quinta-feira, 18 de abril de 2024

Professor Garcia (Trovas do meu cantar) 2


À cruz do amor, eu me entrego,
é a força que me conduz!...
O amor à cruz que carrego,
retira o peso da cruz!
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Amargurada, partiste,
e eu, na minha desventura,
nem sei se o peito resiste
ao pranto dessa amargura!
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As aves, com seus arranjos,
cantam canções tão singelas,
que eu penso que são os anjos
que, às vezes, cantam com elas!
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Chega a velhice e me alcança,
de uma forma tão singela...
Plantando paz e esperança
na vida, que é minha e dela!
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Como quem consola o pranto,
cego e preso na gaiola,
o sabiá solta um canto
e o canto triste o consola!
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Desfeitas as nossas metas,
a vida me faz supor...
Que fomos falsos profetas,
em nossas metas de amor!
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Disse-me, antigo eremita,
no altar de uma velha ermida:
Busco a verdade infinita
que há no silêncio da vida!
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Em seu traje, uma andorinha,
meditando, até parece;
A humilde e pobre freirinha,
pedindo paz numa prece!
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Esta aliança, que um dia,
já guardou nossos segredos...
Hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!
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É tarde... E, na velha praça,
há um vulto que, na verdade,
é uma saudade que passa,
nos braços de outra saudade!
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Eu te esperei tanto, amor,
e de tanto meditar...
A vida me fez supor,
que vale a pena esperar!
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Eu vejo ó, linda criança,
neste teu gesto tão lindo...
a mais feliz esperança,
das esperanças dormindo!
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Há uma voz triste e sonora,
nela, suspiros, lamentos!..,
E a cachoeira que chora
seu pranto, na voz dos ventos!
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Mastro erguido, vela içada,
na noite da cor de breu...
Avança a velha jangada,
num mar que nunca foi seu!
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Mesmo sem terço entre os dedos,
nem cruzes, no peito, expostas,
Deus escuta os teus segredos
e aceita as justas respostas!
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Não faças do amor desfeito,
o teu orgulho e o teu canto...
Pois, o amor, sempre acha um jeito
de transformar riso em pranto!
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Na vida, a gente descobre,
seguindo o que a Bíblia diz...
Que não há pobre tão pobre
que não possa ser feliz!
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Num pesadelo medonho,
alguém me pede, apressado,
que eu jogue a cinza do sonho
nas cinzas do meu passado!
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O antigo sorriso franco,
na vida, só se refaz...
Quando, em seu cabelo branco,
Deus pinta o branco da paz!
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O cego que aceita a cruz
das trevas dos olhos seus,
será estrela de luz
à luz dos olhos de Deus!
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O sol, quando dobra a esquina,
deixa o ocaso tão bonito,
que a esperança é mais divina,
no entardecer do infinito!
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O tempo atrevido, ingrato,
sem perguntar se eu aceito,
rasgou o nosso contrato
e agasalhou-se em meu peito!
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O velho trem, fiquei vendo,
quando partiste... Aos apitos...
Meu sonho aos poucos morrendo,
na distância dos teus gritos!
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Quando um sonho me seduz,
ao fim do ocaso, suponho...
Que o sol, quando apaga a luz,
vai acender outro sonho!
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Sempre sozinha!... Aos farrapos,
mas de rosário na mão!
A fé, tecida entre os trapos,
remendava a solidão!
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Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Primavera)


Composição: Carlos Lyra / Vinicius de Moraes

O meu amor sozinho
É assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela
Como é triste se sentir saudade

É que eu gosto tanto dela
Que é capaz dela gostar de mim
Acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde

Estrela, eu lhe diria
Desce à terra, o amor existe
E a poesia só espera ver nascer a primavera
Para não morrer

Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho
Eu queria ter felicidade

É que o meu amor é tanto
É um encanto que não tem mais fim
E, no entanto, ela não sabe que isso existe
É tão triste se sentir saudade

Amor, eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei
Ah! Quem me dera que eu pudesse ser
A tua primavera e depois morrer
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A Saudade e a Esperança na Canção 'Primavera'
A música 'Primavera', composta por Carlos Lyra, é uma delicada expressão de sentimentos de amor e saudade, entrelaçados com a esperança de um encontro amoroso. A letra utiliza a metáfora de um jardim sem flor para ilustrar a solidão do eu lírico, que se encontra distante de sua amada, comparando essa distância à que separa a Terra de uma estrela distante. A imagem do jardim sem flor simboliza um estado de incompletude e anseio, onde o amor existe, mas não se manifesta plenamente pela ausência da pessoa amada.

A referência à primavera como um renascimento e um florescer do amor é central na canção. A estação é personificada e aguardada como o momento em que a poesia e o amor ganham vida, sugerindo que o eu lírico espera que o amor que sente seja correspondido com a chegada da primavera, trazendo consigo a possibilidade de um novo começo e a realização do desejo de estar junto à pessoa amada. A primavera, portanto, é mais do que uma estação; é uma metáfora para a transformação e a esperança de que o amor solitário se torne um amor compartilhado.

