sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Versejando 85

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Sérgio Doveinis

Ele tinha e demonstrava forte certeza de que um dia nos reencontraremos todos no céu. Foi para lá no dia 2 de agosto e deve estar agora sentado embaixo de uma árvore florida pondo a conversa em dia com os amigos que foram antes.

Dr. Sérgio Doveinis, médico oftalmotorrinolaringologista (olhos, ouvidos, nariz e garganta), nasceu paulista em Jundiaí no dia 22 de abril de l935, filho de imigrantes lituanos. Ainda criança, mudou-se para a cidade de Assis. Formou-se em medicina em 1960 em Curitiba, na Universidade Federal do Paraná. Em 1961, a convite do Dr. Said Ferreira (seu amigo e contemporâneo de faculdade), veio para o noroeste do estado. Trabalhou dois anos em Paranavaí, em 1963 veio para Maringá e aqui permaneceu até a partida para a paz eterna. Cuidou dos meus olhos durante longos anos e ao se aposentar me entregou aos cuidados do filho, também oftalmo, Sérgio Augusto (para mim, carinhosamente, Serginho).

Conheci-o no início dos anos 1970, no movimento de Cursilhos de Cristandade, onde por cerca de 30 anos tive a graça de trabalhar em equipe com ele. Sérgio era um líder natural, enérgico às vezes, porém extremamente generoso. Todo mundo gostava dele. Tinha um carisma que conquistava as pessoas logo ao primeiro contato.

Estudioso de filosofia e teologia, junto com a esposa Magali dedicou boa parte do seu tempo disponível à semeadura da fé e da esperança, especialmente mediante memoráveis palestras nos Cursilhos. Gostava também de trocar ideias por horas a fio com os amigos. Com ele aprendi muito nessas conversas.

Na última vez em que o encontrei, recordamos bons momentos e falamos sobre uma efeméride grandemente significativa: o cinquentenário do movimento de Cursilhos na arquidiocese de Maringá, a ser comemorado em setembro próximo.

Os Cursilhos tiveram origem na Espanha. Em 1949 foram integrados oficialmente na Pastoral da Igreja por Dom Juan Hervás, então bispo da diocese de Palma de Maiorca.

O primeiro Cursilho no Brasil ocorreu em 1962, em Itaici, São Paulo. O primeiro do Paraná em 1967, em Telêmaco Borba, diocese de Ponta Grossa. Em Maringá, o primeiro Cursilho realizou-se há 50 anos, nos dias 23 a 26 de setembro de 1971.

O auge do movimento deu-se ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, e todos se lembram da repercussão que os Cursilhos tiveram na época, a ponto de serem definidos por alguns como “um novo milagre”. De fato produziram preciosos frutos. Muita gente mudou de vida, para muito melhor, após passar por essa inesquecível experiência.

Sérgio Doveinis foi um dos mais entusiastas entre os grandes incentivadores desse movimento em Maringá. Ajudou assim a preparar milhares de almas na caminhada rumo às bênçãos da eternidade. Deus, certamente, o recebeu de braços abertos. Até lá, Serjão.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-8-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) IX

A fogueira de São João,
com as chamas reluzentes,
traz calor à tradição
com alegrias ardentes.
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A frequente impunidade,
que bem nos atesta a Imprensa,
leva a criminalidade
pensar que o crime compensa.
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Ainda que o seu passado
não tenha sido de glória,
você, com muito bom grado,
pode escrever nova história.
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A jaó*, na mata ao longe,
põe tristeza no seu canto,
chora o funeral do monge
que vai para o campo santo.
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Jaó = é uma ave também conhecida como macucauá, sururina (Amazonas e Pará) e juó. Pertence a uma das mais antigas famílias do continente sul-americano, os tinamídeos. Com formato de corpo semelhante a galinhas, embora sem nenhum parentesco próximo com os galináceos.
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A Lua foi testemunha
das juras de um trovador;
você, então me propunha
eternizar este amor.
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Ao cair da noite, a Lua
se levanta no horizonte
e beija o Sol que a cultua
com tanta luz em sua fronte.
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A santa cruz que te dei,
sem Jesus, ali, pregado,
prega o quanto te adorei,
ficando eu crucificado.
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As pombas, que têm saudade,
voltam à tarde aos pombais;
mas quem foi pra eternidade,
ao tempo, não volta mais.
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Indescritível bondade
tem o bom livro ao leitor;
com postura e seriedade,
é um exímio educador.
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Muitos não viajam de avião,
- terrível coisa da altura -
têm sufoco e aflição,
que se traduz em paúra.
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Mulher, de um cofre, é segredo
com muitos mistérios no ar;
entra em seu selo, mais cedo,
quem o amor lhe devotar.
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Na florida minha Terra,
há riquezas naturais.
Na verde mata e na serra
- mananciais d'alvos cristais.
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Na madrugada serena,
os campos brilham de prata,
a Lua, dona da cena,
poemas faz à cascata.
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Nesta rua, onde moro,
passa a vida em liberdade;
mas não passa quem adoro
nem, de mim, passa a saudade.
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Ontem - Cidade Menina,
hoje – a mais linda senhora!
E terás sempre, Londrina,
os esplendores da aurora.
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Pequeninas mãos rosadas
de mil graças - carinhosas,
de boninas perfumadas,
meigas mãos, sois milagrosas.
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Pinhalão dos cafezais,
Pátria minha dos primores,
mil riquezas sem iguais,
terra amada sempre em flores!
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Quanta surpresa na vida
com as histórias de amor!
Quando a esperança é perdida,
fica uma história de dor.
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Que venha a paz à minha alma,
qual brisa amena do sul,
que eu receba a meiga palma
da felicidade azul!
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Você, sim, me surpreendeu
ao me dizer "vou-me embora"!
Era amor que já morreu,
sepultado co'a senhora!
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Zabelê é uma jaó
que vela nalgum sertão;
seu canto é tristeza só,
- lembra a dor da solidão.

HOMENAGEM EM TROVAS

Vivo no mundo da Trova,
sou feliz e não me queixo;
cada dia, há quadra nova
no "Jornal do Seu Aleixo*.
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Obrigado, grande Aleixo,
"Trovadoresco"* agradece.
Seria injusto desleixo
não aplaudir sua messe.
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Salve, grande Benfeitor,
Seu Aleixo e sua Imprensa,
que dão sempre ao trovador
alegria mais intensa.
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Seu Aleixo: Proprietário de Jornal e amigo dos trovadores.
"O Trovadoresco": Jornal de poesias e trovas de Natal -RN - idealizado pelo poeta e trovador Ademar Macedo.

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Nesta rua do meu sonho
brilham trovas desde a aurora;
dar-lhe a mão eu me proponho
em Trovápolis* agora.
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Trovápolis: Cidade imaginária dos trovadores, criada pelo trovador potiguar. Francisco Macedo, irmão de Ademar Macedo. Uma das ruas da cidade leva o nome do autor.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Paulo Faccioli (O big bang de todos os dias)

O novato entrega seus escritos ao colega veterano para as avaliações de praxe. De boa vontade, o mais experiente lê o material, imagina que a proposta seja o conto, mas observa que ele não está bem realizado. Sugere então que as histórias sejam trabalhadas de outra forma, levando-se em conta certas regras estabelecidas para o gênero. O aspirante à carreira contrapõe dizendo que não havia sido essa a pretensão e pergunta, não sem uma nota de desdém pela sugestão, se inexiste outra possibilidade para a narrativa curta além do engessamento formal próprio do conto ou da liberdade opinativa da crônica. O veterano cofia a barba antes de responder que sim, pode haver, desde que o texto consiga também tocar, de alguma maneira, a sensibilidade do leitor. Cita como exemplo Luis Fernando Veríssimo, que mescla conto e crônica de um modo personalíssimo e muito bem-sucedido. Mas afirma e reafirma que, assim como está, o texto analisado carece de virtudes literárias que levem o leitor a se interessar por ele.

A essas alturas, o novato talvez não compreenda muito bem o que significa ter um leitor anônimo, de fora de sua família ou de seu círculo de amizades. Em outras palavras, alguém que não esteja de antemão comprometido com ele por razões de afeto. Talvez sequer tenha pensado que o objetivo maior de quem escreve visando à publicação é atingir esse ente desconhecido. Ao veterano só resta então dar de ombros: um dia talvez o novato aprenda e se torne um escritor digno de preencher com este substantivo o campo "profissão" em qualquer formulário de cadastro pessoal.

A hipotética situação narrada acima põe em evidência um componente essencial à literatura e frequentemente ignorado por alguns escritores: a pessoa sem nome e CPF conhecidos para a qual se escreve. E não se pretende aqui afirmar que o objetivo do escritor deva ser exclusivamente o de agradar seu leitor: atingir, tocar a sensibilidade, fazer pensar, instigar, provocar ou até mesmo incomodar, desacomodar é o que se pede; também agradar, se e quando isso for possível. Quem se propuser a falar só para si não encontrará outro leitor além de si próprio, salvo, talvez, os já referidos familiares e amigos.

