terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas

Depois de 1990 são inúmeros os escritores cearenses que se dedicam à elaboração de narrativas curtas. Muitos deles são poetas, cronistas, romancistas e ensaístas. Alguns publicaram livros de contos, como o multiartista Alano de Freitas, o veterano Carlos d’Alge, Carlos Gildemar Pontes, Carmélia Aragão, Clauder Arcanjo, Felipe Barroso, Lourdinha Leite Barbosa, Maria Thereza Leite, Natalício Barroso, Ricardo Kelmer, Roberto Amaral; outros apareceram apenas em coletâneas, jornais, revistas e sites, como Joan Edessom, Luís Marcus da Silva e Ray Silveira.

ALANO DE FREITAS

                Alano de Freitas nasceu em Fortaleza (1950). Contemporâneo dos contistas surgidos no final dos anos 1970 (participou da revista O Saco). Estreou em 1982 com os poemas de Tentações da Paisagem. Seguiram-se Hemisfério Translúcido, de 1997, e Eterno Instante Fugaz, de 1999. Artista plástico, músico, compositor e poeta, deu a lume no gênero conto Histórias do Começo do Mundo (7 Contos Minúsculos), em 1995, seguido de Eles Quase Eu (contos e flexões mentais das águas delirantes do mítico e do erótico).   

                O conto de Alano de Freitas tem parentesco muito próximo com a crônica e a reminiscência ou a memória. Não somente pela presença de personagens reais e de seu círculo de amizades. Em “Luzes e fogos”, o protagonista é internado no Hospital Mental São Gerardo, “onde ficou sob os cuidados do psiquiatra e escritor José Airton Machado Monte”. Em “O dementado”, o próprio Alano faz as vezes de narrador e personagem. Além disso, outro escritor cearense é lembrado: “Meu amigo poeta Dimas Macedo não dá presente de grego e os treze contos da areia de Borges vieram no meio de sessenta e sete livros que me deu pelo comparecimento ao aniversário de seu apartamento” (...). Airton Monte reaparece nesse relato, num trecho próprio de crônica para jornal: “Alô, Airton Monte, como vão os contos e os ‘meus doidinhos’?” Assim como o “poeta e músico Paulo Pardal”. São anotações desnecessárias, vez que as pessoas citadas não participam diretamente da trama e suas pequenas ações não passam de apêndices.

                O escritor explica, em “O desjejum”, essa sua maneira de escrever: “E se conto a história de um momento de minha mente, mesmo sem a graça das histórias encantadoras com começo, meio e fim definidos e que eu adoro, nem por isso estou fazendo diferente, em essência, do que faz qualquer escritor classificado como contista – estou sendo só mais um partícipe da evolução do conto ou das classificações literárias”.

                Entretanto, esse rompimento com as regras ditadas nos manuais de arte literária, que definem o que seja conto, crônica, poema, memória, etc, é salutar e há muito se vem praticando, aqui e alhures.

                Alguns dos seres fictícios (ou não) de Alano de Freitas vivem à margem da sociedade, do consumo, da normalidade sócio-econômica. São deserdados, abandonados, segregados, enlouquecidos. José Paulo, de “Léa vela”, está doente, de uma “gripe besta”, deitado numa “rede velha”, alumiado pela chama de uma lamparina, sob os cuidados de Léa. Ciço das Candeias fabrica lamparinas e, certa noite, sofre um delírio: aparece em sua oficina a Virgem Maria. Segundo o narrador, o pobre lamparineiro terminou internado num hospital psiquiátrico. O mendigo Antonio Ferreira faz diversas visitas ao narrador Alano, sempre para pedir alimentos, roupas, livros. E, como Ciço das Candeias, é internado em hospital para doentes mentais. O narrador de “Discurso de chegada” é outro louco, que se diz filho do Diabo. O narrador de “Narciso ou plácidas águas da loucura” dialogo com um espelho.

                Afora esse tema da loucura, da alienação e da exclusão social, Alano se debruça sobre abismos mais fundos. “Nossos começos” é uma recriação do Gênesis. Em “Discurso de chegada” o louco-narrador faz diversos questionamentos filosóficos, como em “E se o Diabo é também filho de Deus, como pode ser condenado?” Mas Alano prefere os pequenos abismos da sexualidade, como na relação amorosa de Ciço das Candeias com a Virgem Maria. Em “O desjejum”, o cronista faz reflexões várias, cita Cortazar, Poe, Pessoa, Homero e a Bíblia, e termina dando explicações sobre os significados de palavras como “tabaco” e “fumo” na língua do povo. A narrativa “A chuva pioneira” é de um erotismo exuberante. Adão e Eva reaparecem nus no paraíso de “Nossos começos”. Em “Fogo no fogo” se narram as primeiras incursões de garotos do interior na vida sexual ativa, com a prostituta Maria Rosa.

                A cidade de Fortaleza é palco de muitas histórias de Alano. Mas também outras cidades do Ceará ou o ambiente do interior (“Fogo no fogo”). Juazeiro do Norte está em “Luzes e fogos” e “Discurso de chegada”. A praia de Iracema (o bairro) aparece em “O dementado”, seja na referência ao extinto Cais Bar e à Avenida Aquidabã, assim como à Igreja de São Gerardo, em outro bairro.

                O título e o subtítulo do livro Eles Quase Eu – Contos e Flexões Mentais das Águas Delirantes do Mítico e do Erótico exprimem com fidelidade esse universo de Alano de Freitas. Eles, os personagens, são quase Alano, seus semelhantes, nos delírios, sonhos e angústias. Contos e flexões, sim. Mas também crônicas, para se usar um termo do cânone literário. O Mítico e o Erótico, sim, mas também o Social.

***

CARLOS D’ALGE

            Carlos d’Alge nasceu em Chaves, Portugal, em 1930, tendo viajado para o Brasil aos seis anos de idade. Graduado em Letras, Direito e Educação, é professor de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras. Doze livros editados. Seus contos apareceram em jornais, revistas e antologias, como O Talento Cearense em Contos, com a narrativa “Breve Ensaio Sobre a Solidão” e no volume A Mulher de Passagem, de 1993.

                A Mulher de Passagem é composto de contos, crônicas, reflexões metafísicas ou políticas e poemas. O poeta e ensaísta Linhares Filho encontrou nele “o conto criado em moldes de estilo puramente narrativo”, além do “conto entremeado da dissertação e do texto epistolar”. Há, na verdade, narrativas de variadas formas. “Tango” se constitui apenas de falas, com os tradicionais travessões, porém sem os também peremptos verbos introdutores do relato do discurso. Em outras histórias há apenas narração, além de reflexões. Em “A solidão do corpo” há uma bipolaridade temporal e narrativa (contrapontos): em um parágrafo a ação mostra a personagem feminina num acidente; no outro, o ato se dá numa casa, onde está o personagem masculino. E assim prossegue o drama em mais seis quadros.

                Quanto aos temas, os contos de D’Alge podem ser lidos como peças dedicadas aos “velhos encontros e desencontros amorosos da trajetória humana, as aventuras e desventuras do amor, particularmente com aventuras passionais”, como observa Linhares Filho. Em “A solidão do corpo” isto é particularmente claro. Entretanto, é a morte o tema primordial dele. “Por isso os presentes textos são iluminados de Eros e Thanatos”, conclui Linhares.

***

CARLOS GILDEMAR PONTES

                Carlos Gildemar Pontes (Fortaleza, 1960) é poeta, ficcionista e ensaísta. Editor da Revista Acauã. Licenciado em Letras na Universidade Federal do Ceará, com doutorado em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Paraíba, onde é professor de Literatura. Tem diversos livros publicados de poemas, contos, ensaios e cordéis. Dentre os quais os de contos Porta-fólio (Jaboatão dos Guararapes: EGM, 2004) e A miragem no espelho (João Pessoa: Editora da UFPB, 1998). Recebeu inúmeros prêmios literários, sendo os mais importantes: Prêmio Literário Cidade de Fortaleza – Conto, 1990; Prêmio Ceará de Literatura – Poesia, 1993 e Prêmio Novos Autores Paraibanos – Conto, 1998. Participa das antologias Contos Cruéis – org. Rinaldo de Fernandes (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – org. Rinaldo de Fernandes (Rio de Janeiro: Garamond, 2006), dentre outras. Foi traduzido para o espanhol por Félix Contreras e publicado em Cuba, nas Revistas Bohemia e Antenas.

