quarta-feira, 19 de maio de 2021

Estante de Livros (Canaã, de Graça Aranha)

José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís do Maranhão a 21/06/1848, tendo sido juiz e diplomata. Uma influência intelectual decisiva em sua obra é a de Tobias Barreto, que conheceu em 1882 enquanto cursava Direito no Recife. Formou-se em direito seis anos depois e mais quatro anos após exerceu o caso de juiz em Porto do Cachoeiro/ES, onde tomou conhecimento dos fatos que inspiraram Canaã. Seu primeiro trabalho foi o prefácio de um livro em 1894, quando já morava no Rio de Janeiro. Dois anos depois, em 1896, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, mesmo nunca tendo publicado nenhuma obra literária; tal fato só foi possível porque seu amigo Joaquim Nabuco lhe foi 'fiador literário' até 1902, ano da publicação de Canaã. Partiu em 1899 com o mesmo Nabuco para Europa como diplomata. Em 1911 sua peça Malazarte foi encenada com sucesso em Paris. Aposentou-se da diplomacia em 1921, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e abandonou a ABL em 1924. Não é considerado modernista porque sua única obra 'modernista', A viagem maravilhosa, de 1939, é feita em um estilo extremamente artificial. Morreu logo antes de publicar sua autobiografia, “O meu próprio romance”, em 1931. Sua única obra de significado verdadeiro é Canaã.

RESUMO:

Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado.

O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos, desde fazenda até instrumentos agrícolas.

É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.

Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.

À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.

Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.

Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo vestuário, a época de cada imigração.

Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Muller.

Ouvem música e veem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil.

Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Muller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica.

Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa.

A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.

Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiverem na mesma situação de Franz.

O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera.

Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira.

Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.

Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão.

Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.

Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal, começa a sentir as dores do parto.

Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.

A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens.

Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado.

Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria.

Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.

A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor.

Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.

Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia.

ANÁLISE DA OBRA

Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX (Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década do século XX.

O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e Lentz.

O personagem Milkau

Milkau representa o otimismo, a confiança no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe, revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da liberdade.

Milkau não se limita à defesa de ideias abstratas. Seu humanismo desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.

Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma competição de ódios mas uma conquista de amor.

Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.

O personagem Lentz

Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à dominação por parte de raças superiores. Lentz profetiza a vitória dos arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas ideias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo de Darwin.

Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja, imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.

A lei do amor x A lei da força

Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).

Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e antecipou a tomada de consciência dos modernistas.

Na verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos mais tarde em A Estética da Vida, de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação de consciência e universo.

Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao patriotismo superficial.

A estrutura romanesca e a linguagem

Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em discutir ideias (Canaã é, na verdade, um romance de ideias) prejudicou a composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A dimensão realista do livro é incompatível com a sua dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional. Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente ideias, e não pessoas), a desvalorização do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais. Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.

Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil, Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata, entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um naturalismo científico de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente, homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam.

A descrição de Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos, representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores, aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade.

 Assim, Canaã revela-se uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade. Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam no desenvolvimento da ideia de Milkau e na exaltação do Brasil.

terça-feira, 18 de maio de 2021

João Líbero (O Infinito)

O Número PI [π] é o resultado da divisão do perímetro de um circulo pelo seu diâmetro, o que resulta em uma dizima infinita não periódica que é 3,14159265358979323846… “ad infinitum!”  Dizem os matemáticos que ele contém todos os números de documentos de todas as pessoas do mundo, pois ele contém todas as combinações possíveis e imagináveis de sequência numérica, pois suas combinações são “ad infinitum”, isto é infinitas! Bom, disse tudo isso para ilustrar o que é o infinito, ok?

Diz a lenda que os matemáticos, no principio do mundo, decidiram fazer um concurso entre os números para escolher qual seria o símbolo do infinito. Quando os matemáticos apresentaram a dízima do Pi, que não acabava nunca, o número oito desmaiou!  Um dos jurados, na plateia, achou legal e escolheu o número oito deitado como símbolo do infinito. E foi seguido pelos demais, para desgosto do zero, que pensou que ele seria o escolhido, pela lógica! A lógica dele era: “zero é nada, nada é infinito!”. Ele se revoltou, mas, não adiantou. O oito deitado foi o escolhido! E até hoje ele é o símbolo do infinito!

Então infinito é aquilo que não tem fim, certo? Errado! Alguns “infinitos” tem fim sim!  O apaixonado diz à sua amada: -“Vou te amar até o infinito”! Daí no mês seguinte ele se apaixona por outra e o infinito da primeira foi pro espaço [ops]. Há coerência aí, pois, não dizem que o espaço é infinito? Também está errado! A lei diz, o teu espaço termina onde começa o espaço do outro! Então o espaço tem fim! Ah!. Mas, tem uma coisa que é infinita mesmo! O Tempo!

É relativo, pois no futebol o tempo acaba e, fim de jogo! “Quem ganhou, ganhou, quem não ganhou não ganha mais”, já dizia o locutor Fiori Gigliotti! O engenheiro constrói uma casa sólida e diz: - “Essa vai durar até o fim dos tempos”! Na semana seguinte a casa cai! Tá aí, o tempo tem fim! A casa caiu por que acabou o tempo, e fim de papo!

E como você explica que o verbo é infinitivo? Ei, espera um pouco, infinitivo não é infinito, ok? O infinitivo não está relacionado com nenhum tempo ou modo verbal. É uma das formas nominais dos verbos, juntamente com o gerúndio e o particípio!  Mas, isso eu vou estar podendo explicar em outro texto, ok? Agora estamos no infinito, ops, falando do infinito!

O céu é o limite, para quem luta por seus sonhos e ideais e tem objetivos a alcançar. Mas então o limite não é do céu. O céu é infinito. Finito é onde se quer chegar. O espaço é a última fronteira?  Então o espaço é finito... a última fronteira a ser explorada. Que coisa!

Mas e o que tem depois da última fronteira? Tem o saber! E o saber não ocupa espaço. O saber é infinito, e o espaço onde ele cabe também é, já que não ocupa lugar. Eita! Então o espaço é infinito? Agora danou! Vamos viver uma vida inteira e não vamos aprender tudo. Então o conhecimento é infinito. Finita é nossa vida aqui, já que não vamos viver para aprender tudo.

Spinoza dizia que é uma ideia errada considerar o infinito como aquilo que inclui todas as coisas em si. Infinito é diferente de Indeterminado. O Infinito é a ideia mais determinada de todas, onde todas as possibilidades são realizadas. Por exemplo: caí uma placa de propaganda, você me pergunta:

- “Quem derrubou? Eu digo:

- “Foi um sujeito aí!”

- “Mas, que sujeito? De onde veio?

- “Sei lá, indeterminado!”

- “Quem é indeterminado?”

- “Um sujeito aí”

Ou, a mesma pergunta com outra resposta:-

- “Quem derrubou a placa”?

- “O vento!”

- “Vento? De onde veio?”

- “Ah! Veio do infinito”!

- “Quem é infinito”?

- “O vento é infinito”!

No primeiro caso, quem derrubou foi um homem [sujeito determinado], desconhecido [“um sujeito aí”- indeterminado]. No segundo foi o vento [sujeito indeterminado] de onde veio? [sei lá, veio do infinito!]

Sinto muito se você não entendeu a alegoria da placa derrubada, talvez sua inteligência não seja igual ao número Pi, azar seu, mas, também não precisa se preocupar com tudo isso, pois você é determinado e finito, diferentemente do Pi que é indeterminado e infinito!  O que? Não, cara, alegoria não é enfeite de carro alegórico, é outra coisa, que explico outra hora, ok? Porquê? Por que minha paciência não é infinita, ok? Então depois de toda essa patacoada, chegamos à definição real e verdadeira do infinito:

INFINITO É TUDO AQUILO QUE NÃO TEM FIM, LIMITE, FRONTEIRA E QUE NÃO PODE SER MEDIDO POR UM PADRÃO FINITO.