Outro viés do exemplo, também relevante para o que se quer tratar, é a figura do gênero híbrido ou da peça de ficção que não se enquadra em nenhum gênero predefinido. Nesse sentido, raras são as experiências exitosas, não porque a literatura seja refratária a inovações, bem pelo contrário, mas porque a premissa básica é que escritor e leitor se comuniquem, e a sintonia sempre é mais fácil de acontecer num terreno que o leitor já conheça.

João Gilberto Noll é um caso emblemático na literatura brasileira, na medida em que aparentemente vem desafiando o mandamento sagrado de escrever com foco no leitor anônimo, ao tempo em que mantém seu prestígio em alta, pelo menos junto à crítica especializada e à academia. É bem verdade que, antes de se aventurar a qualquer transgressão, soube fazer pelo modelo vigente. Verdade, também, que nunca foi muito ortodoxo, mas suas histórias - notadamente os contos, que marcaram sua estreia num livro sempre muito bem referido, O Cego e a Dançarina, de 1980 - tinham enredo, personagens, conflito, ingredientes tão comezinhos quanto relevantes ao texto de caráter ficcional. Trilhando uma carreira ascendente de vários prêmios literários - inclusive três Jabutis, um deles já com o primeiro livro, que também mereceu o da Associação Paulista de Críticos de Arte -, adaptações de suas obras para o cinema (uma das grandes paixões do escritor), passagens pelos Estados Unidos como bolsista da Universidade de Iowa e professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, Noll foi-se libertando das amarras que ainda o ligavam ao discurso convencional e enveredou por um estilo inimitável de ficção, cujo ápice acontece com Berkeley em Bellagio. Nesse romance de 2002, composto de um único parágrafo, Noll exercita uma narrativa "labiríntica", como bem definiu o crítico e escritor Bernardo Ajzenberg.

O movimento de transição que deságua em Berkeley... foi tão paulatino que não é adequado se falar em fases distintas da produção de Noll. (Tampouco a pretensão desta matéria é abarcar todos os nove romances, além da já citada coletânea de contos e de uma outra, inusitada em sua concepção, Romances e contos reunidos, de 1997. O interesse aqui é tão-somente comentar o último livro lançado, para o que se torna inevitável falar brevemente sobre o contexto no qual ele se insere.) Cada novo livro avançava um pouco mais em direção a uma arquitetura narrativa que privilegia a catarse íntima, no sentido em que parece estar atrelada exclusivamente a uma necessidade pessoal do autor de escrever, pôr para fora, desabafar, nada mais distante daquilo que o nosso escritor veterano tentava ensinar ao calouro. Por mais incrível que isso possa parecer, em Noll a heresia funciona.

Mínimos, múltiplos, comuns (Francis, 2003) é um projeto ambicioso. Trata-se de 338 pequenas narrativas que Noll já havia publicado no jornal Folha de São Paulo sob o título de Relâmpagos, duas por semana, entre agosto de 1998 e dezembro de 2001, e cuja reunião pretende agora nada menos do que compor "um painel minimalista da Criação", palavras de Wagner Carelli que intitulam o brilhante ensaio de apresentação do livro. Carelli, junto com Noll, também participa da concepção do projeto. A edição da Francis é primorosa: 480 páginas impressas em papel pólen, com belas ilustrações e uso privilegiado do preto. Osmane Garcia Filho assina a edição de arte, num trabalho de grande apelo visual. A fonte tipográfica usada é a Janson, e a Editora chega ao requinte de explicar, na página final, a origem de tal fonte, que remonta ao século 17. Antes de alcançar o texto propriamente dito, o leitor já está encantado com o bom gosto da edição e adentra o volume com curiosidade respeitosa.

As narrativas, chamadas de "instantes ficcionais" pelo autor, tiveram como parâmetro um máximo de 130 palavras. A definição, tão ampla quanto vaga, é mais do que apropriada, e qualifica uma experiência de certa forma inédita. Os "instantes" não têm compromisso algum com a estrutura formal do conto, embora alguma exceção ocorra, caso de Línguas, logo no início, um delicioso miniconto de cores borgianas. Tampouco encontram na crônica qualquer parentesco possível, pois não comentam nem opinam sobre uma história real ou fictícia, característica básica desse gênero.

Noll chegou a declarar que Mínimos... é o seu trabalho que mais reúne elementos autobiográficos. Não há como se duvidar de tal afirmação, pois os relatos - se é que podemos chamá-los assim - são como instantâneos fotográficos de situações observadas ou vivenciadas pelo autor, é claro que sempre por um prisma absolutamente insólito e que surpreende o leitor pela sua estranheza. Mas a proposta passa ao largo da memorialística. O conhecimento e o gosto pela linguagem cinematográfica são evidentes. O autor também admitiu a tentativa de unir prosa e poesia na procura obsessiva da síntese, decorrente da limitação imposta. Várias passagens de Mínimos... demonstram que essa intenção se confirmou.

A ideia do "painel da Criação" veio a posteriori da publicação semanal. Em seu ensaio, Wagner Carelli explica que a ordem cronológica em que foram escritos os minitextos era "caótica e carente da lógica interna, quase linear que os une"; na sequência em que surgiram, eles "têm seus limites comprometidos à estreiteza do espaço e induzem a um entendimento reducionista, que pode tomá-los como abstrações de sentido escasso e circunscrito à forma". Carelli compara então o trabalho ao "expressionismo abstrato" do pintor letão-americano Mark Rothko e diz que a experiência de se ler os relatos na forma avulsa em que foram inicialmente publicados equivaleria a se apreciar as telas de Rothko "nas dimensões diminutas e apartadas de um catálogo". Ordenados de forma a comporem o painel, os textos foram então divididos em cinco grandes grupos, pensando-se numa estrutura cronológica da Criação: Gênese, Os elementos, As criaturas, O mundo e O retorno. Cada um desses conjuntos é subdividido em grupos menores, estes, em outros, que finalmente agrupam os textos de temática mínima equivalente. Desnecessário dizer que a ótica norteadora da organização foi absolutamente pessoal e subjetiva, mas teve a competência de definir uma trilha para o leitor, quase como o texto explicativo que acompanha algumas obras de arte contemporâneas, sem o qual uma parte importante da compreensão ficaria comprometida.

Contudo, a analogia desses Mínimos... com a pintura abstrata talvez não seja a mais adequada. Talvez no cubismo encontremos elementos mais apropriados ao exercício de comparação. Como se sabe, no cubismo as figuras são decompostas (às vezes "fatiadas") e remontadas de modo a aparecerem em conformações excêntricas. Mas elas subsistem à transformação, ou seja, um rosto continua sendo um rosto, apesar de sua forma caótica. O quadro cubista consegue retratar uma cena, sempre inusitada em sua composição, mas ainda uma cena. O mesmo acontece com os minitextos.

Os 338 "instantes", tomados como peças autônomas, não têm qualquer relação com a arquitetura "labiríntica" de Berkeley... No máximo, na condição de exercícios da estética minimalista, poder-se-ia considerá-los como uma espécie de ensaio preparatório para o romance. Depois de reunidos e classificados, ficam evidentes as semelhanças, para além do fato de as duas obras terem saído da mesma pena. A impressão que se tem é de que o desapego a um fluxo narrativo previsível foi primeiro exercitado numa escala menor, os minitextos, encadeados depois para comporem uma estrutura maior, ainda sem compromisso com uma lógica de causa-efeito, o que veio a mostrar ao autor a possibilidade de um romance inteiro assim alicerçado. A cronologia real, como se viu, não foi bem essa, embora não se possa afirmar com precisão o instante em que as ideias nascem, nem como elas se estruturam e se desenvolvem na cabeça do artista.

Dono de um discurso sempre impecável, Noll supera-se em Mínimos... Os anos dedicados ao estudo da música e ao canto naturalmente produziram nele um senso privilegiado de ritmo e harmonia, refletido depois numa prosa que se nutre sobejamente desses elementos. À procura da síntese, do essencial, além da pretendida mescla de prosa e poesia, Noll aprofunda e sistematiza (ainda que isso possa ocorrer intuitivamente) a observância do ritmo e da sonoridade das frases. Mesmo se ao leitor comum os relatos não fizerem lá muito sentido, restará a ele o prazer da fruição de um texto irretocável. O léxico é preciso, gerando uma tensão intrínseca à concisão desejada.

