domingo, 12 de novembro de 2023

Amadeu de Queiroz (Chão de terra preta)

Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: " O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.

Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa - casa de pobre - para seu abrigo: a  companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família - os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiro repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com  com gente da vizinhança e ficou  teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.

Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para  pagar os empréstimos.

Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais  perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego  pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado - o Chico, do Macuco: - depois - Chico Macuco, e por fim, só Macuco....

Mas de seu, ficou ainda com muita coisa - ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a  família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros...Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.

E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.

O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.

A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.

De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso - leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa.  A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o caldeirãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar, o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...

Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.

- Três por duzentos réis? Ota!

- ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?

- Açucre.

- Açucre antão é duro? Boba...

Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um emplastro de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com cânfora; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava...Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então  pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.

Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...

De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fumo, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:

O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é - dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois, dá com fartura, sem trabalho. 

Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.

- O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar - mantimento, remédio e roupa - eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio, você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.

Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.

Até chegar setembro - o que é o tempo de semear-se o fumo - Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses - prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se - Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.

O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol..

A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.

O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes...Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada - seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.

Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão - amarelo como cana de reino - cuspia na palma da mão - amarela e lustrosa - e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra tem olhar sem vida;  os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...

Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.

A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra... O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.

Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a   luz entrar: as galinhas desciam do  mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa - a mulher e as crianças - cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.

O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se  acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.

No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal...Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.

Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco - logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.

Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:

- Agora, vamos descansar um pouco...

Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro; " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...

O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem apagar.

E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão - abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.

O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.

O tempo corria bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.

O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.

Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem um folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.

O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheita, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto el, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:

- Como é que vai o seu gasto, na vila?

- Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...

- É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...

O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixava o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo.

O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!

E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha - que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste - trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.

As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.

A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que  deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco foçando.

A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...

- Corta, gente! 

-  Dói, mãe...

- Corta, gente!

Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira - meia dúzia de varas - foi tirada ali mesmo...

Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima - a feição da folha - ficava toda empipocada.

Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura - que a colheita se deve fazer no limpo - a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...

- Mãe, ocê é que nem formiga.

- Ocê é que nem formiga-carregadeira...

A colheita se faz aos poucos, e leva tempo - cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.

Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.

O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí, o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.

Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheita se acabou, todas as folhas foram torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.

O fumal ficou que era vara só...

No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem  num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos - não se contando o ajutório da mulher - com uma sobra de setenta e cinco mil réis...

O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro... Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverte-se.

O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.

- Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.

O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma   palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:

- E agora, o que eu hei de fazer?

- Pois, uaí! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.

O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...

A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...

Acabou-se a poda. quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.

À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...

De repente a tarde entristeceu.

Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe uma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...

A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.

Fonte: Contos da Tita. Disponível em Domínio Público.

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – 4, final

CONTANDO A HISTÓRIA

1 – Inclua interrogatórios com os suspeitos em locais diferentes e aos poucos. 

O texto vai ficar chato se todos os interrogatórios acontecerem no mesmo lugar. Portanto, coloque os personagens em ambientes diferentes: a cena do crime, a delegacia de polícia, a rua etc.

2 – Dê ao leitor a chance de solucionar o mistério aos poucos. 

Você pode até citar uma impressão digital ou pilha de lanterna esquecida no fim da narrativa, mas isso é injusto com o leitor. Mostre todas as pistas a ele ao longo da história.

Por exemplo: diga que o assassino esqueceu a lanterna na cena, mas que tinha levado todas as outras coisas do local; mostre também os testes com as impressões digitais no acessório.

3 – Despiste o leitor. 

As pistas podem apontar para uma ou várias pessoas que pareçam candidatas perfeitas para o crime, mas que acabem sendo reveladas como inocentes. Essa tática é muito comum e você pode usar e abusar dela.

Por exemplo: talvez um dos suspeitos goste de fazer trilha no meio do mato e haja pegadas de terra na cena do crime. Na verdade, pode ser que essas pegadas sejam de uma mulher que passou no local com as solas dos sapatos sujas.

4 – Atenha-se fielmente ao enredo. 

Deixe sempre um gosto de quero mais ao longo do livro para intrigar o leitor. Lembre-se de que a narrativa é a sua arma mais importante e não se perca. Siga essa história do início ao fim.

