse, jamais diria (pelo menos não na frente dela) que aquilo era a própria sustentabilidade aplicada à costura, muito antes de a sustentabilidade vir ao mundo.

A partir de certa idade passei a ter vergonha das minhas camisas-colagens. Queria camisas sem liberdades poéticas, camisas puro sangue, monocromáticas, homogêneas. Não adiantava virem me dizer que a gola combinava com o bolso: eu queria tudo chapado, azul de fio a pavio, verde de cabo a rabo, sem o risco de, na missa, minha manga reconhecer sua família biológica no vestido da senhora do banco à frente.

Nas fotos da minha infância, vejo hoje uma pobreza que então eu não percebia: uma parede descascada, uma cerca de bambu meio descaída, um móvel velho, uma telha vã. Não éramos pobres – ou melhor, até éramos, mas não a ponto de não poder comprar um corte de fazenda. Mas por que desperdiçar retalhos?

Quando nasci, meu pai não trabalhava:  era estudante secundarista. Meu avô bancava filho, nora e neto. Melhor dizer netos, no plural, porque logo em seguida veio o segundo, quando meu pai ainda não trabalhava: estudava para o vestibular. E veio o terceiro– uma menina – e meu pai continuava não trabalhando: era universitário. Veio o quarto, com meu pai finalmente indo botar a mão na massa, ao se formar em Direito. Durante todo esse tempo, meu avô proveu casa e comida. Mas minha mãe pagava, com a costura, todas as outras contas. Não eram tempos de se jogar nada fora.

(Parênteses para uma madeleine: nossa melhor comida de domingo era uma travessa de macarronada decorada com ovos em rodelas e sardinhas. Minha mãe distribuía simetricamente as rodelas maiores e menores, e mesmo as das pontas, só claras, entremeando-as com metades de sardinha. Mas estas não iam diretamente da lata para a mesa: minha mãe as descamava com o dorso da faca, abria, retirava as vísceras, a espinha, a barbatana, e a sardinha seguia limpinha e faceira para a mesa.  Meu avô resmungava: “Pobre e limpando sardinha!” e eu não entendia. Hoje entendo: éramos pobres, e nem por isso deixávamos de ter o refinamento possível do bolso na diagonal, caso não houvesse tecido para o bolso alinhado; não íamos além do macarrão aos domingos, mas nem por isso comeríamos escamas e vértebras de sardinhas. Fecham-se os parênteses).

Enquanto minha irmã crescia, seu vestido ganhava novas barras, quem sabe um babado, um artifício qualquer que o fizesse crescer junto.  Nossas calças, quando passamos a ter calças compridas, ganhavam novas bainhas.  O irmão nascido logo depois de mim herdou todas as minhas roupas – usava não só retalhos, mas retalhos de segunda mão.

Hoje vi o anúncio com essas camisas meio mussarela meio calabresa. Minha mãe jamais faria isso, porque tudo tem limite. Mas era mais ou menos isso o que ela fazia: inventava moda. Uma moda que levaria décadas para ser reconhecida: a do listrado combinando com bolinha, do xadrez dialogando com o grafismo, do floral de florzona harmonizando com o floral de florzinha.

Deu vergonha de ter tido vergonha das minhas camisas Frankenstein. Se eu as tivesse guardado – e não tivesse crescido nem engordado nos últimos 50 anos – estaria na última moda.

Recordando Velhas Canções (Eu sei que vou te amar)


Compositores: Tom Jobim e Vinicius de Moraes

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
A cada despedida
Eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa ausência tua me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
A cada despedida
Eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

Amor Eterno e Incondicional em 'Eu Sei Que Vou Te Amar'
A música 'Eu Sei Que Vou Te Amar', interpretada por Caetano Veloso, é uma das mais emblemáticas canções da música popular brasileira, composta pela dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A letra é um poema lírico que expressa um amor profundo e inabalável, que persiste apesar das adversidades e separações. A repetição da frase 'Eu sei que vou te amar' ao longo da música reforça a certeza e a intensidade desse sentimento que o eu lírico tem pela pessoa amada.

O uso de expressões como 'desesperadamente' e 'a eterna desventura de viver' sugere uma paixão avassaladora, que traz tanto alegrias quanto dores. A música aborda a dualidade do amor, que é capaz de provocar tanto felicidade quanto sofrimento. A ausência da pessoa amada é sentida de forma dolorosa, mas a esperança de reencontro e a certeza do amor que perdura trazem um tom de otimismo e devoção à canção.

A interpretação de Caetano Veloso, com sua voz suave e emotiva, acrescenta uma camada de sensibilidade à música, tornando-a ainda mais tocante. A canção se tornou um clássico da MPB e é frequentemente associada a momentos românticos e declarações de amor. A universalidade do tema e a beleza da composição contribuem para que 'Eu Sei Que Vou Te Amar' continue a ser uma das músicas mais queridas e regravadas no Brasil.