O acento essencialmente citadino dos relatos contrasta com a evocação constante dos elementos da natureza. Quando estes aparecem, vêm com a função de provocar a ruptura: um movimento ora desagregador ora epífano, mas sempre com a nítida intenção de desviar o fluxo "racional" da narrativa para um plano "inconsciente", de onde ela jamais retorna. Como em A gruta:

"O homem entrou no boteco e se sentou. Fugia de uma tontura que o atacara na esquina. Viu a porta do recinto e no meio do seu anuviamento lhe passou a imagem de uma caverna escura e úmida por onde ele entrava encharcado de suor. Agora o rapaz ali lhe perguntava o que queria. O homem ouvia apenas o pingar de uma água insistente que vinha do fundo da gruta. O rapaz perguntou pela segunda vez. Aí sim o homem escutou a voz de alguém. Mas essa voz parecia vir de muito longe, da fantasia de um moribundo abandonado por qualquer outra voz que não aquela que ele ia fabricando do nada, na sua paralisia cerebral. O rapaz voltou a perguntar. O homem viu que não teria forças para responder. Sentiu a beira de um copo d`água entre os dentes. Puxou um gole. E outro."

As epifanias e os impulsos dissonantes, nem sempre tão óbvios como no exemplo acima, ao tempo em que respondem pela estranheza maior da obra também costuram sua unidade. Por outro lado, o big bang da Criação em Mínimos... está mimetizado na primeira narrativa, Tecido penumbroso:

"Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andavam tão estouvadas! Por que não deixa-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo como um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contravida. Depois a gente volta para o velho ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos."

Ou seja, o instante deflagrador do processo é uma parada, seguida de uma implosão interior e um realinhamento à luz desse "sol do sonho"; por fim, o retorno, mas a um estágio onde as coisas não fazem mais o sentido que faziam antes. Todas as narrativas apresentam esse mesmo movimento, repetindo 338 vezes o ciclo proposto da Criação, num diálogo óbvio e metalinguístico com a criação artística.

Seguindo à risca as indicações, nosso leitor anônimo, antes de cogitar ter sofrido mais uma vez o vilipêndio por um texto que não o leva em consideração, descobrirá um micro-universo rico, pulsante, inimaginável sob a mesmice do cotidiano. Algo que só a ousadia de João Gilberto Noll consegue transformar em superior literatura.

Publicado no Jornal Rascunho. Curitiba/PR: fevereiro/2004. 
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LUIZ PAULO FACCIOLI nasceu em Caxias do Sul em 1958 e mudou-se para Porto Alegre, onde mora atualmente. É músico, compositor, Instrutor pela The International Cat Association — TICA. Autor de Elepê (contos, 2000), Estudo das Teclas Pretas (novela, 2004), Cida, a Gata Maravilha (infanto-juvenil, 2008) e Trocando em miúdos (contos, 2008), participou das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século e 35 segredos para chegar a lugar nenhum (crônicas), entre outras. Integrou o grupo Casa Verde, participando das seis coletâneas lançadas entre 2005 e 2008: Fatais, Contos de bolso, Contos de bolsa, Era uma Vez em Porto Alegre, Contos de algibeira e Contos comprimidos. Integra o grupo Osseis de POA, com duas novelas para o público juvenil já lançadas: Aqui dentro há um longe imenso e Foi o que coube na mochila. É crítico literário, colunista de literatura da Band News Porto Alegre e colaborador do Jornal Rascunho de Curitiba.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 14: Aparício Fernandes

 


Olivaldo Júnior (Revoada de Palavras) 2

A LANTERNA DA AMIZADE


O Poeta jamais podia supor que encontraria um amigo. Mas, numa esquina de sua vida, num dezembro longínquo, o Músico apareceu em seu caminho e acendeu a luz.

Desde então, por onde quer que vá, uma lanterna, flutuante e amarela luz, o acompanha, dando a ele um sol só seu, mesmo quando a chuva cai, mesmo a interior.

Faz muito tempo que o Músico não visita o Poeta. Mas a lanterna da amizade ainda pisca em certas datas, na esperança de que o Músico, lá de longe, a redescubra.
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O OLHAR DAQUELE HOMEM

Éramos dois homens e um elo eterno a nos ligar: o da amizade. Havíamos nos encontrado por acaso (se é que existe mesmo o acaso). Seu olhar me dizia tudo de si.

Assim, por um tempo, nos víamos sempre que dava, e quase nunca era fácil. Agendas difíceis, amigos sem Face, fomos ficando longe, você na “China”, e eu, só.

O olhar daquele homem, no entanto, se entranhou no meu e, durante o meu dia, várias vezes é com os olhos dele que eu vejo a vida. Poderia chorar... Mas, hoje, não.
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VINIL

Era o apartamento de um homem de quarenta e poucos anos de vida. E que vida! Estudara Direito, Biologia e se especializara em... Não sei, alguma coisa a ver com Bioética. Mas, no fundo, gostava mesmo era de música. Era um homem lindo. Por dentro e por fora. Sempre chamava a atenção de todas e de todos. Por onde ia, não ia em vão, era sempre visto. Mas sua alma, seu âmago, não estava nos diplomas que a duras penas conquistou. Não, senhor! Seu pedaço mais puro de si mesmo, sua pena delicada que seu anjo lhe deixara, sua luz era um pequeno vinil preto em que os Beatles entoavam a canção Hey Jude. Como adorava aquela música! Muito mesmo!

A vida era um sintoma da doença de existir. Meio forte, isso, comparar a vida e a existência a uma, uma dor. Mas que é a vida senão a sucessão de pequenos partos até que se parta de vez para... Para onde mesmo? Ah, para o Paraíso! É, para o Paraíso. Será que lá, onde Judas perdeu as botas, Pedro as reencontrou e Paulo as calçou de novo, será que lá no Paraíso tinha vitrola? Não sei, amigo.

O dono do apartamento de que falo era o Paulo. Ou Paul, para os que sabiam de sua adoração pelos Beatles. Sabe que tem gente mais nova que não sabe nem quem foram John, Paul, George e Ringo? Pois é, sinal dos (maus) tempos... Sabia que estava ficando velho e que, mais dia, menos dia, estaria ainda mais só do que já estava. O som da vida era um disco de vinil tocando os Beatles, fosse estéreo, fosse mono. O mais legal era ter alguém com quem ouvir. Não tinha, mas soltava a franga ouvindo os discos no domingo. Depois lhe dava uma tristeza, uma onda de saudade que soava em puro banzo na segunda.

Sua luz era um pequeno vinil. Hey Jude, seu hino de amor. Quer escutar?

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 6

MEDITAÇÃO

Alma cansada de chorar, cansada
De sofrer nas agruras do caminho,
Há quem te veja no Celeste Ninho
Os tristes pesadelos da jornada...

Se além da noite brilha a madrugada,
Resplende, além do túmulo escarninho,
Nova aurora de paz e de carinho
Para a glória da vida torturada.

Não te detenhas, sob a ventania.
Vence o pavor da senda escura e fria,
Guardando o bem por arma em teus combates...

Segue buscando o Amor do Eterno Amigo
E encontrarás a Luz do Céu contigo
Nas aflições dos últimos resgates.
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ROGATIVA

Abençoa, Senhor, o brando ninho
Em que este lar de amor se transfigura,
Entretecendo em fios de ternura
Agasalho aos que choram no caminho

Mergulhados no escuro torvelinho
De nossa própria senda estranha e dura
Avançamos nós mesmos à procura
Do asilo tutelar de Teu Carinho!...

Ensina-nos, assim, em toda a parte
A exprimir-te as lições ao reencontrar-te
Em nosso irmão que a dor punge e governa!

E faze desta casa o doce abrigo
Em que possamos trabalhar contigo
No culto vivo da Bondade Eterna.
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SEGUE, AMIGO

Fatigado romeiro da fé pura,
Sem bordão de conforto a que te arrimes,
Por mais cansado, não te desanimes
Na jornada de pranto e de amargura.

Além do Grande Além, na imensa Altura,
Brilham no Eterno Amor em que te exprimes
As pátrias generosas e sublimes
Da beleza, da graça e da ventura!

Na subida de pedra, cinza e lama,
Sangrem-se os pés embora, nutre a chama
Que arde, incessante, no teu peito aflito;

Sonha acima da escura tempestade
E chegarás, cantando, à Eternidade
Sob a glória celeste do Infinito!…
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SIGAMOS JUNTOS

Enxuga o pranto que te molha o rosto,
Emudece a revolta e vem comigo
Para o vale onde a noite abre o postigo
Da vida que respira a contragosto.

Fita o rude semblante descomposto
Dos que sonham debalde um peito amigo,
A solidão, a fome, o desabrigo,
O assombro e o desespero do desgosto...

Ampara a multidão ansiosa e tarda,
A desfazer-se em sombra áspera e fria,
Dos corações no fel da retaguarda.

Semeia a caridade humilde e franca
E esquecerás a mágoa que te espanca
Por transformá-la em bênção de alegria.
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UNIÃO SEM ADEUS

Converte o pranto em que dilaceras
Em fonte de bondade, alma querida,
Transfigura em trabalho, paz e vida
A saudade que trazes de outras eras...

