segunda-feira, 11 de junho de 2018

Caldeirão Poético 8


O Vagalume

Quem és tu, pobre vivente,
Que vagas triste e sozinho,
Que tens os raios da estrela,
E as asas do passarinho?

 A noite é negra; raivosos
 Os ventos correm do sul;
 Não temes que eles te apaguem
 A tua lanterna azul?

 Quando tu passas, o lago
 De estranhos fogos esplende,
 Dobra-se a clícia amorosa,
 E a fronte mimosa pende.

 As folhas brilham, lustrosas,
 Como espelhos de esmeralda;
 Fulge o iris nas torrentes
 Da serrania na fralda.

 O grilo salta das sarças;
 Piam aves nos palmares;
 Começa o baile dos silfos
 No seio dos nenúfares.

A tribo das mariposas,
 Das mariposas azuis,
 Segue teus giros no espaço,
 Mimosa gota de luz!

 São elas flores sem haste;
 Tu és estrela sem céu;
 Procuram elas as chamas;
 Tu amas da sombra o véu!

Quem és tu, pobre vivente,
 Que vagueias tão sozinho,
 Que tens os raios da estrela,
 E as asas do passarinho?


O Caroço

Eu comi ontem no almoço
A azeitona de um empada;
Depois botei o caroço
Sobre a toalha engomada.

Mas mamãe logo nota
E me ensina com carinho:
– O caroço não se bota
Sobre a toalha, meu benzinho.

O que ele me diz eu ouço
Sempre, com toda atenção!
A perguntei-lhe:– O caroço
Mamãe, onde boto então?

– Toda pessoa de linha,
De educação. de recato
O osso, o caroço, a espinha
Põe num cantinho do prato.

E eu então lhe respondo,
Com respeitoso carinho:
Mas meu prato é redondo,
Meu prato não tem cantinho...


Bolhas

Olha a bolha d’água
no galho!
Olha o orvalho!
Olha a bolha de vinho
na rolha!
Olha a bolha!
Olha a bolha na mão
que trabalha!
Olha a bolha de sabão
na ponta da palha:
brilha, espelha
e se espalha
Olha a bolha!
Olha a bolha
que molha
a mão do menino:
A bolha da chuva da calha !


A Casa e o seu Dono

Essa casa é de caco
Quem mora nela é o macaco.

Essa casa tão bonita
Quem mora nela é a cabrita.

Essa casa é de cimento
Quem mora nela é o jumento.

Essa casa é de telha
Quem mora nela é a abelha.

Essa casa é de lata
Quem mora nela é a barata.

Essa casa é elegante
Quem mora nela é o elefante.

E descobri de repente
Que não falei em casa de gente.


Os Sapos

Enfunando os papos, 
Saem da penumbra, 
Aos pulos, os sapos. 
A luz os deslumbra. 

Em ronco que aterra, 
Berra o sapo-boi: 
- "Meu pai foi à guerra!" 
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". 

O sapo-tanoeiro, 
Parnasiano aguado, 
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado. 

Vede como primo 
Em comer os hiatos! 
Que arte! E nunca rimo 
Os termos cognatos. 

O meu verso é bom 
Frumento sem joio. 
Faço rimas com 
Consoantes de apoio. 

Vai por cinquenta anos 
Que lhes dei a norma: 
Reduzi sem danos 
A fôrmas a forma. 

Clame a saparia 
Em críticas céticas:
Não há mais poesia, 
Mas há artes poéticas..." 

Urra o sapo-boi: 
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!" 
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". 

Brada em um assomo 
O sapo-tanoeiro: 
- A grande arte é como 
Lavor de joalheiro. 

Ou bem de estatuário. 
Tudo quanto é belo, 
Tudo quanto é vário, 
Canta no martelo". 

Outros, sapos-pipas 
(Um mal em si cabe), 
Falam pelas tripas, 
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!". 

Longe dessa grita, 
Lá onde mais densa 
A noite infinita 
Veste a sombra imensa; 

Lá, fugido ao mundo, 
Sem glória, sem fé, 
No perau profundo 
E solitário, é 

Que soluças tu, 
Transido de frio, 
Sapo-cururu 
Da beira do rio…

Adolfo Coelho (O Conde de Paris)

Havia um rei que tinha uma filha em idade de casar e arranjou-lhe o casamento com o conde de Paris. O Rei convidou o conde um dia para jantar, e quando estavam à mesa, o rei, a princesa, o conde e a corte toda, começou o jantar que foi muito animado, falando-se muito do próximo casamento da princesa. À sobremesa deixou o conde cair um grão de romã na barba, o qual o apanhou com o garfo e o comeu.