Esta crônica foi feita com a colaboração da amiga Rita Ferreira Rocha de Paula, uma parceira!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 6

ACONCHEGO

Imóveis
A pena
E a asa da borboleta
Sonham
Com o vento…
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ASAS DE MADEIRA

Esculpido em mogno
O dragão, aos poucos desperta
E, suavemente, move suas asas
À  espera do vento…
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CHUVA DE SAUDADE

O barulhinho da chuva,
Deslizando no telhado
Deságua em versos
Tece um poema de amor,
Saudade que cintila,
Quando a lágrima
Escapa e deixa
A janela entreaberta...
Apaga-se o incenso.
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COLAR DE PÉROLAS...

Com as pérolas do colar
Desenhei um coração
E num piscar de olhos
Senti teu coração  bater
Juntinho a mim…
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JANELA DE SONHOS...

A janela entreaberta
Ainda à espera
Dos sons da tua volta...
Há tanto silêncio
Em tua ausência,
Que inquieta  a alma...
Busco teu olhar, tuas mãos
E não as encontro,
Encontro à saudade
Que se despe
Das rendas tecidas de poesias
E deságua
Em lágrimas…
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O TOQUE DO TEU VENTO

Os sons dos sinos- de- vento
Embalam a solidão
Que fragmenta a ampulheta,
E refugia-se no vitral
Da janela antiga,
Trincada com o toque
Do  teu vento,
As cores voam,
E pousam na taça de cristal.
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PANDORA

Do escuro da caixa
Voam lágrimas...
Diáfana solidão,
Silencia-se
A Esperança.
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ROTINA DE UMA ÁRVORE

Terra, água
E luz gestam vidas
Num contínuo renascer,
O ciclo da vida impresso
Nas folhas encanta,
E surpreende,
Desabrochando em versos
Em uma manhã azul
De Primavera.
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SEMENTES DE CEREJAS

Hoje, no fim de tarde,
Acariciei  a terra
E à sombra do teu sorriso
Plantei com amor,
As sementes de cerejas,
Cerejas que colhi para você…

Contos e Lendas do Mundo (A Ratoeira)

Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali.

Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado.

Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa!

A galinha, disse:

- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.

O rato foi até o porco e lhe disse:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira!

- Desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranquilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.

O rato dirigiu-se então à vaca. Ela lhe disse:

- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não!

Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pego.

No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher...

O fazendeiro levou-a imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre.

Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá-los o fazendeiro matou o porco.

A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.

Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que, quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco. O problema de um é problema de todos.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Adega de Versos 22: Gilson Faustino Maia

 


Sammis Reachers (Rivaldo e o tour infernal no Morro do Céu)

Toda empresa de ônibus que tenha uma quantidade boa de linhas, tem aquela(s) linha(s) em que quase ninguém quer trabalhar. A Ingá não foge à regra.

Talvez a pior das linhas, na opinião de uma maioria de rodoviários, seja a linha 26-A (Morro do Céu x Terminal). É a linha do "castigo". Embora não admitam, quando querem castigar algum profissional que tem vacilado bastante, eles o enviam para lá, seja como efetivo, seja para trabalhar apenas um dia. Os motivos de a linha ser detestada por muitos? Basicamente há dois principais: Primeiro porque a carona rola solta. Isso mesmo, praticamente ninguém paga passagem lá dentro do bairro. Mas há também o outro problema: a bandidagem. O bairro {ou "complexo") do Caramujo (e em especial o sub-bairro do Morro do Céu) é simplesmente o maior reduto do Comando Vermelho em Niterói, e um dos maiores do estado do Rio. Depara-se com homens e até crianças armadas a todo momento por lá. E encontrar-se em meio a um tiroteio entre policiais e bandidos não é coisa rara.

E é aqui que entra o nosso Rivaldo. Funcionário antigo, fala mansa e gente fina, curtidor de um bom pagode e bom mulherengo, a história de vida de Rivaldo já daria por si só um livro: Mesmo ainda jovem, sobreviveu a um infarto que o deixou literalmente entre a vida e a morte; após cirurgia de ponte de safena, voltou à ativa, e alguns anos depois envolveu-se num trágico e grave acidente, ao chocar-se o ônibus que dirigia contra uma das pilastras de sustentação da Ponte Rio-Niterói, na altura do Moinho Atlântico. E mais uma vez, embora tenha ficado preso nas ferragens, Rivaldo sobreviveu.

Em seu início na Ingá, Rivaldo passou diversos anos como cobrador, até que resolveu partir para a direção. Após o período regulamentar na escolinha, Rivaldo foi finalmente promovido. Mas sua carreira em inícios foi sofrida: Rivaldo pegava sempre os piores horários. Com o passar do tempo, isso foi gerando uma revolta natural no coração do amigo. E essa revolta o levou a dar alguns "vacilos" propositais com a chefia da empresa, de tão aborrecido que Rivaldo estava.

Pois bem: em mais um belo dia (e o leitor já percebeu como este livro é cheio de "belos dias"), a chance que certo despachante queria para castigar o bom Rivaldo surgiu.

Ele iria tirar um carro no turno da manhã, e o despachante lhe empurrou para dirigir um micro-ônibus, justamente no malfadado Morro do Céu. Briga daqui, regateia dali, e sem ter outra opção e precisando trabalhar, lá vai o nosso Rivaldo, ainda de madrugada, em direção ao Morrão.

Chegando ao local, na área conhecida como lixão, onde ele aprendera, no tempo de cobrador, ser o ponto final daquela linha, o cidadão Rivaldo, cabreiro com a escuridão do lugar, deu meia-volta e, tranquilamente, se pôs a manobrar o veículo em direção à descida do morro.

De repente, aquela freada. Saído de lugar nenhum, um marginal brotara em frente ao ônibus, com um detalhe: um fuzil apontado para a cara de Rivaldo! O malandro parecia que ia pra uma guerra, além do fuzil nas mãos, tinha uma pistola e uma granada penduradas na cintura.

- Ei! Ei! Tem que ir lá dentro! - Berrou o marginal.

Rivaldo, assustado, gaguejou:

- Lá dentro? Lá dentro aonde? Aqui á o ponto final, estou descendo para fazer linha.

- Descendo o caramba! Tem que ir lá dentro, lá na "balança". Pode dar a volta e ir lá que lá tem passageiro te esperando.

Ao perceber a confusão de Rivaldo, o malandro aliviou e perguntou;

- É a sua primeira vez aqui? Se é, fica sabendo que tem ponto lá no final - e apontou para mais acima no morro.

Assim, após manobrar lá se foi Rivaldo morro acima, numa direção em que ele imaginava que nem casas havia. Chegando a certa altura, ele percebeu que realmente haviam passageiros por lá: oito pessoas esperavam aquele que era o primeiro carro do dia.

Mas todo castigo pra rebelde é pouco, já diziam os opressores do trabalhador, e os perrengues de Rivaldo estavam só começando. Somente após o embarque dos passageiros foi que ele percebeu que o espaço para manobrar o ônibus e voltar para baixo era absurdamente pequeno. E, um tantinho além do pequeno espaço de manobra, havia nada mais nada menos que um despenhadeiro, uma encosta altíssima. Um erro do motorista e o veículo poderia cair lá embaixo.

Rivaldo, assustado, disse aos passageiros que não teria como manobrar ali, num espaço mínimo, no escuro e ainda por cima numa área que ele não conhecia. Mas os passageiros insistiram que todos os motoristas da linha manobravam ali, e um deles se prontificou a descer do veículo para ajudar Rivaldo a manobrar. Assim, depois de muito sufoco, mudanças de marchas à frente e à ré, nosso amigo conseguiu manobrar o veículo.