Espalha o bem, por mais que a dor coincida
Com teu sonho de novas primaveras,
Eleva-te a caminho, enquanto esperas,
Quanto mais alto, tanto mais subida.

Segue e serve, de pés sangrando embora,
Esquece-te, perdoa, lida, chora,
Luta, vence-te, sofre mas porfia!...

E encontrarás o reino do amor puro
Da união sem adeus ante o futuro
Na beleza perpétua da alegria

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Aparecido Raimundo de Souza (De nascença)


Assim que o garoto acorda e após ter tomado o café matinal, corre até onde esta sua mãe e manda a pergunta:

— Mamãe, mamãe, me leva para ver o mar?

— Não, meu filho...

Duas horas depois o moleque volta a insistir:

— Mamãe, mamãe, chegou um circo aqui no bairro. Foi armado logo ali na pracinha. A senhora me leva para ver o leão e o elefante?

— Não, meu filho...

Dia seguinte logo após o almoço a mesma cena se repete:

— Mamãe, mamãe, me leva pra ver o cara que morreu ali no beco, essa noite, com cinco tiros?

— Não, meu filho...

Passa algum tempo e o garoto retorna. Sempre eufórico e sorridente:

—Mamãe, mamãe, me leva pra ver o novo campo de futebol que acabou de ser inaugurado?

— Não, meu filho...

O pobrezinho sai cabisbaixo. Tranca sua solidão no quarto e ali permanece por toda a tarde.

A mãe, condoída, resolve ir até ele. Aproveita para levar o prato que o guri mais gosta:

— Filho!

— Sim, mamãe?

— Trouxe uma coisa pra você...

— ... Já sei. Batatinhas fritas!

— Sim.

— Legal.

— E de lambuja um copo de refrigerante.

— Uau...!

— Promete não ficar ai pelos cantos de tromba e com a cara amuada?

— Só se a senhora me levar na casa do Toninho hoje, às oito horas da noite?

— O que vai ter lá?

— Ele vai reunir a galera e mostrar o brinquedo novo que ganhou do pai. A senhora me leva?

— Não, filho...

Novamente o garoto se fecha num mutismo impenetrável:

— Não quero as batatinhas...

— Mamãe fez com carinho. Coma!

— Não.

— Tome o refrigerante. Está geladinho, como você gosta.

— Não quero, não quero. Prefiro ir na casa do Toninho.

— Não, filho...

No domingo o piá faz a última tentativa:

— Mamãe, mamãe, me leva no cinema?

— Não, filho.

— Está passando o Sherek.

— Não, filho...

— Mas mãe, eu quero ir no cinema. Todos os meus amigos vão ver o Sherek.

— Já disse que não. Por favor, não insista.

O desditoso, não aguenta mais as negativas de sua genitora e se abre, finalmente, num choro convulso:

— Me leva, mãe. Toda a turma aqui do bairro vai ao cinema pra ver esse filme.

— Não, não, e fim de papo.

— Mãe, eu quero ver o Sherek... Eu quero... Me leva por favor, mãe, por favor...

A mulher, indignada e fora de si, esbraveja, furiosa:

— Para de encher minha paciência, seu desgraçado! Não me peça para ir a lugar nenhum... Você não está cansado de saber que é cego?

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Sucesso, 2012

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Adega de Versos 54: Luiz Poeta (Luiz Gilberto de Barros)

 Fonte:

Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Maringá/PR: Editoração por José Feldman, 2020. p.9-10.

Fernando Pessoa (Diário de Bernardo Soares) "2"

Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até à Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o sossego do vulgar. Na vidraça há o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras.

Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços a régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.

No próprio registro de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.
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Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida! A dizer o que as almas sentem! A fazer prosa como os gênios e os célebres! Aqui, eu, assim!...

Fonte:
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. Disponível em Domínio Público.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 2

ÁRVORE
 
Verde bandeira desfraldada ao vento,
árvore amiga, o olhar que te procura
busca repouso e vai achar alento
na sombra que lhe estendes lá da altura!

A sede abrasa! E o fruto sumarento
entregas, com requintes de ternura,
a quem poda a raiz, que é teu sustento
e do solo te traz a seiva pura!

Ramos erguidos, a abraçar o espaço,
tua ânsia de dar não tem cansaço!
Tua bênção de amor não tem medida!

E embora tanto dês e nada colhas,
com o verde pincel de tuas folhas,
vais colorindo de esperança a vida!
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HOJE É UM DIA DE SOL!

Esquece a mágoa, a dor... Esquece a própria vida,
nesse afã de vivê-la alheio aos seus porquês!
Hoje é um dia de sol! O amor é quem convida
para a festa triunfal, que é tua... e tu não vês!

Hoje é um dia de sol! Deixa a angústia esquecida!
Abre as janelas da alma... agora é tua vez!
Tão doce é a sensação de encontrar refletida,
no brilho de um olhar, a esperança em que crês!

Hoje é um dia de sol! Tempo cheio de luz!...
Tenta amar e sorrir... hás de ver como encanta
transformar em fulgor a sombra de uma cruz!

O céu faz-se aquarela...há cores no arrebol...
Vão-se as nuvens embora... a natureza canta
e canta o Amor com ela! – Hoje é um dia de sol!
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SER EMÍLIA...

Ah! Lobato, bom amigo,
que minha infância enfeitaste...
Os caminhos que hoje sigo,
sem querer, delineaste!

Eu já fui menina arteira,
que brincava com boneca.
Narizinho” reinadeira,
cheia de sonhos!... Moleca!

Tal qual “Pedrinho”, eu, também,
pelos campos cavalgava!
Sem caçadas!... sou do bem...
E amiga da bicharada!

Sem “Pó de Pirlimpimpim”,
fiz muita viagem gostosa!
Do saber, ao vê-lo afim,
conquistou-me o “Sabugosa”!

Lobato, só coisa linda,
de ti me veio, portanto,
guardo, com ternura infinda,
saudades por todo canto!

E tive um Príncipe, sim!
Lindo “Príncipe Encantado”!
Hoje... tão longe de mim...
Para os céus arrebatado...

Já fritei muitos bolinhos,
como “Anastácia” fazia...
E rodeada de netinhos,
agora, com alegria,

sou qual feliz “Dona Benta”,
entre anjos vindos do céu,
mas... a paz... nenhum alenta,
ao correr de déu-em-déu!...

Lobato... Os teus personagens,
Rabicó, a Cuca, o Anjinho,
a Emília a contar vantagens...
floriram o meu caminho!

E ao ver seres perturbando
os rumos da Pátria nossa,
tal qual Saci “sacizando”,
lembro os Sacis lá da roça!

Os daqui...duas pernas têm...
os da roça têm só uma!
Mas diabruras de ambos vêm,
e ...coisa boa? - Nenhuma!

Ah!... queria ser agora
essa Emília irreverente!
- Bonequinha que não chora,
mas... pensa... E diz o que sente!

Fonte:
Poemas enviados pela autora.

Figueiredo Pimentel (A moça encontrada no mar)

As leis do reino de Sarinhã – grande e riquíssima nação, que há séculos e séculos deslumbrou o mundo pelos altos feitos do seus príncipes e pela sua opulência, – obrigavam o soberano reinante a casar-se assim que completasse quinze anos de idade.

O príncipe Altir, que governava Sarinhã, na época em que se passa esta história, querendo conformar-se com as leis, resolveu casar-se. Para realizar o seu desígnio, ordenou que lhe apresentassem as moças mais famosas que existissem no país, embora morassem nos confins do reino.

Os emissários, já haviam corrido todas as cidades, vilas, aldeias, povoados de casa em casa, e nenhuma das jovens apresentadas a Altir lhe tinham agradado. Tinha ele perdido a esperança de casar com a moça mais linda do país, conforme desejava, e por isso vivia muito triste, quando se deu um fato interessante.

O batalhão que dava a guarda de honra do palácio, unicamente composto de moços fidalgos, escolhidos entre os mais ricos, instruídos, famosos e valentes do reino, tinha ido assistir à missa na capela real. Entre os soldados, havia um jovem marquês, nascido numa província longínqua, filho de nobilíssima e antiga família, e que pouco antes fora admitido nas guardas do rei.

Era a primeira vez que ele entrava na real capela, pois não havia ainda um mês que chegara à capital. Estava admirando o luxo, o esplendor, a arquitetura do templo, um dos mais elegantes e célebres do mundo inteiro e percorria com o olhar as imagens, nos altares, cada qual mais primorosamente executada por afamado artista, quando fitou a de N. S. do Rosário, que ficava justamente a seu lado.

Não pôde deixar de soltar um grito de espanto, ao mesmo tempo que de seus olhos jorravam lágrimas abundantes.