Hans Christian Andersen (Como encontrar o que está escondido!?)

Era uma vez um estudante, sabem o que ele queria ser? Escritor, poeta, imaginem! Ele queria ler onde nada estava escrito e queria compreender onde tudo parecia confuso. Ele queria ler entre as linhas, além das linhas, isto é, aquilo que estava escondido. Como ele era muito confiante nele mesmo, tinha certeza de que antes mesmo que chegasse a Páscoa, ele já seria um escritor, um poeta talvez! O passo seguinte seria casar-se e viver de seus proventos como escritor. Mas, o nosso grande-futuro-escritor estava sem ideias. Para quem queria ser um escritor esse era um grande problema. Quanto mais ele pensava, menos ideias lhe viam à cabeça. Chegou mesmo a pensar que nasceu depois das ideias, ou seja, tudo que poderia ser usado por ele já havia sido usado por outros.

Entristecido pensou que seria muito bom ter nascido há mil anos, cem anos, somente assim poderia ter tido boas ideias, nada havia sobrado para o grande-futuro-escritor, sem ideias. De tanto pensar ficou doente. Logo os médicos disseram que seu problema era encontrar respostas para o que não sabia. Os médicos não sabiam como poderiam tratá-lo. Alguém que ele conhecia sugeriu que ele procurasse uma velha senhora, que segundo os moradores do lugar era muito sábia. Ela morava nos limites da cidade, em uma casinha muito pequena. Era ela quem abria e fechava a cancela para que as pessoas pudessem entrar na cidade. Apesar de sua aparência, ela era muito sábia, as pessoas vinham procurá-la quando os médicos já não tinham mais o que fazer. Vinham pessoas de todos os tipos, até mesmo os ricos e os da nobreza. Foi assim que o nosso futuro-grande-escritor resolveu também, procurar os conselhos da velha senhora sábia.

Como era de se esperar, a pequena casa era muito simples, mas muito bem cuidada. Nada havia dentro da casa para deixá-la, mais bonita, nenhuma flor, nada, porém, perto da porta de entrada havia uma colmeia de abelha, com certeza algo muito útil, e no quintal um canteiro de batatas, também algo muito útil. Fora da casa havia uma parte escavada onde havia um arbusto, o abrunheiro, ou ameixa selvagem, com umas flores brancas e cujas frutinhas são muito boas para a saúde, mas antes de um rigoroso inverno, com noites muito frias elas são muito amargas. O que vejo à minha frente e um retrato vivo dos nossos tempos.

Pensando assim, bateu a porta:

Ao abrir a porta a velha senhora foi logo falando:

– Porque não escreve sobre o que você pensa ou sobre suas dúvidas, incertezas... Sei que veio me procurar porque quer tornar-se um escritor antes da Páscoa, mas nada parece bom para começar seus escritos. Estou dizendo a verdade, não é mesmo?

Muito feliz, porque achou tudo muito mais fácil do que havia imaginado, concordou com a senhora e disse: – Infelizmente vivemos em épocas de grande pobreza criativa, nada de novo surge, tudo já foi dito, copiado e recopiado, não sobrou nada para mim. Tempos difíceis esses!

– Vou concordar com você, mas gostaria que você acompanhasse meu raciocínio: Nos velhos tempos, velhas como eu, não poderiam estar conversando com você pois eram chamadas de bruxas e queimadas em enormes fogueiras. Era uma época em que o estomago do poeta era mais vazio do que seu próprio bolso. Seu problema é de cegueira, não de falta de ideia. Olhe à sua volta, tanta coisa você tem para agradecer que nos são dadas pelo nosso Deus, a natureza, as flores, o cantar dos pássaros, o barulho das águas correndo nos riachos, há uma linguagem sem voz, tente ouvi-las, olhe à sua volta, tudo compactua para inspirar você, o problema é que você não quer se dar ao trabalho de experimentar as verdadeiras maravilhas que estão no mundo pronta para serem descritas, recitadas em verso e prosa. Vou ajudar você, vou emprestar-lhe meu aparelho de surdez e meus óculos. Você deverá observar a natureza através dessas lentes e escutar o som da vida com esse aparelho. O mais importante de tudo, no entanto, é parar de pensar em você, em primeiro lugar.

Caro leitor, você há de concordar comigo que essa é a tarefa mais difícil para esse rapaz.

Nosso futuro-grande-escritor/poeta colocou os óculos e o aparelho nos ouvidos. Agora eles estavam em pé, perto do canteiro das batatas, a velha senhora colheu uma e deu a ele. Imediatamente ele começou a ouvir a batata e ela narrava fatos sobre sua história.