As viagens seguiram-se naquele mesmo ritmo, caronas, bandidos e sustos. Lá pelo meio dos trabalhos, estando no morro do Céu, um elemento grita:

- Ôòôuuu, espera aí motô!!!

Rivaldo para, e ao olhar para a direção de onde gritara o "passageiro", vê que era de dentro de um bar, uma birosca de beira de estrada. Assim que o veículo parou, o cidadão do grito apanhou dois engradados de cerveja, de cascos vazios, e entrou no ônibus. Ao colocá-los no corredor do pequeno veículo, disse simplesmente:

- Espera aí que tem mais.

E assim foi trazendo, de dois em dois, até somar oito engradados. Após colocar tudo no corredor, desceu.

- Tem mais ainda? - perguntou Rivaldo.

- Não, é só isso. Pode ir. Ah, um cara está te esperando lá embaixo, na pracinha, e vai pegar as caixas.

Após dizer isso, o elemento simplesmente virou as costas e entrou tranquilamente no bar. Rivaldo, entre confuso e irritado com o abuso do cidadão, que além de não ir levar a própria mercadoria, nem pediu o favor e nem sequer agradeceu, desceu com a frágil carga que se apertava entre os passageiros.

O caminho de descida é tortuoso, o famoso "só vai um", e lá desceu Rivaldo, tendo que ir relativamente rápido pois precisava fazer o horário, mas preocupado com aquela carga balançando devido aos solavancos que o veículo dava, sendo segurada pelos passageiros.

Lá    embaixo    realmente    um    indivíduo    esperava. Apanhou as caixas e tudo que disse foi um "Valeu". Nem um beijinho, nem um Guaravita nosso Rivaldo recebeu...

Já lá pelas doze horas, finalmente Rivaldo esperava que iria largar. Ufa! Que dia! Ao chegar no Terminal Rodoviário, ele falou para o despachante;

– Essa é a 'boa' (a última viagem), finalmente! Não aguentava mais!

– Ué, a boa? Não te avisaram na garagem não?

– Avisaram o quê?

– Esse carro dá uma viagem extra, amiguinho. Sua largada deve ser lá pelas 13h20...

Fulo da vida, lá foi Rivaldo de volta ao Morro do Céu, sabendo que teria uma outra viagem. Foi vendo os outros carros que pegaram num horário depois do dele largando, e ele ainda tendo que dar mais uma volta - e isso o fez ferver ainda mais de raiva. Do Morro do Céu ele desceu novamente em direção ao Terminal, e, agora sim, na volta sabia que iria largar.

Mas todo bolo que se preze, precisa ter uma cereja em cima. E a cereja do bolo estava esperando por Rivaldo, rechonchudinha, num dos acessos ao Caramujo, ali perto do Morro do Bumba (sim, aquele mesmo da tragédia dos deslizamentos em 2010).

Um cidadão com pinta de matuto de roça, as roupas bastante sujas e segurando um saco enorme, desses de farinha de trigo, deu sinal. Rivaldo foi encostando e já logo abrindo a porta do meio, pois ali já era área das caronas, e com um saco imenso daqueles o indivíduo não iria conseguir passar na roleta mesmo. Mas somente quando o Jeca Tatu entrou foi que Rivaldo percebeu do que se tratava a "carga": Naquele saco enorme, muito mal acondicionado, o camarada estava levando um enorme e fedorento porco, e vivo! Assim que ele entrou o porco começou a gritar e a se debater, e o cheiro rapidamente dominou todo o veículo.

– Isso aí é um porco?!!!!

– É sim, mas tá seguro.

– Pô, meu amigo, mas ele está fedendo e cheio de lama...

– Não esquenta não, lá em cima eu jogo uma água no ônibus.

E assim Rivaldo completou os trabalhos do dia, ouvindo  os altos grunhidos e sentindo aquela catinga de porco insuportável.

Quanto ao dono do suíno, ah: ao chegar no Morrão, já perto do Morro do Céu, ele desceu sem nem fazer menção de jogar água em nada...

Rivaldo manobrou no Morrão, desceu e largou o ônibus no ponto final do Caramujo. Saiu sem falar nada com ninguém e avoado, aliviado por passar aquela pesada cruz para outro sofredor!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Nossa “Casa”)

Três homens inteligentes,
tão semelhantes na idade,
porém, muito diferentes,
de verem a eternidade...

Pobre, abastado e mediano,
entre si, bem conhecidos,
deixando o campo mundano
por Deus foram recebidos...

O pobre, Deus acolheu,    
Disse: – Entra! A mansão é tua.    
Pois o que o mundo te deu,    
foi dormir em plena rua.    

Por isso ouvi tuas preces
de total resignação,
soubeste amar e mereces
te apossar desta mansão.

Quando o mediano partiu
também contas foi prestar
e igual mensagem ouviu:
- Entra e toma o teu lugar!

Na terra pouco tiveste,
foste morno e não mudaste
e o material que me deste
foi restos do que sobraste.

Apesar das provações
procuraste algo plantar
e o fruto das plantações
acabas de conquistar.

Simples casa em regalias:
eis teu prêmio merecido....
Outra, bem melhor terias,
se me tivesses ouvido.

Chegando o mais abastado
consigo pôs-se a julgar:
– Com o que tenho juntado
um castelo vou ganhar!

Tal premissa concebida
dela, distante ficou,
tendo já gozado em vida,
no céu pouco lhe restou.

Dei-te a vida e tu me deste
uns restos do que sobraste,
nem com tua rica veste
melhor lugar conquistaste.

Tens procurado a vaidade
sem te abraçar na virtude,
vais passar a eternidade
com este casebre rude...

Tantos bens acumulados
nem à lápide os levaste,
logo serão disputados
porque nunca os lapidaste.

Vendo a grande diferença
naqueles recém chegados,
o Poder marcou presença
sendo assim sentenciados.

O que vede aqui são frutos,
Deus, de novo acrescentou:
– Construímos com produtos
que cada qual nos mandou.

Tendes o que mereceis    
e não vos entristeçais,
fizestes as próprias leis
esquecendo os tribunais.

As casas têm as medidas
que foram encomendadas,
com matérias escolhidas:
nobres, brutas, estragadas.

Difícil é ser cortês
aonde o bom-senso se anula,
porque o coração, talvez,
tão só CIFRÕE$ acumula.

Fonte:
Luiz Damo. Celebrando com trovas. Caxias do Sul/RS: L.D., 2018.
Livro enviado pelo autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Escoteiro

Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil e bem comportado.

Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.

O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.

Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.

Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.

Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.

Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.

Pai! Palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.

Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.

Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.

Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum, da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.

Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.

Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no irônico destino dos inventores.

O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.

Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.

Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espírito, o hermetismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.

Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?

Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.

O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.

O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de self control e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.

Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo antisséptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!

Essa, a marcha inevitável de todas as altas ideias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.

Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.

Fonte:
Amadeu Amaral. Memorial de um passageiro de bonde. 1927.

domingo, 16 de maio de 2021

Varal de Trovas 501

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Felizardo, um homem feliz

Faz um bom tempo escrevi um micropoema que dizia assim: “Quem nada / tem tudo. / Somente os peixes, / para salvar-se, / puderam dispensar a Arca”. Mas na verdade houve um coautor: Felizardo Meneguetti. Entusiasta da natação (seu esporte predileto durante a vida inteira), foi ele quem me chamou a atenção para este detalhe deveras interessante: no dilúvio Noé colocou na Arca animais de todas as espécies. Só ficaram de fora os peixes – os únicos que não correriam o risco de morrer afogados. “Quem nada... tem tudo”, dizia ele brincando.

Homem de inteligência acima da média, Felizardo era useiro em tiradas como essa. Cada conversa com ele era uma aula de cultura geral. Num certo dia, creio que em 1982 ou 1983, encontrei-o na Avenida Getúlio Vargas, na porta do edifício Três Marias, onde ele tinha um escritório. Pegou no meu braço e intimou: “Vamos dar uma subidinha, que eu quero lhe mostrar uma coisa”. Era um livrão de 500 páginas – “A terceira onda”, best-seller mundial do célebre futurista norte-americano Alvin Toffler.

