Que linda noite, meu Deus!
Fazia um luar magnífico. As estrelas brilhavam no azul do céu. As brisas apenas murmurejavam entre as sombras das árvores.
Era uma noite de abril, uma dessas belas noites da nossa terra, noites de poesia e de romance.
Estávamos no Passeio Público. Éramos dois, e conversávamos sobre tanta coisa, fazíamos tantos sonhos acordados, tantos poemas de imaginação, que nem sei dizer.
Há muita gente que prefere o dia à noite. Eu, ao contrário, sou da seita dos peripatéticos, e sigo neste ponto a opinião de Meri.
Não há coisa mais bela e mais poética neste mundo do que sejam as estrelas. O sol é um astro egoísta, incômodo, e que demais a mais faz-se de espião e quer intrometer-se em tudo.
O sol causa dores de cabeça, queima as faces as mais mimosas, estraga as mais belas cores, obriga a gente a não sair de casa, rouba-nos o prazer de passar no campo, e gera um aluvião de insetos e mosquitos capaz de morder a todo gênero humano.
Decididamente prefiro a noite com as suas estrelas, com o silêncio de suas horas mortas, e as suas sombras pálidas e melancólicas.
É sempre de noite que temos as nossas melhores idéias; e quando se trata de tomar uma resolução importante, ninguém deixa de dormir sobre o caso.
Quanto à poesia, nem falemos. Se quereis sentir, se desejais ter inspirações, passeai de noite ao relento, conversando com as estrelas. Ficareis poeta por força.
O mesmo me aconteceu nessa noite de que vos falei. Conversávamos sobre música, sobre a representação dos Puritanos, sobre o teatro, e de repente senti em mim umas faíscas do fogo sagrado.
Lembrava-me da Charton, e parecia-me ouvir dessas belas volatas que brincam nos seus lábios, que se elevam gradualmente até confundir-se em ondas de harmonias, que morrem a pouco e pouco, e vão perder-se num sorriso ou num tênue suspiro que lhe parte o seio.
Muitas vezes faltavam-nos as imagens. Seria necessário recorrer a todas as artes, materializar o som, colorir a voz, dar corpo à música, para descrever todas as belezas desse canto inspirado.
Assim há umas notas que chamejam, irradiam como chispas brilhantes lançadas no ar; há outras que caem docemente como gota de orvalho da manhã. Umas são brilhantes que desferem raios de luz; outras são flores que exalam perfumes à noite.
Muitas sorriem, brincam com os lábios, aninham-se nas covinhas da boca, fazem mil travessuras, furtam um beijo – e fogem. Algumas suspiram, tremem, vacilam como a lágrima que se desfia pelas faces, palpitam como um seio oprimido, e por fim vem expirar suavemente dentro d’alma.
Às vezes dir-se-ia que o beija-flor se aninha no cálice de uma rosa; outras que bate as suas asas douradas e se lança no espaço, colorindo-se aos raios do sol.
E todos esses arabescos e fantasias brilhantes que vos traça a imaginação, todas essas flores mimosas, esses raios de luz e esses lindos coloridos, não valem o drama cheio de emoções que se passa em vossa alma aos sons daquela voz harmoniosa.
Há muito tempo não tem o nosso teatro uma noite como a dos Puritanos; a representação correu perfeitamente, e todos os papéis foram mais ou menos bem desempenhados.
Dufrene, o novo tenor, apesar da pouca extensão de sua voz, agradou. É um excelente artista, e canta com muito estilo e muita expressão. Estou certo que, quando estivermos habituados como seu canto, o ouviremos com muito mais prazer do que nas primeiras noites.
Bouché foi perfeitamente no seu pequeno papel. A sua bela voz produziu o melhor efeito no magnífico dueto do segundo ato.
A Charton excedeu-se. Graciosa nas expansões infantis de um amor feliz, sublime no desespero, natural nos desvarios da paixão, foi artista desde o começo ao fim. Havia naquele dia o quer que seja que a animava, que a excitava a obscurecer os seus triunfos passados.
No dia antecedente já tínhamos ouvido a Charton; mas despida de todo este prestigio do teatro, de toda esta fascinação das luzes e da cena. Nem por isso a achamos menos brilhante.