Traga um elemento novo para a história a cada capítulo. No fim de cada trecho do livro, fisgue o leitor para ele continuar explorando o que aconteceu: apresente novas pistas que levem a um suspeito diferente, por exemplo.

5 – Inclua uma reviravolta no fim do enredo. 

Todo bom suspense traz uma reviravolta que pega o leitor de surpresa no final. Não pense em nada abrupto ou injusto, e sim que tenha lógica e esteja ligado às pistas que você soltou ao longo da narrativa.

Por exemplo: talvez as pistas indiquem que o assassino é o filho único de um milionário porque era o único com motivo aparente; no entanto, a verdade vem à tona: o homem teve uma filha fora do casamento e que também receberia a herança. Nesse caso, ambos se encaixam no papel de suspeitos.

O clássico Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie, também tem um belo exemplo de reviravolta. No fim, o leitor descobre que todos os suspeitos agiram em conluio para cometer o crime.

6 – Pense na inversão e na resolução após o clímax. 

Depois que o assassino for pego, reflita se os personagens mudaram para melhor ou pior e mostre-os retomando a rotina.

Por exemplo: talvez o detetive extrapole a linha da ética e decida deixar a profissão. Nesse caso, a nova realidade dele vai ser buscar um emprego. Pode ser também que o detetive não tenha experiência, mas acabe sendo promovido por resolver um caso tão complicado.

DICAS

Trace uma meta todos os dias. Você pode pensar em termos de palavras, como escrever 500, ou tempo, como três horas. O importante é se ater a essa rotina.

Leia obras consagradas do gênero suspense para se familiarizar com ele.

Referências
http://www.writersdigest.com/tip-of-the-day/discover-the-basic-elements-of-settingin-a-story
https://www.dailywritingtips.com/how-to-structure-a-story-the-eight-point-arc/
https://www.esquireme.com/content/20250-how-to-write-a-murder-mystery
http://www.writing-world.com/mystery/clues.shtml
https://www.thebalancecareers.com/top-rules-for-mystery-writing-1277089
https://www.thecreativepenn.com/2014/01/17/writing-crime/
http://elizabethspanncraig.com/mystery-writing-tips/writing-cozy-mystery-suspects/
http://elizabethspanncraig.com/mystery-writing-tips/writing-cozy-mystery-suspects/
https://www.thebalancecareers.com/top-rules-for-mystery-writing-1277089
09/11/2023 00:43 Como Escrever um Mistério de Assassinato (com Imagens)
https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Mistério-de-Assassinato 9/9
https://www.thebalancecareers.com/top-rules-for-mystery-writing-1277089
http://elizabethspanncraig.com/mystery-writing-tips/writing-cozy-mysterysuspects/
https://www.thecreativepenn.com/2014/01/17/writing-crime/
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http://www.springhole.net/writing/things-about-death-dying-and-murder-writersneed-to-know.htm
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sábado, 11 de novembro de 2023

Trova ao Vento – 004


 



Mensagem na Garrafa – 31 –

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Aparecido Raimundo de Souza
Vila Velha/ES

COMPARAÇÕES

Gostar de alguém não é morar em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou qualquer outra cidade importante, mas morar com ela, de preferência dentro de seu coração.

Gostar de alguém é lhe dar as mãos estendidas de carinho, depois de lhe ofertar a vida com esperanças de um porvir melhor.

Gostar de alguém é participar ativamente do seu dia a dia, ouvir e entender sem fazer sombras, por menores que sejam, em suas ideias. 

Gostar de alguém é apoiar todos os seus planos sejam eles quais forem, mesmo os mais loucos e desconexos, incentivá-la dando-lhe o apoio moral necessário, perseverando juntos, como se fossem uma só pessoa e, sobretudo, não abandonar, jamais, a própria personalidade.

Gostar de alguém é chegar de mansinho, acompanhar, ver e sentir, compreender e não fazer perguntas desnecessárias, nem meter o nariz aonde não foi chamado.

Gostar de alguém é confiar plenamente nela e envolvê-la com doçura, com muita ternura. Fazê-la se sentir cativa da sua presença, prisioneira dos seus desejos, porém, sem querer saber se existe o lado contrário, a parte escura, o esconderijo secreto, porque amando e, consequentemente gostando de verdade, com a alma, nunca, durante esse tempo, será tão imensa a contrariedade.

Gostar de alguém é uma coisa muito sublime e por demais complexa. Algo que às vezes está longe e acima do alcance das nossas vontades e entendimentos.