Felizardo estava encantado com a obra, que acabara de ler. “Você precisa ler também, aliás todo mundo deveria ler”, disse ele, e acrescentou: “Leve este; depois compro outro”.

Toffler recordava a história do progresso, dividindo-a em três ondas: a primeira foi a “revolução agrícola”; a segunda foi a “revolução industrial”; a terceira, que estava começando, seria a “era da Informática”. Porém já previa a quarta onda, que viria logo no comecinho do século 21: a “era da sustentabilidade”, ou seja, da preservação do ambiente.

Claro que não vou comentar aqui o conteúdo inteiro do livro. Citei apenas para dar aos que não tiveram o privilégio de conviver com Felizardo Meneguetti uma ligeira ideia de quem foi esse extraordinário empreendedor e de sua importância para a história de Maringá. Um homem atento a todos os passos da ciência e da tecnologia e que assim conseguia estar sempre bem avançado no tempo em relação aos mortais comuns.

Paulista de Quatá, onde nasceu no dia 4 de março de 1925, Felizardo chegou aqui em 1946 e foi um dos megapioneiros presentes na grande festa promovida pela Companhia Melhoramentos no dia 10 de maio de 1947 para a inauguração oficial da cidade.

Instalados no distrito de Iguatemi, os Meneguetti começaram como agricultores, depois montaram um alambique para fabricação de aguardente e alguns anos após fundaram a Usina de Açúcar Santa Terezinha, da qual por longos anos Felizardo foi diretor presidente.

Hoje, produzindo açúcar e etanol, a Usina Santa Terezinha é a maior exportadora de açúcar com sede na região Sul e está presente em 12 municípios do Paraná e Mato Grosso do Sul, empregando mais de 8 mil colaboradores.

Felizardo Meneguetti, patriarca de uma das mais bonitas famílias de Maringá, cidadão benemérito do município, integrante ilustre do Lions Clube e de várias outras entidades, conselheiro de quase todos os nossos líderes políticos, faleceu no dia 19-5-2016, com 91 anos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 18-3-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 6 –

46.
Quem não lembra de já ter, em sua infância, se deliciado apreciando nuvens brancas a deslizar pelo céu como um bando de carneirinhos?

Esta associação de ideias é muitas vezes aproveitada literariamente, sempre mantendo toda sua simplicidade e inocência.
 
Observem, na singeleza da trova a seguir, como o trovador enriqueceu ainda mais esta ideia,  acrescentando--lhe lindas metáforas em que o “Vento” é transformado num “pastor”, e as nuvens, que formam um “alvo rebanho”, nada mais são que os carneirinhos do nosso antigo imaginário infantil.  

O vento, pastor estranho,
tangendo nuvens ao léu,
conduz seu alvo rebanho
pelas campinas do céu!
Joubert de Araújo Silva


47.
Já se disse que os Jogos Florais de Nova Friburgo representam para a TROVA o mesmo que o “Oscar” para o cinema.  Qualquer premiado com aquela estatueta sempre irá carregar esta marca como um símbolo de que atingiu a glória máxima mundo cinematográfico. Daí a expectativa de atores, diretores e cineastas quando são indicados para o prêmio.

Guardadas as proporções, todo trovador também sonha com uma premiação no mais tradicional concurso de trovas do Brasil.  

Vejamos como JOÃO COSTA registrou numa bela trova esta expectativa, primeiro “angustiada”, mas logo seguida do prazeroso sentimento de realização que o prêmio conquistado pode trazer.  

Dos anos de espera expurgo
toda angústia e toda dor:
classifiquei-me em Friburgo,
agora sou trovador!
João Costa


Pela primeira vez, depois de 61 anos consecutivos, não se realizaram em 2020 os Jogos Florais de Nova Friburgo, em virtude da pandemia da COVID-19. Vai, então, este comentário em homenagem a todos os trovadores que, por esta época, enchiam de poesia os ares desta cidade tão querida e, em especial, ao saudoso JOÃO COSTA, de Saquarema, um dos maiores entusiastas do evento. (Renato Alves)

48.
A língua portuguesa é rica em vocábulos que, às vezes, têm a mesma forma física, (falada ou escrita), mas que apresentam cargas semântica diferentes, isto é, palavras idênticas ou iguais na forma, mas de sentidos diferentes. São os famosos homônimos.

Uma hábil utilização de homônimos na trova pode constituir um achado precioso para valorizar a composição.  Vejamos dois exemplos do uso bem sucedido deste recurso:


1. Uso do substantivo “V” (letra)  e “Vê” (flexão do verbo ver)

Muito embora não se esgote
todo assunto que é você,
pelo V do seu decote
quanta coisa a gente !
Carlos Guimarães
-----------------------------------------

2. Uso do verbo “ligar” com dois sentidos: “telefonar”  e “dar importância”

Tu dizes: “Depois eu ligo!”
E eu vigio o celular...
Tu não ligas e eu nem ligo,
e continuo a esperar.
Elisabeth Souza Cruz

49.

Às vezes, o aproveitamento inteligente do significado múltiplo de um vocábulo, na mesma trova, pode constituir um recurso eficiente, um jogo de palavras que valoriza o seu achado. Nas trovas humorísticas, reforça o efeito a que se destinam: fazer rir.
 
Na trova ao lado, o trovador faz uso bem sucedido da versatilidade semântica e gramatical da palavra VERÃO: ela abre a trova como um substantivo, significando a estação do ano, e a fecha como uma flexão do verbo “ver”.

No verão ela anuncia
que o nudismo é a sensação,
e o que só o marido via
agora todos verão!
Arlindo Tadeu Hagen


50.
Às vezes, certos acontecimentos em nossa infância ficam marcados para sempre no adulto e, não raro, servem de  tema para trovas e poemas.

Feliz da criança que teve uma experiência especial com seu pai, sua mãe ou outro parente que tenha deixado marcas de ternura por toda a vida!  Eu, por exemplo, me lembro que, para poder assistir melhor ao desfile dos blocos e escolas de samba na Avenida Rio Branco, no Rio, meu pai, com grande esforço, me punha sobre os ombros. Aquilo representava para mim um supremo deleite!...

Agora, observem, na trova ao lado, como a sensibilidade do trovador Moacyr Sacramento, o MOA, de Conservatória/RJ, conseguiu captar e traduzir numa bela trova esta mesma sensação tão gostosa!

Pra ver o mundo de cima
da lembrança não me sai:
torre alguma se aproxima
do cangote do meu pai!
Moa


Fonte:
Renato Alves. Comentando trovas.
Enviado pelo trovador.

Rachel de Queiroz (O Cometa)

Anuncia-se a aparição de um cometa nos céus do nosso mundo; durante dez dias, no espaço de tempo compreendido entre 10 e 20 de janeiro de 1974, passará mais perto de nós o astro vagabundo, cujo nome estranho é o do astrônomo tcheco que o descobriu — Kohoutec — e cuja luz é cinco vezes mais forte que a da estrela Sírius, a mais brilhante do nosso firmamento.

Mas aqui, na América do Sul, o cometa Kohoutec se exibirá desde antes. E justamente na véspera do Natal, quando já será perfeitamente visível em céus sul-americanos, a sua aparição vai coincidir com um eclipse do Sol, previsto para o mesmo dia. Imagino como não será lindo, lindo de matar, o espetáculo celeste; o Sol escondido, mostrando apenas a sua corona de fogo e, no céu diurno mas em crepúsculo, o astro singular com a sua imensa cauda luminosa.