A música também aborda a ideia de que o amor não é algo que se vive isoladamente. A letra enfatiza que o amor é 'juntinho que ele fica bom', ressaltando a importância da reciprocidade e da partilha de sentimentos para que o amor floresça verdadeiramente. O eu lírico expressa um desejo profundo de dar carinho e alcançar a felicidade através do amor correspondido, revelando a natureza humana de buscar conexão e completude através das relações amorosas.

Maria Amália Vaz de Carvalho (As Filhas de Victor Hugo)

Há pouco tempo um escritor francês desconhecido entre nós, o sr. Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado Victor Hugo chez lui, no qual pinta o grande poeta francês, surpreendido, por assim dizer, na intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas atitudes mais familiares.

Desce do pedestal onde a nossa fantasia se compraz em o colocar, o poeta da Lenda dos Séculos, e mostram-no com a robe de chambre e as pantufas de qualquer honesto especulador do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantíssima, desnudada diante do nosso olhar corresponde positivamente a tudo que dela esperávamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa Joaninha que a arte deste grande pais imortalizou, não desmente de modo algum o justiceiro implacável dos Châtiments.

Contudo não é o pai de família, que nós vamos hoje estudar em Victor Hugo, como o nosso título um tanto fantasioso parece estar indicando.

As filhas de Victor Hugo, que nós tentaremos apresentar diante dos olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimônio de simples mortal, são as radiosas filhas do seu gênio, as visões iluminadas que ele evocou com palavras de misterioso encantamento desse Olimpo inacessível onde vivem e nascem as criações imortais dos grandes artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com enternecimento apaixonado todas as fases do seu espírito, essas mulheres ideais é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam as outras no fim de contas, se através destas é que ele se revelou tal como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um tipo de mulher, em que consubstanciam e sintetizam todos os sonhos que tiveram, todas as aspirações que tem concebido.

A mulher que eles fazem viver com a pena, se são poetas, com o escopro (cinzel) ou com o pincel, se são escultores ou pintores, não é como alguns querem que seja, a mulher que eles amaram: é mais do que isso, é a mulher que eles queriam amar!

Para essa é que a sua lira tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais aveludadas carícias, a sua paleta cores mais suaves, a sua pena traços mais vivos, análises mais delicadas, intenções mais graciosas e mais finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que nele cabem dois cultos que se não prejudicam mutuamente, quase sempre esses artistas de que falamos tratam com o mesmo primoroso esmero dois tipos de mulher bem diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um deles personifica a virginal criança cujas seduções mais irresistíveis se chamam inocência, pudor, candura ou ignorância; lírios que o orvalho da manhã coroa com um diadema de pérolas, lírios que uma aragem mais quente crestaria, e que o contato de uns dedos brutais lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e embriaga e mata, consciente dos seus malefícios, e gozando do seu fatal poder!

Consoante o espírito do artista se enamora da sombria beleza do mal, ou da imaculada candura do bem, assim ele trata com mais delicada predileção o eterno feminino que representa uma das faces do mesmo problema insolúvel.

Porque o homem grande ou pequeno, inteligente ou medíocre, há de sempre amar a mulher debaixo de qualquer destas duas formas, ou antes debaixo delas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração deles triunfa a porção de domínio que há até mesmo na alma dos anjos, hão de sentir-se atraídos por este mistério luminoso e sombrio, que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na Idade Média foi Melusina*, que na Renascença foi Impéria ou Lucrécia Bórgia, que os modernos enfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o gênio de tantos homens tem revestido de prestígio mágico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só nessas mulheres símbolos do mal, símbolos de todas as seduções insalubres, hão de achar a graça magnética que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que todos os romancistas as tenham descrito, mas na feição peculiar que cada um deles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste a superioridade ou inferioridade do eterno tipo.

Quanto às outras, às boas, às cândidas, às angélicas, poucos as compreendem na sua genuína e original pureza, e os que as souberam compreender têm produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura destas divinas crianças impecáveis.

Umas absortas num sonho de eterna tristeza, envoltas como que num pressentimento de inevitável desdita, como Ofélia ou Desdêmona; outras deixando florir nos lábios frescos a rubra flor da alegria matinal, mas todas lindas, e meigas e inocentes, todas fazendo crer no bem até os mais cínicos.

Victor Hugo tem, como Shakespeare, destas criações risonhas e simpáticas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, têm na alma um pouco da alma das aves.

Têm a ligeireza alada do sonho, têm a graça imponderável das visões.

Não há ninguém que não quisesse ter por filha uma dessas crianças borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E, no entanto, são boas, de uma doce bondade inconsciente que delas se exala como o aroma se exala da flor; mas também as crianças são boas, e contudo ninguém como elas sabe ser engenhosamente cruel.

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxílio, e não precisa de guia, não compreende a mulher como os modernos aspiram a encontrá-la.

Não quer a companheira robusta desse atleta moral, que é o lutador de hoje; não quer a mulher de ânimo refletido, de coragem viril, de consciência iluminada e austera, que na hora do perigo ou na hora do vacilo criminoso, arrasta ao impulso da sua voz o espírito do homem esmorecido ou duvidoso.