Gostar de alguém é como buscar a Deus sem intermediários, sem meios termos.

Gostar de alguém é dar e doar a alma e não esperar calculadamente pelo espírito.

Gostar de alguém é passar a noite sonhando com ela, imaginando-a nos braços, gozar esses instantes como se fossem eternos e não se preocupar se dia seguinte, o sol quente ou o vento forte vierem interromper suas fantasias batendo forte nas vidraças da janela.

Gostar de alguém é tentar ser sempre o prometido, o príncipe encantado dos contos de fada. Aquele cavalheiro solitário que chegará de um momento para outro, montado num lindo cavalo alazão e depositará cheio de reverência, um beijo em meio a sua testa, como o Romeu buscando a sua Julieta eterna. 

Gostar de alguém é fazer o impossível dentro do possível para não quebrar o encanto e nunca — nunca cobrar as promessas que não vingaram.

Gostar de alguém é ter silêncio no instante exato, respostas firmes na hora precisa, no minuto derradeiro e, ainda, ter o sopro da vida em abundância, para tentar suprir o vazio, a lacuna deixada por alguém que o destino levou para longe, numa viagem por entre estrelas de primeira grandeza, mas que se sabe, não terá volta.

Gostar de alguém é gritar, pular e fazer sorrir a companheira de todas as horas. É transformar o feio numa flor perfumada e de rara beleza. É esculpir a amada num quadro indescritível, mesmo quando pintar em seu rosto o mau humor motivado pelas incoerências, ou pelas horas tristes de angústias e aflições. 

Gostar de alguém é ser como um anjo no momento que os dissabores insistirem em marcar presença constante ao seu lado.

Gostar de alguém é entender sempre e não querer ser o eterno entendido. É acompanhar a ilusão, passo a passo, enquanto ela existir, procurar vivê-la sem cogitações, e, como a uma fogueira, alimentá-la e intensificá-la sempre, ―ad eternum.

Gostar de alguém é saber a hora, o instante exato de se afastar antes do tédio e da monotonia baterem a porta, do copo transbordar todas as mágoas guardadas, e, ainda, das lágrimas brotarem por pequenas coisas fúteis que não foram ditas. 

Gostar de alguém é passar por cima dos problemas que ficaram sem solução. É saber como chegar ao minuto fatal de dizer adeus sem constrangimentos, e, ao fazê-lo, manter a cabeça erguida, sem a expectativa da volta ou de uma nova reconciliação.

Gostar de alguém é se render de corpo inteiro, sofrer por amor até a exaustão, mergulhar de cabeça, às cegas, num voo desconhecido, como Ícaro em busca do impossível, ou como o andarilho, cujo paradeiro ignora o desfecho que lhe aguarda no final da estrada incerta.

Gostar de alguém é dizer coisas lindas, é sussurrar juras de afeições profundas. É sentir as entranhas queimando, o corpo ardendo em febre acima de quarenta graus. É sentir a alma leve e solta, a vida fluindo como se fosse uma pluma na imensidão. É ter o coração batendo acelerado, descompassado, como se quisesse, de repente, saltar peito afora, criar asas e voar por espaços nunca imaginados.

Gostar de alguém é efetivamente nunca se arrepender, amanhã, depois, ou algum dia (sempre há um dia), por ter se entregue tanto, por ter anulado sonhos, ou deixado de fazer isto ou aquilo. Gostar de alguém é perder o rumo, o prumo, o pulso, a visão do que é certo ou errado, a ponto, inclusive, de não saber o caminho da volta, o porto amigo para tentar reconstruir a si mesmo dentro do vazio enorme que ficará martelando, pungente, como uma ferida aberta que se nega a cicatrizar.

Gostar de alguém é, por derradeiro, ter a coragem suficiente para correr atrás dela no instante exato em que ela tomar a decisão de sair porta afora, com as roupas do corpo, deixando, no ar, um vazio grande demais, uma inquietude intransigente, que logo se transformará em esquálida e intransponível solidão.

Fabiane Braga Lima (Clara)

Sou o nome dela por acaso! Clara, um lindo nome, daquela mulher que morava na frente da minha casa. Passava as manhãs tomando banho de sol, isto é quando tinha sol. Mas voltamos ao início, que é um bom lugar para se começar, ela passava as manhãs de sol ameno se banhando de luz solar. Fora assim por meses a fio, até a Maria das Saudades, minha conhecida do bairro, passou na frente da casa dela e simplesmente disse: — Bom dia professora Clara! Um mistério para se dissipar, um bem pequeno a bem da verdade.