Vai haver muito medo. Dizem que na aparição do cometa de Halley, em 1910, a gente humilde se ajoelhava pelos terreiros, pedindo demência a Deus e a todos os santos. Pois cometas são o sinal de epidemias e calamidades; a peste, a fome, a guerra e a morte, os quatro cavaleiros do Apocalipse, são tidos como acompanhantes da cauda de um cometa. Faz mal olhar para ele com a cabeça descoberta; nem se deve fitá-lo muito tempo sem baixar a vista: o resultado pode ser a gota serena.

Se os meninos nascidos sob a luz de um cometa serão fortes, astutos e violentos, as crianças geradas no tempo da sua aparição serão movidas, de ossos fracos, com tendência à loucura e à melancolia. O melhor portanto é evitar a prática do amor nessa fase perigosa Também quem já foi mordido de cachorro doído, cuidado — pode sair uivando feito lobisomem e ai de quem cruzar o seu caminho. Igualmente quem já foi picado de cobra venenosa: a peçonha que já estava cristalizada em algum recanto do corpo, forma bolsa debaixo da língua, vaza na saliva e pode matar o próprio paciente ou qualquer outra pessoa que o padecente morder, arranhar — ou beijar.

As ninhadas de ovos goram nos ninhos; passarinho de voo noturno permanece escondido e não se arrisca a sair, pois sabe que ficaria encandeado com a luz estranha e cairia no chão como ferido de bala.

Por falar em bala, quem costuma andar armado é melhor deixar a faca em casa, se acaso sair em noite de cometa. Porque o aço é atraído pela força do astro e parece até que salta da mão do portador. Já nas cargas dos cartuchos, o chumbo, sendo metal venenoso, não sofre influência e, nesse caso, o que acontece é não se acertar um tiro.

Mas tudo isso tem um parecer contrário. Porque muita gente opina que o cometa aparecendo a 24 de dezembro, é astro propício; quem sabe até não é a mesma estrela caminhante que guiou os reis magos à gruta de Belém. Então, dela só se devem esperar benefícios e bons eflúvios; em vez dos temidos malefícios, sobre nós irão cair as graças e prazeres que a vinda do Menino Deus significa para o mundo.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

sábado, 15 de maio de 2021

Júlia Lopes de Almeida (A Morte da velha)

A Presciliana Duarte de Almeida

Cabelos brancos, finos, em bandós; rosto redondo, amolecido, sulcado por muitas linhas fundas; olhos azuis, cariciosos e transparentes como as pupilas das crianças; corpo pesado, grosso, baixo e curvado; pés e mãos inchados, pernas paralíticas – tal era a velhinha cuja vida deslizara entre sacrifícios, que ela, na sua crença de religiosa, espera ver transformados em flores no céu!

Muito surda, mas extraordinariamente bondosa e ativa, ela não parava de trabalhar, na sua grande cadeira de rodas, recortando papéis para as confeitarias. Os recursos eram minguados: o irmão, desde que se mudara para aquele sobrado da rua do Hospício, não lhe dava vintém, e ainda se queixava de ter de sustentar tantas bocas.

Só filhas quatro, de mais a mais doentes e pouco jeitosas. Só uma bonita, a última, e essa era também a de melhor gênio, talvez por mais esperançada no futuro. Mãe não tinham, e fora a velha, tia Amanda, quem tivera com elas todo o trabalho da criação, bem como já tinha tido com o irmão. Estava afeita. Afeita mas cansada.

O irmão, empregado público, era viúvo, mal-humorado e envelhecido precocemente. A esse tinha ela criado nos braços, desde os mais tenros meses; fora para ele uma segunda mãe. Quantas vezes contava às sobrinhas as travessuras do seu pequeno Luciano, que aí estava agora tristonho, achacado e impertinente! E ela gozava relatando os episódios da meninice dele: os caprichos que lhe satisfazia para o não ver chorar, as horas que perdia de sono para o embalar nos braços, os sustos com as doenças e as quedas, e uma noite que passara em claro para fazer um trajo de anjo com que Lucianinho foi à procissão do Corpo de Deus.

– Nesse tempo o vigário do Engenho...

Mas as sobrinhas interrompiam-na: queriam saber como era o vestido, esforçando-se por imaginar a figura do pai, agora tão enrugado e taciturno, com seis anos apenas e vestidinho de anjo!

A velha satisfazia-lhes a curiosidade com um sorriso de gosto: era um vestidinho salpicado de lantejoulas e guarnecido de rendas.

Nada faltou ao irmão – nem a cabeleira em cachos, com o seu grande diadema cheio de pedrarias, alto na frente, em bico; nem as asas de penas brancas, entre as quais pusera um ramo de flores do campo, em tufos de filó; nem as meias arrendadas, e os sapatos de cetim branco com uma roseta azul, nem as pulseiras, o colar, o lenço guarnecido de rendas, cuja extremidade ele oferecera graciosamente a outro anjo que ia a seu lado, no mesmo passo. As sobrinhas ouviam-na rindo e faziam-na repetir certas travessuras do pai, a que elas achavam muita graça, mas que lhes pareciam absurdas. Custava-lhes a crer que o pai, tão sisudo, tivesse feito aquilo; mas a tia afirmava-lhes tudo com segurança, mesmo diante dele, que não protestava, e elas ficavam satisfeitas, tendo com as antigas maldades do pai como que uma desculpa para as suas.

Entretanto, tia Amanda não parava de trabalhar; cosia as meias de toda a gente de casa, cortava papéis de balas para uma vizinha doceira e rendas para os pudins das confeitarias.

Ganhava pouco, e esse pouco dava-o, tão habituada estava desde moça a trabalhar para os outros.

A pouco e pouco a pobre velhinha foi também perdendo a memória: confundia datas, relatava atrapalhadamente os fatos; a sua tesourinha já se não movia com tanta delicadeza, as mãos tornaram-se-lhe mais pesadas, a vista enfraqueceu; os pontos nas meias já não formavam o mesmo xadrezinho chato e igual, e o serviço das confeitarias começou a escassear até que lhe faltou completamente.

Nesse dia a pobrezinha chorou. O irmão não lhe dava nada... como poderia ela socorrer as desgraçadas que até então protegera?

No fim do mês lá foram ter com ela a viúva pobre dos sete filhos e a comadre tísica. A velha não teve coragem de lhes contar a verdade; corou... e prometeu mandar-lhes no outro dia alguma coisa. E no outro dia mandava o que a casa de penhores lhe dera pelo seu relógio antigo, e que ela tinha destinado para a primeira sobrinha que casasse.

Mas a história do relógio foi depressa sabida pela gente de casa. As filhas de Luciano contaram ao pai, indignadas, que a tia o expunha ao ridículo, mandando empenhar coisas, como se não tivesse que comer em casa! O Luciano ouviu-as, mordendo o bigode branco, com a indignação das filhas a refletir-se-lhe nos olhos. Foi imediatamente falar à irmã. Achou-a cosendo na sua cadeira de rodas, os óculos caídos sobre o nariz, a cabeça pendida.

Vendo-o, ela sorriu. Ele perguntou-lhe num tom azedado pelo seu mau fígado:

– Então? é verdade que você mandou empenhar o seu relógio de ouro?

– É, respondeu ela na sua costumada placidez.

– Mas eu não quero isso! Hão de pensar lá fora que não lhe dou de comer! Tome cuidado!

A velha estremeceu, e nos seus olhos azuis brilhou, fugitiva, uma expressão dolorosa.

Tome cuidado! Quantas vezes dissera ela aquelas mesmas palavras ao Lucianinho, nos velhos tempos! Dizia-lhas com meiguice, alisando--lhe os cabelos, ou entre dois beijos:

– “Olha, meu filho, toma cuidado! não te exponhas ao sol... não comas frutas verdes! estuda bem as lições... Toma cuidado contigo, meu amor!”

E eram quase súplicas aqueles conselhos!

