sábado, 24 de abril de 2010

O Outro Lado do Quadro-Negro


Trecho de Pesquisa coletiva realizada como parte integrante da disciplina DISCURSO PEDAGÓGICO, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Letras, ministrada pela Profª Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos, no 1º semestre de 1996. Autores: Cláudio Dubois, Maria da Graça Hernandes Moura, Wanderci José dos Santos, Elisabeth Virag Garcia, Maristela de Carvalho, Maysa Monção Gabrielli, Ana Lúcia Moura de Oliveira, Kátia Kobal e Maria José Costa.

A expectativa de nossa sociedade, quanto à educação, é a preparação de cidadãos/alunos para a vida e sua formação para o exercício profissional, porém observamos vários fatores que têm desmotivado professores e alunos nesse processo, dentre os quais salientamos: a falta de condições materiais à escola, principalmente à escola pública de 1º e 2º graus; o sentimento de impotência, gerado pela ideologia decorrente de um sistema sócio-econômico baseado no desejo (ganância?) do lucro fácil e rápido, em detrimento da qualidade e dos objetivos a que se propõe a educação; a falta de condições instrumentais do professor, que lhe garantam a capacitação adequada para o exercício profissional.

Em busca de soluções que levem modificações ao ensino, ressaltamos a importância daquelas que possibilitem a valorização e o aperfeiçoamento do professor, devido ao seu papel direcionador na relação pedagógica, de inegável relevância política e social.

Dentro desse contexto, torna-se imprescindível a participação das universidades, criando novas metodologias, levantando e discutindo propostas para a melhoria da qualidade da educação, cabendo à sociedade a decisão quanto à efetivação das mudanças.

Os valores e a realidade da educação variam conforme as tendências sócio-históricas que a envolvem, podendo transformar a função de educar em um simples ato mecânico, rotina de sala de aula. Conseqüentemente, o professor deve manter-se atento à sua maneira de ser e agir enquanto profissional.

O reconhecimento da importância do professor no desempenho de seu papel de educador não depende exclusivamente dele, mas principalmente da escola como instituição social, o que somente se efetiva em decorrência dos valores determinados pela sociedade.

a) O DISCURSO PEDAGÓGICO

A teoria da Análise do Discurso que utilizamos para o estudo das falas dos entrevistados segue a linha de tendência européia. Essa linha de tendência apóia-se nos estudos de Bakhtin, que nos apresenta uma abordagem nova da linguagem, ao afirmar que a matéria lingüística é apenas uma parte do enunciado e que existe também uma outra parte, não-verbal, que corresponde ao contexto da enunciação.

Ao ser atribuído valor ao contexto do enunciado, este passa a não ser mais considerado ato individual, pois o indivíduo não estaria constituindo sozinho os significados de seu discurso. Segundo Brandão, essa visão da linguagem como interação social, em que o Outro desempenha papel fundamental para determinar o significado do que se diz, posiciona a enunciação individual num contexto mais amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o social.

Para Bakhtin,
"a palavra é o signo ideológico por excelência, pois, produto da interação social, ela se caracteriza pela plurivalência. Por isso é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por naturaza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes." (Bakhtin, 1979).

O discurso seria lugar de conflito, de confronto de idéias, em que as condições sócio-históricas passam a exercer papel fundamental na constituição dos significados que são produzidos.

Para compreendermos o discurso pedagógico, torna-se necessário analisar o contexto social que permite sua produção, o lugar que asociedade destaca para o professor e como o professor nele se insere. Segundo Pêcheux, hános mecanismos de toda formação social regras de projeção que estabelecem a relação entre as situações concretas e as representações dessas situações no interior do discurso.

Qual seria, portanto, a relação entre o discurso do professor e a sociedade?

A nossa sociedade concede ao professor o lugar de autoridade, e autoridade que detém o saber. Esse contexto sócio-histórico permite que seja estabelecida para o professor uma posição privilegiada em relação aos seus alunos, em que o sujeito se pretende único, e porque entende-se dono do conhecimento, faz uso do discurso autoritário. O sujeito que fala é um sujeito ideológico. "Sua fala é um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social. Dessa forma, como ser projetado num espaço e num tempo e orientado socialmente, o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro." (LUCKESI, 1994)

"Em geral, e a não ser numa minoria dos casos, parece que o senso comum é o seguinte: para ser professor no sistema de ensino escolar, basta tomar um certo conteúdo, preparar-se para apresentá-lo ou dirigir o seu estudo, ir para uma sala de aula, tomar conta de uma turma de alunos e efetivar o ritual da docência: apresentação de conteúdos, controle dos alunos, avaliação da aprendizagem, disciplinamento, etc. Ou seja, a atividade de docência tornou-se uma rotina comum, sem que se pergunte se ela implica ou não decisões contínuas, constantes e precisas, a partir de um conhecimento adequado das implicações do processo educativo na sociedade." (LUCKESI, 1994)

A prática pedagógica diária pouco tem levado em conta a reflexão crítica sobre o que vem a ser o conhecimento e o seu processo. O senso comum pedagógico manifesta um entendimento idealista do que seja o conhecimento. É como se o conhecimento não tivesse história e não tivesse acertos e erros. O que se diz é assumido como se sempre tivesse sido assim. No entanto, o conhecimento tem história, está eivado de desvios por interesses de uns ou de outros. O senso comum interessa à situação conservadora da sociedade em que vivemos, em função de que ela não possibilita o surgimento de uma "massa crítica" de seres humanos pensantes e ativos na sociedade. O senso comum é o meio fundamental para a proliferação da manipulação das informações, das condutas e dos atos políticos e sociais dos dirigentes dos setores dominantes da sociedade.

Este trabalho questiona esse senso comum, procurando esclarecer o papel do professor e sua real importância para a sociedade.

O PAPEL DO PROFESSOR

"O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder que o domina e o ameaça".(CHAUÍ, 1995)

O ser humano é prático, ativo, uma vez que é pela ação que modifica o meio ambiente que o cerca. É um ser que age no contexto da trama das relações sociais, que, em última instância, caracteriza-se pela posse ou não de meios sociais de produção.

Segundo Luckesi, a ação humana exercida coletivamente sobre a natureza, possibilita ao ser humano compreender e descobrir o seu próprio modo de agir. "A ação prática sobre a realidade desperta e desenvolve o entendimento, a capacidade de compreensão e a emergência de níveis de abstração mais complexos".(LUCKESI, 1994)

Paulo Freire associa o conceito de ação ao conceito de compromisso. Segundo ele, compromisso é decisão lúcida e profunda do homem em usar sua capacidade de agir e refletir para se inserir criticamente no mundo numa atitude objetiva de compreensão da realidade, de luta para transpor os limites impostos pelo mundo, e atuando sobre ele, transformá-lo. Essa inserção crítica produz efeitos no exercício profissional que contribuem para o bem estar coletivo.

Porém, historicamente, o ser humano é dimensionado tanto pela complexidade, sagacidade, inteligência, entendimento, quanto pela alienação, pelo afastamento de si próprio, pois que ele é construído pelo trabalho que ao mesmo tempo constrói e aliena. Não podemos separar esses dois elementos, o criativo e o alienado. Esta é a enorme contradição, o trabalho que cria e aliena. Portanto, torna-se normal nos discursos, a contradição. A personalidade humana é contraditória como contraditória é a sociedade. "O ser humano não é o que ele diz de si mesmo, mas aquilo que as condições objetivas da história possibilitam que ele seja. A alienação surge, individualmente, pela alienação do produto do próprio trabalho, da própria ação." (CHAUÍ, 1995)

Qual seria, portanto, o papel do professor e como ele estaria enfrentando essa dualidade de trabalho que constrói e aliena?

O professor, segundo Luckesi (1994), é um ser humano construtor de si mesmo e da história através da ação, é determinado pelas condições e circunstâncias que o envolvem. É condicionado e condicionador da história. Tem um papel específico na relação pedagógica, que é a relação de docência.

Na práxis pedagógica, o educador é aquele que, tendo adquirido o nível de cultura necessário para o desempenho de sua atividade, dá direção ao ensino e à aprendizagem. Ele assume o papel de mediador entre a cultura elaborada acumulada e em processo de acumulação pela humanidade, e o educando.

Ele exerce o papel de um dos mediadores sociais entre o universal da sociedade e o particular do educando. Para tanto, o educador deve possuir algumas qualidades, tais como: compreensão da realidade para a qual trabalha, comprometimento político, competência no campo teórico de conhecimento em que atua e competência técnico-profissional.

A ação docente tem sentido e significado crítico, consciente e explícito. A alienação de seu trabalho ocorre quando ele ignora a realidade à sua volta, e reduz seu trabalho a uma rotina de sala de aula, cujo objetivo restringe-se à mera transmissão de informações, postura que não condiz com seu papel de educador.

Educar é, segundo Freire (1979), completar, porque o homem é ser inacabado, que sabe disso e por isso se educa. O saber se faz através de uma superação constante, por isso não pode o professor se colocar na posição do ser superior que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que comunica um saber relativo (é preciso saber reconhecer quando os educandos sabem mais e fazer com que eles também saibam com humildade).

O discurso autoritário perde seu sentido na prática pedagógica. Segundo proposta de Eni (1987), o discurso do professor deve se tornar polêmico, "efeito de sentidos e não transmissão de informação". Tornar o discurso polêmico é "ser ouvinte do próprio texto e do outro". A transformação do discurso pedagógico possibilitará a revisão da práxis pedagógica, que sairá de dentro das escolas para as ruas, invadindo a vida, o mundo. A postura do professor influencia a postura do aluno, e o seu posicionamento de ouvinte, de aceitação da polêmica no diálogo, abrirá o caminho para a crítica e a conseqüente discussão da realidade.

O discurso autoritário não cria contexto para a transformação. serve de instrumento para a acomodação, porque condena o homem à repetição histórica, impedindo a polêmica que questione o sentimento de impotência do homem frente à sua realidade, impedindo o resgate da confiança de que o homem pode criar no presente ações que concretizem um futuro novo, que rompa com a tradição do passado.

O discurso autoritário é surdo. O debate que levanta sobre a realidade e os problemas enfrentados só transfere responsabilidades, e por transferir responsabilidades, não é capaz de mobilizar a sociedade. Se a discussão gira em torno dos problemas educacionais, afirma que o problema é de responsabilidade do aluno que não estuda mais, que não demonstra interesse pelas aulas, da direção da escola que não orienta ou não apóia adequadamente os professores, dos políticos que impõem diretrizes sem ouvir os profissionais da educação, ou dos professores que não se preparam devidamente para exercer o magistério, etc. É um discurso que impede a organização dos homens e sua visão crítica sobre os problemas, impedindo ações eficazes.

O discurso polêmico inverte os efeitos do discurso autoritário. Ele assume a responsabilidade individual pela transformação da realidade coletiva, ao permitir que os homensse ouçam, que os problemas sejam discutidos racionalmente, de forma objetiva, possibilitando a conscientização da realidade, e a enumeração dos obstáculos. Amadurecida a compreensão dos problemas, as causas são relacionadas e os homens podem então elaborar planos de ação conjunta, que viabilizem ações que levem à real solução dos problemas encontrados.

O objetivo da prática pedagógica é promover o homem a sujeito de sua própria educação. Despertar no homem a consciência de que ele não está pronto, despertar nele o desejo de se complementar, capacitá-lo ao exercício de uma consciência crítica de si mesmo, do outro e do mundo.

Segundo Jean Foucambert (1994), todo aprendizado é uma forma de resposta ao desequilíbrio, portanto, desenvolver a consciência crítica acerca do nosso valor como seres humanos e de nosso trabalho enquanto profissionais, é imprescindível para o estabelecimento do equilíbrio na auto-estima humana. A baixa na auto-estima impede o desenvolvimento das potencialidades do homem, reduz sua capacidade de agir porque o faz desacreditar de seu valor e da importância de seu trabalho, portanto se relaciona ao não aprendizado do valor de si mesmo. Por outro lado, a auto-estima elevada se relaciona ao não aprendizado do valor do outro, o que causa distanciamento entre os homens, impede a troca de experiências, o crescimento conjunto, e a união de esforços para a solução de problemas comuns, desvirtuando a finalidade real do trabalho, que é tanto servir à promoção individual quanto ao bem estar coletivo.

Transcrevemos a seguir trechos das falas dos entrevistados desta pesquisa e suas respectivas análises:

"Eu me considero (realizado), sim. faço exatamente o que gosto. não olho as cifras."