                Em “Minha gente”, originado do conto homônimo de Guimarães Rosa, narrado na primeira pessoa, o contista prega uma peça no leitor, com muita sabedoria e sutileza. Sem diálogo, o narrador rememora o cotidiano em uma fazenda: animais, jagunços, trabalhadores, crianças, patrões. Durante toda a narrativa ele mantém o segredo sobre a própria identidade, embora dê vagas indicações, só percebidas no final, de que se trata de um cavalo. No terceiro parágrafo ele diz: “Meus pais eram teimosos, sofreram e apanharam que nem burro”. Ora, a teimosia é própria tanto de homens como de animais. Homens também sofrem e apanham “que nem burro”. E assim vai a narração até quase o final. Somente no último parágrafo vem a decifração do enigma: “Uma vez, tive que brigar até ficar exausto, machucado dos coices e das mordidas”. Ora, homens não dão coices. E vem o esclarecimento final: “algum tempo depois nasceu meu primeiro rebento, um cavalinho faceiro e corredor”.

                Em composição mais curta – “Por pouco eu não fui feliz” – Gildemar se vale de outros expedientes narrativos: os diálogos sem indicação dos nomes dos falantes e sem sinais (travessão ou aspas), no decorrer da narração. Neste também o protagonista não tem nome explícito. O desfecho é ao mesmo tempo poético e fantástico: “Oito dias depois, minha sobrinha trouxe um hipopótamo para o jardim e ele, deitado sobre as roseiras, tirou a única possibilidade de eu poder ofertar a Helena um pouco do que restou de mim”. Remate inesperado, insólito, embora no início da história Helena se dirija ao homem assim: “Oi! Vim aqui visitar sua mãe, mas parece que ela viajou...”, e ele responda: “Nem notei, parece que está em Zanzibar!

                Às vezes, o contista resvala no fosso perigoso da anedota, como em “Por falta de um adeus”. Mas consegue se recuperar em outras histórias, com certo humor que nada tem de anedótico, como em “A Lua e Natasha”. O narrador de “O homem que comprou a felicidade” brinca constantemente com o leitor e até zomba dele, no desenlace. O protagonista Almindo passeia pelo centro de Fortaleza, perde horas nos bancos da Praça do Ferreira, em busca da felicidade, da riqueza, sempre a sonhar com prêmios milionários.

                Gildemar cultiva os mais variados temas, além de se mover com desembaraço pelo fantástico, pelo humorístico e pelo realismo mais brutal. A leitura de “O sorriso do brinquedo” deixa no leitor uma sensação amarga na boca, ante a violência de mendigos no lixão, ao brigarem por uma boneca. Em apenas duas breves falas inseridas na narração, o narrador onisciente estabelece o conflito: “Quero a boneca pra minha neta. / Que nada, ela é minha”. O primeiro homem agride o outro: “dividiu sua cara ao meio com uma giletada”. A menina corre abraçada à boneca. “Sãs e salvas, as duas moram no sinal”. Como em outros desfechos, aqui o contista surpreende o leitor: a menina pede moedas na esquina e um “sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”. Mais um final enigmático.

                                                                                              ***
CARMÉLIA ARAGÃO

                Carmélia Aragão (Sobral, 1983) é licenciada em Letras e mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, onde desenvolve tese sobre o escritor Domingos Olímpio. Premiada pelo III Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – SECULT, em 2006, com o livro de contos Eu vou esquecer você em Paris (Fortaleza: Edição do Caos, 2007). Tem contos na revista Caos Portátil, na revista eletrônica Famigerado, no jornal do Grupo de Estudos Francófonos da Universidade Federal do Ceará, Voix du GEF. Seu conto “2003” foi premiado no concurso Domingos Olímpio de Literatura, de Sobral/CE.

                As quinze peças ficcionais que compõem Eu vou esquecer você em Paris mostram uma escritora madura. E isso se deve a dois fatores: muita leitura e talento. O primeiro se pode constatar pelas epígrafes (Neruda, Salman Rushidie, Cortazar), pela menção a nomes fundamentais da literatura (Dostoievski, Flaubert, Emily Brontë, Virgínia Woolf, Goethe, George Orwell e outros), sem falar na composição “Página 12224”, de feição policial e ao mesmo tempo fantástica, a nos lembrar “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto.

                Como ser madura, aos vinte anos de idade? Ou antes? Pois não se sabe quando as composições de Carmélia (1983) foram escritas. Ora, os exemplos de jovens escritores são muitos. Assim como de escritores idosos que nunca conseguiram atingir a maturidade literária, e morreram inacabados, incompletos, depois de dez, vinte, trinta livros publicados.

                Claro, nem tudo é ótimo em Eu vou esquecer você em Paris. Mas o que não é ótimo para uns é aceitável para outros. Como a linguagem das narrativas, ora mais coloquial, ora próxima do rigor literário. O próprio título do livro é frase de uso comum no falar. Isso, porém, já nem se discute no Brasil, desde o início do século XX, desde os modernistas. Ignácio de Loyola Brandão escreveu a obra “Pega ele, Silêncio” (parece poético, mas Silêncio é o nome de um personagem), que deu título a um livro.

                As narrativas de Carmélia são densas, mesmo quando os diálogos se estendem. Quase sempre ela se vale da narração e faz uso da economia de detalhes. Não se perde em descrições desnecessárias. Muitas vezes nem enredo há. E, se há, não obedece aos ditames do tradicional “descritivo narrativo linear”. Veja-se a construção de “Seja feliz (fragmentos da felicidade)”, disposta em quatro “fragmentos” independentes, como se fossem quatro histórias. No último, intitulado “O contista”, o narrador se refere aos três primeiros fragmentos: “Sim, um conto novo. Três crônicas que se unem em um conto.

                Apesar da modernidade das narrativas, Carmélia ainda usa o tradicional travessão nos diálogos, assim como os verbos introdutores do relato do discurso, como “dizer”, “afirmar”, “responder”, etc., há muito abolidos na prosa de ficção. O “ainda usa” acima pode ser substituído por “também usa”, pois a contista sabe disso e sabe se livrar dos tais pobres “verbos introdutores”, como se vê em “Quase” e “Felis catus”.

                Mas isso é de pouca importância.

                E onde vivem os seres fictícios de Carmélia? São quase todos suburbanos, vivem em grandes cidades, embora oriundos de pequenos burgos, como o contista de “Seja feliz” (“Sempre fôramos vizinhos de frente, mas separados pela praça da Matriz. Cidadezinha pequena: ‘Eita vida besta, meu Deus!’”). Andam de ônibus, moram em prédios de apartamentos, caminham por ruas longas, repletas de carros. Vejam esta descrição em “Pulsos intactos”: “Os olhos dele eram azuis refletidos no vidro da sorveteria. Eram azuis sob as janelas dos edifícios, das repartições, das barbearias, dos cafés, das vitrines, das lojas.” Seres perdidos, isolados, solitários. Mesmo quando o ambiente é “uma cidadezinha que vivia em torno de uma biblioteca”, cidade sem nome explícito, a não ser pela letra inicial “C”, do insólito conto “Página 12224”, cujos personagens parecem inspirados em alfarrábios medievais.

                Curioso ainda é o grande número de escritores fictícios na obra da contista. Em “Seja feliz” há um contista. Em “2003 (Carmina)” uma professora conhece Marco Santiago, professor de literatura, autor do romance “linear e trágico” Carmina. Em “Página 12224” os personagens “vivem” numa biblioteca, na qual há uma sessão exclusiva de Literatura Baltusanesa, “da tribo Kaywa da extinta Baltúsia”. Em “Meu reino por uma fivela” a narradora participa de um curso intitulado “Mulheres escritoras”, lê O morro dos ventos uivantes, em composição de características policiais. Em “Escrevia e apagava” (título sugestivo para uma história de personagem escritor) a protagonista escrevia contos para uma revista feminina. Em “Quase” a narradora se iniciara como leitora de romances policiais, passara aos “grandes mestres da literatura local, depois da nacional e, por fim, da universal”, estudara “línguas exóticas”, como baltusanês. Em “Filis catus” a mulher que narra se refere a um contista que conhecera e transcreve trechos de um de seus livros. Também os títulos de algumas peças remetem à literatura: “Romance russo”, “Página 12224”, “Escrevia e apagava”, “Crônica do 2º andar”.