Não me contive e fui ter uma conversa com Maria das Saudades e logo perguntei quem era  minha nova vizinha. E como ela foi parar na cadeira de rodas, eu estava afoita e queria detalhes atômicos. 

— Como ela foi parar na cadeira de rodas eu não sei dizer, ela foi a minha professora no jardim de infância! Simples assim! Ela me acompanhou por anos, uma excelente professora. Todos a amam, agora eu tenho que ir! 

Fui acompanhando com o olhar Maria das Saudades sumir rua abaixo, andava aos saltos, chamando a atenção de todos naquela rua bucólica. Mais tarde soube que a professora Clara, dedicou toda a vida à educação. Filha de família pobre, estudou, entrou na faculdade e dedicou toda a vida à educação. Casou tarde e teve três filhas. E o que a levou a decadência, eu não soube e nem queria saber. 

Aí veio a tormenta, os gritos, era Clara e seu marido, que discutiam e discutiam. Não tinha hora certa, só o turbilhão quebrando a rotina daquela rua, daquele pequeno bairro afastado. Porquê brigavam? Por tudo, creio eu! Mas o que mais me tocava eram as meninas, que raramente saíam da casa e sempre que saíam pareciam sempre tristes e assustadas. 

Um dia de sol ameno, vi o casal,  de olhar severo o elegante marido de Clara a empurrava, ela triste na cadeira de rodas. Para onde foram eu não sei dizer, só sei que o marido da professora Clara, voltara em poucos minutos, logo não foram muito longe. Vi o marido de Clara adentrar sorridente na casa de uma vizinha, quem era? Era uma jovem muito bonita, uma ave noturna, La belle de jour, era assim que a chamavam. O marido da professora Clara, ficou ali por pouco tempo, saiu e foi buscar a esposa sabe-se lá onde. Pois bem, o fato em si não chamou a atenção de ninguém. 

Um dia não me contive e fui ter uma conversa com o marido de Clara, Eu diante daquele homem alto e bem vestido: — E as crianças pequenas? Elas ficavam sozinhas por um bom tempo, também não frequentavam escola! Ele nada disse, mas o semblante assustado com a reação raivosa do senhor, eu foi embora. Tive que me afastar daqui. 

Não demorou para descobrir por vias tortas, que o motivo das brigas do casal, era porquê Clara dava aulas para as filhas. E, ali estava uma guerreira, que nunca se deixou levar, pela estupidez do esposo abusivo. Com as mãos ensanguentadas em dores, mas com alma tranquila e serena, nada impediu aquela mãe de alfabetizar as suas filhas, nem mesmo suas pernas paralisadas.

Um ano depois, fiquei sabendo que as filhas da professora Clara estavam estudando e vivendo como todas as crianças merecem. Quanto ao marido de Clara? Ele deixou a família, esposa em uma cadeira de rodas, debilitada, filhas ainda pequenas, homem amargurado, ele nunca quis aceitar a verdade. Toda criança merece um estudo adequado!

Fonte: Enviado por Samuel da Costa   

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 9 -


DESALENTO

Quando o meu pensamento se transporta
Às praias de além-mar,
Sinto no peito uma tristeza imensa
Que manda-me chorar.

É que vejo morrerem, uma a uma,
Santas aspirações,
E voarem com os pássaros saudosos
As minhas ilusões...

Nunca julguei que a terra fosse um túmulo
De sonhos juvenis,
Sorrindo acreditei que aqui, no mundo,
Podia ser feliz...

Enganei-me: — a tristeza, que me oprime
O coração sem luz...
Como o Sol o derradeiro raio
Nos braços de uma cruz...

A trêmula saudade que entristece
E faz desfalecer;
Essa agonia lenta que me inspira
Desejos de morrer...

Tudo me diz que a vida é o desengano,
A morte da Ilusão,
E o mundo um grande manto de tristezas
Que enluta o coração.
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DOENTE

A lua veio... foi-se... e em breve ainda,
Há de voltar, a doce lua amada,
Sem que eu a veja, a minha fada linda,
Sem que eu a veja, a minha boa fada.