Então a princesa disse que não queria ser sua esposa, pois ele, em vez de deixar cair o grão de romã na toalha, o comeu. O conde levantou-se da mesa e jurou vingar-se, dizendo à princesa que ela o desprezava por tão pouco, mas que ainda havia de comer pão de romeiro, beber água de um charqueiro e comer papas em palheiro.

Passados dias, foi oferecer-se ao rei um negro para jardineiro e logo foi aceito. Mas o negro tinha umas maneiras tão delicadas, fazia raminhos tão bonitos, que oferecia à princesa, e com tais artes buscou, que ela se enamorou dele e ambos fugiram. Pelo caminho, a princesa disse que tinha fome, e como ali não houvesse de comer, o negro disse-lhe que, se ela queria, ele iria pedir um bocado de pão a um romeiro que viram no caminho. Ela então comeu o pão e disse: "Ai, conde de Paris, conde de Paris!" O negro perguntou: "Porque o não quis?"

Foram mais adiante, e a princesa disse que tinha sede, e o negro respondeu que ali só havia água de um lameiro. A princesa bebeu e tornou a repetir: "Ai, conde de Paris!" E o negro perguntou: "Porque o não quis?"

Mais adiante, o negro disse à princesa que tencionava ir ver se o conde de Paris os admitiria a seu serviço, pelo menos na cavalhariça. Chegaram ao palácio do conde e mandaram-nos recolher em um palheiro. O negro deixou a princesa só e voltou muito tarde, trazendo uma taça grossa cheia de papas, e disse à princesa que com muito custo as arranjara. Então a princesa perguntou com o que ela as havia de comer e ele disse-lhe que com a mão, e como não podia esperar pela taça, que as colocava na palha, que as comesse ela de lá. 

A princesa, como tinha muita fome, comeu como pôde. No outro dia, o negro foi dizer-lhe que, como era preciso que ela se empregasse em alguma coisa, fosse ajudar a amassar o pão, mas que visse, em todo o caso, se roubava alguma farinha, pois aquela  gente não lhes dava comer que lhes saciasse a fome. 

A princesa com muito custo roubou a farinha, mas não havia remédio, senão obedecer ao negro. Depois disto apareceu o conde de Paris, muito bem vestido e disse que era preciso revistar as mulheres para que não roubassem alguma farinha. Como encontraram a farinha com a princesa, a colocaram na rua, com grande vergonha dela e a mandaram outra vez para o palheiro. 

O negro foi ao palheiro e ela contou-lhe o sucedido, e ele respondeu-lhe que ela não tinha jeito para nada. No dia seguinte, o negro disse à princesa que estava para se bordar um vestido para uma princesa que ia ser mulher do conde, e como ela sabia bordar, podia se encarregar disso, mas que visse sempre se roubava algum bocadinho de ouro. 

Sucedeu-lhe porém o mesmo que lhe sucedera com a farinha. No outro dia, estava ela toda chorosa, apareceu-lhe o negro acompanhado de muitos criados e trazendo ricas toalhas e bacias de prata, disse-lhe que era preciso que ela se deixasse preparar, porque a mãe do conde desejava ver o vestido antes da noiva do conde o vestir, e como ela era possuía a estatura da dona do vestido, era necessário que o vestisse para ver se estava bom. 

Enquanto a princesa se vestia, o negro desapareceu, aparecendo depois o conde, o qual disse à princesa que o negro na verdade era ele, e que tudo quanto tinha feito era pelo grande amor que lhe tinha. 

Casaram e viveram sempre muito felizes.

 Fonte:
Adolfo Coelho. Contos Populares Portugueses.

III Concurso Nacional de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo: 30 de Julho)



REGULAMENTO

1.O III CONCURSO NACIONAL DE TROVAS DE CACHOEIRA DO SUL, promovido e realizado pela União Brasileira de TROVADORES, Seção Cachoeira do Sul, obedecerá a seguinte regulamentação:

2. Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética de 4 versos (ou linhas) setissilábicos, rimando o 1º com o 3º e o 2º com o 4º, expressando um sentido completo.