O discurso do sujeito reproduz a fala alienante sobre a questão salarial, impedindo a conscientização do profissional acerca do valor de seu trabalho, que necessita ser adequadamente remunerado, condição imprescindível para o equilíbrio em sua auto-estima. Essa fala é ideológica, pois afasta do indivíduo a possibilidade de reivindicação.

(Você recomendaria o magistério ao seu filho?) "...só se for muito predestinado como eu."

Ao afirmar sua predestinação ao magistério, o sujeito faz uso de um discurso que destitui a escolha profissional de seu caráter de liberdade, não a relacionando a uma opção consciente e crítica. É uma fala que procura manter a ordem social, que estipula para o homem uma posiçãopredestinada, impedindo o questionamento dessa ordem e sua mudança. Tal discurso causa um sentimento de impotência frente ao presente e uma acomodação quanto ao futuro.

"Minha expectativa quanto à profissão, na época em que me formei, em termos de ideal, acho que aumentou. Eu ainda acredito nesta profissão. É uma pena que muitos não acreditem."

Esse discurso vincula profissão a ideal, desconsiderando que professores são profissionais, com direito à satisfação de suas expectativas, que dizem respeito a salário e condições de trabalho adequados, não a ideais. É um discurso eufórico, que exacerba a importância do trabalho, em detrimento da discussão sobre as circunstâncias adversas em que esse trabalho é produzido, levando os profissionais a adotarem uma atitude de abnegação, de resignação.

"Sim (considera-se realizado profissionalmente), só sonho em um dia poder ganhar bem e fazer jus ao meu trabalho."

O discurso acima revela um sujeito consciente de que seu salário não corresponde ao seu desempenho profissional. o sujeito apresenta auto-estima equilibrada, pois reconhece seu valor e de seu trabalho. a palavra sonho revela que as dificuldades para a concretização do desejo de ganhar bem não podem ser vencidas individualmente, mas dependem das circunstâncias históricas determinadas pela sociedade, motivo pelo qual seu direito salarial encontra-se reduzido a uma esperança salarial (o que é menor ainda que uma expectativa).

"As cinco profissões básicas são: o professor, o político, o advogado (o homem das leis), o médico e o arquiteto. O professor já existia desde a Grécia. Era o pedagogo. Sabia que o pedagogo era escravo naquela época? O professor sempre teve isso de escravo. Começou daí."

Ao comparar sua profissão à do escravo, o sujeito se coloca numa posição hierarquicamente inferior na relação de poder (só recebe ordens e possui somente deveres). Esse discurso revela uma ideologia alienante, na qual o sujeito se vê sem liberdade de escolha, sem opção de mudança, portanto, acomodado, tendo em vista que a realidade lhe é apresentada como fruto de um passado que tende a perpetuar-se.

"Os tecnocratas estão lá em cima e dizem que tem de ser assim, mas eles não têm a prática que o professor tem, e o professor nunca é consultado para saber o que poderia ser feito. Nunca. Quando vem, vem a ordem e acabou."

Esse é o discurso autoritário reproduzido pelo sistema, no qual os políticos (tecnocratas) não ouvem a opinião do povo, nem a solicitam, tanto em relação à educação quanto aos demais setores de interesse da sociedade. Esse comportamento é fato social, reproduzido freqüentemente nas relações humanas, em casa, no trabalho, na escola, impedindo a liberdade do sujeito de participar, criticar sua própria atuação e a do outro, cobrar melhor desempenho de ambos e construir mudanças que viabilizem uma sociedade onde haja oportunidade de crescimento para todos os homens.

"Eu não queria sair do magistério. em termos de remuneração era superior (o outro emprego), mas quando nos tornamos efetivos a gente se torna mais estável, e naquela época tinha acabado de passar no concurso."

O discurso revela uma prática social: usar a estabilidade no emprego para compensar o baixo salário pago ao profissional, visando mantê-lo trabalhando, mesmo estando insatisfeito profissionalmente.

"Às vezes eu passo no corredor, vejo os professores dando aula, tenho vontade de entrar na sala e me intrometer, porque as meninas têm dificuldades de lidar com os alunosindisciplinados. Eu grito e ai do demônio que continuar bagunçando. Pelo menos é assim que eu faço com os meus. Olha, eles aprendem muito mais que os outros alunos das outras classes, e todos os pais me adoram."

O sujeito se utiliza de um discurso autoritário que estabelece para si uma posição privilegiada em relação ao aluno e aos demais profissionais da escola, e o faz com a aprovação da comunidade em que está inserido. Esse discurso reproduz a ideologia que aliena os envolvidos no processo educacional, ao impedir que o homem se posicione como sujeito no mundo, capaz de criticar tanto sua atuação quanto a do outro.

"Há 20 anos o aluno era compenetrado, responsável e queria aprender. Atualmente existe uma nova clientela, por isso é necessário o professor se atualizar para se adequar à nova realidade. Hoje o professor tem que encontrar diferentes formas para conseguir passar sua experiência. As relações entre as pessoas estão mais frias em conseqüência do número grande de alunos na sala de aula. O professor tem que se adaptar a essas novas mudanças."

Nesse discurso o professor é situado numa posição hierarquicamente superior ao aluno. O significado constituído por esse discurso é ideológico, pois nele o aluno é apresentado como receptor da experiência do professor e é responsabilizado pelas dificuldades atuais enfrentadas por ele ao tentar "passar" sua experiência. O discurso afirma que devido ao fato do aluno não ser mais compenetrado, responsável e nem querer aprender, o professor precisa se atualizar para se adequar à nova realidade e a essa nova clientela. O efeito dessa ideologia é levar o indivíduo a conviver com o problema, sem questionar suas causas, e conseqüentemente, sem encontrar a solução.

"A escola pública é um laboratório. Ela me permitiu errar."

O sentido implícito na afirmação de que a escola pública permite errar é o de que a escola da rede privada não o permite, ou seja, o desempenho do profissional varia de acordo com o público alvo de seu trabalho. o sujeito que fala é ideológico, e essa sua fala é recorte de um contexto social que pratica discriminação social nas relações de trabalho. esse comportamento, consentido pelo discurso, mantém ideologicamente a divisão e a discriminação das classes sociais, alimentando as injustiças.

"(...) Eu seguiria o mesmo processo, com o mesmo entusiasmo, principalmente com o construtivismo. Eu ainda não entendi direito o que é, mas se pudesse recomeçar, eu aplicaria isso na sala de aula."

Esse discurso é ideológico. Seu objetivo é impedir a consciência da necessidade de ser exercitada a capacidade crítica do indivíduo e sua conseqüente participação social. Essa ideologia leva o profissional à alienação e ao descompromisso, pois não lhe confere a responsabilidade na construção dos procedimentos pedagógicos, nem mesmo o questionamento daqueles que são adotados pelo sistema educacional, o que pode levá-lo à aceitação dos métodos porque " a ordem veio e acabou" ou porque está na moda (é elogiado por outros).

"... ao final de cada mês me sinto decepcionada e frustrada, não somente por ser professora, mas também pelos dirigentes do país que não têm seriedade por aqueles que os formaram e os colocaram no poder."

O discurso acima coloca o professor numa posição hierarquicamente inferior na relação de poder. Apesar de formar o outro e elegê-lo, o professor não continua participando do processo (do poder). Esse discurso é ideológico e assujeita o indivíduo, pois não possibilita a consciência de sua capacidade de transformar, de continuar participando do poder, provocando no profissional um sentimento de impotência que afeta sua auto-estima, fato agravado pela insatisfação financeira e profissional, marcadas implicitamente no texto pelas falas: "ao final de cada mês" e "não somente por ser professora".

Fonte:
http://www.espirito.org.br/

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Livro de Poesias)


MORADA

Deixa-me te amar de qualquer jeito;
Arranca, pois, de mim, esta vontade,
Esmaga para sempre esta saudade
Que amarga como fel dentro do peito...

Faze, então, de mim brisa serena
Roçando o teu corpo levemente,
Deixando que este amor tão de repente
Mostre que a loucura vale a pena.

Arranca-me dos lábios o doce mel,
A seiva que alimenta este prazer
E faze-me sentir subindo ao céu!

Não me deixes vagando, assim, ao léu,
Mostra-me com malícia o que é viver,
Descerra do teu corpo a veste, o véu...
Quero hospedar-me todinho em você!
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FONTE DE DESEJOS

Vejo em você a fonte dos meus desejos.
O oásis que me abriga,
A brisa que me sopra a vida,
A água que me mata a sede,
A boca que me enche a boca
De sutis e delicados beijos.

Vejo em você a imensidão do mar,
A única estrela a brilhar,
O campo repleto de flor.
Vejo em você a vida,
A vida que me dá vida,
Que por triste ironia,
É só sonho e fantasia,
Fonte de ilusão perdida,
Que quase me mata de amor...
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SONHO II

Calo-me no teu colo quente,
Conto estrelas lá no céu,
Deixo brincar docemente
Sonhos que vagam ao léu.

Vaga sonho pela vida,
Deixa o amor aportar,
Sê o ninho e a guarida
Dos sonhos que vêm do mar.

Traze a brisa nos teus braços
Com a luz deste luar
E depois num longo abraço
Vamos matar a saudade
E morrer de tanto amar...
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PRESA

Quero ser a sua presa,
Enroscar-me em sua teia
Sem reação ou defesa,
Ser manjar em sua mesa,
Deixar sugar o meu sangue
Até secar minha veia...

Quero ser seu alimento,
Provisão de cada dia,
Ser o seu pão, seu sustento,
E depois do acalento,
Ser sua noite de orgia.
Eu quero ser o seu vinho,
O cálice que inebria.
Ser madrugada, seu dia,
Ser seu parceiro no ninho.
Quero ser a sinfonia
Mais suave e maviosa,
Ser seu verso e sua prosa
Seu delírio e fantasia...
Quero ser a sua rima,
Sua trova e sextilha,
Sua estrada, sua trilha,
Seu fogo ardente, seu climax.
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TEU SORRISO

Esse teu sorriso me arrebata,
enche-me de prazer - faz lembrar a minha infância,
põe-me a recordar, com ingênua graça,
dias felizes, quando era criança.

Teu jeitinho de sorrir me contagia,
alegra meu coração, purifica a minh’ alma...
até hoje não sei como vivia
sem esse sorriso – bálsamo que me acalma.

Guarda–o contigo, com muito amor,
e por onde quer que andes, vá distribuindo,
lança–o como lança a semente o lavrador,
deixe quem colher, retribuir sorrindo.

Continua, no entanto, a distribuir em maior porção,
a todas as crianças que encontrares no mundo,
pois sinto que esta é a maior razão,
deste teu sorriso terno e tão profundo.

Quanto a mim, considera-me também pirralho,
dá–me o teu sorriso em igual porção,
faze-me feliz, como faz o orvalho,
espalhando gotas de sorriso pelo chão.
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PONTO

O ponto que se ponteia
Na ponta de um ponto só
Não firma o laço da peia
Nem ata o laço do nó.

Passarinho que não trina
Fica triste sem cantar,
Mulher de cintura fina
Faz qualquer homem sonhar.

A lixa que vira lixo
Não serve mais pra lixar,
Burro velho sem rabicho,
Mulher feia sem capricho,
Corre o risco de empacar.
Benzedor que benze bem
Cura espinhela caída
Mas não cobra um só vintém
Pelo bem que faz na vida...

Tronco que vira tronqueira
Não deixa ninguém passar,
Cria vinda de parteira
Já nasce querendo andar.

E eu fico aqui matutando,
Louquinho para encontrar
Um final para os meus versos
Que não sei arrematar.
=====

Fonte:
Colaboração do Poeta.

Anônimo (A Letra “P”)



Pedro Paulo Pereira Pinto, pequeno pintor português, pintava portas, paredes, portais. Porém, pediu para parar porque preferiu pintar panfletos. Partindo para Piracicaba, pintou prateleiras para poder progredir.

Posteriormente, partiu para Pirapora. Pernoitando, prosseguiu para Paranavaí, pois pretendia praticar pinturas para pessoas pobres. Porém, pouco praticou, porque Padre Paulo pediu para pintar panelas, porém posteriormente pintou pratos para poder pagar promessas.

Pálido, porém personalizado, preferiu partir para Portugal para pedir permissão para Papai para permanecer praticando pinturas, preferindo, portanto, Paris. Partindo para Paris, passou pelos Pirineus, pois pretendia pintá-los.