Ela há de vir, Ofélia desmaiada,
Sob as nuvens do céu na alvura infinda
Do seu branco roupão, noiva gelada,
Boiando à flor de um rio que não finda.

Ela há de vir, sem que eu a veja... Entanto,
Com que tristezas e saudoso encanto
Choro estas noites que passando vão...

Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno:
Olha que murcha à falta de sereno
O lírio roxo do meu coração!
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ESTRADA A FORA

Ela passou por mim toda de preto,
Pela mão conduzindo uma criança...
E eu cuidei ver ali uma esperança
E uma Saudade em pálido dueto.

Pois, quando a perda de um sagrado afeto
De lastimar esta mulher não cansa,
Numa alegria descuidosa e mansa,
Passa a criança, o beija-flor inquieto.

Também na Vida o gozo e a desventura
Caminham sempre unidos, de mãos dadas,
E o berço, às vezes, leva à sepultura...

No coração, — um horto de martírios!
Brotam sem fim as ilusões douradas,
Como nas campas desabrocham lírios.
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FLORES

Quando começa a raiar
O dia cheio de amor,
Eu gosto de contemplar
O coração de uma flor,

Desmaiada e tremulante,
Pendendo triste no galho,
Tendo o pistilo brilhante
Embalsamado de orvalho:

A rosa só me parece,
Assim tão casta e sem véu,
Um anjo rezando a prece
Um’ alma voando ao céu.

Do jasmim puro e mimoso,
A corola embranquecida,
É como um seio formoso
De criança adormecida.

Esqueço-me, então, das horas
A contemplar estas flores,
As violetas, auroras,
Saudades, lindos amores.
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FELIZ

Dizes-me que a ventura te foi dada
E contente tu’alma jamais chora:
Vives sorrindo à luz de uma alvorada
E a noite para ti é cor da aurora...

Não creio nessa dita, me perdoa.
Ninguém na terra pode ser feliz.
Até o sino que na torre soa
Tem sua dor, nem sempre ele bem-diz.

Longe... distante... Pelo azul chalreando,
A modular uns hinos tão suaves,
Pássaros meigos lá se vão cantando...
Mas tu crês na ventura dessas aves?

Repara bem naquela que ficou
Pousada lá no cimo da aroeira:
Ela chora, coitada, pois deixou
Muito longe perdida a companheira.

Aves da terra, em tímidos adejos,
Também alegres como as rolas mansas,
Rostos corados, recendendo beijos,
Correm cantando grupos de crianças.

E enquanto passa, em revoada louca,
Este dourado batalhão de arcanjos,
Eu quero ouvir-te da risonha boca
Se é eterna a ventura desses anjos.

A moça também sofre... Um áureo cofre
Guarda-lhe os prantos e o martírio duro,
E, de todas, aquela que mais sofre
É a que tem o coração mais puro.

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

Contos e Lendas da África (Os pretendentes da Princesa Gorila)

Arte por JFeldman com Microsoft Bing
(por Robert Hamill Nassau)

Local: Nação Njambi 

Personagens
Rei Njina (gorila) e sua filha
Njâgu (elefante)
Nguwu (hipopótamo)
Bejaka (peixes, ejaka no singular)
Ngowa (porco do mato)
Njĕgâ (leopardo)
Telinga (mico, macaco)

Este conto claramente se inspira na época em que o rum chegou à África.

A “nova água” do Gorila significa rum.

A trapaça de Telinga não o fez ganhar a esposa, mas foi o motivo pelo qual os micos atualmente vivem em bandos numerosos nas árvores e não mais no chão, como antigamente. Todos são muito parecidos, o que impede que sejam distinguidos uns dos outros.

Os leões não vivem junto aos gorilas e é por isso que esses primatas também eram chamados de Rei dos Animais, em razão de seus braços fortes e longos.

No entanto, seria absurdo imaginar que um animal tão horroroso, uma caricatura de ser humano, teria uma linda filha!
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O Rei Gorila teve uma filha cuja beleza era enaltecida por todos. Quando a menina atingiu a idade de se casar, o rei mandou avisar a todas as tribos que não aceitaria dotes comuns para oferecê-la em casamento. Somente aquele capaz de cumprir a seguinte tarefa seria seu genro: havia um novo tipo de água, nunca antes vista, e quem fosse capaz de beber um barril inteiro dessa água seria merecedor do prêmio cobiçado por tantos.