E aí estava agora o Luciano a dizer-lhe colérico e brutalmente as mesmas palavras! E ela curvava a cabeça ao irmão, e obedecia-lhe, e temia-o! ela, que o criara desde pequenino, que por causa dele perdera um casamento, que por causa dele se tinha sempre sacrificado! Era duro, mas era assim. Há sempre mais paciência para as maldades de uma criança do que para as rabugices de um velho! Reconhecia isso e calava-se. “Luciano é doente, pensava ela, e é por isso que me trata com tão mau humor! é doença, não é ruindade de coração... Se ele foi sempre tão bom! Aquilo há de passar.”

No fim do mês a questão estava esquecida, e a velha recebeu a visita da comadre tísica e da viúva pobre. Não tinha um vintém, e resolvera dizer isso mesmo às suas protegidas; mas exatamente nessa ocasião a tísica mostrou-lhe uma receita do médico, tossindo a cada palavra, com a mão espalmada no peito; e a viúva levou-lhe pela primeira vez o filho mais novo, um lindo menino de olhos azuis e de cabelos loiros.

A velha enterneceu-se e prometeu mandar no dia seguinte alguma coisa, tanto a uma como a outra.

Nessa mesma tarde disse ao Luciano, muito constrangida:

– Hoje vieram cá aquelas pobres... Coitadas! custa-me tanto não lhes dar esmola... se você me pudesse emprestar... é pouca coisa, bem vê...

– Acha muito o que eu ganho? não se lembra que mal me dá o ordenado para sustentar as quatros filhas e nós?

E como ela lhe explicasse a precária situação das duas mulheres:

– Ora, a viúva que empregue os filhos mais velhos e ponha os outros em asilos; e quanto à tísica...

– Se eu tivesse vinte anos de menos, não te pediria isto, Luciano! Lembra-te bem!

Mas o Luciano não se lembrou!

Ela quis referir-se ao tempo em que o ajudava trabalhando para fora, cuidando-lhe dos filhos, indo muitas vezes para a cozinha, e deitando-se fora de horas para lhe engomar as camisas... quis referir--se, mas envergonhou-se, e disse de si para si:

– Aquilo é doença; não é ruindade de coração!

No entanto, o seu bom Lucianinho e as filhas comentavam entre si a caduquice da velha. E, realmente, desde aquele dia, a paralítica decaiu muito; incomodava toda a gente. Era preciso levá-la ao colo para a cama, despi-la, vesti-la, lavá-la, levar-lhe a comida à boca. Ela impacientava-se quando lhe tardavam com o almoço; gritava de lá que a queriam matar à fome, que era melhor enterrarem-na de uma vez. E a criada, a quem ela dera outrora presentes, ria-se; e as sobrinhas, que ela tantas vezes carregara ao colo, levantavam os ombros, enfadadas. Luciano repreendia--as, mas ia dizendo que efetivamente a irmã era insuportável!

Apesar de muitíssimo idosa, a pobre senhora tinha apego à vida; já muito confusa das ideias, completamente inerte, tinha impertinências, ralhava lá da sua cadeira de rodas com toda a gente: esta porque não lhe dava água, aquela porque lhe apertara de propósito o cós da saia, aquela outra porque lhe deitava veneno na comida...

Deslizavam assim amargamente os meses quando, um dia, uma criada, muito pálida, com os olhos esgazeados e os cabelos hirtos, entrou aos gritos na sala de jantar, exclamando:

– Fogo! fogo! há fogo em casa!

Levantaram-se todos da mesa.

Por uma janela aberta entrou uma lufada de fumo; viu-se brilhar a chama. A porta estava tomada pelo fogo.

– Fujam pelo telhado! gritou o Luciano.

E ouviam-se vozes lá fora, dizendo como um eco:

– Fujam pelo telhado!

Na sua grande cadeira de rodas, a velha presenciava aquela cena, sem se poder mover, aterrorizada e sem voz. O irmão empurrava as filhas, atava num guardanapo as joias tiradas à pressa de uma cômoda, punha na mão da criada os talheres de prata, olhava para trás, para o fogo que vinha lambendo a parede, impelido pelo vento; corria, atirava para o telhado os móveis mais leves, pressurosamente, abria e fechava gavetas, e saltava por fim também pela janela, para o telhado, o único meio de salvação que a Providência lhe oferecia!

A velha ficou só. Tentou mexer-se, tentou gritar: debalde.

Pior que o incêndio e que o medo foi a impressão deixada pela fugida do irmão.

O seu espírito cansado como que se esclareceu nesse momento.

E dessa vez não disse de si para si, para desculpá-lo: “Aquilo é doença, não é ruindade de coração!...”

O calor afogueava-lhe as faces, onde há muito não subia o sangue; no meio daquela solidão pavorosa, ouvindo o crepitar da madeira nuns estalidos secos, a bulha surda de uma ou de outra viga que se desmoronava, o luf-luf da chama que subia, a velha sorria com ironia,
lembrando-se da precaução do Luciano em arrecadar as coisas que ela, a irmã abandonada, lhe ajudara a ganhar...

E voltou de novo o olhar para a janela; então, entre o fumo já espesso, viu desenhar-se ali uma figura de homem.

O coração bateu-lhe com alegria.

– É Luciano que se lembrou de mim!...

Era um bombeiro que lhe estendia a mão, chamando-a. A velha fez-lhe um gesto – que se retirasse!

Nisso, um rolo de fumo negro interpôs-se entre ambos, como um véu de crepe. Perderam-se de vista. O bombeiro voltou para fora, quase asfixiado. A velha fechou os olhos e esperou a morte.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. 
Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Vinicius de Moraes em Prosa e Verso – 1

A maior solidão é a do ser que não ama


A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.
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Ária para Assovio

Inelutavelmente tu
Rosa sobre o passeio
Branca! e a melancolia
Na tarde do seio

As cássias escorrem
Seu ouro a teus pés
Conheço o soneto
Porém tu quem és?

O madrigal se escreve:
Se é do teu costume
Deixa que eu te leve

(Sê… mínima e breve
A música do perfume
Não guarda ciúme)
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A Você, Com Amor

O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia…
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar…

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda…

E a música inaudível…

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar…

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris
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A Impossível Partida

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada?…
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas
E se a minha inquietação iria temer a tua eloqüência silenciosa?…
Eu sonhei!… Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável
Os rios mortos… as sombras mortas… as vozes mortas…
…o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face…
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?…
Eu sonhei!… Sonhei mundos passando como pássaros
Luzes voando ao vento como folhas
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes…
Sons… o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida…
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço…
Imagens… a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas…
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma
Soprando de manso na boca vermelha dos astros…
Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo
Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?…
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Imagem: montagem por JG Feldman

Graciliano Ramos (O estribo de prata)

— Este caso se deu, começou Alexandre, um dia em que fui visitar meu sogro, na fazenda dele, léguas distantes da nossa. Já contei aos senhores que os arreios do meu cavalo eram de prata.

— De ouro, gritou Cesária.

— Estou falando nos de prata, Cesária, respondeu Alexandre. Havia os de ouro, é certo, mas estes só serviam nas festas. Ordinariamente eu montava numa sela com embutidos de prata. As esporas, as argolas da cabeçada e as fivelas dos loros eram também de prata. E os estritos, aerados, faiscavam como espelhos. Pois sim senhores, eu tinha ido visitar meu sogro, o que fazia uma ou duas vezes por mês. Almocei com ele e passamos o dia conversando em política e negócios. Foi aí que ficou resolvida a minha primeira viagem ao sul, onde me tornei conhecido e ganhei dinheiro. Acho que me referi a uma delas. Adquiri um papagaio...

— Por quinhentos e tantos mil réis, disse mestre Gaudêncio. Já sabemos. Um papagaio que morreu de fome.