Foi isto domingo na festa de São Francisco. A igreja estava armada com toda a simplicidade. Apenas algumas grinaldas de rosas se destacavam pelas alvas paredes e caiam do teto em festões.
Uma meia obscuridade, empalidecida pelos raios dos círios, realçava o aspecto grave e simples do templo, e dava-lhe uma expressão de recolhimento e de santidade, que não têm ordinariamente as nossas igrejas em dias de festa.
As litanias sagradas e os sons do órgão se confundiam um momento; depois o silêncio se restabelecia, e uma voz harmoniosa erguia ao céu uma prece traduzida nalguma bela melodia que se casava perfeitamente com as palavras do ritual.
Cantou a Casaloni, o Bouché, o Gentil, o Arnaud, e finalmente a Charton.
Receávamos uma desilusão; pensávamos que, fora do teatro, o seu canto não tivesse o mesmo poder. Mas o verdadeiro artista tem n’alma o fogo sagrado, a centelha divina, que, no instante em que se anima, dá brilho aos seus olhos e expressão aos seus gestos.
Um concurso numeroso enchia a igreja e assistia com satisfação a esta solenidade religiosa de uma das ordens mais importantes desta corte.
Este ano muitos melhoramentos se introduziram, devidos ao zelo de um dos definidores, o Sr. Miranda. Além da simplicidade com que ele fez ornar a igreja, admitiu o costume europeu, e mandou colocar na capela-mor elegantes assentos para as senhoras.
Tudo preparado com muita singeleza e bom gosto, de maneira que as senhoras podem assistir às solenidades, sem estarem expostas aos empurrões da multidão que às vezes se apinha na igreja.
O hospital da ordem teve também um grande melhoramento com o serviço da iluminação a gás que já se acha estabelecido, graças à generosidade de um dos definidores, o Dr. Isidro Borges Monteiro.
Estava em prática que o definidor incumbido do hospital carregava com a despesa da exposição anual que era costume fazer-se. Entendeu o Dr. Isidro que devia acabar com este precedente, que, além de não trazer utilidade alguma para a ordem, era excessivamente incômodo aos doentes. Nesta idéia dotou o hospital com a iluminação a gás, que monta a perto de dois contos de réis, e acabou com as exposições anuais.
Não foi, portanto, unicamente uma generosidade, mas um benefício real e muito proveitoso que o Dr. Isidro fez à ordem. O hospital pode ser visitado em qualquer dia pelas pessoas que solicitarem este favor; e estas poderão bem julgar do estado vantajoso em que se acha este estabelecimento.
Foi ainda por esforços destes dois membros da ordem que se acabou com o uso das mesas lautas e dos banquetes que se costumavam oferecer aos convidados depois da festa, fazendo assim da casa de Deus uma espécie de café ou de restaurante.
Neste ponto do meu artigo vi-me obrigado, pela primeira vez, a passar uma repreensão muito séria à minha pena, que desejava escrever uma dissertação sobre o culto da igreja.
Não houve remédio senão lembrar-lhe os desvios em que muitas vezes caem certas penas que escrevem sobre coisas de que não têm perfeito conhecimento.
Assim há nesta corte um periódico, de que nem sei o nome que se julgou habilitado a dirigir uma insinuação pérfida a um dos nossos mais distintos diplomatas, o Sr. Dr. José Maria do Amaral.
Responderíamos a este artigo, se não estivéssemos convencidos que o único nome do Sr. Amaral contém a maior defesa e o maior elogio que se possa fazer do seu caráter honesto a toda prova. Além de que, pessoa mais habilitada já mostrou todas as falsidades em que caiu o autor daquele escrito, o qual nem tem a coragem de sua opinião.
Batido com as suas próprias palavras, carregando com a responsabilidade de uma acusação grave feita contra um alto funcionário público, devia ou aceitar a discussão que lhe ofereciam, ou distratar-se do que havia dito. Não o fazendo, classificou muito claramente a natureza dessa insinuação.
Depois de lembrar este exemplo à minha pena, lembrei-lhe o que já lhe tinha acontecido a respeito do tudo e nada.
Lembrei-lhe que numa das revistas passadas tinha-me comprometido horrivelmente e feito cometer uma injustiça clamorosa contra um dos mais notáveis escritores do Brasil.
E tudo isso produzido por uma vírgula travessa que saiu do seu lugar e foi-se intrometer onde aonde não era chamada.
Eis o caso em duas palavras: Numa das revistas passadas escrevi eu com a melhor boa-fé e sem malícia o seguinte:
“Os homens que falam de tudo e nada, dizem têm aí um belo tema para dissertarem, etc.”
Agora, passando os olhos o meu artigo, fiquei pasmo: em lugar do que eu tinha escrito havia uma blasfêmia deste teor:
“Os homens que falam de tudo e nada dizem, têm aí um belo tema para dissertarem, etc.”
E por isso vem o homem citando as tais malditas palavras: “Os homens que falam de tudo e nada dizem!”
Eu que sou o primeiro a reconhecer (como ponto de fé, como dogma) a graça esquisita, a fina elegância, o bom gosto, o espírito delicado do sublime escritor do Jornal do Comércio, podia cair naquele contra-senso e avançar que ele fala de tudo e nada diz?
Fala de tudo!... Que insinuação pérfida! Como podia eu dizer semelhante blasfêmia, se ele só fala de si e dos seus amigos?
E nada diz!... Outra falsidade. Não só diz, mas rediz, repete três e quatro vezes a mesma coisa. Queixa-se sempre de ser obrigado a escrever aquilo de que todos o desobrigam.
Só quem não tiver lido... Que disparate! Pois alguém pode deixar de ter lido o Tudo e nada? Não é possível! Depois da Quaresma, da Páscoa e das confissões, vem o tempo das penitências.
Já vêem os meus leitores que nunca foi minha intenção escrever aquele absurdo. A minha pena, que tem a balda dos calemburgos [1], fez, sem que eu o sentisse, uma transposição de vírgula, e arranjou-me assim este grave comprometimento.
O homem, porém, tomou o negócio ao sério; e, portanto, estou perdido. Que será de mim a lutar com uma pena que escreve com tinta simpática, e que por conseguinte tem a amizade de todo o mundo?
E por onde foi começar? Pelas minhas celebérrimas erratas! Que há de ser de mim? Fui meter-me no orçamento, eu que não estou habituado a somar o dinheiro da nação e a contar os emolumentos que às vezes se percebem pelos requerimentos das partes. É bem feito que o mestre me dê o quinau.
Demais, ele tinha justa razão de zangar-se. Eu ofendi-lhe um privilégio exclusivo, usurpei-lhe um direito sagrado, ataquei um elemento essencial de sua existência, esbulhei-o [2] de um brevet de perfection, tirei-lhe um monopólio que ele exercia, enfim, errei sem pedir-lhe vênia e permissão.
E, antes que o ofenda segunda vez, vou mudar de assunto e falar de outras coisas.
O governo contratou finalmente a construção de um teatro com a primeira empresa que para este fim se organizou. Era tempo, porque o Provisório começa de novo a revoltar-se contra a permanência.
Na segunda-feira alguns barrotes do soalho entenderam que, estando passados os três anos de existência, tinham todo o direito de apodrecerem e partiram-se. E assim o fizeram, dando ao governo e à empresa um grande exemplo de exatidão e lealdade no cumprimento dos contratos.
A polícia, que assistiu ao fato, registrou-o, e, como o soalho estava no seu direito, assentou que seria uma violência inaudita o contrariá-lo.
Vejam que respeito se vota entre nós à lei dos contratos! Que boa-fé preside às convenções! O Teatro Provisório pode cair em cima das nossas cabeças, e ninguém tratará de prevenir semelhante desastre; porque enfim o edifício só tem obrigação de existir três anos e estes três anos estão concluídos.
Assim, pois, estamos bem servidos de teatros líricos; um está em projetos, o outro em ruínas. Veremos quem ganha a aposta: se o novo se construí antes do velho cair.
Quanto a mim, aposto pelo velho, apesar da boa vontade da empresa Pedro II, que se empenha em realizar a sua idéia o mais breve possível.
Desta vez deixemos em paz a política; os ministros estão muito ocupados com os relatórios. E um relatório vale por dez regulamentos.
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Notas:
[1] balda dos calemburgos
Mania de trocadilhos, de jogo de palavras parecidas no som e diferentes no significado, e que dão margem a equívocos.
[2] esbulhei-o
Despojei-o
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.