3. Os temas, âmbitos e gêneros serão os seguintes:

*ÂMBITO NACIONAL E INTERNACIONAL

Tema : PRINCESA (L/F)

Remessa: 

Sistema de Envelopes: 
A/C de Jaqueline Machado 
Rua Dionisio Marques, 1.033 –
Cep. 96503-530 Cachoeira do Sul – RS.

Por e-mail, para a fiel depositária: concurso.cachoeiradosul@gmail.com

*ÂMBITO ESTADUAL 
(para trovadores residentes no RS): 

Tema: ARROZAL (L/F)

Remessa: por e-mail, para: tadeuhagen@hotmail.com

4. Cada autor poderá enviar um máximo de 2 (duas) trovas inéditas.

5. Prazo para remessa: 30.07.18.

6. Serão constituídas comissões julgadoras, compostas por trovadores de reconhecido mérito literário, para ambos os temas.

7. A premiação, composta de diplomas, será enviada diretamente os vitoriosos via Internet. Haverá um mínimo de 3 vencedores, 3 menções honrosas e 3 menções especiais

JAQUELINE MACHADO 
PRESIDENTE 

domingo, 10 de junho de 2018

Conrado da Rosa (Jardim de Trovas)


A lágrima consagrada
aos pés da divina cruz,
será uma flor alcançada
no teu caminho de luz.

Ao chimarrear tão sozinho
no canto do avarandado,
a saudade é um passarinho
beliscando o meu passado.

À praia, mal comparando,
vou quando o vento não tem:
tu, a jangada chegando,
mas fingindo que não vem.

Aquele ranchinho triste,
feito à beira do caminho.
foi testemunha que existe
do quanto sofri sozinho.

A vida, grande carreira:
os anos formam a raia...
Chegando à cabeceira,
a morte está de tocaia.

Com jeito falas de amor,
mas algum truque me assusta...
Sabes bem te dar valor,
e sei bem quanto me custa.

Comparo o viver sozinho,
a que muita gente tem,
à tristeza de um caminho
onde não passa ninguém...

Contar estrelas eu sei,
desde criança aprendi,
não sei se todas contei,
mas contei todas que vi.

Cruzei todos os caminhos
sem saber onde iam dar...
-Pássaro de tantos ninhos
perde seu próprio lugar!

Deixem-me ficar quietinho,
numa quietude de monge.
Eu sei que todo caminho
leva a gente para longe...

Do triunfo não quero a palma,
nem da glória o pedestal:
Apenas a vida calma
do meu fundo de quintal.

Durmo tranquilo na rede,
me desperta a passarada...
Pela frincha da parede
entra um fio da madrugada.

Essa loirinha – ternura,
que passa envolta em quimera,
vem de noite e me procura,
mas transformada em pantera...

Essas cruzes que deparo
ao longo do meu caminho,
são de amigos, que não raro,
vão me deixando sozinho.

Esta viola que hoje tenho,
sonoridade sem fim,
é de um sagrado lenho,
capaz de tocar sem mim.

Este contraste covarde,
causa do meu desengano:
Tu és a brisa da tarde
eu, vento forte de outono.

Estes meus cabelos brancos,
semeados ao passar dos anos,
são devido aos solavancos
da estrada dos desenganos.

Há muito tempo passado,
renunciei à juventude,
mágoas eu trouxe ao meu lado,
felicidade eu não pude.

Já fui fonte de água pura,
praia, arroio a navegar...
Sou rio, cuja ventura
é correr... correr pro mar...

Mesclada de fantasia,
no meu sonho tu surgiste...
Mas veio a barra do dia
e, venturosa, fugiste.

Meu testamento está feito,
agora te remeti:
guarda sempre junto ao peito
cem trovas que fiz pra ti.

Minha estrela da manhã
brilha sobre o meu caminho!
Que minha alma tenha irmã,
que eu não seja tão sozinho.

Montei no lombo da noite
na busca de sonhos fundos;
a brisa foi nobre açoite
pra alimentar tantos mundos.

Na costa do Jaguarão,
bem neste extremo gaúcho,
é que nasceu este irmão.
que pra cantar não tem luxo.

Não fosse a tristeza minha,
que assim vai me consumindo,
o riso da tua boquinha
me faria andar sorrindo...