Ele, cuja vida tem sido uma ascensão progressiva para o bem, ele, que não precisa de outra bússola que não seja a luz interior que nunca se apaga nem bruxuleia, não teve necessidade de criar ao lado de Marius, ao lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heróis, uma mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande luta do bem!

Oh! Não era de força que eles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir às seduções da criminosa voluptuosidade; Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funerária; Gennaro saberia confessar as suas indignações austeras e os seus ódios inquebrantáveis; Marius saberia amar a honra impoluta como as virgens, brilhante como as espadas, implacável como a eterna justiça.

Do que eles precisavam era de risos, de flores, de carícias e de beijos.

Precisavam de quem os arrancasse à contemplação do seu deslumbramento ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

— Olha! Eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobrepuja: eu sou o amor!

E não são mais nada as mulheres criadas pelo gênio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoísta, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus pudores instintivos, as suas ignorâncias virginais e as suas aspirações insaciadas a fatalidade irresistível da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuído das ideias cavaleirescas do Romanceiro, criou um tipo de mulher que é talvez um dos mais belos da sua formosa e radiante galeria.

Dona Sol sabe amar impetuosamente, ardentemente, e nesse amor que é a nota predominante do seu caráter, encontra força para todas as resistências viris.

Como ela é doce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu senhor, do seu leão das montanhas, do seu príncipe bandido, do seu rebelde e indomável cavaleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, carícias, tudo é de veludo!

Um desejo dele, tem-na escrava! No entanto sabe por instinto, que ele, o herói, o forte não pode lhe pedir coisa alguma que a filha de um paladino das Espanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquela graça pode fazer-se indignada, que aquela flexibilidade ondeante pode transformar-se em revolta implacável?

É que nela há de tudo! Porém esse tudo é simplesmente amor.

Apareça outro que a solicite, outro que ouse amá-la, e a pomba saberá ser leoa, para defender o seu tesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ela domina, a indignação austera que a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome às vezes as perde, se a maldade e a perfídia do homem as arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para elas o amor não é a perdição, é o resgate!

Veja Marion, a cortesã incrédula, a serpente de enganosas carícias, que um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que dele recebe uma nova e misteriosa virgindade! Veja Eponina, a filha das lamas de Paris, a quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrifício, a abnegação e o heroísmo!

Mas — contradição à primeira vista inexplicável e que no fundo tem talvez uma significação sublime — o amor que transfigura e santifica e ilumina as pecadoras, torna egoístas, torna ingratas as puras!

Eponina imola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os paraísos inacessíveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triunfante, levanta-se Magdalena arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um sorriso bom para Quasímodo!

Porque?

Ah! É que umas são a ignorância na sua perfeição mais divina, outras guardam na boca o gosto amargo de todos os frutos vedados que têm devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes intercepta o mundo, outras possuem a medonha ciência que é feita de todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tédios, de todos os remorsos, de todas as náuseas da vergonha e do desprezo próprio!

Umas entram no amor, triunfantes, imaculadas, curiosas, ébrias de harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam antes? Tinham afetos? Prazeres? Distrações?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fora seu.

As outras vão ali à porta daquela região de que hão de ser as eternas exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de esquecimento.

E em troca desse consolo supremo a que se julgam sem direito, são capazes de todos os sacrifícios, de todos as renúncias sublimes que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

Leitora, estás cansada das chatas e incaracterísticas figuras que tens encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os tipos hediondos ou repugnantes da moderna arte?

As Gervásias, as Bovarys, as Fannys, as pecadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile diante de teu olhar pensativo a gloriosa legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! Crê que não aprenderás com elas coisa alguma que rebaixe o teu espírito, que fira o teu coração, que surpreenda cruelmente o teu entendimento.

Todas elas sabem o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triunfo impudico do vício, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a impenitência imoral das que medram no meio do crime.

As pecadoras contar-te-ão a dolorosa história das suas amarguras, as virgens a doçura sonhadora dos seus êxtases!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa, e que o paraíso pode encontrar-se num canto da terra.

Não sabem nada de toaletes, de pequenas intrigas, de namoros, de vícios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com os olhos fitos noutros olhos, com as mãos enlaçadas noutras mãos, com a alma a cantar-lhes um hosanna de místicos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher bonita e garrida, não as procures, mas também lhes não peças que te falem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as alucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras esferas ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu — Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ela cintila ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de batismo; os seus dedos de cigana crestados e finos arrancam ao pandeiro do seu país doidos e estranhos sons! Fascina com um olhar inconsciente dos seus olhos de veludo, com uma nota da sua voz cristalina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ela da vida? Nada; a não ser que a vida é bela, visto que há dois olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! Vive ao pé dela um enigma sombrio! Um espírito sobrehumano! Um lutador destas lutas interiores cujo reflexo se estampa na frente que as encerra.

Ela nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enigma, e nunca sequer compreendeu a existência dessas lutas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adorável ela deve durante quinze anos a ventura mais perfeita que pode gozar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos daquela fada, encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus idílios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava fizeram-na rainha.