- O que o nosso amigo não sabia era que a batata havia chegado à Europa como imigrante. Foi de pronto rejeitada, somente depois de muito tempo foi aceita e se transformou no alimento cotidiano principal de todas as refeições. Naquela época, os reis mandavam seus emissários entregarem batatas em todas as cidades incentivando seu cultivo para que o povo pudesse ser alimentado. Fomos cultivadas das formas mais erradas desde pensar que cresceríamos como árvores, até nos amontoar a um canto e deixar ali para ver o que aconteceria, até chegarem ao ponto de perceberem que a melhor parte estava debaixo da terra e não em cima dela. Essa parte é suculenta e saborosa. Nossos antepassados sofreram muito, já pensou se fosse com os seus antepassados?

- Agora chega, a conversa com a batata já se estendeu por muito tempo. Vamos ouvir um pouco o abrunheiro. Voltando-se para o jovem ele disse:  

- Aqui a conversa é outra, as batatas vêm do Sul, enquanto nós, do Norte. Fomos trazidos pelos guerreiros vikings em uma de suas muitas viagens pelo mundo. Em uma delas foram parar em uma terra muito gelada, onde encontraram esses frutos. Antes do frio intenso suas frutinhas eram muito amargas, mas depois, quando o frio e a neve chegavam, elas ficavam doces como um mel. Lembravam até uvas muito doces. Nosso nome foi dado pelos vikings em terras muito distantes hoje conhecidas por nós como a Groenlândia.

- Que beleza de história, disse o futuro-grande-escritor/poeta.

- Tenho razão ou não? - disse a velha senhora – Agora vamos visitar a colmeia.

Ao colocar os óculos ele conseguiu ver o que jamais poderia imaginar. Dentro da colmeia, um grande movimento, um trabalho incessante era realizado por todas aquelas abelhas. Os corredores e galerias eram visitados pelas abelhas que, com suas asas abertas procuravam renovar o ar do ambiente. As abelhas chegavam ali aos milhares vindas do lado de fora de onde colhiam material para a produção do mel. Suas pernas tinham cestinhas, quase invisíveis, dentro delas era coletado o pólen e, ao esvaziar as cestinhas ele era separado para a produção do mel ou da cera. Tendo esvaziado as cestinhas, elas voltavam para o exterior para colher mais material. A abelha rainha queria fazer o mesmo, mas não podia porque se ela saísse a voar as outras abelhas a seguiriam e ainda não era chegado o tempo para criar uma outra colmeia, para conter a rainha as abelhas cortaram-lhe as asas.

- Vamos agora visitar outro mundo, veja, você já ouviu histórias das batatas, do abrunheiro, já observou a vida em uma colmeia, agora vamos para a frente da casa observar as pessoas que passam pela estrada.

Lá estavam eles ao pé da estrada.

O rapaz ficou admirado com a quantidade de pessoas que passava por ali. Aprendeu muito bem que cada uma delas deveria ter sua própria história, mas disse que não tinha tempo para escutá-las e que iria embora.

– Não foi essa minha intenção ao trazê-lo aqui. Você vai caminhar entre eles e ouvir o que eles estão dizendo, tenho certeza de que muitas ideias brotarão em você. No entanto, antes de ir, devolva-me meus óculos e meu aparelho de audição.

Muito a contragosto, o rapaz entregou à velha senhora ambos os aparelhos e disse: – E agora, o que faço? Não enxergo mais nada e nem ouço mais nada interessante.

- Sem “ver” e sem “ouvir” você jamais será um futuro-grande-escritor/poeta nem antes e nem depois da Páscoa.

– O que fazer então?

– Não tenho resposta, imaginação é algo que você tem ou não tem. Não posso ensinar você a ter imaginação.

– O que fazer então? Desistir de meu sonho?

– Ah! Isso era um sonho para você? Estou mais aliviada, há outras coisas a fazer quando não se tem imaginação e não precisa esperar a Páscoa, aproveite o Carnaval, compre algumas máscara e vá assustar os poetas, finja que não compreende o que eles dizem, faça por isso muitas críticas, seja duro, amargo, acabe com eles sem dó nem piedade, certamente você ganhará muito dinheiro com isso e poderá formar a família que tanto deseja.

– Não acho isso muito interessante, mas porque não tentar?

Assim um novo crítico literário estava na praça atacando sem piedade os que tinham talento já que ele próprio não conseguia escrever, dava um jeito de destruir a carreira de quem o fazia. Ele tinha um prazer especial de criticar os poetas.

É claro. Que eu não inventei essa história, ela me foi contada pela velha senhora sábia. Ela tem muita imaginação, não somente para ela, mas para quem quiser comprar ou até mesmo receber dela, no entanto, poucos são os interessados nesse tipo de sabedoria. De dom? De experiência? De sensibilidade.

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público