O general comandante, que era o príncipe Seraf, estranhando aquele procedimento, indagou do jovem marquês, cujo nome era Odern, a causa da exclamação que soltara e do pranto que derramava.

Odern disse que chorava porque havia se lembrado de repente de sua família, de sua casa, situada havia um mês de viagem, e lembrara-se ao ver a imagem de N. S. do Rosário, que era o retrato exatíssimo, perfeito, de uma de suas quatro irmãs, Gabi, a mais moça.

A notícia correu de boca em boca. Muita gente zombava, não acreditando, porquanto essa imagem era uma perfeição, um primor de escultura, um ideal de beleza, e não podia existir uma criatura humana que se parecesse com ela, quanto mais que fosse a mesma coisa, o modelo vivo.

No entanto a notícia chegou aos ouvidos do príncipe Altir, que mandou chamar Odern, a quem falou:

– Se tua irmã é assim tão bonita, dize-me onde mora tua família, que quero mandar buscá-la para minha esposa.

– Saberá vossa real majestade, respondeu o marquês, que meus pais moram nos desfiladeiros do monte Camocim, distante daqui dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.

O rei mandou imediatamente preparar uma esquadra par ir buscar a jovem Gabi, enviando para isso embaixadores ao pai, pedindo-a em casamento. Odern fez parte dessa embaixada.
***

Ao cabo de três meses de viagem, os navios aportaram finalmente em Camocim. Todos, ao verem a moça, ficaram maravilhados com sua beleza extraordinária.

O embaixador entregou a carta do rei ao velho duque Odern, que aceitou o honroso pedido do rei Altir, e deixou a formosa Gabi partir, em companhia de seu irmão.

Regressava a esquadra, quando caiu um grande temporal, que obrigou os navegantes a procurar o primeiro abrigo que se lhes deparou. Era uma enseada desconhecida, que não figurava em mapa algum.

Mas ninguém se importou com aquilo, e todos saltaram em terra, indo pedir pousada à casa de uma velhinha que ali morava. Era uma velhinha com perto de noventa anos, magra, baixa, e horrorosamente feia, caolha e aleijada. Devia ser com certeza uma bruxa, mas disse que se chamava Sarda.

Em conversa indagou donde vinham e para onde iam tão ilustres navegantes, e soube assim o destino da embaixada real. Aproveitando-se de uma ocasião favorável, convidou Gabi para dar um passeio pela horta, e aí chegando atirou a pobre menina no poço que ali havia. Para não darem por falta dela, pôs em seu lugar uma filha que tinha, moça em verdade, mas horrível de feia.

Como já era noite os viajantes não deram pela troca, e conduziram-na para bordo. Quando os navios levantaram ferro, a velha foi ao poço, tirou dele a moça, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos e deitou-a num caixão, que atirou ao mar.

Mas o caixão, em vez de afundar, flutuou, e foi chegar ao reino primeiro que a esquadra real. Pedro, um pescador, achou-o. Vendo-o muito pesado, julgou ter dinheiro, e começou a gabar-se que havia achado uma fortuna no fundo do mar, e que por isso seria mais rico que o rei.

Sendo chamado à presença do monarca, Pedro disse que de fato tinha achado um caixão com dinheiro.

Altir mandou que os guardas fossem se certificar o que havia de verdade no que dizia o pescador. Aberto o caixão, deram com a moça dentro, ficando todos com pena, de ver uma jovem formosíssima. divinamente bela, mas cega e com os cabelos cortados.

Os soldados voltaram conduzindo a moça, chegando ao palácio, um dia depois de ter aportado a embaixada trazendo a filha da velha. O embaixador, dando conta da missão, disse ao rei:

– Real majestade, fui alegre e volto triste; sujeito-me, porém, à pena que me quiserdes dar.

Quanto ao marquês Odern, ao ver a irmã ficar tão feia, de um dia para o outro, receando a justa cólera de vossa majestade, lançou-se ao mar.

– Não há remédio, disse o rei, casar-me-ei com essa mulher feia.

Efetuou-se o casamento, mas o rei conservou-se sempre triste. No outro dia, quando lhe apresentaram a moça dos olhos furados e cabelos cortados, todos da embaixada reconheceram sem demora a formosa Gabi Odern.

Contando-se-lhe o que havia ocorrido com o temporal e a hospedagem na casinha da velha Sarda, Altir desconfiou da infame bruxa, e mandou buscá-la por um navio veloz.

Sarda a princípio negou tudo, e até fingiu desconhecer sua própria filha, mas esta era muito parecia com ela, de sorte que se descobriu toda a falsidade das duas malvadas feiticeiras.

Por castigo, o rei mandou furar os olhos da velha e cortar-lhe os cabelos. Assim que cumpriram a ordem real, os olhos de Gabi ficaram perfeitos, e cresceram-lhe os cabelos, tornando-se ela ainda mais formosa, mais deslumbrante, o verdadeiro tipo da beleza.

O marquês Odern não havia morrido afogado. Tenho sido lançado à praia, foi recolhido pelo mesmo pescador Pedro. Sabendo que sua irmã estava viva e sã, e que casara com o rei Altir, apresentou-se no palácio, sendo magnificamente recebido pela rainha, sua irmã, e pelo seu real cunhado.

A família do duque de Odern deixou os desfiladeiros de Camocim, e veio residir na capital do reino de Sarinhã, onde viveu sempre feliz e considerada.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

domingo, 31 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 7

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 35 –

Belo instante junto à natureza, olho para cima, contemplo o horizonte e observo as vizinhanças. Sinto-me assim contagiado por este início de tarde mirífica, grandiosa, panda de luz.

De todos os cantos parece brotar inspiração - do azul do céu, do canto dos  pássaros, da claridade do dia.

Do azul do céu vem a harmonia que há em mim; do canto dos pássaros, a música que anda pelos ares; da claridade do dia, a visão mais ampla paa os olhos.

Duas pombas passam em voo rasante, um tico-tico chilreia seu solilóquio alegre, um eucalipto sacode os galhos levemente, suavemente, gostosamente, impulsionado pela aura fresquinha que navega no espaço.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

II Concurso de Trovas de Irati/PR (Trovas Premiadas)

 
Homenagem à trovadora Mafalda de Sotti Lopes

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Âmbito Nacional / Internacional
VETERANOS

Tema: Constelação (L/F)

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1º lugar
Cipriano Ferreira Gomes
São Paulo/SP

Éramos dois inocentes...
duas estrelas no chão...
Deus com as nossas sementes
fez uma constelação.
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2º lugar
Antonio Colavite Filho
Santos/SP

Tal qual a constelação,
de uma forma bem discreta,
minhas "Três Marias" são
minha esposa, a filha e a neta!!!
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3º lugar
Antonio de Oliveira
Rio Claro/SP

Minhas mãos buscando as tuas...
E eu, vivendo assim, sem tê-las,
sou um planeta sem luas,
constelação sem estrelas!
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4º lugar
Márcia Jaber
Juiz de Fora/MG  

Noite escura, de céu limpo,
de constelações ornada,
é qual mina de garimpo
de diamantes cravejada.
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5º lugar
Alba Helena Corrêa
Niterói/RJ  

Vates mortos, são estrelas:
formam, pois, constelações!
Lá, no céu, podemos vê-las,
refletindo inspirações!
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5º lugar
Lúcia Edwiges Narbot Ermetice (Lu Narbot)
Campinas/SP

A constelação brilhante
do nosso perene amor,
nem mesmo por um instante
perdeu seu brilho e fulgor.

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MENÇÃO HONROSA (ordem alfabética)
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Antonio Francisco Pereira
Belo Horizonte/MG

Teus olhos, como diamantes,
tão bonitos eles são,
que parecem mais brilhantes
que qualquer constelação.
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Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas/MG

O céu, divina aquarela,
desperta a imaginação,
lendas e mitos revela,  
em cada constelação.
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Geraldo Trombin
Americana/SP

A minha saga não finda!
Na constelação de brilhos
dos meus olhos falta ainda
o dos que não tive: filhos!
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Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ

Numa harmonia de afins
que há entre os projetos Seus,
Constelações são jardins
no grande quintal de Deus...
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Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS

A constelação vigente
no brilho do teu olhar,
lembrou-me a doce nascente
sonhando alcançar o mar.
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Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro/RJ

Nas constelações silentes
o pulsar longe e sozinho,
são os círios reluzentes
de Deus, mostrando o caminho.
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Romilton Faria
Juiz de Fora/MG

Saudoso em minha varanda,
mirando a constelação,
vêm as noites de ciranda,
apertar meu coração.

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MENÇÃO ESPECIAL (ordem alfabética)
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Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira/PE

Eu amava aquela estrela
de tantos sonhos... em vão.
Hoje, triste, choro ao vê-la...
luz de outra constelação.
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Renata Paccola
São Paulo/SP

Há quem se sinta um cometa,
mas nada somos senão
um pontinho num planeta
da imensa constelação!