Não importa! Marius apareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida, deixa morrer de dor o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que ele vive na posse de uma ventura que nunca até ali conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho lhe mordeu no coração!

Pois é possível ser desgraçado quando eu sou tão feliz? - pergunta tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de ventura que ela atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão cair!

Ai! Cosette, Cosette! Eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! És uma das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! És uma estátua branca que ninguém ousará mutilar e que os séculos verão erguida no teu pedestal de flores! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em vez de seres o Amor fosses o Sacrifício!

Um dia Victor Hugo pediu às neblinas matinais dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que elas coroam a crista das montanhas e... fez Déa (Deusa)!

Que doce, vaporosa e lendária visão!

Não há nela coisa alguma que seja realidade!

Toca na terra de leve; não tanto que pareça filha dela, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguém devotado às dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe na alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que ele a veste!

Abençoada cegueira que faz dois felizes!

Ao lado dela — supremo contraste! — sorri Josiane com o seu sorriso de deusa pagã!

No olho azul da patrícia inglesa cintila em chispas uma diabólica ironia.

Josiane é a amante do impossível! Procura o que nunca ninguém achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titã, ou de um Cíclope, o amor de Apolo ou de Polifemo!

Estranha figura, produto doentio de uma noite de febre!

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponina, Cosette, Déa, quantas figuras radiosas, quantas humanizações esplêndidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga dúvida, nas horas em que as misérias que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais desolado e mais escuro olhemos para elas!

Dir-nos-ão os poetas de hoje que elas não existem, e, o que é pior, que elas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem estéril a arte que só trata de rebaixar o que em nós é de mais elevada essência, e só quer que vejamos a fatalidade brutal do instinto, onde víamos antes a fatalidade mais nobre do sentimento.

Não acreditemos o que eles nos dizem, porque na sua preocupação exagerada do horrível, eles mentem muito mais do que os outros mentiam na sua preocupação exagerada do belo!

Estes, reunindo todos os vícios e sordidez que encontraram dispersos numa só figura, conseguem apenas criar... um monstro, um ser híbrido e infecundo que a ninguém aproveita!

Os outros, sintetizando numa filha do seu gênio as harmonias, as feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza, conseguiram alguma coisa mais!

Criaram o ideal imutável e eterno e ensinaram-nos a fitar nele os olhos da nossa alma, e a invoca-lo como um consolo adorável nas nossas horas de desalento e de agonia.
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Notas
* Melusina = é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Varal de Trovas n. 598

 

Carolina Ramos (Mundo Cão)

O mundo cão, que nomeia a crônica, refere-se ao mundo restrito de um determinado cão vira-latas que, talvez, nem o hábito de virar latas tenha.

Neguinho é o cachorro mais estranho que já vi! Ninguém, por mais amor que lhe dedique, poderá acha-lo bonito.

-Perdão! Ante a veemência dos protestos cá de casa, volto atrás. Há quem o ache bonito, sim... E gosto não se discute! Ponto final!

Carinhosamente chamado por todos de Neguinho é ele qualquer coisa assim como fruto híbrido de cão e javali, caso isto fosse possível.

Pelagem preta e rala, fiapos brancos aqui ali, topete espetado a descer-lhe pelo dorso, dão-lhe por vezes o aspecto de um cavalinho nanico a trotar solitário pelas ruas, crina arrepiada como crista de moicano.

Mistura braba! Por conta daquele topete, é conhecido também, por Punk, Supla, Elvis e até Vovozinho, mas o nome oficial e carinhoso, concedido pela maioria, é mesmo - Neguinho.

Neguinho vive na rua. Não digo qual delas, para não lhe devassar o endereço. Deve ter dono, mas, prefere a liberalidade das calçadas. E se não é de alguém, é porque é de todos.

Certo é não lhe faltarem carinho e alimento, já que de índole mansa e sem ser magro nem gordo, dá provas de não passar fome. A quem lhe estale os dedos, Neguinho acompanha, com gosto, em curtos passeios, voltando sempre ao ponto de partida, ainda que só.

Todos os portões são seus. Guarda-os, sem discriminação, com igual zelo e sem agressividade ou preferências. O brilho úmido dos olhos escuros cativa simpatias e gera defensores, mesmo entre os que lhe negam total ausência de atributos físicos.

Aceita afagos e os retribui com sobriedade. Por outro lado, mostra total indiferença a quem por ele passe sem lhe destinar um simples olhar.

De boa paz, Neguinho não lesa, não trai, não rouba, não agride.

Necessário dizer que nem sempre colabora para o asseio da rua que lhe serve de lar. Mas por que acusar-lhe a displicência, fruto de sua "viralatice" praticamente imposta?! – Cachorrinhos bem nascidos e bem cuidados, frequentadores assíduos de lojas pet, comportam-se da mesma maneira, em seus passeios diários, com direito às mesmas paradinhas sob as mesmas árvores das calçadas, ou frente aos mesmos postes, que, impassíveis, recebem sem protestos a costumeiras regas!