Pareciam plácidos, porém, pesaroso, percebeu penhascos pedregosos, preferindo pintá-los parcialmente, pois perigosas pedras pareciam precipitar-se principalmente pelo Pico, porque pastores passavam pelas picadas para pedirem pousada, provocando provavelmente pequenas perfurações, pois, pelo passo percorriam, permanentemente, possantes potrancas. Pisando Paris, permissão para pintar palácios pomposos, procurando pontos pitorescos, pois, para pintar pobreza, precisaria percorrer pontos perigosos, pestilentos, perniciosos, preferindo Pedro Paulo precaver-se.

Profundas privações passou Pedro Paulo. Pensava poder prosseguir pintando, porém, pretas previsões passavam pelo pensamento, provocando profundos pesares, principalmente por pretender partir prontamente para Portugal. Povo previdente! Pensava Pedro Paulo... Preciso partir para Portugal porque pedem para prestigiar patrícios, pintando principais portos portugueses. Paris! Paris! Proferiu Pedro Paulo.

Parto, porém penso pintá-la permanentemente, pois pretendo progredir. Pisando Portugal, Pedro Paulo procurou pelos pais, porém, Papai Procópio partira para Província. Pedindo provisões, partiu prontamente, pois precisava pedir permissão para Papai Procópio para prosseguir praticando pinturas.

Profundamente pálido, perfez percurso percorrido pelo pai. Pedindo permissão, penetrou pelo portão principal. Porém, Papai Procópio puxando-o pelo pescoço proferiu: Pediste permissão para praticar pintura, porém, praticando, pintas pior. Primo Pinduca pintou perfeitamente prima Petúnia. Porque pintas porcarias? Papai proferiu Pedro Paulo, pinto porque permitiste, porém, preferindo, poderei procurar profissão própria para poder provar perseverança, pois pretendo permanecer por Portugal.

Pegando Pedro Paulo pelo pulso, penetrou pelo patamar, procurando pelos pertences, partiu prontamente, pois pretendia pôr Pedro Paulo para praticar profissão perfeita: pedreiro! Passando pela ponte precisaram pescar para poderem prosseguir peregrinando.

Primeiro, pegaram peixes pequenos, porém, passando pouco prazo, pegaram pacus, piaparas, pirarucus. Partindo pela picada próxima, pois pretendiam pernoitar pertinho, para procurar primo Péricles primeiro. Pisando por pedras pontudas, Papai Procópio procurou Péricles, primo próximo, pedreiro profissional perfeito.

Poucas palavras proferiram, porém prometeu pagar pequena parcela para Péricles profissionalizar Pedro Paulo. Primeiramente Pedro Paulo pegava pedras, porém, Péricles pediu-lhe para pintar prédios, pois precisava pagar pintores práticos. Particularmente Pedro Paulo preferia pintar prédios. Pereceu pintando prédios para Péricles, pois precipitou-se pelas paredes pintadas. Pobre Pedro Paulo pereceu pintando... '

Permita-me, pois, pedir perdão pela paciência, pois pretendo parar para pensar... Para parar preciso pensar. Pensei. Portanto, pronto pararei.

Fonte:
Colaboração de Waldir Wagner

Folclore Indigena: Pareci e Guarani (O Milho)



Lenda Pareci

Ciente da proximidade da morte, Aimotarê, um grande chefe pareci chamou seu filho Kaleitoê.

Ordenou-lhe que, logo após seu falecimento, fosse enterrado no meio da roça. Também avisou ao filho que, pouco tempo depois, nasceria na sepultura uma planta repleta de sementes. Disse-lhe que não as comesse pois deveriam ser guardadas e replantadas. O filho ouviu suas explicações atentamente e seguiu suas instruções.

Assim surgiu o milho entre os índios pareci.

Lenda Guarani

Durante uma época de escassez de alimentos, o sofrimento da tribo foi tal que, certo dia, dois guerreiros amigos, decidiram recorrer ao poder de Nhandeyara, o grande espírito. Eles sabiam que o atendimento do seu pedido estaria condicionado a um sacrifício. Mas preferiram enfrentá-lo.

Deitaram numa clareira do bosque e esperaram. À noite apareceu um enviado de Nhandeyara e indagou o que desejavam.

"Pedimos nova espécie de alimento para saciar a fome de nossas famílias e a nossa." eles disseram.

"Está bem!" respondeu o enviado. "O grande espírito está disposto a atender esse pedido. Mas, para isso, os dois devem lutar comigo, até que o mais fraco perca a vida."

Os índios aceitaram as condições e lutaram com o representante de Nhandeyara. Depois de algum tempo de luta, Auaty, um dos guerreiros, caiu morto no chão. Penalizado, seu amigo enterrou-o nas proximidades do local onde caiu.

Na primavera seguinte, uma planta alta e de folhas compridas brotou na sepultura de Auaty. Nela, surgiram espigas de grãos amarelos. Os guaranis deram o nome de auaty (milho) ao novo alimento, em homenagem ao índio que sacrificou-se em benefício da tribo.

(Adaptação de versão de Barbosa Lessa, in Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul)

Fonte:
Lendas Indígenas.
http://www.lendorelendogabi.com

Durval Mendonça (Trovas que eu Dou à Vida !) Parte II


O rio, com suas águas
correndo livres no leito,
parece zombar das mágoas
que trago presas no peito.

Eu rolo desde menino,
feito pedra sem parar...
Só Deus sabe que destino
meu destino há de me dar.

Vem, lua, pela vidraça
ver minhas noites vazias...
Um quarto frio, sem graça,
de um pobre joão sem marias.

Dás um jeito encantador
ao teu ciúme cruel;
misturas, no teu amor,
cicuta e favos de mel.

A rosa, com seus espinhos,
é bem feminina, quando
retribui nossos carinhos
envaidecida... e magoando.

Bebo, sim!... Quanto puder!
Pois vejo, ao fundo da taça,
tua graça de mulher
fazendo minha desgraça...

Felicidade fugaz...
Esperta como Saci ...
Por ela perdi a paz,
e sem paz eu me perdi.

Dos beijos, o mais terrível,
que assombrou povos inteiros,
por mais que pareça incrível,
custou só trinta dinheiros.

Sublimando a santidade
da mãe no doce mister,
o Verbo fêz-se Verdade
no ventre de uma Mulher.

Vejo-te sempre rolando,
indo e vindo... Que aflição!
Responde, mar, até quando
viverás na indecisão?

Minhas vitórias, empenhos
em lutas cheias de agravos,
são pesadas como lenhos,
dolorosas como cravos.

Pobre mãe, sem despedida,
por ironia do fado,
deixaste, acabada a vida,
um crochê inacabado.

Lágrimas que afloram, quando
minha angústia se renova,
eu as enxugo, cantando,
ao calor de minha trova.

Deixei meu Norte e, feridos,
os coqueirais de atalaia
ouvem meus tristes gemidos
nos búzios de nossa praia.

Se a Fé montanhas remove,
como costumam dizer,
vamos à prova dos nove:
Removam, que eu quero ver.

Dai, Senhor, à criatura
deste mundo, enquanto é cedo,
um pouco mais de ternura,
um pouco menos de medo!...

Pedra verde da ilusão,
de mentiroso matiz,
foste a piedosa emoção
de um Bandeirante feliz.

Coração descompassado,
vai bater assim no Inferno:
se vives desgovernado,
eu também me desgoverno.

Mostrando ser feminina,
a praia ouve os segredos
que o mar, por trás da neblina,
conta baixinho aos rochedos.

Para alcançar o perdão
das maldades que te fiz,
andei de rastros no chão
e o próprio chão não me quis.

Dos teus olhos eu me esquivo,
para vencer a inquietude;
são pedras de fogo vivo
no caminho da virtude.

Vai-se o trem.. - Deixa a estação.
O silvo agudo é o sinal...
E uma lágrima no chão,
marcando um ponto final...

lnvejarei os rochedos,
sempre que o mar lhes disser
os mais preciosos segredos
do teu corpo de mulher.

Como um sino em hora morta,
após tantos dissabores,
meu coração bate à porta
de um cemitério de amores.

Se as vitórias têm um preço,
meu destino é muito avaro,
pois até as que mereço
são cobradas muito caro.

Ruge o vento!... Folhas soltas
arrancadas sem piedade;
são como pedras revoltas
castigando a tempestade.

Gotas de cera descendo
no derradeiro transporte...
Lágrimas tristes correndo
dos olhos frios da morte.

Que coisa, incrível, estranha!
Cansada de fazer dó!
A solidão me acompanha
com medo de ficar só.

No meu Carnaval desfeito
deixaste apenas um traço:
Hoje, bate no meu peito
um guizo do teu "palhaço".

Pedra a pedra vou erguendo
meu castelo de esperança...
Pobre sonho vai morrendo
como um sonho de criança.

Após cruentas batalhas,
quantas lágrimas fluíram,
umedecendo medalhas
de bravos que nunca as viram.

Com teu jeito assim brejeiro
de sinfonia concreta,
és o melhor travesseiro
para os sonhos de um poeta.

Vejo, perdido de amores,
por entre incertos meandros,
encantos enganadores
em teus olhinhos malandros.

Sem amor, no torvelinho
de uma vida envolta em bruma,
de que me serve um caminho,
se não vou a parte alguma?

Quanto mais a vida passa,
mais rendo graças a Deus,
porque meus olhos sem graça
vivem da graça dos teus.

Não tenho lei nem vontade...
Discordarmos, para que?
Você é minha verdade...
Meu evangelho é você!

Espadachim, bossa nova,
com ares de trovador,
eu abro com minha trova
meu caminho ao teu amor.

Nesta incrível cabra-cega
não me adianta, ser ladino;
afinal sempre me pega
o chicote do destino.

Parte o navio... O apito
ecoa por todo o cais...
E na lágrima, que evito,
o medo de um "nunca mais".

Se as mulheres são tesouro
que os deuses deram à gente,
as que têm cabelos de ouro
valerão mais, certamente.

Rompe o sol pela janela
e meus olhos aturdidos
brindam à luz que revela
o teu corpo aos meus sentidos.

Na saudade que me arrasa,
como doridos harpejos,
ecoam na velha casa
acordes de antigos beijos...

Rosa negra, maculada,
por mãos estranhas colhida...
Sorris à beira da estrada,
chorando à beira da vida...

A vida... Que vale a vida?
Ela talvez nem me importe...
Pobre ampulheta invertida
nas mãos do Tempo e da Morte.

Para a incerteza do mar
a velha jangada avança...
E a esperança de voltar
fica, às vezes, na esperança...

Perdôa, mãe, porque sou
do teu desejo o contraste...
A vida não me ajudou
no sonho bom que sonhaste.
===============

Fonte:
UBT Juiz de Fora

Roberto Piva (Horizonte Poético)


RITUAL DOS 4 VENTOS & DOS 4 GAVIÕES

para Marco Antônio de Ossain

"Eu trago comigo os guardiões dos Circuitos celestes."
— Livro dos Mortos do Antigo Egito —

Ali onde o gavião do Norte resplandesce
sua sombra
Ali onde a aventura conserva os cascos
do vudú da aurora
Ali onde o arco-íris da linguagem está
carregado de vinho subterrâneo
Ali onde os orixás dançam na velocidade
dos puros vegetais
Revoada das pedras do rio
Olhos no circuito da Ursa Maior
na investida louca
Olhos de metabolismo floral
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da sussuarana com
passos de sabotagem
Carne rica de Exú nas couraças da noite
Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada
Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas
Bate o tambor
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranóia de Júpiter
Caciques orgiásticos do tambor
Com meu Skate-gavião
Tambor na virada do século ganimedes
Iemanjá com seus cabelos de espuma.
======================

BOLETIM DO MUNDO MÁGICO

Meus pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mas as batucadas dos ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longos delírios

(...)

eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool
eu sou uma solidão nua amarrada a um poste
fios telefônicos cruzam-se no meu esôfago
nos pavimentos isolados meus amigos constroem um manequim fugitivo
meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota
minha alma desconjuntada passa rodando".

Roberto Piva (O Escritor em Xeque)



Entrevista realizada por Fábio Weintraub, para a Revista Cult.