                Pois essa paixão pela literatura é fundamental para o escritor: para viver, aprender e escrever cada vez melhor. Sem ela, teremos bons médicos, advogados, funcionários públicos, etc, que namoram a literatura nos fins de semana e escrevem de vez em quando algumas memórias ou uns versos capengas. Carmélia Aragão é do primeiro grupo e, sem dúvida, escreverá mais e cada vez melhor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Acruche Collection - Trova 18

Irmãos Grimm (O Piolho e a Pulga)

Um piolho e uma pulga decidiram morar juntos e um dia estavam fazendo cerveja numa casca de ovo. E então, o pequeno piolho caiu dentro e se queimou. Diante disto, a pequena pulguinha começou a gritar alto.

Então, a pequena porta do quarto disse,

"Minha pequena pulguinha, porque estás gritando?"

"Porque o piolho se queimou."

Louca de dor, a porta começou a ranger. Foi aí que uma vassoura, que estava encostada num canto, falou para a porta:

"Porque você está rangendo, pequena porta?"

"Não tenho eu razões para me lamentar?"
"O piolhinho se queimou todo,
E a pulguinha está chorando."

Então, a vassoura também começou a varrer que nem desesperada. Um carrinho de mão, que passava pelo local, perguntou,

"Porque estás chorando, minha amiga vassoura?"

"Não tenho eu razões para chorar?"
"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
E a porta está rangendo de dor."

Então, o carrinho de mão disse,

"Então, eu vou correr,"

e saiu correndo que nem louco.

Então, um monte de cinzas que corria com ele, falou

"Porque você está correndo também, carrinho de mão?"

"E não tenho eu motivos para correr?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
E a vassoura está varrendo."

Nesse instante, o monte de cinzas falou,

"Então, vou queimar furiosamente,"

e começou a queimar com chamas claras.

Uma pequena árvore estava perto do monte de cinzas e perguntou,

"Monte de cinzas, porque você está queimando?"

"Será que eu não tenho motivos para estar queimando?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
E o carrinho de mão está correndo.”

A pequena árvore então, falou,

"Então, vou me sacudir todinha,"

e começou a se sacudir e todas as suas folhas caíram; uma garota apareceu carregando um jarro de água, viu tudo aquilo e perguntou,

"Minha amiga árvore, porque você está se sacudindo toda?"

"Será que eu não tenho motivos para me sacudir?", respondeu ela.

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
O carrinho de mão está correndo.
E o monte de cinzas está se queimando.”

Então, a garota falou,

"Então, eu vou quebrar o meu pequeno jarro dágua,"

e ela quebrou o seu pequeno jarro dágua.

Então, disse uma pequena fonte de onde corria a água,

"Menininha, porque você está quebrando o jarro dágua?"

"E não tenho eu motivos para quebrar o jarro dágua?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
O carrinho de mão está correndo.
O monte de cinzas está queimando.
E a pequena árvore está sacudindo.

"Oh, não!" disse a fonte, "então, eu vou começar a correr,"

e ela começou a correr com muita força. E todos se afogaram na água, a menina, a pequena árvore, o pequeno monte de cinzas, o carrinho de mão, a vassoura, a pequena porta, a pulguinha, o piolho, todos juntos.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/O_piolho_e_a_pulga

A Saudade em Sonetos Diversos II

ARNALDO NUNES
Quarenta anos

Quarenta anos de esforços, quarenta anos
De sofrimento, de existência incalma,
De tantas decepções e desenganos
Estoicamente recalcados na alma!

Oito lustros de prélios sem a calma
Que vem sempre depois dos grandes danos;
Oito lustros de sonhos, tendo a palma
Triste dos pesadelos cotidianos!

E sobre esta velhice prematura,
Sobre a melancolia e sobre o tédio
Em que tudo se finda sem ventura,

A luz do fogo-fátuo, tíbia e mansa,
Desta grande saudade sem remédio,
A saudade infinita da Esperança...

AUGUSTO MEYER
Era uma vez...


Quem passa? É o Rei, é o Rei que vai à caça!
Mal filtra o luar a sombra do arvoredo.
Joãozinho, a um restolhar, treme de medo,
Maria escuta, se uma folha esvoaça...

Era uma vez um rei... jogou a taça
Ao mar, e o amargo mar guarda o segredo...
E a princesinha que cortou o dedo?
Faz muito tempo... Como a vida passa!

Era uma vez a minha infância linda
E o sonho, o susto, o vago encanto alado...
Vem a saudade e conta-me baixinho

Velhas histórias... E eu já velho ainda
Sou um Pequeno Polegar cansado
Que pára e hesita, em busca do caminho...

AUTA DE SOUZA
Lágrimas

Eu não sei o que tenho... Essa tristeza
Que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
Parece vir de alguma fonte amara
Ou de um rio de dor na correnteza.

Minh'alma triste na agonia presa,
Não compreende esta ventura clara,
Essa harmonia maviosa e rara
Que ouve cantar além, pela devesa.

Eu não sei o que tenho... Esse martírio,
Essa saudade roxa como um lírio,
Pranto sem fim que dos meus olhos corre,

Ai, deve ser o trágico tormento,
O estertor prolongado, lento, lento,
Do último adeus de um coração que morre...

BASTOS PORTELA
Esplendor efêmero
 

És moça e bela. Assim, hoje pões e dispões;
E, feliz, num requinte fátuo de vaidade,
Vais pela vida, altiva, a esmagar corações...
Nada encontras no amor que te amargure ou enfade!

Mas, quando, um dia, enfim, atingires a idade
Em que se perdem, para sempre, as ilusões,
Tu me dirás, então, o que é sentir saudade
E o que é chorar no horror de longas solidões...

A beleza desfeita, humilde, decadente,
Serás a flor que, num jardim, murcha e descora,
Ao crepúsculo azul da tarde, mansamente...

E vendo-te passar, como os fantasmas, eu...
Eu sofrerei, talvez, como quem lembra ou chora
Uma bela mulher que se amou, e morreu!

BASTOS TIGRE
Saudade

Infeliz de quem vive sem saudade,
Do agridoce pungir alheio às penas,
Sem lembranças de amor e de amizade,
Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.

Triste de ti, ancião, que te condenas
A mole insipidez da ancianidade
E não revives na memória as cenas

De prazer e de dor da mocidade!
Ter saudade é viver passadas vidas,
Percorrendo paragens preferidas,
Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se... E em sonho, como por encanto,
A dor que nos doeu já não dói tanto,
Gozo que foi é gozo inda maior.

CIRO VIEIRA DA CUNHA
Saudade

Saudade! o teu olhar longo e macio
Derramando doçura em meu olhar...
Um bocado de sol sentindo frio,
Uma estrela vestida de luar...

Saudade! pobre beijo fugidio
Que tanto quis e não cheguei a dar...
A mansidão inédita de um rio
Na volúpia satânica do mar...

Saudade! o nosso amor... o teu afago...
O meu carinho... o teu olhar tão lindo...
Um pedaço de céu dentro de um lago...

Saudade! um lenço branco me acenando...
Uma vontade de chorar sorrindo,
Uma vontade de sorrir chorando...

CONSTÂNCIO ALVES
Soneto mudado

Eras em plena mocidade, quando
Da nossa casa, um dia, te partiste;
E eu, coitado, sem mãe, pequeno e triste,
Fiquei por esta vida caminhando.

Assim — no meu amor teu rosto brando
Do tempo à ação maléfica resiste,
E o meu é, hoje, como nunca o viste,
Tanto o passar da idade o foi mudando.

Tão velho estou, que já me não conheces;
Nem poderias ver no que te chora
Esse a quem ensinaste tantas preces.

E tão moça ainda estás que (se memora
A saudade o teu vulto) — me apareces
Como se fosses minha filha agora.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Mágico

Recolhido no Algarve

Havia numa terra um homem entendido em artes mágicas, que nunca queria tomar criado que soubesse ler para lhe não apanhar o segredo dos seus livros. Foi um moço oferecer-se dizendo que não sabia ler, e assim ficou-o servindo, e leu todos os livros da livraria do mágico, e quando já podia competir com ele, fugiu com todos os livros. Um dia o discípulo achou-se mestre e quis viver das suas artes; disse a um criado que fosse à feira vender um lindo cavalo que devia de estar na estrebaria, disse-lhe o preço, e ordenou-lhe que assim que o vendesse lhe tirasse logo o freio.