Então todos os animais se reuniram na floresta do rei para competir pela jovem. Todos os caminhos que levavam à nação Njambi se encheram com os ansiosos pretendentes.

O primeiro candidato seria o Elefante, em razão de seu tamanho. O paquiderme caminhou até o barril com pesada solenidade, suas estrondosas patas ecoando a cada passo, tam dam, tam dam. Mesmo na presença do rei, mal conseguia esconder sua indignação, pois julgava aquele um teste ofensivo de tão fácil. O elefante pensava consigo mesmo, “Um barril de água? Que afronta! Quando eu, Njâgu, tomo meu banho diário, sugo o equivalente a vários barris de água com minha tromba e jogo tudo sobre mim. Além disso, bebo meio barril a cada refeição. E é esse o teste? Vou acabá-lo em dois goles!”.

Colocou sua tromba dentro do barril, determinado a sorver uma grande quantidade. Retraiu-se logo que tocou o líquido. A “nova água” ardeu em suas entranhas. O gigante ergueu sua tromba e bramiu um grito de fúria, dizendo que aquela era uma prova impossível.

Muitos dos presentes julgavam o grande elefante um adversário invencível e secretamente se alegraram ao ver seu fracasso. Agora teriam uma chance. 

O Hipopótamo então se apresentou, passando à frente de todos com passos atrapalhados. Estava afoito e certo de que seria o vencedor. Não era tão grande e pesado como o Elefante, mas era mais desajeitado. Mesmo assim, não hesitou em bradar o mais alto que pôde:

— Você, Njâgu, com todo esse tamanho teme um barril de água? Rá! Eu passo metade do meu tempo na água. Quando estou com sede, os peixes do rio têm medo de ficar sem casa.

E assim caminhou até o barril, aos gritos e bravatas para tentar impressionar a jovem princesa. Mal chegou a tocar a boca no líquido, apenas o cheiro já fez com que jogasse a cabeça para trás em um urro de aflição e nojo. Sem sequer curvar-se ao rei, correu até o rio para lavar a boca.

Em seguida veio o Porco-do-mato, dirigindo-se ao soberano:

— Rei Gorila, não vou me vangloriar antecipadamente, como fizeram meus adversários. Tampouco, se eu falhar, insultarei vossa majestade. No entanto, acredito que sairei vitorioso. Estou acostumado a enfiar o nariz nos piores lugares.

Aproximou-se devagar e com cuidado. Mesmo ele, habituado a todo tipo de sujeira e maus odores, afastou-se do barril enojado e foi embora grunhindo. 

O próximo a se apresentar foi o Leopardo, contando vantagens e dando saltos para que a jovem visse sua linda pelagem. Zombou dos três que o precederam dizendo:

— Ah, meus amigos! Vocês não teriam nenhuma chance mesmo se tivessem bebido a água. A princesa jamais se interessaria por sujeitos feios e atrapalhados como vocês! Vejam que lindos meu corpo e minha cauda! Como minhas patas são fortes e ágeis! Já lhes mostro como acabar com esse barril. Mesmo que nós, da tribo dos felinos, não gostemos de nos molhar, abrirei uma exceção para honrar a princesa. Sou o ser mais elegante da floresta e vencerei essa prova sem esforço.

Disse isso e saltou imediatamente para o barril, mas o cheiro o deixou enjoado. Fez uma única e vã tentativa. Foi embora com o rabo baixo, rastejando de vergonha.

Todos os animais da selva tentaram, um após outro. Todos falharam. Até que o pequeno Telinga deu um tímido passo à frente. Centenas de outros pequenos macacos da Tribo dos Micos o aguardavam ocultos no matagal. Os competidores derrotados murmuraram surpresos quando ele se dirigiu até o barril. Nem mesmo o Rei Gorila conseguiu conter seu espanto:

— O que você quer, meu pequeno amigo?

— Vossa majestade não mandou avisar que qualquer tribo poderia participar? — respondeu Telinga.

— Sim, todas as tribos podem tentar.

— Então eu, Telinga, mesmo pequeno como sou, gostaria de ter uma chance.

— Mantenho minha palavra real. Você pode fazer sua tentativa.

— Apenas uma dúvida, majestade. O competidor deve beber o barril todo de uma só vez? O senhor permitiria que eu descansasse rapidamente no matagal após cada gole?

— Claro, mas você deve beber tudo hoje. — respondeu o rei.