A provocação é de Roberto Piva, autor de Ciclones e Paranóia, que está sendo relançado pelo Instituto Moreira Salles. Estudioso das técnicas arcaicas do êxtase, passageiro do inframundo e amigo dos "orixás travessos da sombra", Piva nos fala do nexo entre arte e loucura, poesia e marginalidade; alerta-nos contra a monstruosidade do "Homo normalis", comenta a obra de Mário de Andrade e rende tributo à onça pintada, convertida por ele em totem da nacionalidade.

FW - Em entrevista recente, você declara ter utilizado o método paranóico-crítico de Salvador Dali para escrever os poemas que compõem o livro Paranóia. Avesso à sistematização de tipo cartesiano, contra os "pinicos estreitos da lógica" e "torniquetes da consciência", para usar expressões suas, tal método, intuitivo por definição, se detém nos detalhes de uma composição para deles derivar...

RP - ... o Dali criou esse método a partir do delírio do paranóico. Você, que é psicólogo, sabe que o paranóico se fixa num detalhe e constrói um mundo alucinatório, imaginário, a partir daquele detalhe. Um poema como "Praça da República dos meus Sonhos", por exemplo, foi construído a partir dos detalhes da praça, num delírio semelhante ao do paranóico. Só que não é um poema de alucinação persecutória. Apesar de eu também me sentir um pouco perseguido dentro desta cidade, onde você precisa ser passarinho para atravessar a rua, para não ser atropelado. Não é isso? O poeta Allen Ginsberg dizia que a realidade é que era paranóica, não ele.

FW - Em poemas e manifestos, você sempre insistiu no parentesco profundo entre arte e loucura. Para o artista romântico, esse parentesco significa que o eu autêntico é o eu não-socializado, não sufocado pelas convenções civilizadas ou universalizado "pelo senso comum"; como está no seu poema "A Piedade". Você não acha que tal compreensão deriva freqüentemente para uma crítica não-dialética aos constrangimentos sociais, entendidos como fachadas que encobrem o verdadeiro eu?

RP - Eu, como o Pasolini, não acredito na dialética. O que existe são oposições irreconciliáveis. Acredito naquilo que o Freud afirma em O mal-estar na Cultura: existe um movimento cada vez mais restritivo, não só da vida sexual, mas da subjetividade de modo geral. É também, de certa forma, um texto paranóico em relação à Cultura, que é entendida como repressão. Quanto ao parentesco entre arte e loucura, acho que o "desregramento de todos os sentidos", de que falava o Rimbaud, refere-se não propriamente à loucura, mas a um estado de transe. Um estado de transe xamânico, porque Rimbaud era um alquimista, um xamã avant la lettre, que propõe mesmo a "alucinação das palavras"; o termo é dele. Os artistas, como afirma o Joseph Campbell, são os xamãs da sociedade contemporânea. A loucura propriamente dita é uma coisa muito triste, horrível. Quando Huizinga fala que o louco, o poeta e a criança têm coisas em comum, ele está pensando na criação artística, na imaginação fértil, propiciatória. A esquizofrenia em si é uma coisa muito triste. Às vezes tomamos por loucura não a "doença mental" especificamente, mas as manifestações do irracional. Aquele impulso para o irracional que, conforme Pasolini, acabou fazendo do Ocidente, que tanto se empenhou em negá-lo, a vítima mais fatal. E temos aí a história que não nos desmente, não é mesmo?

FW - Você vive afirmando que não acredita em poeta experimental sem vida experimental, que faz os poemas com "o que sobra da orgia" propondo uma identificação entre sujeito poético e sujeito empírico. Não obstante, há vários leitores seus, como o poeta Felipe Fortuna, para quem o bom resultado alcançado por você deve-se menos à radicalidade de experiências tematizadas por você (homoerotismo, drogas etc.) que ao "bom arremate literário" dado àquelas experiências. Como você encara tal tipo de leitura?

RP - É aquilo que diz o Octavio Paz: há uma única forma de se ler os jornais e várias formas de se ler um poema. Cada pessoa enxerga uma coisa diferente na minha poesia, pois, no fundo, ela é muito rica e permite uma enorme variedade de interpretações. A qualidade do arremate literário não exclui a radicalidade das experiências que estão na origem do poema. Mas acho que essa valorização excessiva da fatura pode revelar um certo preconceito contra o dionisismo, a idéia de que o dionisismo é algo superficial. Está errado. O dionisismo é uma das religiões mais profundas que já existiram. Basta ver que uma das suas manifestações produziu o teatro. Quer mais do que isso? Dionísio é o deus do teatro. As artes da aparência empalideceram diante de uma arte que proclamava a sabedoria na sua própria embriaguez. Donde a estética cabaço, atuando nas mais diferentes escolas literárias pelo Brasil afora. Vivemos num país profundamente dionisíaco, onde os intelectuais têm preconceito contra as manifestações espontâneas, criativas. Mesmo o fato de me enquadrarem na poesia marginal, dos anos 70, tem a ver com isso. Eu não sou dos anos 70 e não sou marginal; sou marginalizado. E por não ter pactuado com a universidade, com uma certa esquerda, por não participar das rodas literárias, nem dos "chás-da-cinco", aos poucos fui sendo excluído.

FW - Eu queria aproveitar um pouco sua menção à poesia marginal. "Desde que foi expulso da República de Platão, todo poeta é marginal." "O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é literatura." Como ficam hoje tais declarações, feitas por você no princípio dos anos 80? A institucionalização da bandidagem não inviabilizou esse tipo de slogan? Você não acha que a poesia marginal, buscando aproximar a sensibilidade do poeta da do marginal, do bandido, descambou para um tipo de idealização, de estilização, que esvazia a experiência social, concreta, da marginalidade?

RP - Os bandidos naquela época eram românticos e possuíam uma ética. Pasolini foi o primeiro a notar isso. Numa sociedade de massas, o banditismo e a criminalidade também estão massificados. Há uma indiferenciação muito grande. Hoje se mata porque o cara não gostou dos óculos que o outro está usando. Ou porque alguém sentou no paralama do seu carro. Eles dizem: "Roubei o tênis que eu vi na televisão porque quem usa esse tênis é bacana". Sabemos, pela experiência de Ivan Illitch, que uma cidade com mais de duzentos mil habitantes será inviável, diz ele, a partir do ano 2000. O que estamos testemunhando nos hospitais não é o simples desleixo, mas a crise da Medicina. Como estamos assistindo à crise da Economia. Não é uma crise econômica, mas uma crise da Economia. E tudo se liga a uma crise do urbano. Não importa mais checar índices de criminalidade. O ser urbano não é um centauro, mas um ser sem horizontes; só enxerga o tênis que ele não tem. Então ele mata, às vezes, por um tênis; não pelo benefício econômico que aquilo vai lhe trazer, mas pelo prestígio. Nos anos 60 eu conheci muitos adolescentes marginais, o equivalente dos que hoje estariam na FEBEM. Um deles sabia Baudelaire de cor, "As litanias de Satã", e andava com o Zaratustra do Nietzsche debaixo do braço. Era ladrão, assaltante, mas nunca matou ninguém. Havia um princípio ético que ainda regia a vida daqueles bandidos. Eles também eram de extração rural. Agora são todos urbanóides, pálidos criminalóides de periferia.

FW - Então o lema do Oiticica, "seja herói, seja bandido", não...

RP - ... mas ele estava falando do "Cara-de-Cavalo", o último romântico do banditismo. Atualmente o que existe é uma criminalidade de massa perigosíssima, porque o homem normal se transformou em criminoso. O homem normal, diz o Pasolini, é um monstro. Está aí a Hannah Arendt, com o Eichmann em Jerusalém, que não me deixa mentir. Quem é o Eichmann? Um cara pavorosamente normal, absolutamente medíocre, que fala por clichês e que mandaria matar o próprio pai, se recebesse uma ordem superior nesse sentido. Um burocrata sinistro, enfim.

FW - Muitos consideram o Paranóia como a Paulicéia Desvairada dos anos 60. Você concorda? Como foi a sua relação com a obra de Mário de Andrade?

RP - Acho que o que há em comum entre os dois livros é uma experiência alquímico-futurística da cidade. Só que eu inverto tudo isso. O que eu tive foi uma relação de pesadelo... e de coisas boas, porque, no fundo, a gente só vive o momento. Há o fio-condutor da explosão, a paisagem que se racha de encontro as almas, o cérebro que se racha de encontro a uma calota..., a idéia da ruína. É mais ou menos aquilo que diz o Brecht: "Da cidade sobrará apenas o vento que passa sobre ela". É claro que, além disso, há diálogos mais explícitos, por exemplo, com a "Meditação sobre o Tietê" e com o "Girassol da Madrugada". Aliás, já da primeira vez que li o Mário, percebi que era um poeta com forte sensibilidade homossexual. Repare bem: "Tudo o que há de melhor e de mais raro / Vive em teu corpo nu de adolescente / A perna assim jogada e o braço, o claro / Olhar preso no meu, perdidamente". No "Girassol da Madrugada", isso aparece de modo muito nítido. O que não quer dizer que eu desconsidere os outros modernistas, mas o Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado homoerótico. Como o Sosígenes Costa. Bati o olho e disse: "êpa!". Depois, consultando um especialista na obra do Sosígenes, obtive a confirmação.

FW - Alguns críticos chamam a atenção para o caráter moralista da sua obra. Um moralismo às avessas, radical, que também atravessa a obra de autores como Sade. Algo como um "catecismo da devassidão" que, fazendo a apologia do mal, chama a atenção para um bem supremo, utópico...

RP - ... mas esses corpos de que eu falava não existem mais. Eram garotos dourados do subúrbio, da periferia. Hoje, sem a gíria criativa do subúrbio, eles só querem uma moto para colocar na garupa a indefectível garota ornamental. E apenas grunhem. Agora, é preciso também entender a orgia de que eu falo de um jeito largo. A orgia admite muitas interpretações. O Breton, por exemplo, diz que a poesia é a mais fascinante orgia ao alcance do homem. Eu fiz muitas orgias, mas não proponho isso para ninguém, porque muitas vezes as pessoas não estão interessadas. Quando escrevo, não estou propondo nada, estou relatando experiências. Meus textos não possuem caráter prescritivo, muito pelo contrário. Quero que cada vez menos gente se interesse pela orgia sexual, para sobrar mais para mim (risos).

FW - Ainda com relação a isso, queria pensar um pouco no caráter transgressivo da sua poesia, o impulso para épater le bourgeois. A gente sabe que o burguês adquire o gosto de ser chocado e passa a manipular a insurreição dos artistas em benefício próprio. Você não acha que o Paranóia seduz hoje menos pelo furor iconoclasta que pela qualidade das imagens? Hoje ninguém se choca com "anjos de Rilke dando o cu nos mictórios"...

RP - ... mas é uma imagem bonita. Fiz o seguinte: tirei os anjos de Rilke daquele pedestal metafísico e os coloquei no mictório, quase numa interpretação shivaísta do anjo do Rilke. O anjo como uma categoria de orgia, de tantrismo. Quanto à burguesia, ela se transformou em classe universal. Não acredito na burguesia em caráter genérico. O marido da Anaïs Nin, por exemplo, era um banqueiro que, sabendo que o Henry Miller transava com a Anaïs Nin, dava dinheiro para ele, que era um escritor pobre, um americano que estava em Paris e tal. Esse sujeito financiou artistas plásticos, escritores... e era um banqueiro. O valor do Henry Miller, para aquele banqueiro anarquista, estava acima do fato de ele ser amante da mulher. Aliás, formavam um trio e se davam muito bem, de acordo com a própria Anaïs Nin. O Henry Miller escreveu sobre isso. Veja você quantos anos ele ficou sem publicar nos Estados Unidos. Foi publicado primeiro na França, porque nos Estados Unidos sua obra estava censurada. Mas ele não escreveu para épater ninguém. O Henry Miller escreveu sobre aquilo que ele viveu. Se isso é chocante, não é culpa dele.

FW - Então aproveite e fale da sua proposta de transformar a onça em totem da nacionalidade.

RP - Ah, claro. Parece que, para os índios Ianomami, no dia em que matarem o último xamã e a última onça pintada, o céu cairá. Acredito piamente nisso. O céu já caiu uma vez. Vai cair pela segunda vez se os xamãs e as onças desaparecerem. Proponho também que se façam experências telepáticas com onças para conhecermos suas reais necessidades.

FW - ... você diz até que elas ajudariam a guiar crianças cegas (risos).