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Âmbito: Nacional /Internacional
VETERANOS

Tema: Nuvem (Humorística)

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1º lugar
Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro/RJ

A comissária de bordo,
ela, sim, um “avião”,
pôs-me nas nuvens, concordo,
e estou ainda sem chão.
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2º lugar
Mariângela Tavares
São Gonçalo/RJ

Feito nuvem passageira
é o amor de um ancião.
Sai fumaça da chaleira...
Mas nada de ebulição!
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3º lugar
Jerson Lima de Brito
 Porto Velho/RO

- Já foste às nuvens comigo...
A moça: - Não me recordo!
E ele, cutucando o amigo:
- Sou comissário de bordo!
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4º lugar
Magnus Kelly
São Gonçalo do Amarante/RN

- “Vou invadir tua praia”!
Disse o vovô, empolgado...
E o broto de mini-saia:
- Teu dia nasceu nublado!
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5º lugar
Edweine Loureiro
Saitama/Japão

“Sai das nuvens, ó menino!”
era criticado em casa.
Saiu, sim, de modo fino:
tornou-se chefe da NASA.

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Nacional/Internacional
NOVO TROVADOR

Tema: Constelação (L/F)

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1º lugar
Jorge Ribeiro Marques
Rio de Janeiro/RJ

Todas as constelações,
Aquário, Câncer, Cepheus,
encantam os corações
por serem obras de Deus.
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2º lugar
Maria Natael Alves Pego
São Paulo/SP

Quando surge no infinito
divina constelação,
é o que há de mais bonito
na suprema criação.
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2º lugar
Neusa Aparecida Moreira Maia
Angra dos Reis/RJ

Que bela constelação -
nosso Cruzeiro do Sul!
À noite, orientação
pra quem singra o mar azul.
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3º lugar
Mônica Monnerat
Santos/SP

Uma estrela tão sozinha,
no céu sem constelação,
parece até que adivinha
como está meu coração...
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4º lugar
Antônio Rosélio Nunes Pacheco
Nova Itaperuna/RJ

No céu vejo o cinturão
e as formosas Três Marias,
formando a constelação
na aurora desses meus dias.
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5º lugar
Fabiano Fechine Torres Clemente
Natal/RN

Em minha face, de açoite,
à luz da constelação,
raja o bafejo da noite,
que aquece o meu coração.
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5º lugar
Francisco Maia dos Santos (Prof. Maia)
Caicó/RN

Nessa imensidão infinda,
vejo uma constelação;
contendo uma estrela linda
que lembra a tua feição.

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MENÇÃO HONROSA
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Aparecida Militão Kugelmeier
Campinas/SP

Na constelação celeste
tem estrelas a brilhar,
mas a luz que te reveste
vai sempre me iluminar.

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Nacional / Internacional
NOVO TROVADOR

Tema: Nuvem (Humorística)

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1º lugar
Júlio Augusto Gurgel Alves
 Fortaleza/CE

O seu noivo prometia:
- às nuvens, vou te levar!
Lua de mel... grande dia!
De avião foram voar.

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Estadual (somente Paraná)
VETERANOS

Tema: Estrela (L/F)

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1º lugar
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes

Não sou astro iluminado,
sou uma estrela e, também,
tenho luz própria e um cuidado:
- não roubo a luz... de ninguém!
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2º lugar
Antônio Augusto Assis (A. A. de Assis)
Maringá

Tantas estrelas em cena
- um espetáculo lindo.
E, todavia, que pena,
tão pouca gente assistindo...
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3º lugar
Maria Helena Oliveira Costa
Ponta Grossa

Minha fé transpõe espaços
e em Deus procuro mantê-la:
que sempre guie meus passos
a eterna luz d'Essa Estrela!
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4º lugar
Silvia Maria Svereda
Irati

São tantas... milhões de estrelas
isto ainda me inquieta.
Se o mundo pudesse vê-las,
com os olhos de um poeta!
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5º lugar
Lucília Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes

Não se enverga o trovador
que, do amor, canta a alegria;
no sonhar rejeita a dor,
faz da trova a estrela-guia!

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MENÇÃO HONROSA (ordem alfabética)
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Albano Bracht
Toledo

Nesta vida peregrina
o amor guia os passos meus.
Uma estrela me ilumina.
O nome da estrela é Deus.
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Carla Alves da Silva
Curitiba

Amor, agora distante,
do passado faz açoite,
qual estrela, tão brilhante,
vagando só pela noite ...
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Célia Terezinha Neves Vieira
 Irati

Quem tem Deus no coração,
lume da sabedoria,
jamais teme escuridão
pois tem sua estrela guia.

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Estadual (Paraná)
VETERANO

Tema: Nuvem (Humorística)

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1º lugar
Antonio Augusto Assis (A. A. de Assis)
Maringá

A nuvem no céu se move,
tromba em outra... um barulhão.
Por mais que trovar eu trove,
jamais trovejo um trovão.

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Estadual (Paraná)
NOVO TROVADOR

Tema: Estrela

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 1º lugar   
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão

Flagrar a boca da noite
beijando o céu, sem pudor,
faz com que a estrela se afoite
e brilhe com mais fulgor!
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2º lugar
Maria Silvana Prado
Imbituva

Quando pelas luas novas,
cai da noite o negro véu,
as estrelas são as trovas,
que Deus escreve no céu.
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3º lugar
Davi Pereira
Toledo

Ontem era um fogaréu,
clareando minha estrada;
hoje ela vive no céu,
numa estrela eternizada.

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Estadual (Paraná)
NOVO TROVADOR  

Tema: Nuvem (Humorística)

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1º lugar
Vinicius Fonseca
Londrina

Uma nuvem cinza olhei
vem vindo uma chuva aí!  
Guarda chuva não levei
e no pé d'água eu caí.
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Fonte:
Resultado enviado por A. A. de Assis

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 40 e 41


PODER DA ETIMOLOGIA


Quando o professor Nemésio explicou a Cacilda que o nome dela, segundo Zambaldi, quer dizer “a que combate com lança”, a moça ficou triste. É tão doce esse nome (experimentem pronunciá-lo) e tão meiga a sua portadora, que a revelação lhe pareceu a mais injusta possível.

O pior é que os irmãos começaram a brincar com ela de maneira provocadora, dizendo a cada instante: “Cacilda, onde você escondeu sua lança?”. Ou: “O amolador de facas está na esquina da rua Júlio de Castilhos. Leve a lança para ele afiar, Cacilda”.

De aveludada que era, Cacilda tornou-se suscetível e mesmo agressiva. O namorado rompeu com ela, dizendo que tinha medo de uma lanceira polonesa. E Cacilda quedou, fera e tristinha, em seu quarto onde havia gravuras de guerras napoleônicas.

A família procurou o professor Nemésio que, benevolamente, se dispôs a pacificar a moça: “Minha filha, isso de etimologia é muito discutível, cada uma diz uma coisa, e esse tal de Zambaldi já foi desacreditado por pesquisas recentes. O verdadeiro significado do nome de uma pessoa é o que lhe confere a pessoa que o tem. Você é tão encantadora que seu nome só pode significar você mesma, isto é, encantos mil”.

Cacilda acreditou e voltou ao estado gentil, mas sucede que, de vez em quando…
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RICK E A GIRAFA

No Jardim Zoológico, neste domingo azul, a girafa olha do alto para as crianças, e parece convidá-las a um passeio no dorso. Há uma escada perto, e se for encostada ao animal, Ricardo (Rick é o seu apelido) poderá chegar até lá.

O garoto mede a distância que vai do chão ao lombo, e julga-se em condições de vencê-la. Uma vez lá em cima, cavalgando o pescoço, e segurando-lhe os chifres, pedirá à girafa, depois de umas voltas pelo Jardim, que o leve por aí, percorrendo o mundo.

Presa há tanto tempo, a girafa há de estar ansiosa de liberdade. Não será difícil transpor a cerca. Ela espera que Rick lhe proponha a aventura. Ninguém se atreverá a travar-lhe os passos, e Rick vai dirigi-la nos rumos que aprendeu no atlas escolar.

O problema é descer de vez em quando, para Rick alimentar-se de biscoitos, fazer necessidades e dormir. Camarada, a girafa irá se deitando aos poucos, primeiro dobrando devagar as pernas, depois se inclinando lentamente para o lado, e afinal arriando com suavidade a carga infantil.