À hora da feira o criado foi à estrebaria e lá achou um lindo cavalo e partiu com ele para o mercado. Estava na feira o mágico que tinha sido roubado, e conheceu logo debaixo da forma do cavalo o seu antigo discípulo; foi ajustar o preço, pagou a quantia tão depressa, que o criado se esqueceu de tirar o freio ao cavalo. Quando o quis fazer já não foi possível, porque o mágico disse que o contrato estava fechado desde que lhe entregara o dinheiro. O mágico levou o cavalo para casa, muito contente por se poder vingar à vontade do seu inimigo que lhe tinha roubado toda a sua sabedoria. De uma vez disse ao criado que fosse à ribeira levar o cavalo a beber, mas que não lhe tirasse o freio. O cavalo andava muito triste, cheirava a água mas não bebia; o criado lembrou-se de lhe tirar o freio, pensando que ele assim beberia. De repente o cavalo transforma-se numa rã, e some-se pela água. O mágico que estava à janela de sua casa viu aquilo, e transformou-se em um sapo, para ir apanhar a rã. O discípulo, que sabia a sorte que o esperava se tornasse a cair em poder do mestre, transformou-se em uma pomba, e voou, voou por esses ares; o mágico transformou-se em um milhafre, e correu atrás da pomba para tragá-la.
   
Lá ia muito cansada a pomba, e quase que estava para ser agarrada, quando viu uma princesa que estava em um terraço, e foi-lhe cair no colo, transformando-se em um anel de grande preço. A princesa pasmada com o que viu, e com a lindeza da joia, meteu-a no dedo; o mágico, viu que nada podia fazer, e como ainda estava na forma de milhafre entra pelo quarto do rei dentro e bota-lhe um cabelo no copo de leite que ele estava para beber. O rei, já se sabe, teve uma grande doença, foram chamados todos os médicos, mas nenhum era capaz de o curar; o mágico apareceu sob a figura de médico e prometeu dar saúde ao rei, mas só se lhe desse o anel que a princesa trazia no dedo. O rei disse que sim; então o anel transformou-se em um lindo rapaz e pediu à princesa que quando o rei lhe mandasse entregar o anel ao mágico, que lho não desse na mão, mas que o atirasse ao chão, para ele o levantar. O rei passados dias ficou bom, e assim que o médico veio à corte, pediu o anel; o rei chamou a filha e disse que lhe entregasse o anel.

A princesa mostrou-se triste mas obedeceu; tirou o anel e deitou-o ao chão, como se estivesse zangada. O anel transformou-se em uma romã que toda se esbagaçou pela sala; mas o mágico mudou-se em galinha, e num instante foi engolindo todos os grãos. Ficou um único grãozinho de trás de uma porta, e esse transformou-se numa raposa, que se atirou à galinha e a comeu num instante. A princesa ficou muito pasmada com aquilo, e pediu à raposa que se tornasse em príncipe que casaria com ele. E ele assim fez e foram muito felizes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 34 – 2 de novembro de 1887

Que fará, estando junto
Sócrates a um hotentote?
Falo de varão defunto,
Pode sair livre o mote...

E, antes de mais nada, digo
Que essa junção de pessoas
Vi hoje mesmo em artigo
Repleto de cousas boas.

O artigo é de sociedade
Espírita e brasileira;
Trata só da humanidade,
É divisa sua e inteira.

Que eu já sou meio espírita,
Não há negá-lo. Costumo
Pôr na cabeça uma fita,
Em vez do chapéu a prumo.

Chamo à vida uma grã bota
Calçada pelo diabo;
Quando escrevo alguma nota,
Principio e não acabo.

Dou o João, velho amigo,
Nascido em cinqüenta e sete;
E ele, quando isto lhe digo,
Todo se alegra e derrete.

E proclamam em recompensa,
Que sou de cinqüenta e cinco;
Rimo-nos em boa avença,
Do meu brinco e do seu brinco.

Aqui há poucas semanas,
Puxei fieira na rua,
E comi sete bananas
Com pimenta e linha crua.

José Telha, que no sótão
Sustenta os seus macaquinhos,
Crê que alguns deles se botam
Para a casa dos vizinhos.

Mas eu respondo-lhe a cada
Palavra com heroísmo,
Que o que parece pancada,
É simples espiritismo.

E, voltando à vaca fria,
Sócrates era um sujeito
De grande filosofia,
Alta mente, heróico peito.

O hotentote, — conquanto
Lembre uma Vênus famosa
Pelo volumoso encanto,
Mas tão pouco volumosa,

Comparada àquela raça,
Tão pouco, como seria
Uma uva a uma taça,
A laranja à melancia;

O hotentote, em bestunto,
É pouco mais que um cavalo,
Dê-se-lhe um simples assunto,
Mal poderá penetrá-lo.

Mas, sendo um e outro feitos
Pela mesma mão divina,
Força é que sejam perfeitos,
Di-lo a grande Espiritina.

Daí a necessidade
De andar a gente em charola,
Não de cidade em cidade,
Mas de uma bola a outra bola.

Morre aqui algum peralta,
Que furtou grandes dinheiros,
Ressurge em bola mais alta,
Entre os simples caloteiros.

Vai a outra, e paga em dia
Todas as dívidas suas;
Vai a outra, e principia
A dar esmolas nas ruas.

Vai a outra, e já suprime
As ruas; chega à perfeita
Máxima pura e sublime
De só saber a direita.

Sobe finalmente à esfera
Onde uma sociedade
De arcanjos lindos o espera,
E o conduz à eternidade.

Ali Sócrates jocundo
Receberá o hotentote,
E falarão deste mundo,
E glosarão este mote:

— Para que há de haver juízes
Em Berlim, ou em outra parte?
Têm aqui iguais narizes
O inocente e Malazarte.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Ronaldo Correia de Brito (Eufrásia Menezes)

– Sentada estou. É aqui que me veem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.

Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.

Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.

Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. Contemplo o telhado e toco, com as pontas dos dedos, o sêmen morno que molha o lençol.

Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de Sulidão, onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.

É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.

Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.

Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruz para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, veem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.

No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o membro sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.

Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.

Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.

João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.

(Ronaldo Correia de Brito, Faca)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Ronaldo Correia de Brito

Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, 1950) aos cinco anos mudou-se para o Crato e aos dezoito para Recife, onde estudou medicina. Teatrólogo e ficcionista. Escreveu teatro para crianças: O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, O Pavão Misterioso e Arlequim; teatro para adultos: O Reino Desejado, Retratos de Mãe, Malassombro, Auto das Portas do Céu e Os Desencantos do Diabo. Também roteiros de documentários e filmes para televisão e cinema: Lua Cambará (Longa metragem para a TV Cultura), Caboclinhos (Documentário para a TV Universitária), Brincadeira de Mateus (Documentário para a TV Universitária), Cavaleiro Reisado (Documentário para cinema), Brincadeira de Reisado (Documentário para cinema), Maracatus (Documentário sobre para a TV BBC); além dos livros de contos: Três Histórias na Noite (Prêmio Governo do Estado de Pernambuco de 1989), As Noites e os Dias (Recife: Ed. Bagaço, 1996), Faca (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2003) e O Livro dos Homens (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2005).

As histórias de Faca enfocam o ambiente do sertão cearense, num tempo aparentemente indefinido. Na primeira, Velho espera a volante policial, expressão em voga no tempo do cangaço. Em outra, Catarina vive do passado, a pedir ao filho a leitura de árvores genealógicas, que remontam ao início do povoamento português das terras nordestinas. Passado de riquezas; presente de quase miséria: “Não somos mais nada. Da família só guardamos o piano, uns móveis capengas e essa casa, ameaçando ruir”. Também os utensílios domésticos e vestes remetem a um tempo morto: candeeiros, lamparina a querosene, cumbuca, camisa de madapolão.