O agravante é que, aqueles cachorrinhos vips, na maioria das vezes, passeiam acompanhados por gente que nem liga para o estrago feito na sola dos sapatos do público passante. E quem reclama gasta seu latim sem encontrar eco, porque as coisas continuam do mesmíssimo jeito, embora com sadias ressalvas. Por isso mesmo, palmas e cumprimentos para quem, civilizadamente, vem munido com aquele discreto saquinho plástico.

Neguinho é cão dócil e inteligente. Não se sabe porque, até bem pouco, era poupado pelo laço cruel da famigerada "carrocinha", hoje motorizada, terror dos cães sem coleira e abominada pela criançada do mundo inteiro, desde tempos remotos.

Mas... a sorte tem os seus dias de cochilo. E, num certo dia, lá se foi o cãozinho em questão dar um passeio até o depósito, exposto ao risco de enfrentar o corredor da morte. E sem culpa alguma! Arrepia imaginar quanta gente muito menos digna, anda solta por aí, aprontando barbaridades! E, o meigo Neguinho, preso!

Na verdade, a rua ficou mais pobre com a ausência dele. Ficou bem mais sem graça, sem a ronda solitária daquele animalzinho meio-cão-meio-javali, com topete moicano e trote de cavalinho nanico.

Contudo... foi por pouco tempo! Logo, a mão caridosa da dona de um daqueles portões vigiados por Neguinho, foi busca-lo, trazendo de volta ao convívio do bairro aquele estranho exemplar, não muito primoroso, do "melhor amigo do homem" para gáudio dos que tanto o estimam – seja ele o Punk, o Supla, o Elvis ou, simplesmente, o Vovozinho!

Resta ainda um receio plenamente justificado: - tudo, depois da primeira vez, parece ficar mais fácil. E não será surpresa se, enquanto estas linhas são escritas, Neguinho, esse cãozinho querido, ande de novo a driblar funcionários da Prefeitura, confundido como cão vadio - o que, na realidade, nunca foi!

E o receio é plenamente justificado! - Afinal, neste mundo cão, em que o mais sagrado direito de viver em paz é profanado pelos próprios homens, mesmo um pacato e inofensivo cachorrinho, fiel e espontâneo guardador de portões, calmo amante da liberdade, bem pode não ter vez, enquanto, paradoxalmente, tantos outros, cujos atos estão bem longe de serem recomendáveis, gozam de plena liberdade para dar curso aos seus mais degradantes instintos.

Mas... o fecho, desta vez é bastante otimista: - Notícias recém-chegadas contam que Neguinho finalmente foi adotado e, há algum tempo, curte sua feliz velhice, junto à bondosa família que o retirou das ruas.

Que assim seja!!!

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Nas águas da poesia n. 1


 Corrêa Junior

RECOMPENSA

Tenho no teu afeto a recompensa
dos meus dias de pobre sonhador;
e, artista obscuro, sinto a glória imensa
de ser, entre os cantores, teu cantor.

Assim, no doce enlevo desta crença,
viverei pelo amor e para o amor,
sem que a antiga tristeza hoje me vença,
no meu castelo de ilusões em flor.

Velha raiz, anônima, esquecida,
pelo húmus dos teus beijos renascida,
subo, cresço do solo, enfeito o chão... 

E, árvore nova, ramos no ar dispersos,
espalho, pelas flores dos meus versos,
todo o perfume do meu coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Eugênio de Freitas

VIBRAÇÕES AMOROSAS

Se te revejo, Amada, após algum vazio
estágio de abandono, em que te sinto ausente,
a paz me volta ao peito, iludo-me e sorrio,
de súbito a sonhar, no ardor de antigamente.

O sol da juventude, afugentando o frio
que aos poucos me fustiga o coração e a mente,
compensa, num minuto, as lágrimas a fio,
ocultas, que verti: de novo estás presente.

Remoço no momento em que, feliz, te abraço;
e a festa natural de meus sentidos prova
que, perto de nós dois, extingue-se o cansaço.

Comigo, esta afeição a levarei à cova;
pois vibra, toda vez que por teu vulto passo,
fortíssima atração, que sempre se renova.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Evandro Moreira

OCASO

Jovem parti, sequioso de aventura,
velas pandas, bandeira em altos mastros;
por instinto, tracei via segura,
conforme o vento e a posição dos astros.

Riquezas encontrei nessa procura.
Mas, cheios os porões com áureos lastros,
o barco da ilusão, em noite escura,
perdeu-se. Pobre e só, voltei de rastros.

Por pecados troquei a juventude,
ouro falaz que tanto nos ilude
e nos leva à velhice, que redime.

Talvez por isso eu sofra tão sereno,
certo de que o castigo é tão pequeno
quão pequeno eu julgava cada crime...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Filgueiras Lima

É BOM SER BOM

Meu pai e meu amigo! eis-me a teu lado,
a rezar. Mas não ouves o que digo.
Eu tenho o coração despedaçado
de saudades, meu pai e meu amigo!