RP - ... ajudariam de uma certa forma (risos), devorando-as como guloseimas, não é? Porque, para os grandes predadores, crianças e mulheres são presas fáceis. Ainda nessa linha da telepatia com as onças, um experimento que deu certo foi o do Guimarães Rosa em "Meu tio, o Iauaretê". É uma obra- prima esse conto. É um conto xamânico, pois o tio se transforma no jaguar, se oncifica. Maiakóvski dizia: eu me ursifico. Esse personagem do Rosa parece dizer: eu me oncifico.

FW - Queria que você falasse um pouco da sua relação com a universidade. Em Paranóia, você escreveu que professores "são máquinas de fezes". Noutro poema, sobre a batalha de Campaldino, onde aparece a dúvida quanto ao fato de os guerreiros terem comido carne humana, você diz que os "universotários", com sua "antropofagia vegetariana, apavorados, peidam no escuro". Fale um pouco sobre isso.

RP - A universidade é o túmulo da poesia. Eu só fiz curso superior para poder dar aula. Não podia lecionar com dois livros publicados. Lecionei por quinze anos. Tudo o que me deram para ler na universidade ou era sucata ou eu já havia lido. Insisto em que as universidades devem ser transformadas numa coisa viva, isso é, num terreiro de candomblé. Com pais-de-santo, ou xamãs, no lugar dos professores, de modo a propiciar aos alunos uma verdadeira iniciação. As universidades precisam de um corpo docente e um corpo indecente (risos).

FW - Você também é um advogado veemente das "idéias biodegradáveis". Como você as concilia com as suas obsessões?

RP - As idéias biodegradáveis são aquelas convicções, como propunha Álvaro de Campos, que não duram mais do que um estado de espírito. Nunca mais do que um dia. Nós vemos por aí pessoas enraizadas em ideologias fascistas e comunistas, cheias de dores-de-corpo, malentendidos, enxaquecas... Por isso o Nelson Rodrigues dizia: "Tem que morrer até o último idiota". Mas todo dia, "nos cabides de vento das maternidades", nasce "um batalhão de novos idiotas", como eu escrevi no poema "Visão 1961", incluído em Paranóia. Mas há muitas pessoas que não têm essas idéias fixas, essas ideologias cimentadas em espaços mortos, esse passadismo que procura deter o dinamismo do pensamento.

FW - "Eu preciso cortar os cabelos da minha alma", diz um verso seu. Em que barbeiro? E como prevenir a calvície da alma?

RP - (risos) É uma imagem louca, não é? Acho que, na época, pensava em cortar os cabelos como meio de desfazer a confusão que me atingia. Às vezes, não basta pentear os cabelos da alma. A gente tem que cortar mesmo, para enxergar melhor. Quanto a prevenir a calvície da alma, o melhor remédio, na minha opinião, é o ritual xamânico dos quatro ventos.

FW - Num dos últimos poemas do Paranóia, você diz: "eu quero a destruição de tudo o que é frágil"...

RP - Mas sabemos que não é nada frágil aquilo cuja destruição eu desejo. A poesia é que é frágil, é uma forma de abrir brechas na realidade; como o Baudelaire, o Artaud, o Gottfried Benn e o Georg Trakl abriram. Mas não impediram Auschwitz. O poeta não existe para impedir essas coisas. O poeta existe para impedir que as pessoas parem de sonhar.

Fonte:
Revista Cult numero 34, maio de 2000.

Cláudio Willer (Roberto Piva e a Poesia) no SESC, em São Paulo



Dia 27, terça-feira, Cláudio Willer apresenta-se no programa Sempre um Papo a convite de Afonso Borges e do SESC - Vila Mariana, falando sobre Roberto Piva, precedido por depoimentos de Antonio Fernando de Franceschi, Celso de Alencar, Roberto Bicelli, Toninho Mendes, Ugo Giorgetti e Valesca Dios.

A seguir, dados e release da manifestação.

Sempre um Papo em homenagem a Roberto Piva

Data e horário: 27 de abril de 2010, terça-feira, às 20h

Local: SESC Vila Mariana (Rua Pelotas 141 - Vila Mariana)
Tel.: (11) 5080-3000 / www.sescsp.org.br

Auditório (131 lugares) Entrada gratuita

Informações para a imprensa: (31) 3261-1501 – imprensa@sempreumpapo.com.br
Coordenadora de comunicação - Jozane Faleiro: (31) 9204.6367

O poeta Roberto Piva tem sido noticiado, ultimamente, por dois motivos. Um deles, a repercussão da terceira edição de Paranóia, seu livro de estréia, pelo Instituto Moreira Salles. Outro, os problemas que enfrenta: depois de ser internado com um quadro clínico grave, passa por dificuldades. Por isso, leitores e amigos de Piva têm promovido coletas de recursos em seu favor. O Sempre Um Papo associa-se a essa mobilização com uma sessão dedicada ao exame de sua obra. Para tanto, recebe o poeta Claudio Willer (autor do posfácio do primeiro volume da Obra Reunida), que doará seu cachê. O evento contará com depoimentos de Antonio Fernando de Franceschi (poeta, responsável pela reedição de Paranóia em 2000); Celso de Alencar (poeta e amigo de Piva); Roberto Bicelli (poeta e amigo de Piva); Toninho Mendes (artista gráfico e poeta, publicou Piva na revista Chiclete com Banana); Ugo Giorgetti (cineasta, autor do média-metragem Uma outra cidade de 2000, com Piva e outros poetas da mesma geração); Valesca Dios (cineasta, diretora de Assombração Urbana, média-metragem com Roberto Piva, de 2005).

No encontro, Claudio Willer falará sobre “Roberto Piva e a Poesia”. Argumentará que a poesia de Piva é sobre a própria poesia; é um poeta culto, um leitor que, por vezes de modo sutil, comenta suas leituras e sua paixão pela vida e pela poesia (que, em sua poética, se confundem)

Roberto Piva (São Paulo, 1937) publicou Paranóia (Massao Ohno, 1963, reeditado em 2000 e em 2009 pelo Instituto Moreira Salles), Piazzas (1964, reeditado em 1979), Abra os olhos e diga AH! (1976), Coxas (1979), 20 poemas com brócoli (1981), Quizumba (1983), Ciclones (1997) e Estranhos sinais de Saturno (2008), além de uma antologia poética em 2005 e manifestos. Todos esses títulos compõem sua Obra Reunida (editora Globo), organizada por Alcir Pécora, em três volumes: Um estrangeiro na legião (2005), posfácio de Claudio Willer, Mala na mão & asas pretas (2006), posfácio de Eliane Robert Moraes, e Estranhos Sinais de Saturno (2008), posfácio de Davi Arrigucci Jr. Em 2010, foi lançada uma coletânea de suas entrevistas, Encontros: Roberto Piva, pela editora Azougue. Teve, a partir de 2000, um crescimento de sua presença em antologias importantes, traduções e bibliografia crítica, incluindo teses e dissertações. Além de apresentar-se em leituras de poesia, coordenou oficinas e palestras intituladas “Encontros Órficos”. Tem filmografia, composta por um documentário de Tadeu Jungle, de 1988, Uma outra cidade de Ugo Giogetti (2000) e Assombração urbana de Valesca Dios (2005), exibidos pela TV Cultura, além de participação em outros vídeos e filmes.

Claudio Willer (São Paulo, 1940) é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou Geração Beat (L&PM Pocket, coleção Encyclopaedia, 2009), Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa (Iluminuras, terceira edição em 2004); Lautréamont - Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas (Iluminuras, nova edição em 2008) e Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg (L&PM, edição pocket em 2005, nova edição em 2010). Prepara-se para lançar Um obscuro encanto: gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira). Teve publicados, também, Poemas para leer en voz alta (Andrómeda, Costa Rica, 2007) e ensaios na coletânea Surrealismo (Perspectiva, 2008). É autor de outros livros de poesia – Anotações para um Apocalipse, Dias Circulares e Jardins da Provocação – e da coletânea Escritos de Antonin Artaud, esgotados. Doutor em Letras na USP, faz pós-doutorado sobre Religiões Estranhas, Hermetismo e Poesia. Coordena oficinas literárias; ministra cursos e palestras sobre poesia e criação literária. Prepara um livro sobre surrealismo e ensaios sobre misticismo e poesia.

Fonte:
Colaboração de Cláudio Willer

Lançamento de Revista e Exposição sobre Hélio Oiticica, no Itaú Cultural



Acessível e, ao mesmo tempo, profunda, complexa. É assim a obra de Hélio Oiticica. Inspirada nas "quebradas", na vida que brotava nas ruas, nas favelas, a extensa produção desenvolvida pelo artista nasceu, também, de intensa e constante reflexão.

E, quinta-feira, 22 de abril, o Itaú Cultural lançou duas revistas digitais pensando em oferecer a adultos e crianças um aprofundamento sobre o trabalho do artista, revisitado com a exposição Hélio Oiticica - Museu É o Mundo, em cartaz no instituto até 23 de maio.

Oiticica - A Pureza É um Mito apresenta, entre outras coisas, a repercussão e o diálogo de sua obra com outras áreas de expressão. Há também depoimentos de Tom Zé, Nelson Motta, Eduardo Rossetti, Zé Celso Martinez Corrêa, Rubens Machado, Paulo Ramos, Isobel Whitelegg e Paulo Monteiro. A revista traz ainda galeria de imagem das obras, entrevistas em vídeo e imagens dos Penetráveis espalhados pela cidade.

Cosmogolé, revista infantil, vem em três edições. Neste primeiro número, as crianças vão conhecer uma exposição de arte na qual, para aprender, tem que tocar nas obras; ficar por dentro da infância de Oiticica; descobrir o dia em que a cor saiu do quadro e invadiu o espaço; e participar da próxima edição, em atividade interativa!

Fonte:
Colaboração da Itaú Cultural.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Trova 140 - Nilton Manoel (Ribeirão Preto/ SP)

Durval Mendonça (Trovas que eu Dou à Vida !) Parte I


Felicidade - mosaico
de pedrinhas coloridas,
que, em meu destino prosaico,
não consigo ver unidas.

Poças que o mar faz na areia...
Ao vê-Ias, paro e medito
nessa humildade tão cheia
das estrelas do Infinito.

Eu luto desde menino,
com bravura redobrada,
neste jogo em que o Destino
joga de carta marcada.

Quando a noite vem descendo
e o mundo parece em calma,
existe um mundo fervendo
na inquietação de minha alma.

Eu conto por sete dedos,
sete sonos que me tiras,
porque tens sete segredos
por trás de sete mentiras.

Lágrima a lágrima faço
de amarguras meu rosário...
Vou levando, passo a passo,
minha cruz ao meu calvário.

Aleijadinho, com traços
que o teu cinzel pôs na História,
A Via Sacra dos Passos
levou teus passos à glória.

Entra o sol pela vidraça
e em teu leito empalidece,
deslumbrado pela graça
que teu corpo lhe oferece.

Quantas lágrimas choradas
numa angústia que comove...
É o retorno das jangadas...
Saíram dez, voltam nove...

Vejo os espaços profundos
contraditando os ateus.
Há, no mistério dos mundos,
toda a evidência de um deus...

Este olhar perdido e triste,
na curva, longe, da estrada,
é tudo que ainda existe
de uma promessa quebrada...

A praia é cama estendida,
onde o mar e a lua cheia...
- Cala-te, boca atrevida,
não fales da vida alheia!

A garoa é ouro fino
das arcas celestiais
que desce em fluido divino
na terra dos cafezais ...

Caminhos da minha infância
que a saudade inda percorre...
Tudo morreu na distância
e esta saudade não morre...

Vai o rio em cantochão...
Suas águas se lamentam.
Parecem pedir perdão
às pedras que as atormentam

Se um mendigo te procura
e tens escasso o dinheiro,
dá-lhe um gesto de ternura,
que talvez seja o primeiro...

Essa lágrima, luzindo
em teus olhinhos, meu bem,
é o sofrimento mais lindo
que vi no rosto de alguém

Minhas trovas são lampejos
em minha alma entristecida;
risonhos ou tristes beijos
que dou na face da vida.

O que me causa estranheza
num mundo assim tão estranho
é ver tamanha pobreza
e riquezas sem tamanho.

Se vai às compras, Maria
compra tudo que é preciso;
se o vendeiro não lhe fia,
paga à vista com um sorriso...

Ao fim de instantes felizes,
quando me dizes adeus,
parece, amor, quando o dizes,
que o céu vai ficar sem Deus.

A vida é roda de fogo,
gira em franco desatino...
Cartas sem naipe de um jogo
em que o parceiro é o Destino.