Narigudo, o “Zé Pegada”
foi campeão por um triz...
Pois na linha da chegada
ele avançou seu nariz.

Na terra, morre um poeta
e ninguém lembra jamais...
-Mas o Universo se inquieta
e uma estrela brilha mais.

Negrinho do Pastoreio,
mulato santificado,
me trás aqui pelo freio
aquele amor desgarrado.

No mar do meu casamento,
onde a esperança desmaia,
tu és a jangada ao vento,
fugindo, deixando a praia.

Nunca vai à igreja em vão
essa loura sem retovo:
De dia pede perdão,
de noite peca de novo.

Ó meu Deus, como sou feio,
tão na flor da mocidade!
Mas juro que não me apeio
do matungo da vaidade…

Pôe-se a criança a chorar,
depois ri, tudo é preciso...
Mas há sempre um despertar
entre a lágrima e o sorriso.

Por uma palha perdida,
brigam tanto, fazem cena...
E depois, no fim da vida,
será que valeu à pena?

Quando acode aos meus apelos,
faz o tempo rodopiar:
traz a noite nos cabelos
e a madrugada no olhar...

Quando pra sempre te fores,
muito além da solidão,
murcharão todas as flores
e os pássaros migrarão...

Quantos anos eu vivi
na velhice que componho...
Foram anos que perdi
na busca louca de um sonho.

Quem pilota este navio,
nas crespas ondas da crise?
Hoje se anda por um fio,
por mais que se economize!…

Quem tem a alma em revolta,
vê tudo confuso assim:
– Caminhos que não tem volta...
– Estradas que não tem fim...

Quero-quero, sentinela,
no meio da noite grita,
espalhando que é por ela
que minha alma anda proscrita...

Saudade... um barco partindo,
por entre brumas de esguio...
Lembrança me dividindo
na última curva do rio!

Saudade, vaca tambeira,
que volta no entardecer
quando, à sombra da parreira,
o mate pego a sorver.

Tudo tem igual valor,
no meu tranco de solteiro:
-Caso com o último amor,
mas lembrando do primeiro...

Uma noite não é nada
quando sonhar é tão lindo,
pois vem logo a madrugada
e meus sonhos vão fugindo.

Vamos fazer o correto,
de nossa vida um resumo:
tu serás meu objeto,
eu serei o teu consumo...

=============

Conrado da Rosa nasceu em Jaguarão/RS, a 28 de novembro de 1930. Poeta e Trovador, militar reformado, casado com a trovadora Doralice Gomes da Rosa. Foi na residência do casal, naquele tempo localizada na rua Itapucai, no Bairro Cristal, em Porto Alegre, que no dia 8 de março de 1969 foi criada e instalada a União Brasileira de Trovadores, da qual Conrado foi associado até o fim da sua vida. Conrado participou da coletânea Trovadores do Brasil - 2º Volume, organizada por Aparício Fernandes, e das antologias Cantares do Sul e Trovadores do Rio Grande do Sul.

Fonte:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre/RS. Trovas de Doralice Gomes da Rosa e Conrado da Rosa. Coleção Terra e Céu, vol. XXVII. Porto Alegre/RS: Texto Certo, 2016.

Malba Tahan (Homens extraordinários)

Na gloriosa cidade de Bagdá — a pérola do Islã — vivia a jovem Arusa, uma menina que, na opinião dos poetas de seu tempo, era mais linda e mais encantadora do que a quarta lua do mês de Ramadã.

    Raras vezes saiu Arusa do grande serralho do pai, onde vivia como prisioneira, vigiada por eunucos impiedosos, de rostos macilentos e olhos empapuçados. Graças, porém, aos bons ofícios de uma velha intrigante — que a pretexto de negociar em véus se metia em todos os haréns — a formosa menina travou relações com um jovem bagdali chamado Chafik e com ele mantinha constante e secreta correspondência.

    O pai de Arusa, na ignorância completa das inclinações amorosas da filha, resolveu dá-la em casamento a um rico cheique chamado Hamed Khamil, homem generoso e nobre, que oferecera pela mão da graciosa menina um dote de vinte camelos e dez mil dinares.