Os Sertões pode ser considerado o marco de uma literatura brasileira voltada para a interiorização do foco narrativo, que desaguaria no Romance de 30 e, depois, em Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. E não só isso, mas, sobretudo, o enfoque de um período histórico que vai da desagregação do aparato feudal das propriedades rurais, os latifúndios, passando pelo desmoronamento dos engenhos de açúcar, o surgimento do cangaço, até o início da agroindústria, isto é, a implementação de um capitalismo de Estado (Sudene). Pois enquanto a industrialização se desenvolvia na Europa, com o fortalecimento dos Estados nacionais, em Canudos tropas legais massacravam uma comunidade medieval. Pois a Idade Média brasileira teve início quando na Europa o feudalismo estertorava. E terminou quando lá o capitalismo chegava ao apogeu. Enquanto na Rússia acontecia a revolução socialista, no Nordeste brasileiro, bandoleiros sem ideologia política enfrentavam volantes policiais, como se aqui o Estado ainda não estivesse constituído.

Ronaldo Correia de Brito é o retratista mais moderno desse mundo decadente. Com uma linguagem nova, retrata o ambiente sertanejo daquele período histórico, porém voltado para o microcosmo familiar, as desavenças entre greis ou no interior de clãs semifeudais do Nordeste brasileiro. O próprio narrador de “Redemunho” observa este descompasso histórico entre o “mundo” e o “sertão”: “Quando o mundo já falava por rádios e telefones e os aviões cortavam os céus, os sertões ainda se abasteciam nos lombos de burros e cavalos de carga”.

Os personagens de Ronaldo vagam pelos sertões, tabuleiros, vivem em pequenas cidades, viajam em lombo de cavalo, atravessam o rio Jaguaribe. São seres afeitos à violência, à solidão, à morte, às tragédias familiares. Chagas Valadão, perseguido pela volante, é acusado de assassinato. As cenas de violência entre os ciganos de “Faca” se repetem do início ao fim. O dia-a-dia de mãe e filho em “Redemunho” deixa os nervos do leitor à flor da pele, como se a qualquer momento o clima de tensão pudesse desaguar em morte.

Aspecto interessante nos personagens de A Faca são os nomes de batismo: Chagas Valadão, Leonardo Bezerra, Otacílio Mendes, Anselmo Dantas e muitos outros. No Nordeste os nomes mais comuns são José, João, Luís, Raimundo, Pedro, Manoel, Maria, etc. Além disso, quase todos têm nomes duplos, ou nome e sobrenome, como nos ficcionistas hispano-americanos. Alguns se vangloriam dos muitos nomes, como Catarina Macrina Cavalcante de Albuquerque Bezerra. Além disso, se irrita por não ter sido batizada como Cavalcanti, pois descendente de Pedro Cavalcanti de Albuquerque, Cavaleiros da Ordem de Cristo, fidalgos da casa real, governadores de capitanias.

O ponto de vista onisciente prepondera no livro, mesmo em “Lua Cambará”, que tem mais de um narrador. Um homem ou menino (primeira pessoa) não identificado, e de menor importância na trama, inicia a história: “Meu pai jurou que viu”. Não se sabe se, ao narrar a lenda, o ser fictício é adulto ou criança, porque fala do passado: “Eu pulei do colo de meu pai, assustado (...)”. A seguir, a voz assume o ponto de vista onisciente. Outros narradores-personagens surgem entre um quadro e outro, como o vaqueiro Bispo e o Doido Guará. Composto de quadros/cenas, o foco narrativo ora se volta para o menino, seu pai e o vaqueiro Argemiro Bispo, num passado recente; ora regride no tempo, para contar a história-lenda de Lua Cambará, já morta (“assombração que passa/ sem princípio, meio e fim”) no tempo em que o garoto ouve do pai a história da alma penada de Lua.

Ronaldo se vale sempre desse ir e vir do foco de narração, em cenas curtas, em tempos diferentes (retrospectos). Passado e presente (agora ou passado mais recente) se complementam, como se a trama durasse alguns anos (novela, romance). Em “A espera da volante”, Irineia dá notícia ao Velho de que “a volante policial vinha vindo”. Segue-se a narração do encontro dos dois, das conversas: “O Velho balançava a cabeça, ria manso, falava baixo”. Mais adiante o narrador faz um retrospecto, para apresentar ao leitor o protagonista: “Ninguém sabia há quanto tempo o Velho estava ali”. No desenrolar do episódio, o narrador parece perder a onisciência: “Em algum ponto da estrada, a volante avançava em marcha”. Ação distante do cenário principal. Quem a presenciava? No final, ao se aproximar a volante do palco do conflito (a casa do Velho), a voz narradora deixa de fazer conjecturas e, como se narrasse uma ação no presente real (ao vivo, como se diz em televisão), observa: “Como agora, quando o verde da camisa suada dos soldados era visível, e não havia mais dúvidas de que o esperado encontro, finalmente, estava para acontecer”.

Algumas composições de Ronaldo seguem um plano de flashes, com as ações intercaladas, ora num tempo, ora noutro. Veja-se “Faca”: na primeira ação “uns ciganos acharam a faca”; na segunda, há um flashback em que aparecem alguns dos personagens da trama e a faca; a terceira cena é continuação da primeira. E assim até o final. São narrativas em quadros breves (linguagem de cinema), tempos diferentes e intercalados.

Um dos mais interessantes e bem realizados contos da coleção é “Mentira de Amor”. Realidade e imaginação (da protagonista Delmira) dão corpo à história de uma mulher e suas filhas aprisionadas em casa pelo marido e pai. A realidade se circunscreve entre as paredes da casa. Fora, na rua, na cidade, a vida fervilha, sobretudo com a chegada de um circo. Impossibilitadas de saírem de casa, Delmira passa o tempo a imaginar, para si e as meninas, a agitação na cidade, a adivinhar o desfile dos artistas e animais do circo. É a vida imaginada. Como seria o circo? Como antigamente, quando era menina?

Os desfechos às vezes não ocorrem ou são meras conjecturas. Ou a expectativa de um fim, como em “A espera da volante”. Em outros contos os desenlaces são os mais inesperados. Em terceiro grupo se situam as tragédias, com remates entrevistos, adredemente anunciados nas entrelinhas.

A linguagem do contista é erudita, apesar de serem sertanejos os seres fictícios. Não se verifica o linguajar arrevesado, muitas vezes antiquado, dos habitantes dos sertões, sobretudo antes do advento da televisão. Os vocábulos de uso no sertão encontrados na obra são do conhecimento do leitor comum: alpendre, coalhada, candeeiro, comboieiro, baú, todos dicionarizados. E não só isso, também a construção da frase nos moldes da tradição literária. Portanto, não há vislumbres de regionalismo, no sentido restritivo do termo, nestas composições de Ronaldo Correia de Brito, mesmo que os narradores não se esqueçam de mencionar o sertão ou algumas localidades da geografia nordestina ou cearense.

Ao arquitetar as narrativas de Faca, o contista certamente não se prendeu a um esquema, a uma fórmula, pois, apesar das peculiaridades (linguagem objetiva, narração em quadros, personagens trágicos, etc), não se repete nunca. O narrador de “A escolha” se dá até o direito de apontar ao leitor o cuidado que teve ter com o detalhe, o miolo da peça ficcional, o recheio do relato: “As histórias não têm apenas princípio e fim, elas são sobretudo o meio, que é o tempo de maior duração, o de se comer juntos uma arrouba de sal”. Talvez uma lição de narrativa.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Idalina Cotrin Appes (Parto das Rosas Vermelhas)


O Encanto dos Sonhos em Versos

FLÁVIA ASSAIFE
O que é o Sonhar

O que e o sonhar?
Desejar algo, ter vontades, imaginar?
O que e o sonhar?
Viajar sem receios do que encontrar
Liberar a imaginação para voar
Deixar a alegria contagiar
Combustível que faz a vida caminhar...

O que e o sonhar?
Se entregar sem medo
Desvendar os mais íntimos segredos
Mergulhar num oceano de fantasias
Desvencilhar as idiossincrasias

O que e o sonhar?
Uma experiência inconsequente
Uma realidade inconsciente
Um conflito indiferente
Uma vontade consistente
O que e o sonhar?
Ninguém sabe exatamente
Estudos possuem opinião diferente
Compensação, psique, delírio
Longe de ser um martírio

O que e o sonhar?
Para mim e alforriar a alma…

GRECIANNY CARVALHO CORDEIRO
Sonhos

De que são feitos os sonhos?
De uma centelha de esperança
De um brilho refulgente de amor
Das cores do arco-íris
Seja como for...