Da juventude risonha
perdido nos torvelinhos,
vi marias-sem-vergonha
florindo o pó dos caminhos.

Cai a noite e neste quarto
que há muito você não vê,
meu coração anda farto
desta escassez de você.

Cachaça sempre dá jeito,
quando a saudade me abafa:
ponho a cachaça no peito
e a saudade na garrafa

Pela noite, a, lua avança
atrás do sol, sem parar;
depois, frustrada, se lança
nos braços frios do mar.

Tempo, terrível moinho!
Mói a vida sem piedade
e deixa o pó no caminho
que conduz à eternidade...

Aleijadinho, os Profetas
- teu milagre de escultura -
têm almas, todas repletas
de tua imensa ternura.

Eu não pude ver ainda
a razão desse teu pranto;
uma lágrima tão linda
não a tem quem sofre tanto.

Como a lua é lisonjeira,
quando eu canto em serenata!
Ela aplaude a noite inteira,
batendo palmas de prata.

No caminho da virtude
há tantas pedras plantadas,
que, confesso, jamais pude
percorrê- lo, sem topadas.

Perdão, Senhor, se não pude
perdoar quem me ofendeu.
A vida tornou-me rude;
perfeito és Tu e não eu.

Coração, eu já lhe disse:
Tome cuidado, porque
eu faço muita tolice
depois... quem paga é você.

Já na casa dos oitenta,
na solidão dos meus dias,
que saudade dos setenta,
quando penso nas Marias!

Criança brava, e atrevida
faz da vassoura um corcel
e enfrenta os mares da vida
num barquinho de papel.

Eu vejo, de minha rede,
nas noites quentes de estio,
a lua matando a sede
nas águas frescas do rio.

Eu acredito que foi
em Belém, na gruta escura,
que os olhos triste do boi
ganharam tanta ternura.

Garoa... Frio... Demoras...
Serão seus passos? Oh! Não...
É o passo triste das horas
passando na solidão.

Como parece inclemente
este maldito ciúme:
Aperta o peito da gente
com travor de pedra-ume.

Nosso destino na vida
tem sempre este fim e só:
uma caveira esquecida
sobre um punhado de pó

Esta lágrima indiscreta,
que vês, agora, em meu rosto,
é o lamento de um poeta
na agonia do sol-posto.

Perdido em duras andanças,
cansado, devagarinho,
vou deixando as esperanças
junto aos cardos do caminho.

As pedras são singulares
- conversam dois capelães -
de umas se fazem altares,
outras se atiram nos cães.

Ao ver crianças em bando
que passam rindo, por mim,
fico feliz relembrando
os bandos que tive assim.

Este mar de cara feia,
de adamastores e lendas,
é o mesmo que, à lua cheia,
recobre as praias de rendas.

Como é triste o olhar parado
que, das grades da prisão,
pensativo, o encarcerado
deixa livre na amplidão...

Em meu barraco de zinco,
sem ninguém, sem afeição,
eu deixo a porta sem trinco,
mas só entra a solidão.

O caminho preferido,
aquele que tem mais graça,
tem placa, de "Proibido",
mesmo assim a gente passa.

Essas vitórias compradas,
que a gente vê a granel,
são farsas mal disfarçadas,
desses heróis de papel.
=================

Fontes:
– UBT Juiz de Fora
– Imagem = http://mensagensemppszelia.blogspot.com/

Jorge Luis Borges (Instantes)



Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser perfeito; relaxaria mais.

Seria mais tolo do que tenho sido; na verdade,
bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiênico.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilhas,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente
cada minuto de sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabes, disso é feita a vida, só de momentos,
não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
se eu voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço
no começo da primavera, e continuaria assim até o fim do outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vida pela frente.

Mas vejam, tenho 85 anos
e sei que estou morrendo...

Fonte:
Átila José Borges (coligidas por AJB). As 100 mais belas mensagens. Curitiba: Editora Entre Nuvens e Estrelas.

Rosana Bond (Lançamento de Livro e Revista sobre o Caminho de Peabiru)



O Peabiru, a mais importante via transcontinental pré-colombiana da América do Sul é o tema do novo livro de Rosana Bond, que será autografado nos dias 14 e 15 de maio, nas cidades de Peabiru e Campo Mourão.

Nos mesmos eventos será lançada também a revista Cadernos da Trilha, em homenagem ao NECAPECAM (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM), contendo artigos de vários autores da região sobre temas peabiruanos, além de mapas e fotos de peças arqueológicas descobertas na área. A revista será distribuída gratuitamente.

O livro é o 15º da escritora paranaense, jornalista, membro do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo e editora-chefe do jornal A Nova Democracia, editado no Rio de Janeiro.

A obra, História do Caminho de Peabiru – Descobertas e segredos da rota indígena que ligava o Atlântico ao Pacífico, da Editora Aimberê (RJ), tem dois volumes. O segundo deverá sair em breve.

Conforme a autora, o texto traz informações inéditas sobre essa estrada, que passava pela região da COMCAM e "que costuma ser comparada ao famoso caminho de Santiago de Compostela".

Revelações indígenas

Resultado de 14 anos de pesquisas, a obra é a primeira no país que inclui uma visão indígena sobre o assunto. "Devido à nossa longa amizade, os guaranis permitiram generosamente que eu tivesse acesso à sua memória ancestral sobre o Peabiru, com revelações que geralmente não são passadas aos brancos "– esclareceu Rosana.

O Caminho unia o Atlântico ao Pacífico, indo do litoral sul brasileiro ao litoral do Peru e Chile. No Brasil, começava na costa de S.Catarina, Paraná e S.Paulo. Um de seus ramais passava pela área da COMCAM.

Tinha cerca de 4 mil quilômetros de comprimento e vários de seus trechos eram forrados por tipos de gramas que se propagavam pela trilha, sem precisar de plantio. Há quatro hipóteses principais sobre seus possíveis construtores:o povo itararé; o guarani (em busca de um paraíso, a Terra Sem Mal); o inca (e pré-inca) e a figura mitológica chamada pelos índios de Sumé e, pelos padres, de S. Tomé.

Muito mais longo

Segundo Rosana, uma novidade incluída no livro foi o comprimento real do Peabiru. Até pouco tempo atrás, a autora pensava que o Caminho tivesse aproximadamente 3 mil quilômetros de uma ponta a outra. Porém, "ao terminar a pesquisa tive que rever a conta, pois notei que o número mais próximo do real é cerca de 4 mil quilômetros" – esclareceu.

Uma das razões que fez a jornalista modificar o cálculo foi uma outra descoberta: o ponto exato de chegada do Peabiru no oceano Pacífico.

Vários autores, há mais de 50 anos, diziam que o Caminho "emendava-se" com as estradas incas e pré-incas e terminava no Pacífico, no sul do Peru.

"Eles não estavam errados, pois existiram pontas do Peabiru no sul peruano, porém a informação estava incompleta" – disse a escritora. "Verifiquei que existiu um outro ramal na costa do atual Chile, pouco conhecido pelos estudiosos brasileiros até hoje. Foi por este trecho que muito possivelmente os guaranis completaram a caminhada do Peabiru do Atlântico até o Pacífico. Diversos pesquisadores latinoamericanos descobriram, desde o século 19, vestígios arqueológicos guaranis bem perto do litoral chileno, a uns 60 quilômetros da praia. Além disso, foram identificados mais de 300 topônimos guaranis no Chile".

Outra novidade do livro é a datação do Peabiru, que até agora era um ponto de interrogação aos pesquisadores. "Tratava-se de uma informação desconhecida, não havendo sequer uma data suposta. Agora, sabendo dos achados chilenos, se pode sugerir pelo menos uma datação de referência. Pode-se lançar a hipótese de que o Caminho teria sido completado pelos guaranis, até o Pacífico, cerca de 1500 anos atrás".

Os lançamentos da revista e livro acontecerão no dia 14, às 19 horas, na Câmara Municipal de Peabiru. E no dia 15 em Campo Mourão, às 19:30 h, na Biblioteca Municipal (rodoviária velha).

Com 280 páginas, o preço da obra é R$ 23.

Fonte:
Colaboração de Sinclair Pozza Casemiro

Dinair Leite Premiada no VII Jogos Florais de Pitangui

Jupyra Vasconcelos (MG), Dinair Leite (PR), Dodora Galinari (MG),
Joana D'arc da Veiga (RJ) e Wanda de Paula Morthé (MG)
Dinair Leite, Delegada da União Brasileira de Trovadores - UBT Paranavaí, foi premiada no VII Jogos Florais de Pitangui - MG, concurso nacional e internacional de Trovas, promovido pela UBT Pitangui, em cerimônia no dia 13 de março.

O presidente da UBT de Pitangui, José Antonio de Freitas, destacou a excelência dos trabalhos, que contou com concorrentes de Portugal e Brasil.

A paranavaiense foi premiada na categoria vencedora - humorística - com o tema “Jacu”, considerado pela organização do certame como um “desafio aos trovadores, que por honra ao ofício, trabalham com qualquer tema proposto”.

A linda trova premiada foi:
“No gabinete invocado
o jacu cuspiu no chão...
Sorriu verde o deputado,
era tempo de eleição”!

Fonte:
Colaboração de Cristina Leite Goetten

Eduardo Campos (Drama de Rua Ao Entardecer)


Era como se dava todas as tardes, logo atenuado o calor. Tudo que acontecia por então, na rua, parecia entretecer os vagares de cada um com as coisas transcorrentes. Assim a senhora do sobrado aparecia na varanda, recendendo a extrato e a leve odor de talco de jasmim, enquanto os seus olhos de muito olhar e pouo ver ignoravam o vendedor de pão da tarde, ou o ir-e-vir de tantos, por motivos os mais diversos (às vezes até inconfessáveis), ganhando a rua... E ela, por cima de todos, lá do alto, sentia-se realizada, dona de seus próprios pensamentos e refrescada de cheiros que lhe alvoroçavam indistintas lembranças. A espaços, a senhora do sobrado exigia a presença de pessoa da casa, que, demorando em atender, aborrecia. Então dizia com certa asperidade:

- Você vem ou não vem?

E a “Você vem ou não vem” - empregada de vida e feições consumidas - também assomava à varanda, toda metida em receios, quase sempre a confirmar tudo que a patroa propunha...

- Aquele tipo não é o mesmo sujeitinho que vem rondar a casa da viúva? Hoje, só mudou a camisa! Meu Deus, como é espalhafatoso!

A outra, em voz sumida e costumeiramente medrosa, arriscava: – Acho não... É nadar!

.-E aquilo? que é?

- ... melhor a senhora botar os óculos.

– Preciso não! São os meninos brincando...

E em tom de afetado azedume:

- Vá chegando logo pra sua cozinha. Fico melhor sem sua parceria...

A porta da casa defronte abriu-se, deixando sair um rapazinho. Logo atrás, vagaroso, apareceu o velho. Foi quando alguém, do interior, com bastante má vontade, advertiu: .

– Cuidado, moleque! Juízo!.

O homem de idade, acompanhando o empregado e guia, convivia com teimosa névoa a lhe tomar os olhos. Em verdade não mais podia reconhecer as pessoas com quem falava, ainda que demorassem perto. Agora, pisando a rua, de repente achou-se envolvido pelo perfume da senhora do sobrado. Não sem razão quis saber:

- É ela? já está lá?

- Faz é tempo... Desde a passagem do vendedor de picolé.

- E o namorado da viúva?

- Indagorinha desceu do ônibus.

- Ah,... . considerou o homem, depois de breve tempo, como se algo estivesse errado. O Estou saindo tarde, hoje. Já vi que vou demorar pouco, tomando ar na praça...

Ao alcançarem o primeiro banco do jardim, as vozes das crianças retomaram o refrão de cantiga de roda, algo. muito doce e sentimental, que ele imaginou estar ouvindo em seu passado. Foi o suficiente para sentir-se mais dolorido em sua condição de pessoa desamparada.
E se sentou, tocado. pela incômoda sensação de desamparo e abandono. Depois de breve instante, chamou:

- Francisco... Você está aí: e mais inseguro, tornou a falar.

- Onde você se meteu, menino?

Um carro buzinou; outro, rente à calçada, passou carregando pessoas ruidosas. O ônibus estacionou na esquina, para desapear um passageiro abusado, a reclamar o valor do troco da passagem. Palavrões. Xingamentos. A senhora da varanda do sobrado chamou a

– Você vem ou não vem..