    Quando Arusa foi informada de que o pai, movido por odiosa ambição, pretendia casá-la com outro homem — separando-a para sempre do seu apaixonado Chafik — tamanho desespero a invadiu que chegou a desmaiar. Muitos dias passou fechada em seus aposentos, triste e abatida, sem subir ao terraço em que à tarde galeava as suas graças para encanto de todos os olhares. Com o indispensável auxílio da ardilosa anciã, conseguiu a jovem encontrar-se, em rápida entrevista, com o seu namorado, a quem contou a desventura que os ameaçava se, na verdade, o Gênio da Separação estendesse sobre eles a sua asa negra, partindo-lhes o laço de tão pura afeição.

    Não vale a pena descrever o eloquente desespero do nosso herói bagdali, ao saber que pretendiam atirar a sua Arusa para os braços de um muçulmano rico, velho amigo do cádi e homem cheio de prestígio na corte do califa Harum al-Raschid.

    — Que infeliz que sou! — deplorava o mancebo. — Como poderei arrancar-te impunemente das garras desse homem que tem o ouro e o poder nas mãos?

    — Não te preocupes com a minha sorte — disse-lhe, carinhosamente, a linda menina, procurando consolá-lo. — Nem tudo está perdido. Allah é grande! No dia do meu casamento fugirei da casa de meu marido e juntos iremos para onde ninguém nos possa encontrar.

    Diante de tal promessa, acalmou-se o arrebatado Chafik, vendo desanuviar-se o seu sonho de amor, e esperou o dia em que Arusa deveria desposar o seu invencível rival.

    Alguns meses depois, com inexcedível pompa, realizou-se o brilhante casamento da formosa Arusa com o rico Hamed Khamil. O suntuoso palácio encheu-se de convivas e tão grande foi a concorrência de amigos, parentes e admiradores que a noiva rodeada sempre pelas esposas e companheiras, não encontrou ensejo para a almejada fuga.

    Já bem adiantada ia a noite, quando o último convidado deixou o palácio dos recém-casados. Hamed Khamil tomou delicadamente a esposa pela mão e conduziu-a aos seus luxuosos aposentos; aí, pediu-lhe que erguesse o véu e o deixasse ver, pela primeira vez, o rosto em que as graças se esmeraram em profusos dons.

    Quando Arusa retirou o véu, Hamed Khamil ficou deslumbrado. Não poderia imaginar que a esposa fosse tão linda, tão sedutora. Louvado seja Allah, o Exaltado, que soube reunir tantas graças em dois fúlgidos olhos, tanta beleza e harmonia na curvatura dos lábios rubros!

    Grande, porém, foi a surpresa do rico Khamil, quando notou que Arusa parecia muito triste e dominada por infinito desgosto. E como no peito se lhe acendesse, desde logo, grande paixão pela jovem, ficou apreensivo por vê-la tão acabrunhada e perguntou-lhe:

    — Por que estás tão pesarosa? Não foi por tua vontade que casaste comigo? Vamos, conta-me, ó Flor do Islã, o motivo da mágoa que de tão quentes lágrimas enche os teus lindos olhos!

    Arusa, sem poder já reprimir os seus sentimentos, contou àquele que acabava de ser seu esposo toda a verdade, sobre o seu antigo namoro, e relatou-lhe, minuciosamente, a combinação estranha que fizera com seu apaixonado, para fugir daquela casa, no próprio dia das núpcias.

    — Desgraçadamente, porém — soluçava a jovem — não me foi possível efetuar qualquer plano de fuga e vou, por isso, deixar de cumprir a palavra que dei ao noivo de meu coração.

    — Pelo manto do Profeta! — exclamou o marido. — Não seja isto motivo para tão grande mágoa. Não quero servir de empecilho à realização de teus projetos e não posso obrigar-te a quebrar um juramento. Já que prometeste, vais cumprir fielmente a tua louca promessa!

    E o rico Khamil, com grande serenidade, tomou novamente pela mão a linda esposa, levou-a através de longos corredores até à porta que dava saída para um lanço deserto da rua e disse-lhe, delicadamente:

    — És livre, completamente livre, ó filha de meu tio. Podes partir. Irás para a companhia de teu namorado e com ele poderás ficar o tempo que quiseres. Se algum dia te arrependeres do passo que hoje dás, poderás voltar sem receio para a minha companhia, pois és, pela vontade de Allah, a minha esposa legítima e inspiras-me grande e puro amor!