Mas para subir outra vez, como se arranjaria ele? Escada não haverá. Mesmo deitada, a girafa é difícil de subir. A imaginação não lhe fornece recurso plausível. O sonho frustrou-se. Rick levanta o braço direito e, com a mão espalmada em gesto de adeus à girafa que gentilmente o convidara, esclarece:

— Muito obrigado. Fica para outra ocasião, quando eu crescer.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Minha Estante de Livros (Cleveland Amory e Charles Dickens)


O GATO QUE VEIO PARA O NATAL


O gato que veio para o Natal é o primeiro livro de uma trilogia escrita por Cleveland Amory, um autor americano que escreveu extensivamente sobre os direitos dos animais. Amory relata seu resgate e adoção do Urso Polar, um gato que ele apresentará em dois livros futuros. Foi publicado pela primeira vez pela Little, Brown and Company em 1987 e depois em brochura pela Penguin Books em 1988.

Amory, escritor e ativista dos direitos dos animais, encontra um gato de rua enquanto caminhava por um beco em uma véspera de Natal com neve. Amory leva o gato para seu apartamento e o aclimata a viver dentro de casa. Polar Bear (Urso Polar) conhece vários amigos famosos e conhecidos de Amory, incluindo Cary Grant , Walter Cronkite e George C. Scott . Amory também detalha seu trabalho com os direitos dos animais na época.

Kirkus Reviews escreveu que o livro era "totalmente encantador e bem-humorado, e um tesouro para qualquer um que já foi 'propriedade de um gato'."

A Publishers Weekly escreveu: "Amory oferece uma divertida, embora preciosa, recriação de seu primeiro ano com o Urso Polar (seu relato sobre a seleção de um nome leva 20 páginas)."

Mary Daniels, do Chicago Tribune, escreveu: "Amory faz transições perfeitas entre o que poderia ser material não relacionado, usando Urso Polar como um subtema ao longo do livro."

A primeira edição ficou em 8º lugar na lista de bestsellers do New York Times em 1987, 20 semanas na lista. A edição de brochura de 1988 foi a 3ª posição na lista de bestsellers do New York Times em 1988. Alcançou a 1ª posição, permanecendo naquele lugar por 5 semanas. O New York Times o listou como o quinto livro de não-ficção mais vendido de 1988.
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UM CONTO DE NATAL

Um Conto de Natal é um livro da autoria de Charles Dickens. Com várias traduções em Português, sendo uma delas Um Conto de Natal, o livro foi escrito em menos de um mês originalmente para pagar dívidas, mas tornou-se um dos maiores clássicos natalinos de todos os tempos e uma das mais célebres obras de Dickens. O autor descreveu-o como o seu "livrinho de Natal", e foi primeiramente publicado em 1843, com ilustrações de John Leech. A história transformou-se instantaneamente num sucesso, vendendo mais de seis mil cópias apenas numa semana.

Ebenezer Scrooge é um homem avarento que abomina a época natalícia. Trabalha num escritório em Londres com Bob Cratchit, o seu pobre, mas feliz empregado, pai de quatro filhos, com um carinho especial pelo frágil Pequeno Tim, que tem problemas nas pernas. Numa véspera de Natal Scrooge recebe a visita do seu ex-sócio Jacob Marley, morto há sete anos naquele mesmo dia. Marley diz que o seu espírito não pode descansar em paz, já que não foi bom nem generoso em vida, mas que Scrooge tem uma chance, e que três espíritos o visitarão.

O primeiro espírito chega, um ser com uma luz que emana da sua cabeça e um apagador de velas debaixo do braço à guisa de chapéu. Este é o Espírito dos Natais Passados, que leva Scrooge de volta no tempo e mostra a sua adolescência e o início da sua vida adulta, quando Scrooge ainda amava o Natal. Triste com as lembranças, Scrooge enfia o chapéu na cabeça do espírito, ocultando a luz. O espírito desaparece deixando Scrooge de volta ao seu quarto.

O segundo espírito, o do Natal do Presente, é um gigante risonho com uma coroa de azevinho e uma tocha na mão. Ele mostra a Scrooge as celebrações do presente, incluindo a humilde comemoração natalícia dos Cratchit, onde vê que, apesar de pobre, a família do seu empregado é muito feliz e unida. A tocha na mão do espírito tem a utilidade de dar um sabor especial à ceia daqueles que fossem "contemplados" com a sua luz. No fim da viagem, o espírito revela sob o seu manto duas crianças de caras terríveis, a Ignorância e a Miséria, e pede que os homens tenham cuidado com elas. Depois disso vai-se embora.

O terceiro espírito, o dos Natais Futuros, apresenta-se como uma figura alta envolta num traje negro que oculta o seu rosto, deixando apenas uma mão aparente. O espírito não diz nada, mas aponta, e mostra a Scrooge a sua morte solitária, sem amigos.

Após a visita dos três espíritos, Scrooge amanhece como um outro homem. Passa a amar o espírito de Natal, e a ser generoso com os que precisam, e a ajudar o seu empregado Bob Cratchit, tornando-se um segundo pai para Pequeno Tim. Diz-se que ninguém celebrava o Natal com mais entusiasmo que ele.

Adaptações

O mais conhecido personagem inspirado nesta obra é o Tio Patinhas, da Disney, que em inglês se chama Scrooge McDuck. Patinhas toma o nome do personagem que lhe deu nome na versão animada Mickey's Christmas Carol. O Pica-Pau também tem um tio chamado Scrooge.

Em 1992, Os Muppets adaptaram a obra no filme The Muppet Christmas Carol, que estrelou Michael Caine no papel de Scrooge e Caco, o Sapo no papel de Bob Cratchit. Gonzo aparece no papel do próprio Charles Dickens, que é o narrador do filme.

Em 1994, Os Flintstones adaptaram a obra no filme A Flintstones Christmas Carol, com Fred Flintstone no papel de Ebenezer Scrooge e Barney Rubble no papel de Bob Cratchit.

Uma outra homenagem às obras de Natal de Dickens é pouco conhecida. À luz da morte do escritor, uma menina que vendia flores às portas de um teatro de Londres falou: "Morreu Dickens? E o Papai Noel, será que morreu também?"

Outra referência feita é no filme O Expresso Polar, com Tom Hanks. Nele o protagonista que não acredita em Natal passa por um vagão no trem atulhado de bonecos. Uma marionete de nariz aquilino apresenta-se como Ebenezer Scrooge e o chama de cético.

Houve também em 1988 uma releitura moderna em Scrooged, onde Bill Murray interpreta o presidente arrogante e sádico, de uma grande empresa de comunicação que é visitado na véspera de natal pelos três fantasmas do natal.

O filme Barbie em a Canção de Natal é considerada a versão feminina de A Christmas Carol. A história fala de Eden Starling, uma cantora famosa (porém egoísta) que odeia o Natal. Há personagens que são análogos: Eden Starling (Ebenezer Scrooge), Catherine Britto (Bob Cratchit) e Marie (Jacob Marley).

Existe também uma versão dos Looney Tunes em que Patolino é dono de uma empresa e odeia a época natalícia.

Em 2009, a Disney lança o filme em 3D, Os Fantasmas de Scrooge, no qual Jim Carrey interpreta Scrooge e todos os fantasmas.

No dia 25 de dezembro de 2010, foi ao ar um especial de Natal da série britânica Doctor Who, que levou o nome "A Christmas Carol", adaptando mais uma vez o conto de natal de Charles Dickens.

E em 2007 um filme de natal do Dennis, o Pimentinha, chamado "O Natal do Pimentinha" (A Dennis the Menace Christmas) onde o Sr. Wilson (Robert Wagner) fala que odeia tudo e todos no Natal, e acaba ignorando sua esposa Martha Wilson (Louise Fletcher), que gosta do Natal, e estragando o Natal de Denis (Maxwell Perry Cotton). Na noite de Natal, é visitado pelo fantasma do natal passado, do presente e do futuro, representado por Bob, o Anjo do Natal (Godfrey Danchimah). Ao vislumbrar o futuro onde Denis é um velho avarento que odeia tudo no Natal, Wilson então volta ao presente e vai se retratar com Martha, a família de Denis e tentar salvar o Natal.

No final de 2011, a DC Comics lançou a graphic novel Batman: Noel. Escrita e desenhada por Lee Bermejo, Batman: Noel mostra o Cavaleiro das Trevas como um amargurado e sem-esperanças Scrooge, Mulher Gato como o fantasma do passado, Superman como o fantasma do presente, e Coringa como o fantasma do futuro.

Fontes:
https://stringfixer.com/pt/The_Cat_Who_Came_for_Christmas
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Christmas_Carol

sábado, 30 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 531

 

Júlia Lopes de Almeida (Incógnita)

– Ah! O senhor conheceu-a?

– De vista.

– Devia ter sido feia!

– Não! Era formosa.

– Que nome tinha, sabe?

– Ignoro... Faz-me o favor do seu fogo?

– Pois não...

Houve uma pausa e, enquanto um dos interlocutores, o que perguntava, examinava com interesse o interior do Necrotério, o outro ia acendendo muito pachorrentamente o seu cigarro.

Em frente deles, sobre o mármore branco de uma das quatro mesas, estava o cadáver de uma mulher.