Reparasse, referia, o doido do Francisco . um grande irresponsável! abandonara o pobre velho e agora, muito curioso, do outro lado do passeio, vigiava o furgão da padaria.

– Grite alto, chame de volta aquele imbecil! Onde já se viu uma coisa dessa?!!

– Era bom eu descer, ver lá embaixo... A gente falando mais de perto é melhor.

- Aí você vai se grudar, preguenta que é, e não retorna tão cedo! Lhe conheço as manhas... Quero que grite.

- “Você vem ou não vem” resistia:

– Melhor mesmo eu descer... De perto ajudo mais. Afinal a senhora do sobrado, decidida, debruçou-se no peitoril da varanda, a voz empostada, nervosa:

- Moleque, retome ao banco! O cego não pode ficar sem companhia! Estará doido?!

O barulho prosperara, bastante intenso. Mais carros, mais coletivos barulhentos, e como se não bastasse tudo isso, um automóvel, de alto-falante montado na capota, anunciava os preços inacreditáveis do dia D da economia. Ao velho acudiu então vontade de levantar-se, não. obstante desvanecido, e, ainda que trôpego, ir-se dali, a recolher.

Era perigoso, sabia, deixar a praça, desafiar o tráfego. Podia acabar morto.

Refluiu da idéia insensata e, instintivamente, mais a jeito e resignado, acomodou-se outra vez, a olhar para o que não podia ver. Estava assustado. Não apreciava ficar sem alguém por perto, sem companhia, a se considerar um ser qualquer, diluído no tempo...

Não, não estava só, se disse a si mesmo. As crianças continuavam cantando. E só por isso não podia escutar, distintas, as palavras gritadas do sobrado.

Mas de repente - e tudo ocorreu de modo bastante inesperado - ele percebeu que pessoa atrevida lhe arrebatara o relógio do pulso, e, ligeiro, com mão pesada e agressiva, já alcançava os seus pés, enquanto ia comandando exigente:

- Os sapatos! Os sapatos!

Quando cessou a ação desse intruso, pôde compreender que perdera o relógio de fingir... e restara descalço. A “Você vem ou não vem”, perto dele, ofegava pela carreira a que se impusera até ali.

. Pelos céus, lhe tiraram tudo, até os sapatos!

Refeito do susto, trêmulo, esclarecia:

Ah!, o meu relógio, os tênis...

A voz escapara-lhe em desalento e magoada.. Tornou repetir:

. Meu relógio...os tênis...

Quis acrescentar mais, e não pôde. Em verdade não encontrou palavras para descrever a cena, o vexame vivido, a horrível ação da mão áspera e rude arrebatando-lhe as coisas.

. Meu Deus, o que aconteceu ao meu patrãozinho?!

Era Francisco, atarantado, ante o infortúnio do outro. E cobrava explicações, novos detalhes, a se valer de quem, por acaso estando por perto, houvesse testemunhado o imprevisto.

– Tinham batido no patrão? Carregaram os sapatos?.

Como se prestasse depoimento, alguém explicava: .

Os artigos roubados eram de primeira. E secundando: - um enorme prejuízo para o cidadão.
Cercado agora pela multidão, a vítima aceitava a deplorável situação, a assumir o drama. Dava-se por personagem principal, mais ficcional que real.

- Ah, meu rico relógio de herança!

- Já tinham oferecido dinheiro nele?

Atarantava-se para explicar, e a perceber que não podia decepcionar aquela gente solidária, não confessou, por exemplo, que o relógio nem corda mais pegava, e os sapatos, bem, os sapatos fediam de tão surrados, bons só de aparência. No interior de ambos a palmilha, lacerada, não mais impedia que a sola do pé tocasse ao chão . O homem é de família, tinha tudo de bom! “acudiu um desconhecido”. Ladrão de hoje só quer artigo de moda. A tanto ele aquiescia, a voz insegura, circunstância que dava aos presentes o exato sentimento de perda dolorosa.

Já de pé, deixando o banco, viu-se cercado de mais atenções, reconfortado como jamais ocorrera antes.

- Por aqui, senhor... Cuidado, senhor - recomendavam as vozes.

Por um instante pensou que também o invejavam... Foi andando, a pisar o chão, diabo de chão quente, forrado de areia e pedrinhas incômodas! Mas aguentou firme a caminhada vagarosa em direção a casa da nora, onde morava. Atrás, em alvoroço, o cortejo azafamado de pessoas, biscateiros ,e desocupados, todos álacres, empurrando-se uns aos outros.

Assim atravessaram a rua, enquanto os automóveis paravam; até o ônibus circular demorou no estacionamento, enquanto o motorista e passageiros metiam a cabeça às janelas, querendo saber que diabo era aquilo....

Do alto da varanda do sobrado a senhora perfumada, impaciente, não perdia sequer um momento do acontecimento. E quando o ancião ficou mais ao alcance de sua voz, fez questão de comentar em tom bastante altanado:

- Bravo! Que homem! Que resistência!

Fonte:
Eduardo Campos. A borboleta acorrentada. Fortaleza: Casa de José de Alencar / Programa Editorial, 1998. (Coleção Alagadiço Novo)

Nilto Maciel (O Contista Eduardo Campos)


Embora não tenha alcançado notoriedade no resto do Brasil, no restrito espaço da crítica literária, Eduardo Campos tem seu nome gravado em alguns importantes compêndios de História da Literatura. Assim, está presente em A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, pelo menos no ensaio de Herman Lima: (...) “folclorista de altos méritos, tem, naqueles livros (refere-se aos três primeiros da bibliografia do contista), alguns contos regionais e psicológicos da melhor marca, a exemplo de “Os Abutres” e “O casamento”, o último, principalmente, na sua força bem da terra cearense, dos mais belos da atualidade brasileira”.

Eduardo Campos é um mestre do conto psicológico. No conto “O Afogado”, do livro As Danações, o drama parece ir se deslocando não de lugar, mas de personagem, sob a óptica do narrador onisciente, que aqui e ali dá voz a algumas personagens secundárias. Na verdade, o protagonista e aquela que seria a co-protagonista pouco agem, nada falam. O lugar é uma praia, a lembrar Fortaleza. Um pedaço de praia, onde banhistas e barraqueiros se locomovem. Toda a ação se dá em poucas horas, que vai da chegada dos namorados, talvez no meio da manhã ou já de tarde, ao anoitecer, quando a lua retornou “redonda e luminosa”. As personagens, no entanto, vão cedendo lugar a outras. Assim, José Joaquim, que se afogaria logo após os primeiros momentos da história, e Rosinha, sua namorada, mal se dá a tragédia, vão desaparecendo (ele, obviamente, por sumir nas águas) e em seu lugar surgem personagens secundárias, a beber, conversar, falar do afogamento. O protagonista seria o afogado? Ou seria a podridão moral dos homens? No final, com o surgimento do cadáver, um “toco humano” “a girar lento”, com os “dois calcanhares nus, desfigurados”, o narrador arremata a narrativa com uma frase moralista: “Foi quando os homens, amesquinhados, começaram a pensar que não era o afogado que malcheirava, mas eles, que haviam apodrecido em vida”.

No livro Três Momentos da Ficção Menor, F. S. Nascimento analisa o conto “O Abutre”, no “Momento III” e defende a tese de que “já em 1946 esta concepção de “new short story” era praticada no Ceará, efetivando-se na criação de “O Abutre”, de Eduardo Campos.” Na justificativa de seu ponto de vista, o crítico conclui: “o que se evidenciam no curso desta narrativa são impulsos solitários gerando monólogos interiores que se convertem em projeções visionárias. São mergulhos no inarticulado, em que os reflexos assomam em forma de ilusões. São engolfamentos do ser, onde a palavra reponta como um disparo em meio de um silêncio funesto e perturbador. Por tudo isso, “O Abutre” se impõe como um modelo da “new short story”, sendo tão atual quanto “Cão Vadio” de Fran Martins, “Os Sete Sonhos” de Samuel Rawet, “A Coisa” de Garcia de Paiva” e qualquer uma das unidades narrativas de O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro.”

Eduardo Campos, no entanto, não se repete nas formas de narrar. Assim, no conto “A Viúva Enganada”, do mesmo livro As Danações, embora também se valha da onisciência, da narração entremeada de diálogos, e Fortaleza seja o lugar da ação, mais precisamente o Pirambu, o conflito central se vai delineando sutilmente. A protagonista, Paulina, viúva do pintor de paredes Chico Pedro, é, como o leitor, surpreendida, ao final, com a chegada da outra, para o velório. A surpresa, no entanto, deixa de ser surpresa, se se atentar para o título da narrativa. Assim, o desenlace se esboça não no começo, mas no título, o que não deixa de ser curioso, se não for original.

No conto que dá título ao livro o contista também não muda o ponto de vista, e a narração vem recheada de falas curtas e diálogos breves, acrescentado o discurso indireto livre, embora ainda sem muita ousadia. O conflito, ainda uma vez, se dá no desfecho e na forma utilizada no conto analisado anteriormente, isto é, ele, o conflito, se apresenta não no início da narrativa, mas no título, embora de forma implícita ou simbólica, vez que o vocábulo “danações” pudesse e possa ter variadas conotações.

Na opinião de Braga Montenegro, no ensaio “Eduardo Campos, Contista”, publicado como apresentação de O Abutre e Outras Estórias (1968), “é no conto onde melhor se manifestam suas qualidades de talento”. E acrescenta que se manifesta, “com maior freqüência, em Eduardo Campos o feitio de um escritor regionalista, no que não lhe vai qualquer restrição”. Mais adiante argumenta: “Suas inclinações de contista operam com maior força nos elementos de fabulação, nos problemas de essência, nos componentes, por assim dizer, narrativos, que dão às suas estórias um tom conteudístico de ação muito evidente, mas lhe retrai em parte a disposição criadora expressiva”.

Em O Abutre e Outras Estórias, possivelmente escrito logo após As Danações, Eduardo Campos utiliza outros focos narrativos. Assim, em “O Casamento ”, se vale do ponto de vista do escritor onisciente, que dá voz às personagens em breves diálogos diretos e também em um monólogo interior. O mesmo ocorre em “Céu Limpo”. No entanto, em “Ela Era Seu Lar” o contista dá uma guinada de muitos graus, ao deixar de lado a tradicional narração em terceira pessoa, com diálogos, utilizando um misto de monólogo interior e narração de observador, sem nenhum diálogo. Como aqui: “Ao regressar do banho, cantarolando (terá forças para tanto?) não achará a mesa posta, com a dignidade anterior, e nem os pratos, os tomates ao natural, recortados caprichosamente”. E aqui: “E principia a notar que foi antes um trambolho, um ser inútil dentro de casa”.

No artigo “O Ficcionista Eduardo Campos”, (EL), Francisco Carvalho analisa o volume de contos Dia da Caça assim: “São contos de estrutura relativamente simples, em que se evidencia a familiaridade do Autor na abordagem de certas manifestações do lirismo popular, ao lado de uma particular sensibilidade pelos termos ligados à terra e ao homem”. Em outra passagem argumenta o crítico: “Os seus processos narrativos são bastante simples e não revelam qualquer preocupação imediata de originalidade estilística”.

Passando dos primeiros livros para os mais recentes, como A Borboleta Acorrentada, observa-se que a linguagem do contista em nada mudou, consciente de que os modismos passam e o mais valioso na obra literária não está na aparente transgressão de normas. O ponto de vista onisciente ou da terceira pessoa Eduardo Campos não abandonou, mesmo quando a maioria optou pela primeira pessoa. Assim também o uso da narração seguida de diálogo, raras vezes se valendo da linguagem puramente oral, dando preferência à literária, sem afetação. O conto “Depoimento ou Descrime Com Muito Amor” é constituído todo ele de um diálogo, quebrado apenas na última fala, como numa chave-de-ouro. Talvez assim idealizado para que o desfecho se retardasse e atingisse o leitor com mais agudeza. Apesar desse apego à narração, o contista não esqueceu as outras linguagens, como o discurso indireto livre. No conto “À Viúva de Anágua, Canário e Gato, Tudo Pode Acontecer” isto ocorre logo no início e em diversos momentos da narrativa. Percebe-se também a presença, embora não muito freqüente, do monólogo interior indireto. As personagens continuam bem delineadas, definidas, como se fossem retratos do cotidiano. Até mesmo aquelas que nas mãos de alguns narradores poderiam se transformar em personagens bizarras, irreconhecíveis aos olhos dos leitores de outras culturas. Assim também se pode falar da apresentação dos conflitos das narrativas. Nada de explicações, volteios circenses, excesso de figurantes e cenários. Tudo muito comedido, como se escrevesse para o palco ou o cinema mais artístico, criativo. Nada hollywoodiano. Veja-se o conto “O Reencontro”. O homem que volta ao lar, após anos e anos (“o desgaste físico, a irremediável fragilidade do homem vencido”), bate à porta da ex-esposa, subserviente, aniquilado, a confissão de desamparo (“Ela largou você? Mais ou menos.”), a recordação (“E nossos filhos? Fale-me deles...”). Tudo muito medido, sem meias-palavras. Tudo muito bem pintado, porém sem extravagâncias, apenas cadeiras, os quadros da sala, o velho sofá, o tapete. E closes, muitos closes, no rosto, nas rugas, nos braços do homem desiludido.