Sonhos precisam ser cultivados
Arados numa terra a nunca repousar
Semeando grãos de ilusão
De emoção, da mais pura paixão

Sonhos descuidados
Ficam embotados
Sombreados pela amargura
Da mais infinita tristeza

Sonhar e viver
Mais que isso, e se perpetuar
Perdurar por toda a vida
No calor de um abraço
Da mais intensa paixão.

Passaste do amor para a paixão,
Tiraste pés do chão
Sob asas de Cupido.
Para esse voo não há preço,
Vai te botar pelo avesso
Em loucuras do não vivido.

INÊS CARMELITA LOHN
A Virgem Sonhadora

Olhava para o infinito
E sonhava com um amor
Que surgisse de trás dos montes
Num altar de rezas e flores.

Suas vestes eram brancas
E esvoaçavam na ventania
A transparência dos seios
Os longos cabelos cobriam.

Quando a lua surgia la nas alturas
Seu corpo ardia em sonhos e desejos
Uma louca malícia pedia caricias
Afagos, carinhos, abraços e beijos.

O clarão do luar que brindava as noites
Era de uma pureza insana
Dançava ao som do silencio sagrado
Numa sedução ardente e profana.

A sonhadora continuava imaculada e pura
Depois que a lua cheia se escondia
O altar nunca foi enfeitado por flores
E nele, a virgem nunca rezou uma Ave-Maria.

LENIVAL DE ANDRADE
A Mulher dos meus sonhos

Olha aqui meu bem
E veja bem também meu amor
Te dou mais uma flor
E a noite será nossa, em baixo do cobertor
Pois foi DEUS que colocou você em meu caminho
Não ficarei mais sozinho
Ficarei para sempre contigo
Serei mais que seu simples amigo

Vivo a sonhar contigo
Dentro do meu abrigo
Eu te amo
Do fundo do meu coração
Sonho contigo
Quero este sonho poder realizar
E sentir a maior emoção
Dentro do meu coração
Aproximastes o máximo de mim

Estou cada dia mais afim
Marcaste a minha vida
Você e a preferida
Minha eterna querida
Curou e tratou muito bem da ferida
Nunca será por mim esquecida
Tornaste meus dias sempre risonhos
Pois você
E a mulher dos meus sonhos

Luiz Carlos Amorim
Sonhar

Gosto de sonhar, viajar,
a bordo do teu sorriso.
Ele me embala,
me enleva, me leva,
de encontro ao teu coração.
E se pego uma carona
nas asas de outro sonho,
quando volto te encontro,
mais que sorriso, ternura,
pedaço de mim que faltava.
Se embarco numa saudade,
numa lágrima, numa dor,
que falta sinto de ti:
me perco pelo caminho,
a procura da passagem,
a procura do meu sonho,
a janela do sorriso,
o sorriso da chegada.
Teu sorriso e calmaria,
e carinho, e aconchego,
e a minha parceria
para sonhar e ser feliz.

MARIA (NILZA) DE CAMPOS LEPRE
Quimera

Sou um gavião pairando por sobre nuvens de algodão...
Meus olhos observam o mundo como parte de um tabuleiro...
Ali em baixo tudo parece limpo, lindo e em paz...
Agora sou um navegante dos mares de minha alma...
Meu veleiro segue sem rumo ao sabor das correntezas...
Uma brisa refrescante acaricia minhas faces...
Meus cabelos dançam alegres ao sabor dos ventos...
Estou feliz... Sinto-me em paz... Meu corpo não tem peso...
Não caminho... Apenas flutuo como um balão de gás...
Estou num paraíso, aqui nada me fere, nem me atinge...
Mas, que tristeza... Abro os olhos e o sonho se desfaz...
Quem sabe na próxima noite, o sonho continue de onde parou?...

MARILU F QUEIROZ
Sonhos...

O que são sonhos...
Senão mera ilusão, paixão
desmedida e monótona,
do que era para ser e não foi.

O que são sonhos...
Senão a intenção, inclusão,
conclusão de conversas,
sem resposta nem razão.

O que são sonhos...
Senão a vaidade, ilusão
de satisfazer vontades
e querer simplesmente viver.

Portanto, sonhos...
São o alimento da alma,
a esperança que motiva
e aplaca as dores do mundo!

TANIA DINIZ
Sonho

Os sonhos dentro do baú azul
As saudades
Do ano passado
Tudo em celofane
Muito bem embalado
As alegrias poucas
As esperanças
loucas
As amizades
(no meu sem-jeito
aceito)
a fome de paixão
as dores da incompreensão
em tantos embrulhos
remexo e vasculho
reviro meu baú
e meio sem graça retiro
meio feridos, meio tristes
minha alma guerreira,
(a meio pau sua bandeira)
e o meu corpo nu.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.) Revista Varal do Brasil Edição Especial Sonhar Ainda Pode - Fevereiro de 2014
Imagem - Biblioteca Manuel Antonio Pina

Irmãos Grimm (João, o Sensato)

A mãe do João falou para ele,

"Para onde vais, João?"

João respondeu, "Para a casa de Maria.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega na casa de Maria,

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que trouxeste de bom?”

“Não trago nada, gostaria de ganhar algo."

Maria presenteia João com uma agulha.

João diz, "Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega a agulha, e a joga dentro de um carrinho de feno, e segue com o carrinho para casa.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada; quis apenas que ela me desse alguma coisa.”

“O que Maria deu para ti?”

“Me deu uma agulha.”

“Cadê a agulha, João?”

“Coloquei-a dentro do carrinho com feno.”

“Fizeste mal, João. Deverias ter colocado a agulha na manga da camisa.”

“Não se preocupe, da próxima vez farei melhor."
– – – -

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria. "Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que trouxeste de bom para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo." Maria presenteia João com uma faca.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João." João pega a faca, e a coloca na manga de sua camisa, e vai para casa.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não lhe dei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela me deu uma faca.”

“Onde está a faca, João?”

“Eu a coloquei na manga da minha camisa.”

“Fizeste mal, João, deverias ter colocado a faca no bolso.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor.”
– – – – – –

“Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria. " Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um cabritinho.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João." João pega o cabritinho, amarra-lhe as pernas, e o coloca dentro do bolso.

Quando ele chega em casa o cabritinho estava sufocado.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Em casa de Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela deu para mim um cabritinho.”

“Onde está o cabritinho, João?”

“Eu o coloquei no bolso.”

“Fizeste mal, João, deverias ter colocado uma corda em volta do pescoço do cabrinho.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor."
– – – – – –

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João,”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João." João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um pedaço de toucinho.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega o toucinho, amarra numa corda, e o leva arrastado para casa.

Os cães aparecem e devoram o toucinho.

Quando ele chega em casa, ele tem apenas a corda na mão, e nada está pendurado nela.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Me deu um pedaço de toucinho.”

“Onde está o toucinho, João.”

“Eu o amarrei numa corda, e quando trazia para casa, os cães o comeram.”

“Fizeste mal, João, deverias ter trazido o toucinho na cabeça.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor.”
– – – – – –

“Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João.”

“O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um bezerro.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega o bezerro, coloca-o na cabeça, e o bezerro lhe aplica um coice na cara.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Um bezerro.”

“Onde está o bezerro, João?”

“Eu o coloquei na minha cabeça e ele me deu um coice na cara.”

“Fizeste mal, João, deverias ter levado o bezerro, e o colocado no estábulo.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor."
– – – – – –

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria diz a João, "Irei com você."

João pega Maria, amarra ela com uma corda, levou-a até o cavalete, e a amarrou bem forte.

Então, João vai até a sua mamãe,

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela não me deu nada, ela veio comigo.”

“Onde deixaste Maria?”

“Eu a levei com uma corda, e a amarrei no cavalete, e espalhei um pouco de grama para ela.”

“Fizeste mal, João, deverias ter lançado olhos gentis sobre ela.”

“Não se preocupe, da próxima vez farei melhor."

João entrou no estábulo, arrancou todos os olhos dos bezerros e das ovelhas, e os lançou no rosto de Maria.

Então, Maria ficou brava, soltou as amarras e fugiu desanimada, tornando-se assim a noiva de João.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/Jo%C3%A3o,_o_sensato

A Saudade em Versos Diversos I

ALBERTO DE OLIVEIRA

Crescente de agosto

Alteia-se no azul aos poucos o crescente,
O ar embalsama, os cirros leva, o escuro afasta;
Vasto, de extremo a extremo, enche a alameda vasta
E emborca a urna de luz nas águas da corrente.