Telinga tomou um gole e saiu saltitando até o mato. Voltou imediatamente, ou assim pareceu, deu outro gole e retornou ao bosque. Reapareceu no instante seguinte — na verdade, cada vez que isso ocorria, saía do matagal um mico diferente, que bebia um pouco da água e retornava ao mesmo local para ser substituído — e assim foi até que o barril se esvaziasse rapidamente.

O Rei Gorila anunciou Telinga como o vencedor da prova.

Não se sabe o que a jovem princesa pensou ao ver que não se casaria com nenhum dos belos pretendentes, como o Antílope ou outros animais graciosos. Quando Telinga tentou se aproximar dela, o Leopardo e os outros avançaram sobre ele, gritando:

— Seu nanico miserável! Se não podemos nos casar com ela, você também não poderá! Você vai ver! Tome isso! E isso! — e o atacaram com socos, chutes e mordidas.

Aterrorizado, Telinga fugiu para o bosque, deixando sua noiva para trás. 

Desde então, ele e sua tribo vivem nas copas das árvores, pois têm medo de voltar ao chão.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Antonio Brás Constante (Sorrindo para comprar e chorando para pagar)

Como é bom comprar e ao mesmo tempo como é ruim gastar. O problema é que não se consegue comprar sem gastar. As duas coisas andam juntas, nos causando sensações contraditórias ligadas a nossa satisfação por passarmos a possuir algo que queríamos, e pela frustração de nos endividarmos nesse processo.

Há uma falsa ideia de que as mulheres gastam mais do que os homens, mas isto não é verdade. Claro que uma mulher em um shopping parece uma ilha cercada de sacolas por todos os lados. Elas passam horas e horas experimentando roupas, acessórios e sapatos de forma incansável. Quase fanática. Mas se pensarmos que, para cada peça de roupa que olham, elas também têm de cuidar de vários outros detalhes tais como:

Primeiro: se as roupas que escolheu não são iguais as de suas amigas.

Segundo: se o preço é possível de explicar ao marido e se cabe no cartão de crédito.

Terceiro: se aquela peça de roupa é similar ao modelo que ela viu em uma certa revista famosa de moda e que custava dez vezes aquele valor.

Quarto: se vai ficar bem com todos os seus doze vestidos, dez colares e quinze diferentes pares de sapato. Etc.

Tudo isto com apenas um olho, porque com o outro elas ficam cuidando se o safado do seu marido (namorado, ou assemelhado), não está se engraçando com alguma atendente, ou com uma das clientes, ou vendo algum pôster com propaganda de lingerie. Porque mulher sabe que homem é tudo igual.

Agora, se formos analisar os gastos masculinos, podemos começar calculando as cervejas bebidas com os amigos, as vaquinhas pagas pelas canchas de futebol, os lanches saboreados (geralmente o homem come bem mais do que a mulher durante o dia, pois são menos adeptos às dietas, é só olhar a quantidade de homens nos bares comendo pastéis nos finais de tarde), e finalmente, os gastos com ingressos para ver o seu time do coração. Sem esquecer de todos os apetrechos para pescaria que eles compram.

Para conseguir satisfazer a vontade de comprar, comprar e comprar, muitos acabam indo parar nos chamados “templos de consumo”, mais conhecidos como shoppings. Onde são seduzidos por ofertas irresistíveis e uma infinidade de itens expostos com parcelamentos incríveis (recheados de taxas imperceptíveis e horríveis), transformando as pessoas em uma espécie de escravos do vício das compras. Esse vício faz com que elas entrem nesses lugares com os bolsos cheios e as mãos vazias e saiam de lá com os bolsos vazios e as mãos cheias... De contas para pagar.

Em um mundo onde o apelo por consumir está em cada canto, em cada programa, em cada novidade (principalmente nesta época do ano). Talvez seja hora de começarmos a gastar mais o nosso tempo em vez de nosso dinheiro, investindo na amizade, passando a ouvir mais as pessoas que amamos, brincando mais com nossos filhos, visitando nossos pais, reencontrando o diálogo a dois em nossos lares. Assim, poderemos ganhar muito mais do que dinheiro, pois receberemos afeto e alegria, reforçando nossos laços de união. Pois, todo dinheiro do mundo não pode preencher a solidão de uma vida fútil que jaz vazia.

Fonte: https://www.recantodasletras.com.br/humor/771391. 09.dez..2007.