Na opinião de Herman Lima, “os contos “O Abutre”, de Eduardo Campos, e “Lama e Folhas”, de Moreira Campos, por exemplo, são dos mais belos e originais, que já se escreveram entre nós, em qualquer tempo”.

Fonte:
Nilto Maciel. Jornal de Poesia.

Érico Veríssimo (O Navio das Sombras)


É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é estranho... Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença rígida e gelada dos guindastes.

Os minutos passam. Ivo olha. Sim, agora vê com mais clareza a silhueta do grande barco. A grande Viagem! O seu sonho vai se realizar. Ficarão para trás todas as suas angústias. É uma libertação. Devia estar alegre, sacudir os braços, correr, gritar. Mas uma opressão estranha o paralisa. Que é isto? Onde estão os outros passageiros? Onde se meteu a tripulação? É inquietante este silêncio noturno. E pavorosa esta sombra glacial que envolve tudo. Ivo quer lançar ao ar uma palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som morre sem eco. O silêncio persiste. Então ele começa a sentir um mal-estar que nem a si mesmo consegue explicar.

Divisa aos poucos, vultos imóveis na amurada do paquete. Parecem guardas petrificados dum barco fantasma. Por que não se movem? Por que não falam? A esta hora a orquestra de bordo devia estar tocando uma marcha festiva. Carregadores gritando. Passageiros, empregados de hotel, agentes da companhia de navegação, guardas — muita gente devia andar pelo cais num formigamento sonoro. No entanto reina o mais espesso silêncio... Ivo dá dois passos e é tomado duma esquisita sensação de leveza. Caminha sem o menor esforço. E como se não encontrasse nenhuma resistência no ar, como se suas pernas fossem de algodão.

Mete a mão no bolso. Sim, ali está a sua passagem. Fica mais tranqüilo e encorajado. Pode embarcar. Deve embarcar... Seria decepcionante perder o navio...

Dirige-se para a prancha. Hesita um instante antes de partir, porque a seus ouvidos soa, muito fraca, muito abafada, uma voz amiga.

— Ivo, Ivo querido, não me abandones! Inexplicável. De onde veio a voz? Volta a cabeça para os lados, procurando. Só encontra a escuridão fria e inimiga, O navio apita. Um som soturno, grave e prolongado, enche a grande noite. E uma queixa, quase um choro e, apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito rouco Ivo sente o pavor do oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos navios perdidos a pedirem socorro, a aflição dos náufragos, o horror das profundezas do mar. O apito uivante e áspero parece feito dos gritos de todos os afogados, de todos os mares.

Ivo sente-se desfalecer de medo.

— Meu Ivo, por que foi? Por que foi?

Outra vez a voz. Ivo estremece. De onde vem aquela voz? Na amurada, os vultos continuam imóveis. Nenhum deles podia ter falado assim com aquela ternura longínqua. Porque eles devem ter uma voz cavernosa de pedra.

Parado ao pé da prancha, Ivo olha para o alto. Vê um homem na extremidade superior da escada. Está de pernas abertas, braços cruzados, olhando para baixo. Ivo não lhe pode distinguir £s feições. Mas é curioso, ele sente a força de dois olhos magnéticos que o fitam. E aquele olhar é um chamado, uma ordem.

Começa a subir. Lembra-se de um trecho de antologia da sua infância. André Chenier subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado. Lá em cima está o carrasco. Ou será apenas o capitão? Ivo sobe. Um, dois, três, quatro degraus ... O frio aumenta, Ivo começa a tiritar. Cinco, seis, sete. Sente uma fraqueza, uma tontura. Subiu apenas sete degraus, mas agora o cais está tão longe de seus pés, que ele tem a sensação de se encontrar no alto duma torre altíssima. O vento sopra gelado como a face dum morto. Mas por que lhe vêm com tanta insistência esses pensamentos macabros? Esta não é então a Viagem, a sua desejada aventura transoceânica? Deve então alegrar-se, cantar . . . Procura assobiar uma ária alegre. Mas o vento lhe impõe silêncio. Ivo sobe sempre . . . Quando senta o pé no navio, não vê mais o capitão. Volta os olhos e só enxerga a noite, a grande noite, a densa noite.

Por que não acendem as luzes deste navio? Senhores, as luzes! Outros vultos passam. Mulheres, homens, crianças. É aflitivo. Ivo não lhes pode ver os rostos. E o silêncio apavorante!...

Ivo se aproxima dum homem que se acha encostado à amurada.

— Por favor, meu amigo, pode me dizer se este vapor é o...

Cala-se. É assustador. Ele não sabe o nome do barco em que entrou. Como foi isso? Não se trata então duma viagem, da "sua" desejada viagem, por tanto tempo planejada e acariciada? Por que tudo agora está tão esfumado e confuso, como se sobre sua memória tivesse caído um véu? Ivo começa a suar. O suor lhe escorre pelo rosto em bagas frias.

- Pode me dizer onde fica o bar?

Sim, precisa tomar uma bebida qualquer. Deve ser o frio que o deixa assim tão sem memória, tão fraco e trêmulo.

— Cavalheiro, pode me dizer onde fica o sol?

O sol? Mas ele não queria perguntar onde ficava o sol. Jurava que ia perguntar onde ficava o bar.

— Por favor, cavalheiro...

O vulto se move sem o menor ruído e some-se na sombra.

Ivo treme dos pés à cabeça. "Preciso encontrar o meu camarote" diz para si mesmo — "preciso descobrir a minha bagagem" — pensa, numa crescente aflição. — "Deve existir alguém a bordo que possa me explicar. Talvez um doutor... Sim. Estou doente..."

E agora ele tem consciência duma dor, não aguda mas continuada e martelante, bem no lado esquerdo do peito. Leva a mão ao coração. Retira-a úmida. Será sangue ? Sim, deve ser...

Sai a correr apavorado. Um médico! Um médico! Estou ferido, vou morrer,
socorro! Mas suas pernas, de tão leves, agora se vergam. Ivo pára. Ajoelha-se e grita ainda: Um médico! Mas não consegue ouvir a própria voz. Ergue-se, agoniado. Homens, mulheres e poucas crianças continuam a passar. São ainda sombras sem vozes nem gestos.

Ivo procura orientar-se na escuridão. Parece-lhe agora enxergar contornos mais nítidos. Sim. Ali está uma porta. Um corredor. Se ele entrar no corredor talvez ache o seu camarote. Tem agora vagamente a lembrança dum número. 27... 27... Recorda-se de tê-lo visto impresso em algarismos negros sobre um quadro branco. 27... Onde?

De repente tem a impressão de que na memória se lhe abre uma clareira por onde ele enxerga o passado. Mas é apenas um relâmpago. De novo cai a névoa. Já não lhe dói mais o peito. Tudo deve ter sido ilusão ... ele não está ferido. As sombras passam. A bruma que vem do mar invade o navio. Onde estará o capitão? O frio e o silêncio persistem. O barco misterioso torna a soltar um gemido rouco e prolongado. Mas - é incrível, incompreensível, endoidecedor — nem o apito consegue quebrar o silêncio.

Ivo caminha sem destino. Não ouve o ruído dos próprios passos. Não tropeça em nada. Aproxima-se da amurada e olha o mar. Só vê a escuridão velada duma bruma de cor doentia.

Um homem se aproxima dele. Ivo olha-lhe o rosto.. Já se lhe distinguem alguns traços. Decerto o hábito da escuridão. Céus, mas que rosto pálido! Parece a cara dum cadáver. A pele está ressequida e tem um tom esverdeado. Os olhos, parados e sem brilho. Os dentes arreganhados...

Agora aparecem outras faces. Uma criança sorrindo um sorriso horrendo. Uma mulher com os olhos furados escorrendo sangue. Um velho com a boca queimada de ácido. Ivo solta um grito... Mas o silêncio continua. Onde estarei? — pensa ele. — Onde estarei? Faz um esforço dolorido para se lembrar.

Quem sou eu? Como foi que vim parar aqui? Onde estão os meus amigos, as pessoas que eu via todos os dias?

O frio aumenta. Ivo sente-se desfalecer. Tem a impressão de estar boiando nas ondas dum mar gelado, como um náufrago; como um iceberg...

Camarote 27! — diz Ivo, - 27... 27... — Seus lábios se movem, mas nenhum som perturba o silêncio do grande barco e da enorme noite.

De repente uma onda morna lhe invade o corpo. Pela proa do navio começa a
nascer uma luz, pálida a princípio, mas a pouco e pouco se fazendo mais viva e dourada. Os olhos de Ivo se agrandam. Aquela luminosidade vai ser a explicação de tudo, a volta da memória... Sim, ele vai descer pela prancha e ganhar o cais. O cais também é negro e silencioso. Mas não há nada como a terra firme. Ele não quer viajar neste vapor tenebroso cujos passageiros são fantasmas. O mar desconhecido é um pavor na noite. Oh Deus! - pensa Ivo - como foi que eu cheguei a desejar esta viagem!? Que louco! Que louco! A luz cresce. O calor aumenta. A voz amiga se ouve mais forte: "Ivo, meu querido, fica comigo!" Sim, ele quer ficar. E preciso fugir do capitão do barco noturno. Ivo dá dois passos para a luz.

Ajoelhada ao pé da cama a moça aperta e beija a mão pálida do rapaz.

— Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste isso? Por que foi?

Com a seringa de injeção numa das mãos, o médico contempla o rosto pálido do suicida. Pobre diabo! Perdeu tanto sangue... O corpo está quase frio.

A um canto do quarto, a dona da casa, torcendo o avental, olha muito assustada para a cama. "Por causa do que me devia, ele não precisava fazer isso. Eu podia espe­rar. Não tinha importância. Deus me perdoe. Se eu soubes­se, não tinha vindo hoje trazer a conta. Logo hoje, Nos­sa Senhora!"

Ao pé da janela, o porteiro da casa conversa com um agente de polícia.

— De onde era ele?

— Do interior.

— Tinha família?

O porteiro encolhe os ombros.

— Era um moço muito calmo, muito delicado. An­dava sem emprego. Eu dizia para ele que tivesse paciência. Mas qual! Não agüentou... Há gente nervosa.

Falam já de Ivo como quem fala dum morto. O médico aproxima-se do grupo.

— Fiz uma tentativa desesperada. Injetei-lhe adrena­lina no coração. — Sacode a cabeça. — Não tenho muita esperança. Enfim... acontecem milagres...

Ao ouvir a palavra milagre a velha começa a rezar.

De repente a moça se ergue, como que impelida por uma mola.

— Doutor! Ele está se mexendo... venha! Venha! Os três homens se aproximam da cama. O rosto de Ivo se move, seus olhos se entreabrem. Há um breve instante de aflitiva esperança. Ivo como que se baloiça, indeciso, por sobre as tênues fronteiras que separam a vida da morte.Mas parece haver do outro lado um chamado mais forte. O corpo se imobiliza.

O doutor inclina-se e ausculta-lhe o coração. Olha para a moça e diz, baixinho:

— Sinto muito. Mas não há mais nada a fazer. A dona da casa desata a chorar. Com o rosto contraído numa expressão mais de estupefação que de dor, a rapariga olha do médico para o morto, do morto para a folhinha da parede, onde o número 27 em letras negras se destaca sobre o quadrado branco. Iam contratar casamento, hoje, hoje...

O transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco, longo, doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas. E todos eles ali vão em silêncio, enquanto na ponte o fantástico Capitão olha com seus olhos vazios a noite insondável.

Fonte:
Contos. Porto Alegre: Globo, 1978. (série paradidática)