Na escumilha da teia, onde a aranha indolente
Dorme, feita de orvalho, uma pérola engasta.
Faz aos lírios mais branca a flor cetínea e casta,
Mais brancos os jasmins e a murta redolente.

Faz chorar um violão lá não sei onde... (A ouvi-lo
Na calada da noite, um não-sei-quê me invade)
Faz que haja em tudo um como estranho espasmo e enlevo;

Faz as cousas rezar, ao seu clarão tranqüilo,
Faz nascer dentro em mim uma grande saudade,
Faz nascer da saudade estes versos que escrevo.

ALCEU WAMOSY

Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Soneto da defunta formosa

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.

AUGUSTO DOS ANJOS

O Bandolim
 

Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas,
Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez d'um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão as bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é fria e calma,
Teu canto vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d'alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!

DA COSTA E SILVA
 
Saudade

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... o caboré com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas da névoa sobre a serra...

Saudade! O Parnaíba — velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...

JORGE DE LIMA
 
Velho tema, A Saudade

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
..Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
— Faze que uma saudade a ti seja o presente!
— Faze que tua morte uma saudade seja!

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) Cravo, rosa e jasmim

Recolhido no Algarve

Uma mulher tinha três filhas; indo a mais velha passear a uma ribeira, viu dentro da água um cravo, debruçou-se para apanhá-lo, e ela desapareceu. No dia seguinte sucedeu o mesmo a outra irmã, porque viu dentro da ribeira uma rosa. Por fim, a mais nova também desapareceu, por querer apanhar um jasmim. A mãe das três raparigas ficou muito triste, e chorou, chorou, até que tendo um filho, este quando se achou grande, perguntou à mãe porque é que chorava tanto. A mãe contou-lhe como é que ficara sem as suas três filhas.

– Pois dê-me minha mãe a sua bênção, que eu vou por esse mundo em procura delas.

Foi. No caminho encontrou três rapazes em uma grande guerreia. Chegou ao pé deles…

«Olá, que é isso?».

Um deles respondeu:

– Oh, senhor; meu pai tinha umas botas, um chapéu e uma chave, que nos deixou. As botas em a gente as calçando, e lhe diga: Botas, ponham-me em qualquer banda, é que se aparece onde se quer; a chave abre todas as portas; e o chapéu em se pondo na cabeça, ninguém mais nos vê. O nosso irmão mais velho quer ficar com as três coisas para si, e nós queremos que se repartam à sorte.

– Isso arranja-se bem, disse o rapaz querendo harmonizá-los. Eu atiro esta pedra para bem longe, e o que primeiro a apanhar é que há de ficar com as três coisas.

Assentaram nisso; e quando os três irmãos corriam atrás da pedra, o rapaz calçou as botas, e disse:

– Botas, levem-me ao lugar em que está minha irmã mais velha.

Achou-se logo numa montanha escarpada onde estava um grande castelo, fechado com grossos cadeados. Meteu a chave e todas as portas se lhe abriram; andou por salas e corredores, até que deu com uma senhora linda e bem vestida que estava muito alegre, mas gritou com espanto:

– Senhor! Como é que pôde entrar aqui?

O rapaz disse-lhe que era seu irmão, e contou-lhe como é que tinha podido chegar ali. Ela também lhe contou a sua felicidade, mas que o único desgosto que tinha era não poder o seu marido quebrar o encanto em que andava, porque sempre lhe tinha ouvido dizer que só se desencantaria quando morresse um homem que tinha o condão de ser eterno.

Conversaram bastante, e por fim a senhora pediu-lhe para que se fosse embora, porque podia vir o marido e fazer-lhe mal. O irmão disse que não tivesse cuidado porque trazia consigo um chapéu, que em o pondo na cabeça ninguém mais o via. De repente abriu-se a porta, e apareceu um grande pássaro, mas nada viu, porque o rapaz quando sentiu barulho pôs logo o chapéu. A senhora foi buscar uma grande bacia dourada, e o pássaro meteu-se dentro transformando-se em um mancebo formoso. Em seguida olhou para a mulher, e exclamou:

– Aqui esteve gente! – Ela ainda negou, mas viu-se obrigada a confessar tudo.

– Pois se é teu irmão, para que o deixaste ir embora? Não sabias que isso era motivo para eu o estimar? Se cá tornar, diz-lhe para ficar, que o quero conhecer.

O rapaz tirou o chapéu, e veio cumprimentar o cunhado, que o abraçou muito. Na despedida deu-lhe uma pena, dizendo:

– Quando te vires em alguma aflição, se disseres: Valha-me aqui o Rei dos Pássaros! Há de te sair tudo como quiseres.

Foi-se o rapaz embora, porque disse às botas que o levassem onde estava sua irmã do meio. Aconteceram pouco mais ou menos as mesmas coisas; à despedida o cunhado deu-lhe uma escama:

– Quanto te vire em alguma aflição diz: Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Até que chegou também a casa da sua irmã mais nova; achou-a em uma caverna escura, com grossas grades de ferro; foi ao som das lágrimas e soluços dar com ela muito magra, que assim que o viu, gritou:

– Quem quer que vós sois, tirai-me daqui para fora.
   
Ele então deu-se a conhecer, e contou-lhe como achou as outras duas irmãs muito felizes, mas só com o desgosto de não poderem os seus maridos desencantar-se. A irmã mais nova contou-lhe como estava com um velho hediondo, um monstro que queria casar com ela por força, e que a tinha ali presa por não lhe querer fazer a vontade. Todos os dias o velho monstro vinha vê-la para lhe perguntar se já estaria resolvida a tomá-lo como marido; e que ela se lembrasse que nunca mais tinha liberdade, porque ele era eterno.

Assim que o irmão ouviu isto lembrou-se do encantamento dos dois cunhados, e pensou em apanhar o segredo por que ele era eterno; aconselhou à irmã que fizesse a promessa de casar com o velho, se lhe dissesse o que é que o fazia eterno.

De repente o chão estremeceu todo, sentiu-se como um grande furacão, e entrou o velho, que chegou ao pé da menina e lhe perguntou:

– Ainda não estás resolvida a casar comigo? Tens de chorar todo o tempo que o mundo for mundo, porque eu sou eterno, e quero casar contigo.

– Pois casarei contigo, disse ela, se me disseres o que é que faz que nunca morras?

O velho desatou às gargalhadas:

– Ah, ah, ah! Pensas que me poderias matar! Só se houvesse quem fosse ao fundo do mar buscar um caixão de ferro, que tem dentro uma pomba branca, que há de pôr um ovo, e depois trouxesse aqui esse ovo, e mo quebrasse na testa.

E tornou a rir-se na certeza de que não havia ninguém que fosse ao fundo do mar, nem fosse capaz de achar onde estava o caixão, nem mesmo de o abrir, e tudo o mais que se sabe.

– Agora tens de casar comigo, porque já te descobri o meu segredo.

A menina pediu ainda uma demora de três dias, e o velho foi-se embora muito contente. O irmão disse para ela, que tivesse esperança, que dentro em três dias estaria livre. Calçou as botas e achou-se à borda do mar; pegou na escama que lhe deu o cunhado e disse:

– Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Apareceu logo o cunhado, muito satisfeito; e assim que ouviu o acontecido mandou vir à sua presença todos os peixes; o último que chegou foi uma sardinhinha, que se desculpou por se ter demorado porque embicou num caixão de ferro que está no fundo do mar. O Rei dos Peixes deu ordem aos maiores que fossem buscar o caixão ao fundo do mar. Trouxeram-no. O rapaz assim que o viu, disse à chave:
Royal key.png

– Chave, abre-me este caixão.

O caixão abriu-se, mas apesar de todas as cautelas, fugiu-lhe de dentro uma pomba branca.

Disse então o rapaz, para a pena:

– Valha-me aqui o Rei dos Pássaros.

Apareceu-lhe o cunhado, para saber o que ele queria, e assim que o soube mandou vir à sua presença todas as aves. Vieram todas e só faltava uma pomba, que veio por último desculpando-se, que lhe tinha chegado ao seu agulheiro uma antiga amiga que estava há muitos anos presa, e que lhe tinha estado a arranjar alguma coisa de comer.