Fui, desde criança, todo o teu cuidado.
Cresci à sombra desse afeto antigo.
Afinal, era um só nosso passado,
porque, ó pai, envelheci contigo.

Sereno e justo, Deus te fez um forte,
ante as ingratidões de todo grau
que te feriram, sem mudar-te o norte.

Com a tua vida do mais puro tom,
tu me ensinaste quanto é mau ser mau
e me provaste quanto é bom ser bom!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Inácio Moura

FILOSOFANDO...

Tudo que vinha dos teus lábios era
uma ilusão perfeita, um puro engano,
pois o que dizes numa primavera
não podes repetir depois de um ano.

A vida é assim; o tempo degenera
e mata em pouco o sentimento humano:
se não nos alimenta uma quimera,
também não nos devora um desengano!

Ai de nós todos se, por nossa face,
como se a nossa dor fotografando,
constantemente a lágrima rolasse!

Mas, felizmente, a lágrima não corre,
não desce mais dos nossos olhos, quando
a dor persiste e quando a crença morre.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Jorge Azevedo

ESSAS COISAS DA VIDA...

Essas coisas da vida a gente nunca esquece. ..
Um longo beijo ao luar... uma mentira linda...
Num suspiro de amor... num sussurro de prece,
guardar de toda boca uma saudade infinda...

E então quando se é moço e o ardor não arrefece,
goza-se a mocidade enquanto ela não finda...
Da vida bem vivida o ocaso recrudesce
a tristeza de não poder mentir ainda...

E a minha mocidade em beijos se avigora,
encontra em toda boca uma esplendente aurora
e em todo amor um sol em que, febril, se aquece...

E na efemeridade em que ela se resume,
o consolo é lembrar... lembrar... pois ao perfume
dessas coisas da vida a gente refloresce.
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Vinicius de Carvalho

DANÇA ÁRABE

Trazes no corpo a graça das palmeiras
e o esplendor do luar de Ramadã.
Vem: minha tenda, a esta hora da manhã,
possui, na sombra, o odor das tamareiras.

Esquece, na maciez do meu divã,
o cansaço das tribos caminheiras.
Não procures miragens traiçoeiras:
— toda procura, neste mundo, é vã!

Não faz mal que, no Livro do Destino,
nosso amor seja um conto pequenino
que a mão do Tempo, trêmula, marcou;

pois a história de amor mais comovida
é a que deita raízes pela vida
quando tudo, afinal, já se acabou.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Fonte> Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Recordando Velhas Canções (Diz que fui por aí)


Composição: Zé Keti/ H. Rocha

Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí
Levando o violão debaixo do braço

Em qualquer esquina eu paro
Em qualquer botequim eu entro
Se houver motivo
É mais um samba que eu faço

Se quiserem saber se eu volto
Diga que sim
Mas só depois que a saudade se afastar de mim

Tenho um violão para me acompanhar
Tenho muitos amigos, eu sou popular
Tenho a madrugada como companheira

A saudade me dói, 
O meu peito me rói
Eu estou na cidade, 
Eu estou na favela
Eu estou por aí
Sempre pensando nela
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Vida Boêmia em 'Diz Que Fui Por Aí'
A música 'Diz Que Fui Por Aí', interpretada por Nara Leão, uma das vozes mais expressivas da Bossa Nova, retrata a imagem de um boêmio que leva a vida de forma leve e descompromissada, com seu violão a tiracolo, simbolizando a arte e a música como companheiras constantes. A letra, que fala sobre andar sem destino, entrar em botequins e compor sambas, evoca a liberdade do espírito artístico e a cultura dos bares e esquinas, locais tradicionais de encontro e de expressão popular no Brasil.

A segunda estrofe da canção introduz um elemento de melancolia com a menção da saudade, um sentimento profundamente enraizado na cultura brasileira. A saudade aqui pode ser interpretada como a memória de um amor ou de um tempo passado que ainda afeta o narrador. A repetição do 'eu estou por aí' reforça a ideia de movimento e de não estar preso a um lugar ou a uma situação, apesar da presença constante da saudade.

A música também reflete sobre a popularidade e a aceitação social que o protagonista possui, destacando a madrugada como sua companheira, o que sugere uma vida noturna ativa e uma conexão com os aspectos mais boêmios da cultura urbana. A figura do narrador é a de alguém que, apesar de sentir saudade e dor, escolhe viver a vida de maneira itinerante e musical, sempre pensando naquilo que deixou para trás, mas sem se deixar paralisar por isso.

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo o que é mal começado...)

NESSA MANHÃ ensolarada acordei suando em bicas.  Liguei a televisão no canal que assisto diariamente. O desgranhento do repórter jogou para cima de mim um caminhão de notícias sem eira nem beira. Se não sou esperto, acabava atropelado por um ônibus desgovernado na sua trajetória malfeita. O bruto, quase acabou com os cornos em um poste que morava numa calçada do passeio público. A armação de concreto, safa como um gato, deu um pulo fenomenal, deixando, entretanto, o transformador, lá no topo, com os bugalhos espantados de medo e terror. Sem mais delongas desliguei o aparelho, tomei um banho, me vesti e desci para a padaria onde tomo meu café matinal. A bebida, para início de conversa, estava deliciosa. O pão com gosto de recém-saído do forno, a manteiga sem ranço e a xícara –, novinha como saiu do ventre da caixa onde se abrigava. 