— Isso mesmo, seu Gaudêncio, prosseguiu o narrador, o senhor tem boa memória. Muito bem. Passei o dia com meu sogro, à tarde montamos a cavalo, percorremos a vazante, as plantações e os currais. Justei e comprei cem bois de era, despedi-me do velho e tomei o caminho de casa. Ia principiando a escurecer, mas não escureceu. Enquanto o sol de punha, a lua cheia aparecia, uma lua enorme e vermelha, de cara ruim, dessas que anunciam infelicidade. Um cachorro na beira do caminho uivou desesperado, o focinho para cima, farejando miséria. — "cala a boca, diabo." Bati nele com o bico da bota, esporeei o cavalo e tudo ficou em silêncio. Depois de um golpe curto, ouvi de novo os uivos do animal, uns uivos compridos e agoureiros. Não sou homem que trema à toa, mas aquilo me arrepiou e deu-me um babecum forte no coração. Havia no campo uma tristeza de morte. A lua crescia muito limpa, tinha lambido todas as nuvens, estava com intenção de ocupar metade do céu. E cá embaixo era um sossego que a gemedeira do cachorro tornava medonho. Benzi-me e rezei baixinho uma oração de sustância e disse comigo: — "Está-se preparando uma desgraça neste mundo, minha Nossa Senhora." Afastei-me dali, os gritos de agouro sumiram-se, avizinhei-me da casa pensando em desastres e olhando aquela claridade que tingia os xiquexiques e os mandacarus. De repente, quando mal me precatava, senti uma pancada no pé direito. Puxei a rédea, parei, ouvi um barulho de guizo, virei-me para saber de que se tratava e avistei uma cascavel assanhada, enorme, com dois metros de comprimento.

— Dois metros, seu Alexandre? Inquiriu o cego preto Firmino. Talvez seja muito.

— Espere, seu Firmino, bradou Alexandre zangado. Quem viu a cobra foi o senhor ou fui eu?

— Foi o senhor, confessou o negro.

— Então escute. O senhor, que não vê, quer enxergar mais que os que têm vista. Assim é difícil a gente se entender, seu Firmino. Ouça calado, pelo amor de Deus. Se achar falha na história, fale depois e me xingue de potoqueiro.

— Perdoe, rosnou o preto. É que eu gosto de saber as coisas por miúdo.

— Saberá, seu Firmino, berrou Alexandre. Quem disse que o senhor não saberá? Saberá. Mas não me interrompa, com os diabos. Ora muito bem. A cascavel mexia-se com raiva chocalhando e preparando-se para armar novo bote. Tinha dado o primeiro, de que falei, uma pancada aqui no pé direito. — "Os dentes não me alcançaram porque estou bem calçado", foi o que presumi. Saltei no chão e levantei o chicote, pois ali perto não havia pau nem pedra. A miserável enrolava-se, os olhos redondos pregados em mim e a língua fora da boca. Zás! Desmanchei-lhe a rodilha com uma chicotada. Tentou endireitar-se, estraguei-lhe os planos e com o chicote fui batendo, batendo, até que, desanimada, ela meteu o rabo entre as pernas e botou-se devagarinho para um monte de garranchos de coivara.

— Como é isso, seu Alexandre? Perguntou o cego. A cascavel meteu o rabo entre as pernas? Cascavel não tem pernas.

— Está claro que não tem, respondeu Alexandre. Quando a gente diz que uma criatura mete o rabo entre as pernas, quer dizer que ela se encolhe, capionga, percebe? Foi o que se deu. Não é preciso um bicho ter penas para meter o rabo entre as pernas. Seu Firmino é pessoa de entendimento curto e não compreende isto. A cascavel, que não tinha pernas, meteu o rabo entre as pernas e esgueirou-se para os garranchos e folhas secas que havia junto da estrada. Corri atrás dela e obriguei-a a voltar. Amiudei os golpes, a desgraçada bambeou e nem pediu fogo para o cachimbo. Machuquei-lhe a cabeça com o salto da bota. Estrebuchou, fez o que pôde para arrumar-se em novelo, depois se aquietou e ficou estirada na poeira. Baixei-me e medi o corpo mole: nove palmos e meio espichados. Isto é com o senhor, seu Firmino. Nove palmos e meio, entendeu? Mais de dois metros, pensou eu. Que diz?

— Deve ser isso mesmo, resmungou o negro. Não sei não. Estou escutando. Sempre me dou mal quando faço perguntas. O senhor é que sabe.

— Perfeitamente, concluiu Alexandre. A cobra tinha mais de dois metros. Tirei a vagem da cauda e contei nela dezessete anéis, o que significa dezessete anos, como ninguém ignora. Vejam vossemecês: dezessete anos. Era uma cobra muito velha, muito prática. Se eu não estivesse com os pés bem protegidos, não teria escapado, os senhores não ouviriam este caso. Ó Cesária, veja se arranja dois dedos de cachimbo lá dentro. Eu preciso molhar a palavra. E os nossos amigos estão com o ouvido seco. Vá buscar o cachimbo, Cesária. E procure o chocalho da cascavel, que você guardou.

Cesária levantou0se da esteira e desapareceu. Alexandre enxugou na manga da camisa o rosto suado. Mestre Gaudêncio, curandeiro, seu Libório cantador e Das Dores comentaram baixinho o tamanho e a idade da cobra. Passados alguns minutos, Cesária voltou com uma garrafa e uma xícara.

— Preparei o cachimbo. Aguardente não falta, e as abelhas trabalham de graça. Mas o chocalho sumiu-se. Estava no jirau, misturado com balaios e combucos: provavelmente anda escondido num buraco de ratos.

— Faz pena, rosnou Alexandre. Eu queria encostá-lo nas unhas de seu Firmino. É o diabo. Acabou-se. Bote o cachimbo na xícara, Cesária.

A garrafa se esvaziou, os amigos elogiaram a bebida. Alexandre temperou a goela e reatou a história:

— Montei-me novamente. E aí findou o desespero que o choro brabo do cachorro tinha dado. A luz vermelha diminuiu e a noite se tornou uma noite de lua cheia igual às outras noites de lua cheia –: "Toda aquela armação de infelicidade foi para mim", assuntei cá por dentro. Mas agora não havia perigo, porque a oração que eu tinha rezado era poderosa e o couro da bota era duro. Entrei em casa sem nuvens.

— Com o chocalho da cobra no bolso, murmurou o cego.

— Naturalmente, com o chocalho da cobra no bolso. Cesária se espantou: dezessete anos para uma cascavel é muito ano. Fui dormir, e no dia seguinte ninguém se lembrava disso. Entreguei-me de corpo e alma aos arranjos necessários à viagem para o sul. Gastei o tempo arrumando cargas. Um mês depois, exatamente um mês depois, tudo pronto, as reses no curral, os tangerinos amolando o ferro da aguilhada, mandei selar o cavalo e resolvi despedir-me de meu pai, meu sogro e alguns amigos da vizinhança. Vesti a roupa de casimira, calcei as botas, amarrei no pescoço colarinho e gravata, tomei café e dirigi-me ao copiar, onde encontrei o cavalo sem arreios. Gritei para o interior da casa, aborrecido com aquela demora, e um moleque apareceu atrapalhado, cinzento de medo, e falou assim: — "Não posso trazer a sela não, seu major. Rebentou o torno da parede e está caída, pesada que não me ajudo com ela. Faz meia hora que procuro carregá-la." Pensei que o diabo do sujeito estivesse com embromações e fui ver a coisa de perto. Achei realmente o torno quebrado e a sela no chão. Tentei suspendê-la, resistiu. O loro esquerdo levantou-se, mas o direito parecia plantado na terra. Acocorei-me para examinar aquele negócio e tomei um susto dos demônios: o estribo estava grande que era um despotismo, sim senhores. Mal pude movê-lo. Desatei-o, chamei dois homens e conseguimos arrastá-lo até ao copiar. Foi um assombro, toda gente arregalou os olhos, sem adivinhar o motivo do crescimento. Vieram pessoas de longe, a casa se encheu, fervilharam perguntas — "como foi, onde foi, porque vira, porque mexe" — e ninguém entendia nada. Eu coçava a cabeça e puxava pelos miolos. Fiquei três dias matutando. Afinal, depois de muito pesar, compreendi tudo e dei a Cesária as explicações que agora vou dar aos senhores. Acho que hão de concordar comigo. Naquela noite de lua cheia supus que a cascavel me tivesse mordido o couro da bota. Convenci-me, porém, que os dentes da bicha tinham ferido o estribo e deixado lá o veneno que existia no corpo dela. Um mês depois, com a força da lua, o estribo inchava, como incham todas as mordeduras de cobras. Era por isso que ele estava tão crescido e tão pesado. Mandei chamar um mestre na rua e, com martelo e escopro, retiramos do estribo cinco arrobas de prata, antes que o metal desinchasse. Isso se repetiu durante alguns anos: todos os meses o estribo inchava, inchava e, conforme a força d alua, eu tirava dele três, quatro, cinco arrobas de prata.