O Rei dos Pássaros disse que ensinasse ao rapaz onde é que era o ninho onde a pomba estava, e lá foram, e o rapaz apanhou o ovo que ela já tinha posto e disse às botas que o levassem à caverna onde estava a irmã mais moça.

Era já o terceiro dia, e o velho vinha pedir o cumprimento da palavra da menina; ela, que já estava aconselhada pelo irmão, disse que se reclinasse no seu regaço; mal o apanhou deitado, com toda a certeza quebrou-lhe o ovo na testa, e o monstro dando um grande berro, morreu.

Os outros dois cunhados quebraram ao mesmo tempo o encantamento, vieram ali ter, e foram com as suas mulheres, que ficaram princesas, visitar a sogra, que viu o seu choro tornado em alegria, na companhia da filha mais nova, que lhe trouxe todos os tesouros que o monstro tinha ajuntado na caverna.
=========================
Notas Comparativas

Aparecem outras versões deste conto, nos Contos populares portugueses, n.º XVI; e nos Contos populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero, com o título O Bicho Manjaléu. (Rev. Brasileira, tomo VI, p. 120).

Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, de Brueyre, p. 81 e 119.

Nos Old Deccan Days, de Miss Frere, o conto do Punchkin versa sobre este mesmo assunto de um Mago que encanta todos, e cuja vida estava resguardada sendo impossível descobrir esse e talismã; é uma criança que livra sua mãe e sete tios, príncipes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 33 – 29 de outubro de 1887

Alá! por Alá! Cá tenho
Inda nos tristes ouvidos
O som duro, o som ferrenho,
Destes termos desabridos:

“Os liberais padecemos
Como os cristãos da Bulgária
Padecem duros extremos
Da turca espada nefária”.

E porque tenho uma veia
Com sangue de Mafamede,
Cousa que não acho feia,
Que não desdoura, nem fede;

Juro que andei azoinado
Com o dito do estadista,
Azoinado e envergonhado,
Sem voz, sem sabor, sem vista.

Mas (Alá é grande!) agora,
Agora, neste momento,
Chegam notícias de fora,
Da Bulgária e de espavento...

Vejo que o governo novo
Daquele povo inquieto,
Para aquietar o povo,
Achou um meio discreto.

Convidou madre Censura
Para rever os diários,
Enterrando a unha dura
Por modos crespos e vários,

Nos trechos em que apareça
Opinião tão à toa,
Que em tudo, se mostre avessa
Ao que ela entender que é boa.

Assim podem os censores
Riscando uma parte ou tudo,
Fazer dos espinhos flores,
Fazer do rudo veludo.

É pouco. Um dos jornalistas
Tantas fez que foi pegado,
E teve, de mãos artistas,
Não pouco, nem moderado,

Castigo de tal volume
Que era de ver... Cem açoites!
Quase lhe levam o lume,
Quase lhe dão boas noites.

E disseram-lhe ao soltá-lo.
Que se voltasse à escritura,
Haviam de castigá-lo,
De outra forma inda mais dura.

Ora, o que me espanta nisto
É que a gente que maltrata
Os pobres filhos de Cristo
São cristãos de pura nata.

Lá que impeçam tais diários,
Acho até bom, não somente
Nos dias incendiários,
Mas nos de vida corrente.

Nunca veio mal de um mudo,
E imprimir o que se pensa,
Tudo, tudo, ou quase tudo,
É desastre, não imprensa.

Assim, acho grão perigo
Que, em obséquio ao Ramalho
Ortigão, meu grande amigo,
Honra do engenho e trabalho,

Desse a Gazeta, uma festa,
De autores e jornalistas,
Cerrada e longa floresta
De opiniões e de vistas.

Conservadores sentados,
Em frente a republicanos,
E liberais afamados
Ao lado de ultramontanos.

Gente ruim, gente feia,
Merecia nessa noite,
Não festa, porém, cadeia,
Não Borgonha, mas açoite.

País de tal liberdade
E tolerância tamanha,
Vai com toda a alacridade
Ao lodo, ao delírio, à sanha.

Olhemos para a Bulgária;
Arruma, cristão amigo,
Simples pancada ordinária,
Cem açoites por artigo.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Luciano Bonfim (De Natureza Cíclica)

– Olho aberto, gritam os patriarcas.

Não poderiam se descuidar da estrada; também preocupavam-se com as crianças, impacientes o necessário para se tornarem presas fáceis. Da última vez encontraram apenas ossos espalhados sobre o terreno.

Antes mesmo de o orvalho se despedir das folhas, homens se armam de pedras, pedaços de madeira e outros objetos que possam ser atirados à distância. Armas de fogo seriam inúteis: os animais podem se assustar e a menor imprudência será um desastre.

A fumaça vinda das fogueiras e chaminés esconde a ponte, e a cerração fecha o anoitecer.

– Botem sentido...

Do pequeno morro, cadeiras, bancos e o chão servem de miradouro; algumas pessoas preferem montar guarda próximo à ponte de onde têm uma larga visão do horizonte, evitando, também, maior aproximação da fazenda do coronel Galdêncio, que expulsa a tiros quem ousa desobedecê-lo.

– A dor ensina...

Não cochilavam em serviço, e quando alguém desiste do posto, indo rumo ao sul ou para o cemitério, seus netos ou parentes mais próximos não deixam descansar os cuidados. Antes mesmo de aprenderem os seus nomes as crianças nutrem raiva e medo pelo bico de ferro.

– Urubu quando canta, não chove...

Aqueles que não possuem animais, e até se beneficiam quando antes das formigas e urubus encontram carne fresca, torcem pelo ‘inimigo’.

– Quem não pode com o pote...

Ao apito da máquina gritaram pelas crianças e atiraram pedras como se fossem seus últimos atos em vida... Seguiu-se uma cortina de fumaça que sumiu a esmo; agora, apenas os trilhos paralelos cruzam o horizonte...

Aliviaram os gestos e começaram outro inventário.

...

No dia seguinte, como acontecia desde que foi instalada a ferrovia, iniciam a espera...

– Olho aberto – murmuram alguns fantasmas...

 (Luciano Bonfim, Dançando com sapatos que incomodam)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Luciano Bonfim


Luciano Gutembergue Bonfim Chaves (Crateús, 1971) é graduado em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Ceará, e professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral. Faz mestrado em Educação na Universidade Federal do Ceará. Publicou: Janeiros Sentimentos Poéticos (Crateús: edição do Autor, 1992), de poesias, Dançando com sapatos que incomodam (Fortaleza: edição do autor, 2002) e Móbiles (Fortaleza: Edição do Caos, 2007), ambos de contos. Escreveu para o teatro: As mulheres Cegas (premiado no Festival de Teatro Amador de Acopiara – CE/2000) e Auto do Menino Encantado; e o cordel Como Donana Calunga venceu o mosquito da dengue, adaptado e encenado pelo Grupo Ambulantes.

            Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear. O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos ícones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperados”, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrível, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-lo”. Em “combinações aleatórias” as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.

Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e títulos de obras.

O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração” se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vida”.

Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variações”: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sítio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colmeia”.

            Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculo”, cuja poesia se inicia no título: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagens”. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagem”) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação” (clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem” (grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz” (absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blue”.

                Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradores”. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismos”.

Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém, em nenhum momento se percebe nos “móbiles” ou nos “passos” do primeiro livro o espírito de romance.

  Em “Terceiro Caderno” o ser fictício está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer” mais se assemelha a ensaísta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho” o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estava”. Em “Sobre Naturezas Humanas” o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanos”. Em “Por Causa do Gato Lilás”, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa”. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada” o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.

Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina” é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo” também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.” “Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade”.

                A chuva é outro elemento frequente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.” se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insone”.

Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresa”: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresa”. Belo deslinde, inusitado, embora realista.

                Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Gogh”), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas” a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza Cíclica”. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores” (ilegível para o leitor humano, talvez legível por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam” os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9” Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações” encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintas”. Em “Apesar de.” a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.

                Muitas de suas composições são bem curtas, constituídas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influências”.  “Intervenção Urbana” seria uma síntese de um acidente ou suicídio. Em “Original Lugar Comum” ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down” de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetora”.

                Luciano também aproveita com cuidado a sequência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardada”: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancos”. Ou em “Filhos de mãe d’água”.

                Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.