A claridade frouxa de um dia de inverno entrava pela larga porta e pelas janelas, indo cair sobre o corpo seminu da infeliz, a envolvê-la, como uma grande mortalha transparente.

Tudo triste, tudo cor da neve, tudo frio!

O vento entrava, cortante como uma lâmina bem afiada. No seu nicho, sobre fundo azul, a Virgem da Piedade, sustendo nos joelhos o corpo inerte do Cristo morto, evocava, como um exemplo de profunda agonia, a sua grande dor.

– Infeliz, dizia um dos espectadores, encostado ao umbral, olhando para aquele pavoroso espetáculo, numa fixidez de animal magnetizado.

O cadáver estava inchado pela absorção da agua e já manchado da gangrena. Os cabelos enovelados empastavam-se sobre as clavículas, numas madeixas pretas, curtas, ásperas, sujas de areia e de partículas de algas. Os olhos, entreabertos, pareciam, na sua névoa sinistra e glacial, feitos da água que os havia apagado e que se tivesse coagulado em dois grandes glóbulos gelatinosos e opacos. Expressão medonha, feita pelo terror da onda e pelo terror da morte!

O diálogo continuava:

– O senhor diz que ela não era feia! No entanto parece horrorosa! Como a morte transfigura... como a morte é má!

O outro sorriu-se, respondendo:

– Se estivesse, como eu, habituado a olhar para isto, já se não impressionaria assim. Vá-se embora... está pálido e não convém abusar de uma impressão nervosa.

Separaram-se. E o sujeito que conhecera a desgraçada morta, noutros tempos, em que ela era talvez alegre, jovial, risonha, ia andando despreocupadamente, a bambolear a grossa bengala de castão de prata, e a pensar no almoço do hotel, nas ostras frescas e no vinho leve. O outro, ao contrário, tremia, sentia as palmas das mãos úmidas e gélidas, como se as tivesse passado sobre a carne mole da defunta; olhava com raiva para o mar azul franjado de espuma alvinitente e semeado aqui e além por umas velas brancas como asas de cisne; sentia um cheiro de cadáver e de ácido fênico em tudo, na rua, no próprio fato, no chapéu, no lenço, nas mãos...

Todo esse dia foi para ele de sofrimento; numa obsessão doentia, cismava continuamente nessa morta desconhecida, por quem talvez tivesse passado e a quem talvez tivesse podido socorrer ou aconselhar.

A sua responsabilidade de ente humano ofendia-se àquela revelação de padecimento sem consolo. A felicidade depende às vezes de tão pouco!

Querendo reagir, procurou em vão entreter o espírito, arejá-lo com outras ideias. Afinal, não fora por causa dele que aquela mulher se matara! Depois, não lia ele todas as manhãs, já sem abalo à força do costume, tantas notícias de crimes, tão dolorosas revelações nos jornais?

Por que haveria agora este fato de o impressionar mais que tantos outros? Então, só porque os seus olhos tinham visto aquele corpo imundo, já a sua impassibilidade dava lugar a uma tamanha vibração de nervos?

Devia pensar em outra coisa; queria-o, mas era vão o esforço, à resistência acudia a curiosidade:

– Coitada, por que se teria matado?

Desgraças de amor, naturalmente. Uma paixão; sim, devia ter sido isso mesmo... Quando voltasse para casa passaria outra vez pelo Necrotério... esperava já lá não encontrar o cadáver, sabe-lo reconhecido pela família, tirado dali, daquela exposição ignominiosa.

Àquela hora alguém choraria a seu lado, já haveria flores sobre o seu corpo imundo, e o perdão da família sobre o seu crime nefasto!

Ainda dois dias antes ela devia ter sido bonita, fresca, louçã... Naturalmente aquele por quem ela se matou foi procurá-la, e, humilhado, arrependido, irá acompanhá-la ao cemitério, fazendo-lhe um enterro bonito e espargindo violetas sobre o seu túmulo, com saudosa ternura.

Talvez a matasse uma traição... o amante casaria... o marido amaria outra... a vergonha... o ciúme... Fosse o que fosse, ela estava morta, desfigurada, repugnante, e não lhe podia sair do pensamento, numa obstinação cruel.

E as mãos, e o fato e o lenço cheiravam a defunto e a ácido fênico!

Saiu de novo; girou pelas ruas; aqui um amigo alegre detinha-o, contando-lhe uma anedota picaresca. Os outros riam, ele sorria apenas, condescendentemente, pensando nuns olhos vítreos, parados, e num corpo hirto e manchado de escuro. Entrou num botequim: muita confusão. Gente e música estrepitosa. Mas todas aquelas pessoas, quase todas homens, pareceram-lhe tétricas, sombrias, pensativas. Nem uma gargalhada! Nem um dito de espírito faiscando no ar; bulha de passos, tilintar de vidros e metais, unicamente rostos amarelados, olhos fixos no café das xícaras, e ao fundo uns músicos, vibrando os seus instrumentos com desespero, num interesse de ganho mercenário.

Achou estúpido aquilo e saiu.

Mas na rua, como em casa, sentia o mesmo cheiro e o mesmo desgosto. Sempre aquela mesa de mármore branca, inclinada, a Virgem no seu nicho de madeira, e o cadáver da afogada, com os olhos abertos e as algas mirradas presas no cabelo.

Entretanto o outro, que a conhecera, já nem pensava nela...

E no espírito do impressionado rapaz voltava de vez em quando a impertinente pergunta:

– Por que se mataria... por quê?...

Voltando para casa, parou de novo no Necrotério. A morta já lá não estava. Sobre a mesa que ela tinha ocupado, agora vazia, o sol punha, através dos vidros vermelhos e amarelos das janelas, umas rosas de luz cor de ouro e cor de sangue. Trouxe-lhe aquilo algum sossego, mas não se coibiu de perguntar com interesse ao guarda se a infeliz fora, enfim, reclamada pela família.

– Não, senhor, respondeu-lhe o guarda com amabilidade, ajeitando no pescoço um lenço de lã azul.

– Então ninguém a reconheceu?!

– Ninguém.

– Ninguém a procurou?

– Ninguém.

– Coitada!

O guarda espantou-se de ver brilharem de comoção os olhos daquele importuno perguntador, que no entanto ia dizendo:

– Não teve a desventurada pai, irmão ou amigo que lhe viesse dizer um último adeus! Que coisa triste...

– Ninguém, repetiu o guarda; foi daqui para o cemitério.

– Antes a tivessem deixado no mar...

– Sim, mais valia...

O rapaz não respondeu; olhou outra vez para a mesa, onde tremulavam as rosas de sol, e seguiu.

Talvez se tivesse matado por ser sozinha. A mulher é uma eterna criança, precisa sempre que a conduzam pela mão... Sem lar, sem amor, sem amparo e sem conselhos, como poderia resistir e viver neste mundo? Faltou-lhe talvez o esposo... um amigo dedicado... talvez a mãe... um braço salvador, enfim, que a sustivesse em um outro nível.

Pobre rapariga! fascinou-a naturalmente a cor misteriosa do oceano, ora verde, ora azul... Supôs poder dormir entre os corais e as conchas nacaradas, enquanto as ondas rolassem sobre o seu corpo, marulhosamente!

Seria louca? É possível. Um pouco de espuma aparecendo e sumindo-se assemelhar-se-ia a um aceno que a chamasse...

Incógnita! passando pela terra sem deixar ninho nem vestígio, afundou-se no mar repentinamente, com todas as suas desilusões, ou quem sabe? Com todas as suas esperanças!

Talvez que ele, ele mesmo, já a tivesse visto e beijado!

Esta ideia fê-lo estremecer. Viu fixarem-se nos seus os olhos terríveis e impenetráveis da morta, nublados de cinzento, a cor sombria e muda.

Interrogou as suas reminiscências. E a voz do guarda pareceu dizer-lhe de novo, ao ouvido:

– Ninguém...

No caminho percorrido da sua vida, não a vira nunca. Antes assim! E ele respirou.

Por que se obstinava em pensar nela? Que estranho poder era esse, prendendo-o de tal forma a uma desconhecida? Vira-a pela primeira vez já morta, já putrefata e asquerosa. Acabou-se. A vida é bem pouca coisa para que a gente se ocupe tanto dela!...

Entrando em casa, a esposa correu a recebê-lo com a filhinha; ele beijou-as com ternura, demoradamente, sentindo como nunca a alegria inefável de proteger alguém.

Depois contou-lhes tudo, a sua dolorosa impressão, diante da mesa inclinada do Necrotério, onde um cadáver de mulher mostrava o rosto amarelo e os cabelos ásperos, sujos de areia e de algas secas.

Acabada a narração, a esposa tinha os olhos rasos d’água, e a vozinha débil da filha murmurava:

– Logo à noite, mamãe há de me fazer rezar pela afogada, sim?

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.