    A jovem noiva mal podia disfarçar o espanto que a dominava. Custava-lhe acreditar na sinceridade do marido. A princípio julgou que o nobre Khamil estivesse a gracejar. Depressa, porém, se convenceu de que o rico cheique nunca falara tão sério e lhe concedia estranha e inteira liberdade, permitindo que ela fosse, naquela mesma noite, para onde muito bem lhe aprouvesse.

    Depois de agradecer a generosidade do esposo, a apaixonada Arusa partiu, apressada, pela rua escura e silenciosa, no fim da qual ficava a casa do namorado.

    Diz, porém, o velho provérbio árabe, que tem passado de geração em geração, através dos séculos: “A imprudência é irmã do arrependimento”.

    Mal a jovem se havia afastado da casa do marido, foi surpreendida por audacioso ladrão, que, oculto num vão de muro, esperava certamente pelo momento propício a algum ataque.

    — Pelas barbas de Omar! — murmurou o beduíno. — Parece-me que vejo, ali sozinha, uma mulher ricamente trajada! Se não me iludo, ela traz muitas joias! Positivamente estou hoje muito feliz!

    E o salteador, que era um desses terríveis nômades do deserto, surgindo pela frente de Arusa, intimou-a a parar imediatamente,  e ameaçando-a  com um punhal, ia despojá-la das ricas joias de noivado quando notou que a mulher que assaltava era uma encantadora menina, linda como uma das quarenta mil huris que povoam o Céu de Allah!

    — Que ventura a minha — pensou o ousado beduíno. — Encontrar uma formosa donzela coberta de preciosos adornos! Vou raptá-la e levá-la sem perda de tempo para a minha tenda no deserto.

    Veio-lhe, entretanto, o desejo de saber por que motivo se encontrava aquela deidade perdida em hora tão tardia, a caminhar sozinha pelas ruas mais perigosas da cidade.

    Interrogada pelo facínora, a jovem contou-lhe o que havia ocorrido, o seu plano de fuga, o seu desespero, repetindo-lhe finalmente as palavras de seu generoso marido.

    — Por Allah! — exclamou o ladrão — posso garantir que o teu marido é um homem extraordinário! Não é possível admitir-se que haja no mundo outro filho de Adão capaz de proceder do mesmo modo na noite do casamento!

    Depois de pequena pausa, o beduíno ajuntou:

    — Eu, porém, quero provar, de modo expressivo, que sou um homem mais extraordinário ainda do que o teu espantoso marido. Sabes por que? Poderia, neste momento, entregue e abandonada, como estás, ao meu capricho, poderia, repito, despojar-te de tuas riquíssimas joias e raptar-te, levando-te para a minha tenda. Tal, porém, não será a minha forma de proceder. Ao contrário. Vou conduzir-te, com toda segurança, até a casa de teu namorado. Não quero que continues sozinha o teu percurso, pois algum sacripanta ou aventureiro sem alma poderia fazer-te grande mal!

    E, isto dizendo, o ladrão acompanhou a jovem até à casa de Chafik, e só se afastou depois de a ter visto entrar na residência do namorado.

    Seria difícil, senão impossível, descrever todas as mostras de alegria, todo o arrebatamento do apaixonado Chafik ao ver chegar a sua amada, em exato cumprimento de tão bela promessa de amor.

    — Louvado seja Allah, o Clemente! — exclamou, abraçando a jovem. — Conseguiste, enfim, iludir o teu ciumento marido? Conta-me tudo o que se passou, pois estou ansioso por conhecer as peripécias de tua fuga!

    — Muito te enganas, ó Chafik — retorquiu a jovem. — Não iludi meu marido e não seria possível ludibriar um homem tão generoso e inteligente. Se aqui vim ter a esta hora, foi unicamente porque ele próprio assim o quis!

    E a encantadora Arusa relatou ao namorado tudo o que se passara, repetindo-lhe fielmente as palavras do marido, e narrando-lhe também, sem nada ocultar, a singular aventura ocorrida com o beduíno ladrão que a surpreendera sozinha em rua deserta e escura.

    — Quero crer, minha querida, que o teu marido é um homem extraordinário — confessou Chafik. — Estou certo de que não haverá no mundo de Allah outro marido que proceda como ele procedeu! É evidente, porém, que o ladrão que encontraste casualmente no caminho é ainda mais extraordinário do que o teu marido! Quero, entretanto, provar que sou um homem mil vezes mais extraordinário do que ambos!