A xicara me encarou com uma tez indescritível. Não parou aí. O pires lavado com esmero, deu a impressão de que o responsável pela lavagem das louças lá nos cafundós da cozinha regurgitava de bom humor. Somente uma coisa não coadunava com o espírito gracioso do dia indubitável. Olhando do recinto para fora, o céu lá em cima me parecia ter esquecido de se vestir com nuvens de boas-vindas. Foi nesse começo de dia (um pouco antes das oito,) eu vi e não só vi, conheci a Bianca. Ela entrou estabanadamente no amplo salão com um guarda-chuva encharcado de calor pingando um amontoado de sorrisos tímidos pelos passos que imprimia sobre o chão de ladrilhos brancos. 

Seus olhos verdes como alfaces prontas para serem colhidas, se faziam inquietos. Num meio que distorcido, encontraram os meus por um breve instante. O sol, num instante fugaz, pareceu ter se infiltrado em sua alma, como um dardo no coração de um pobre coitado deixando-o vulnerável e desajeitado aos cuidados de um amor infinito que se afigurou pronto para leva-lo a um êxtase anunciado. Bianca, apesar da bagagem meio “mala sem alça,” trazia no rosto um enigma indecifrável. Suas palavras ao garçom soaram como notas musicais desafinadas saídas de um piano faltando teclas. Sua risada, uma mistura de nervosismo sem pátria destituído de qualquer tipo conhecido de gentileza. Enquanto esperava pelo pedido, abriu um livro. Percebi que gostava de poesias. O livro, um exemplar de Fernando Pessoa. 

Eu, pelo outro (meu lado,) preferia o silêncio denso e pesado dos romances de escritores dos tempos de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Nossos encontros a partir de então, passaram a ser somente ali na padaria. Esbarrões moldados ao sabor de xicaras e xícaras de café com leite, sob o pretexto de discutirmos literatura. Ele falava sobre Vinícius de Morais, Cora Coralina, Ferreira Gullar e, de roldão, emendava sobre o verdadeiro sentido da vida (qual seria?!), a juventude esquisita, os tempos difíceis, enquanto eu me perdia na textura do açúcar se dissolvendo nas bebidas costumeiras das engraçadas tiradas humorísticas de Luiz Fernando Veríssimo. Às vezes, as nossas mãos se tocavam num lançar quase acidental, e eu sentia um arrepio meio inteiro, um calafrio a percorrer desordenadamente a minha espinha – não só a dorsal. 

Nessa troca de poetas e escritores, entretanto, havia algo errado. Bianca nunca mencionava o futuro como uma coisa gostosa de se ver e sentir. Não falava sobre planos, sonhos ou o que poderia ser construído num vindouro às portas do nosso começo de conhecimento.  Ela vivia num presente envidraçado, como se o passado e o futuro fossem apenas sombras distantes por detrás de espessas coberturas de vidros. Eu, tolo, meio que atordoado, uma besta dos pés à cabeça e vice-versa, me deixei envolver por essa dança tresloucada de passos incertos e toques furtivos de dedinhos bobos em lugares consentidos. Nossos beijos se assemelhavam às chuvas de verão: intensos, efêmeros, e cheios de promessas que em nenhum momento tinham a satisfação de se fazerem verdadeiramente reais. 

Nessa coisa de pega, me larga, me esmaga e me domina, um engraçado detalhe me encafifava os fundilhos do peito. Quando o sol se escondia, Bianca se exauria. Mergulhava numa espécie de buraco sem fundo. De cabeça, a criatura afundava. Mirrava, esvanecia, como éter em recipiente sem tampa. Do nada, evaporava. Em seguida, não atendia minhas ligações, não respondia às mensagens via whatsapp. Passei a me sentir como uma folha seca levada pelo vento (igual aquela canção do Amado Batista). Sem rumo, sem destino, sem porto onde atracar meu jegue –, digo onde amarrar meu barco. Me resguardei. Dessa forma meio que insondada e curiosa –, ou dito de maneira mais abrangente –, alienígena e esquisita nosso relacionamento mal começado se arrastou por seis semanas. 

Eu, no calor da felicidade, esperava por ela, como quem se debruça na folha do próximo capítulo de um livro inédito, cujo final me parecia ser emocionante. Mas Bianca nunca se mostrou como uma personagem de carne e osso, bem escrito e com epílogo que deixasse saudade. A custo penoso, a poder de remédios com bulas de noites passadas às claras, cheguei à conclusão de que aquela pessoinha não ia além de um rascunho, ou de uma história incompleta. Assim foi até que num sábado (mesma mesa onde nos sentamos pela primeira vez) ela apareceu com um olhar de peixe morto, o semblante cheirando a robalo triste e uma carta nas mãos. “Preciso cair fora!” – disse. E emendou: “Ganhar o mundo. Me embrenhar por outros ares ainda não respirados pelo meu nariz.”’ Vomitou assim, na lata, sem rodeios. “Não sou uma excelência em finais felizes.”  