Seu Libório cantador, mestre Gaudêncio curandeiro, o cego preto Firmino e Das Dores levantaram-se admirados.

— O senhor deve ter ganho uma fortuna, seu Alexandre, exclamou o cantador.

— Um pouco, seu Libório, sempre arranjei algum dinheiro, graças a Deus.

— E o estribo, seu Alexandre? O senhor ainda tem esse estribo? Perguntou o cego.

— Não, seu Firmino, respondeu o dono da casa. Com o tempo ele deixou de inchar e tornou-se um estribo comum. Julgo que o veneno perdeu a valia. Natural, não é verdade?

Fonte:
Graciliano Ramos. Alexandre e outros heróis. Publicação em 1962.

Estante de Livros (O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos)

“O Meu Pé de Laranja Lima” é um livro infanto-juvenil do escritor José Mauro de Vasconcelos, publicado pela primeira vez em 1968.

Foi adaptado para o teatro, televisão e cinema, sendo dois filmes, um em 1970 e outro em 2013. Na televisão foi exibido como novela pela TV Tupi, em 1970, e duas versões pela Rede Bandeirantes, em 1980 e 1998.

É um dos livros mais vendidos do Brasil, com cerca de 2 milhões de cópias. Já foi traduzido para mais de 50 idiomas.

PRINCIPAIS PERSONAGENS

Zezé: protagonista da história. É um menino de cinco anos muito traquino e danando. Morador de Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro, vivia aprontando e apanhando quando suas travessuras eram descobertas. Também é um menino muito inteligente e não aparenta ter cinco anos.

Luís: irmão por quem Zezé tinha grande orgulho, pois é um menino independente e aventureiro. Zezé o chama de rei Luiz.

Totó: é o irmão mais velho de Zezé. É um jovem interesseiro, mente com frequência e é egoísta às vezes.

Glória: é a irmã mais velha de Zezé e sempre disposta a defendê-lo. Ela é como uma protetora para ele.

Pai: não tem o nome registrado na obra. É um homem frustrado por não poder sustentar a casa, o que o faz ser impaciente com os filhos. Na tentativa de educar os filhos, muitas vezes bate neles, mesmo se arrependendo depois. Alcoolatra.

Mãe: também sem registro de nome. É uma mulher que cuida e se preocupa muito com os filhos. Devido a situação financeira, toma uma atitude e vai trabalhar para sustentar a família.

Manuel Valadares: também chamado de Portuga. É um senhor já idoso e muito rico que acolhe Zezé como um filho e o enche de carinho e atenção, a ponto de se tornarem melhores amigos.

Minguinho
: também chamado de Xururuca. É o pé de laranja lima que fica no fundo da casa. Zezé tem Minguinho como um grande amigo, a quem faz confidências.

RESUMO DO ROMANCE


O livro é dividido em duas partes, a primeira conta a história do menino Zezé e suas travessuras.

Zezé era um menino travesso que vivia aprontando e, consequentemente, quando pego levava surras e mais surras tanto do pai quanto do irmão mais velho, Totó. Às vezes, até de sua irmã, mas ela era mais carinhosa e protetora dele.

Zezé era tão traquino que diziam que ele “tinha o diabo no corpo”. Certa vez,  apanhou tanto que teve que ficar uma semana sem ir à escola. Contudo, também era um menino esperto, inteligente e que aprendeu a ler sozinho aos 5 anos.

Ele e sua família viviam em uma casa confortável, mas o pai perdeu o emprego e eles foram obrigados a mudar para um lugar mais humilde. Sua mãe, que antes era dona de casa, teve que ir trabalhar na cidade.

A casa nova tinha várias árvores ao seu redor e cada um poderia escolher uma para ser “sua”. Por ter ficado por último, Zezé ficou com um minguado pé de laranja lima.

A princípio não gostou, mas com o tempo foi pegando apreço pela árvore, a ponto de nomeá-la de Minguinho. Quando estava sozinho, chamava na forma íntima de “Xururuca”.

Um dia, após pegar carona no carro luxuoso do Portuga, que não gostou da situação, Zezé levou uma baita surra e prometeu se vingar.

No entanto, o menino foi cativado pela atenção e carinho dados por Manuel Valadares. Nasceu então uma relação afetuosa entre os dois, o que Zezé não encontrava em sua família.

Ninguém sabia dessa amizade. Por uma fatalidade do destino, Manuel Valadares sofre um atropelamento e falece. Uma tristeza arrebate fortemente Zezé, que acaba adoecendo.

Para piorar a vida do menino, decidem cortar Minguinho. A árvore estava crescendo demais, algo que não era esperado.

A situação da família mudou quando o pai de Zezé conseguiu um emprego. Apesar das mudanças e da chegada da nova idade, 6 anos, Zezé não esqueceu da tragédia com sua árvore.

O ápice da obra acontece quando Minguinho dá sua primeira flor branca:

 “ — A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas.

Fiquei alisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor, ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor.

— Agora vamos tomar um mingauzinho e dar umas voltas pela casa como você fez ontem. Já vem já.”


ANÁLISE

Narrado em primeira pessoa, a obra é quase uma autobiográfica de José Mauro de Vasconcelos. Isso porque conta com alguns trechos que habitam a memória de infância do autor.

A história tenta alertar os leitores diante dos abusos que muitas crianças passam. O personagem principal era vítima de violência física e psicológica, suas punições eram as piores possíveis.

Como Zezé é o próprio narrador, o leitor pode acompanhar as situações e sofrer junto com ele, ou seja, o leitor é emergido na narrativa a ponto de compartilhar dos mesmos sentimentos.

É possível perceber o quanto a falta de atenção e negligência dos pais para com seus filhos pode se tornar um problema. As crianças, na tentativa de fugir do abandono familiar, começam a criar um mundo particular, paralelo.

Em contraponto, o afeto e amizade que Zezé encontra em Portuga mostra as transformações causadas pelo carinho e cuidado perante ao outro.

CONTEXTO HISTÓRICO

O livro “O Meu Pé de Laranja Lima” foi lançado em um dos momentos mais delicados da história, a Ditadura Militar no Brasil (1960 entre 1970). Como o livro tem enfoque na infância e não apresenta nenhum teor político, não sofreu nenhum tipo de censura.

Enquanto a ditadura era instalada, as produções culturais passaram a ter grande relevância, pois a televisão conseguiu atingir as casas das mais diferentes classes sociais. Foi justamente no ano de 1970 que a antiga Rede Tupi levou ao ar o primeiro capítulo da novela baseada no livro.

“Meu Pé de Laranja Lima” está disponível em PDF em
http://www.jfpb.jus.br/arquivos/biblioteca/e-books/meu_pe_de_laranja_lima.pdf

Fonte:
Guia Estudo. Acesso em 15.05.2021