    E, como a jovem o fitasse surpreendida, sem compreender o sentido de tais palavras, Chafik prosseguiu:

    — Bem sabes quanto te amo. Bem conheces a ansiedade com que, há mais de dois anos, eu contava os dias à espera deste dia venturoso! Bem podes avaliar o meu tormento, vendo-te casada com outro! Pois bem: apesar de tudo, vou levar-te, agora mesmo, à casa de teu marido e entregar-te àquele meu odiento rival!

    E isto dizendo, tomou-a nos braços fortes e, carregando-a como a uma criança, encaminhou-se pela rua extensa que ia ter ao palácio do rico cheique Hamed Khamil...

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Caldeirão Poético 7


Meus oito anos

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino de amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado de estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!


O Remédio

A Amelinha está doente, 
Chora, tem febre, delira; 
Em casa, está toda gente 
Aflita, e geme, e suspira. 

Chega o médico e a examina. 
Tocando a fronte abrasada, 
E o pulso da pequenina, 
Diz alegre: “Não é nada! 

Vou lhe dar uma receita. 
Amanhã, o mais tardar, 
Já de saúde perfeita 
Há de sorrir e brincar.” 

Vem o remédio. Amelinha 
grita, faz manha, esperneia: 
– “Não quero!” O pai se avizinha, 
Mostrando-lhe a colher cheia: 

“Toma o remédio, querida! 
Dar-te-hei como recompensa, 
uma boneca vestida 
De seda e rendas, imensa…” 

– “Não quero!” Chega a titia: 
“Amélia é boa, não é? 
Se fosse boa, teria 
Toda uma arca de Noé…” 

– “Não quero!” Prometem tudo: 
Livros de figuras cheios, 
Um vestido de veludo, 
Brinquedos, jóias, passeios… 

Teima Amelinha. faz manha. 
E diz o pai, já com tédio: 
-” Menina! você apanha, 
Se não toma este remédio!” 

E nada! a menina grita, 
Sem querer obedecer. 
Mas nisto, a mamãe aflita, 
Põe-se a chorar e gemer. 

Logo Amelinha, calada, 
Mansa, a colher segurando, 
Sem já se queixar de nada, 
Vai o remédio tomando. 

– “Então? mau gosto sentiste?” 
Diz o pai… E ela, apressada: 
– “Para não ver mamãe triste, 
Não sinto mau gosto em nada!”


A Órfã na Costura

Ela lhe ensinou a levantar suas mãos puras  e inocentes para o céu, a dirigir seus primeiros  olhares a seu Criador. 
Flechier

Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu amor. 
Seu cabelo era tão louro, 
Que nem uma fita de ouro 
Tinha tamanho esplendor.

Suas madeixas lúcidas 
Lhe caíam tão compridas, 
Que vinham-lhe os pés beijar. 
Quando ouvia as minhas queixas, 
Em suas áureas madeixas 
Ela vinha me embrulhar.

Também quando toda fria 
A minha alma estremecia, 
Quando ausente estava o sol, 
Os seus cabelos compridos, 
Como fios aquecidos, 
Serviam-me de lençol.

Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu amor. 
Seus olhos eram suaves, 
Como o gorjeio das aves 
Sobre a choça do pastor.

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu! 
Tenho em meu peito guardadas 
Suas palavras sagradas 
Co'os risos que ela me deu.

Os meus passos vacilantes 
Foram por largos instantes, 
Ensinados pêlos seus. 
Os meus lábios mudos, quedos 
Abertos pêlos seus dedos, 
Pronunciaram-me: — Deus!

Mais tarde — quando acordava 
Quando a aurora despontava, 
Erguia-me sua mão. 
Falando pela voz dela, 
Eu repetia singela 
Uma formosa oração.

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu l 
Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era tudo e tudo meu.

Este pontos que eu imprimo, 
Estas quadrinhas que eu rimo, 
Foi ela que me ensinou. 
As vozes que eu pronuncio, 
Os cantos que eu balbucio, 
Foi ela quem mos formou.

Minha mãe'. — diz-me esta vida, 
Diz-me também esta lida, 
Este retroz, esta lã. 
Minha mãe! — diz-me este canto, 
Minha mãel — diz-me este pranto, 
— Tudo me diz: — minha mãe! —

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu! 
Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era tudo e tudo meu