Cabisbaixa, o pranto rolando e fazendo sulcos na pele, Bianca foi-se. Perdão, Bianca se foi. Deixou-me como acompanhamento o gosto do café com leite não doce, mas amargo e a sensação do pão dormido e com manteiga estragada, e pior, a certeza de que o amor é como um texto inacabado: cheio de vírgulas, pontos de interrogação e reticências em lugares errados. Penso, agora, com meus "encafifamentos": talvez tenha sido melhor assim. Afinal, sem final, nem todas as histórias merecem um epílogo radiante, vestido à rigor, com desenlaces impecáveis. Desfechos neste patamar se enquadram mais para Lisa Kleypas, Julia Quinn e Ariano Suassuna. Nesse vácuo vazio, como o daquele dia de manhã ensolarada, me lembro de Bianca e seu guarda-chuva. 

Recordo-me como se fosse hoje, de suas palavras desafinadas, do seu sorriso tímido. E percebo que, às vezes, os relacionamentos iniciados são como crônicas de um autor ao acaso: intensos, efêmeros e eternamente marcados em nossa memória por uma péssima sensação de que fomos esquecidos e ludibriados ou confusos. O mais degradante é que logo ali na próxima esquina, aparecerá um ônibus sem freio, à cata de um poste de luz atrelado a um transformador com a fuça de uma mula paralítica sem canja; de pobre sem picanha na mesa do almoço e fechando o ciclo. Nada além de uma formosura apodrecida em total e profunda caminhada a passos largos para a cidade dos que saboreiam capim pela raiz.    

Fonte> Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 26

 

Arthur Thomaz (Angel of the Morning – O Azarão)

Nasci nas sofisticadas cocheiras de um famoso Jockey Club. Um garboso potrinho, orgulho de minha mãe. Deram-me um nome lindo em inglês, mas não entendia o porquê todos me chamarem um pouco tempo depois de “Azarão”.

Eu nasci bem cedinho em uma manhã fria, dando trabalho a um veterinário, que chegou mal humorado, então não sei se ironicamente ou não, me colocaram o nome de Angel of the Morning.

Como eu era muito forte e desenvolvido, quando chegou a época do treinamento, fui designado a um aprendiz de jóquei muito levinho e bom cavaleiro, o que me agradou bastante.

Treinávamos todos os dias e ele me deixava correr solto para depois me ensinar a poupar esforços em percursos de longa distância. Sempre após os treinamentos, ele me dava uma pequena cenoura, que furtava da cozinha do Jockey.

Na época em que fiquei apto à primeira corrida, estranhei um fato: não era o meu aprendiz que iria me conduzir, e sim um jóquei profissional. Querendo correr solto para ganhar o páreo, percebi que ele me retinha com as rédeas, não me impulsionando. Estranhei demais aquilo, mas como os leitores podem notar, eu não posso falar com os humanos, portanto, não pude reclamar com ele.

E isso repetiu-se por muitos páreos e eu nunca conseguia chegar à frente.

Quando se aproximou um famoso grande prêmio, eu notei a mudança de comportamento do jóquei, deixando-me correr solto e ganhar dois ou três páreos sem importância. Não podia imaginar que era para eu poder ter um handicap que me habilitasse ser inscrito em Grandes Prêmios, entrando como azarão na prova. Isso, em caso da minha vitória, faria render uma pule altíssima, o que ocasionaria muito lucro para esses desonestos do turfe.

Comecei a entender o que acontecia nos subterrâneos dos Jockeys Clubes.

Exigi ser montado pelo amigo aprendiz, derrubando todos os jóqueis que teimavam em subir em minha sela. 

No dia da grande corrida, acordei já com um plano traçado. Ganhei o páreo por uma cabeça, o que me transformou em celebridade. Meu amigo aprendiz também tornou-se um rico e prestigiado jóquei. Fui transferido para a maior e mais confortável baia do pavilhão das cocheiras.

Comecei a colocar meu plano em ação, decidido a não me prestar a essas falcatruas no mundo das corridas. No primeiro treino, simulei uma lesão na pata dianteira, começando a mancar. Pânico geral, com a imprensa vindo fazer reportagens. Equipes de veterinários, até estrangeiros, a examinar-me. Dezenas de exames radiológicos e ninguém conseguiu descobrir a razão da “patologia”.

Expliquei ao meu amigo que não se preocupasse comigo, pois tudo era parte de meu plano. Rimos muito da situação. Fui, então, retirado das corridas e colocado em um haras especializado em reprodução animal.

Hoje, corro solto pelas pradarias, sem preocupações, e de vez em quando, sou requisitado para a colheita do meu valiosíssimo sêmen. Recebo a visita constante de meu agradecido amigo, que mantém comigo longas conversas, acompanhadas das deliciosas cenouras que ele sempre traz para lembrar os velhos tempos.

Ah! Volto a mancar sempre que aparece por aqui, no haras, um veterinário do Jockey.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor