domingo, 31 de maio de 2009

John Maxwell Coetzee (Diário de um Mau Ano)



Gênero: Ficção

«Diário de um Mau Ano» é um misto de romance e compilação de pequenos ensaios, com uma estrutura original em que cada página está dividida em três partes: a primeira com os ensaios propriamente ditos, a segunda com o diálogo entre o escritor dos ensaios e a sua datilógrafa, Anya, e a terceira com o diálogo entre esta e o seu marido, Alan.

O romance baseia-se na história da escrita dos ensaios, elaborados por um escritor em final de vida que assume que já não tem capacidade para escrever romances e que por isso aceitou um convite de uma editora para que participasse num livro que reune ensaios de vários escritores. Atraído por uma jovem que mora no mesmo prédio, convida-a para que seja sua datilógrafa, sob a suspeita do seu marido de que o escritor pretenda algo mais. No desenrolar da história, criam-se e acentuam-se as divergências entre Alan e os escritos de JC, algo ingênuos do ponto de vista de Anya e completamente ultrapassados segundo o ultra-liberal Alan. À medida que se estreita uma relação de amizade e compaixão entre Anya e JC, o radicalismo de Alan acentua-se conduzindo a narrativa a uma situação de ruptura entre as personagens, num desenlace onde os valores de JC são postos à prova.

Os ensaios são pertinentes na forma como abordam as temáticas contemporâneas subjacentes (em 2007), assim como pertinentes são os comentários de Anya e Alan aos mesmos. Num jogo em que o leitor pode ser levado a pensar que as opiniões transmitidas nos ensaios equivalem às opiniões de Coetzee, os comentários das outras duas personagens a essas mesmas opiniões funcionam como um contraponto, que convidam a uma reflexão e a uma chamada de atenção sobre as várias formas de abordar cada temática e as sensibilidades que podem ser tomadas relativamente à mesma, prevalecendo, nas temáticas mais explosivas, o bom senso de quem menos sabe sobre as mesmas, Anya.
Os ensaios:

1. Sobre as Origens do Estado ; 2. Sobre o Anarquismo ; 3. Sobre a Democracia ; 4. Sobre Maquiavel ; 5. Sobre o Terrorismo ; 6. Sobre os Sistemas de Guiagem ; 7. Sobre a Al-Qaeda ; 8. Sobre as Universidades ; 9. Sobre a Baía de Guantanamo ; 10. Sobre a Vergonha Nacional ; 11. Sobre a Maldição ; 12. Sobre a Pedofilia ; 13. Sobre o Corpo ; 14. Sobre o Abate de Animais ; 15. Sobre a Gripe das Aves ; 16. Sobre a Competição ; 17. Sobre o Desígnio Inteligente ; 18. Sobre Zenão ; 19. Sobre as Probabilidades ; 20. Sobre os Assaltos ; 21. Sobre os Pedidos de Desculpa ; 22. Sobre o Asilo na Austrália ; 23. Sobre a Vida Política na Austrália ; 24. Sobre a Esquerda e a Direita ; 25. Sobre Tony Blair ; 26. Sobre Harold Pinter ; 27. Sobre a Música ; 28. Sobre o Turismo ; 29. Sobre o Uso do Inglês ; 30. Sobre a Autoridade na Ficção ; 31. Sobre a Outra Vida

1. Um Sonho ; 2. Sobre a Correspondência de Admiradores ; 3. O Meu Pai ; 4. Insh'allah ; 5. Sobre a Emoção das Massas ; 6. Sobre a Barafunda da Política ; 7. O Beijo ; 8. Sobre a Vida Erótica ; 9. Sobre o Envelhecimento ; 10. Ideia para uma História ; 11. La France Moins Belle ; 12. Os Clássicos ; 13. Sobre a Vida da Escrita ; 14. Sobre a Língua Materna ; 15. Sobre Antjie Krog ; 16. Sobre Ser Fotografado ; 17. Sobre Ter Pensamentos ; 18. Sobre os Pássaros do Ar ; 19. Sobre a Compaixão ; 20. Sobre as Crianças ; 21. Sobre a Água e o Fogo ; 22. Sobre o Enfado
23. Sobre J.S. Bach ; 24. Sobre Dostoievski

Excerto:

O Estado coloca um escudo à volta da economia. Além disso, por enquanto, por falta de melhor meio, toma as decisões macroeconomicas quando precisam de ser tomadas e fá-las cumprir; mas isso é outra história para outro dia. Escudar a economia não é banditismo, Anya. Pode degenerar em banditismo, mas estruturalmente não é banditismo. O problema do teu Señor C é que não é capaz de pensar estruturalmente. Para onde quer que olhe, vê motivos pessoais em ação. Quer ver crueldade. Quer ver ganância e exploração. Para ele é tudo um jogo de moralidade, o bem contra o mal. O que ele não consegue ver ou se recusa a ver é que os indivíduos são jogadores numa estrutura que transcende os motivos individuais, que transcende o bem e o mal. Até os tipos de Camberra e das capitais dos Estados, que podem realmente ser bandidos a nível pessoal - nesse ponto estou disposto a dar a mão à palmatória -, que podem andar a traficar influências e a roubar massa à sorrelfa e a juntá-la para o seu futuro pessoal, até esses tipos trabalham dentro do sistema, quer se apercebam disso, quer não.

Dentro do mercado, digo eu.

Dentro do mercado, se quiseres. O que está para além do bem e do mal, como disse Nietzsche. Bons motivos ou maus motivos, no fim de contas são apenas motivos, vetores da matriz, que a longo prazo acabam por se nivelar. Mas o teu fulano não vê isso. Ele vem de outro mundo, doutra era. O mundo moderno está para além dele.

Fonte:
Citador

Herman Hesse (O Lobo das Estepes)



Gênero: Romance
Título Original do Alemão: Der Steppenwolf

Profundamente auto-biográfica, esta obra revela todo o pensamento tortuosamente poético de Hesse. Numa síntese perfeita do seu misticismo oriental e da sua dimensão poética, Hesse constrói uma narrativa angustiada mas sentida, poética mas real, complexa mas terrivelmente bela.

Harry Haller é o rosto da tristeza, o Lobo das Estepes, melancólico, perdido na vida, na busca permanente de um sentido que o faça compreender a existência. Sem destino definido, sem explicações a dar a si mesmo para a impossibilidade de compreender o mundo, Harry é um ser errante, dilacerado pela dúvida, pela desesperada necessidade de compreensão da alma e da busca da sua libertação. Recusa o mundo sem forças nem coragem para dele se demarcar. Anti-burguês, tortura-se porque não consegue demarcar-se de uma vivência burguesa, como que encarcerado no ambiente que o rodeia.

No meio da tortura da vida, vai descobrindo que a dualidade do seu ser: o lobo que de vez em quando se torna burguês ou o ser emotivo que por vezes assume a racionalidade; o lobo ou o homem. Mas a sua angústia não se resolve com a constatação destes antagonismos; a pouco e pouco, no entanto, vai descobrindo que o ser humano não é duo mas múltiplo: ele não é a soma de dois “eus”, duas forças mais ou menos antagônicas que o ser humano por vezes parece ser. A sua personalidade é um campo de batalha entre muitas forças que por vezes se complementam outras se digladiam. Mas na maior parte das vezes estas faces do caleidoscópio revelam-se incompatíveis, causando angústia e desespero. Só enfrentando esta multiplicidade e assumindo estas múltiplas dimensões, o ser humano pode encontrar a felicidade. Tornar-se-á louco aos olhos do mundo; no entanto, feliz!

A necessidade de auto-conhecimento, de compreensão profunda do ser e do sentido da vida avassala Harry até ao dia em que, no limiar da salutar e redentora loucura, descobre a verdadeira raiz da felicidade: o humor. Compreende o que consegues compreender e ri-te de tudo o resto, poderia ser uma espécie de lição a retirar deste livro. Daí a referência recorrente a Mozart: o exemplo da loucura saudável, do gênio que ri daquilo que não compreende.

Esta descoberta faz com que o final da obra seja surpreendente. A angústia, o medo, o desespero dão lugar ao hilariante mundo da loucura, das mil e uma faces da alma.

Fonte:
Citador

sábado, 30 de maio de 2009

Trova XII

Montagem sobre pintura a óleo da Toucan Art

André Masini (A Rocha e a Espuma)


ADEUS MEU PORTO, ADEUS

Se menos áspero este mundo fosse,
Do adeus a ti, menor a dor seria.
Se à frente te aguardassem só alegrias.
Se meu futuro parecesse doce.

Não choro nosso amor, pois acabou-se,
Nem qualquer esperança que haveria,
Mas cada noite ameaçadora e fria,
cada tormenta que'essa vida trouxe.

Qual caravelas rotas, desvalidas,
que pela proa têm medonho mar
lançando ao porto amarga despedida,

nos separamos. Ô, Desatracar!
Na lógica implacável desta vida,
também se morre de no porto estar.
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A CAMINHO DO VULCÃO EL REVENTADOR

I

Diante de mim se descortina o dia,
chegado no silêncio mais profundo.
Recordo, lá de baixo, os sons do mundo.
Absoluto contraste... Calmaria.

Tons violáceos se mesclam - tão bonito -
à névoa branca etérea - inconstante.
À distância vislumbro em breve instante
um rio, que serpenteia ao infinito.

De outros vulcões, os picos entre as nuvens.
Escarpas sóbrias, perfiladas linhas.
Beleza em que se mostra o próprio Deus.

Serenidade e paz imperturbáveis.
De humanas emoções, somente as minhas.
De humanos sentimentos, só os meus.

II

No breu da noite, avança a escalada,
à tênue luz, de pilhas – que se esvai,
que ao lado mostra líquens – sempre iguais,
e ao longe, o negro, impenetrável nada.

Visões do dia, que o cansaço traz:
– a lava: mar de rocha que soterra
a mata exuberante desta serra;
– a chuva; – a lama; – e escarpas abissais.

Porém, cá em cima, a terra é uniforme.
mundo de pedra e líquens, tão enorme…
que todo o mais que existe, eu quase esqueço.

A névoa então se abre e me revela,
como um buraco em meio ao céu de estrelas,
o imenso vulto negro… Estremeço!
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Sinopse do Livro
"Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa" é uma coletânea de poesias de autores clássicos da língua inglesa em edição bilíngüe, que traz poemas originais de autores clássicos - Poe, Yeats, Keats, Wordsworth, Dickinson, Henley - apresentados lado a lado, verso a verso, com sua tradução literal.

Os poemas são mostrados e explicados ao leitor brasileiro através de grande quantidade de notas, que elucidam não apenas os significados de palavras e estruturas sintáticas, mas também os elementos sonoros, rítmicos, e outros recursos poéticos.

Cada autor é apresentado por meio de uma pequena biografia. Através de todos esses elementos o tradutor e organizador revela o caminho que percorreu para chegar à sua tradução final em verso.

Este livro é indicado não apenas a estudantes e professores de língua inglesa e tradução, mas a todos que desejam ter a experiência de vivenciar a poesia em outro idioma.
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Fontes:
– Poesias e Capa do Livro: MASINI, André Carlos Salzano. Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa/ Poesias de André C.S. Masini. São Paulo: A.C.S. Masini, 2000.
– Sinopse do livro. Casa da Cultura.

André Masini (1960)


André Carlos Salzano Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Estudou no I.E. Caetano de Campos e no Colégio Arquidiocesano. Aos 12 anos escreveu sua primeira história, "A invasão dos gatos pretos" (hoje perdida), que tinha como personagens os meninos e meninas de sua rua. Mas apesar de ter dedicado bastante tempo para concluir esse manuscrito de vários capítulos, ele não havia pensado no motivo que o levava a escrever nem no que pretendia fazer com a história.

A partir dos 15 anos passou a se interessar por biologia e ecologia. Tornou-se membro de um ativo grupo de estudos de história natural (o GHISNAT), que realizava freqüentes excursões à mata-atlântica. Acabou se acostumando com a Serra do Mar, onde acampava freqüentemente, muitas vezes em regiões remotas. Quando tinha 16 anos viveu nos EUA por cerca de um ano, aprendendo fluentemente a língua inglesa. Aos 17 anos, junto com outros membros do GHISNAT fundou o "Sobrevivência", um jornal de ecologia, que só teve um número, com 4 páginas. Também aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "O monte além do deserto", que existe até hoje em manuscrito.

A escolha da faculdade foi difícil. Ele queria estudar "Ciências Naturais", uma carreira excessivamente ampla, que há décadas já havia sido desmembrada. Teve então que optar por uma única ciência entre biologia, física, química, ecologia e geologia. Acabou escolhendo esta última. Ao fim do 2º ano de colégio, em 1978, passou no vestibular para Ciências da Terra na USP, mas não pôde se matricular por não ter o 3º ano completo. Passou novamente em 1979, e desta vez pôde cursar.

Durante a faculdade foi um dos membros da diretoria colegiada do centro acadêmico da Geologia. Na mesma época, começou a estudar filosofia por conta própria e a interessar-se por redação publicitária. Passou a fazer o exercício de analisar e reescrever alguns anúncios que via em revistas. Resolveu apresentar essas suas versões a agências de publicidade que, de modo geral não apreciaram muito a iniciativa. Mas uma delas gostou do trabalho e, mais tarde, acabou oferecendo-lhe um emprego como redator publicitário.

Ao se formar em geologia, trabalhou em mineração na Bahia e também um pouco em Goiás e Minas. A partir de 1985 passou a trabalhar como geólogo autônomo, participando de trabalhos em diversos estados, incluindo São Paulo, Minas, Goiás, Mato Grosso, Bahia, Tocantins e Pernambuco, atividade que manteve depois, de forma intermitente, até início de 1994. Durante 1985 trabalhou também como redator publicitário, na Link Publicidade Ltda. No segundo semestre desse ano criou junto com um sócio a Craft Comunicações, um estúdio de criação publicitária, que sobreviveu apenas seis meses. No fim desse ano escreveu a primeira versão de HUMANOS, com o título de A CLASSE HUMANA.

Em 1986 foi contratado pela ELC Electroconsult – uma grande empresa italiana de engenharia, que operava em todo o mundo. A empresa precisava de um geólogo jovem, com prática de mapeamento, que aceitasse viver na selva, e que falasse fluentemente inglês e italiano. André foi para o Equador, onde trabalhou por um ano na cordilheira oriental dos Andes, no edifício vulcânico do Vulcão El Reventador, região de florestas e campos de lavas intocada pelo ser humano; um dos lugares mais chuvosos do mundo, um ambiente imaculado, com pontos que para serem atingidos necessitavam de quatro dias de caminhada. Muitas dessas incursões eram realizadas solitariamente ou com a companhia de um único “machetero”.

De volta ao Brasil, trabalhou em uma empresa de engenharia como geólogo, mas, com a escassez cada vez maior de trabalhos de geologia, foi pouco a pouco passando, na própria empresa, a trabalhar como analista de suporte, analista de sistemas e programador. Mas tarde tornou-se analista independente, prestando serviços desenvolvimento, implantação, treinamento e manutenção de sistemas para diversas empresas pequenas. Paralelamente realizou pequenos trabalhos autônomos como geólogo.

Em fins de 1993 foi morar na Austrália, mas as coisas por lá não correram como planejado, acabou voltando para o Brasil no ano seguinte.

A volta não planejada para o Brasil não foi fácil. André teve de se adaptar a trabalhar como programador C e Assembler, em uma empresa de processamento e armazenamento de imagens. Quando esse trabalho acabou, as coisas se tornaram ainda piores. Para ele, a área de sistemas de informação, com o domínio absoluto do Windows, tornava-se cada dia mais decepcionante: com a mudança do foco das atenções – que originalmente estava nas coisas que realmente importam, como a integridade dos dados e a otimização dos recursos – para frivolidades como telas coloridas ou outras distrações. A mudança do tipo de diálogo entre o analista e o cliente – que originalmente era técnico e sério – para uma encenação mistificadora, em que todos fazem pose, mas ninguém sabe exatamente do que está falando. Uma mudança que, para quem pretendia ser profissional de informática, e não ator canastrão, tornava as coisas bastante sombrias. Profissionalmente, foram anos difíceis.

Mas, em meio a isso tudo, André continuava a escrever. Começava a preparar a segunda versão de HUMANOS, escrevia poesias e contos, e trabalhava em uma obra sui generis uma mistura de ensaio estético-histórico-filosófico com manifesto poético. Ele também continuava a apresentar seus trabalhos a editoras e a colecionar as educadas cartas de recusa que recebia (isso quando as editoras sequer se dignavam a responder).

Em 1996, com a situação na informática cada vez mais sombria, decidiu estudar para o concurso para Auditor Fiscal do Tesouro Nacional (hoje Auditor Fiscal da Receita Federal) e acabou passando no concurso em junho desse ano. Enquanto esperava ser chamado, continuou a escrever obstinadamente: concluiu seu manifesto poético e a segunda versão de HUMANOS, e "editou" ambos em impressora a laser. O manifesto poético recebeu algumas duras críticas.

No fim de 1997 André tomou posse no cargo de AFRF, em Cascavel, no oeste do Paraná. Nessa nova situação, ele aos poucos foi sentindo que nunca seus trabalhos literários haviam estado tão longe dos leitores. Em 1999, ele caiu de cama com uma hepatite A que se agravou, ficou meses deitado sem forças. Mas essa situação o levou a refletir sobre sua vida e a finalmente entender que nenhuma editora, nem ninguém, iria sequer examinar o valor de seu trabalho se ele não fizesse algo. Assim, ao se recuperar da doença, decidiu que editaria ele próprio seus livros. Publicou Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa em 2000, e Humanos em 2002 (a terceira versão da obra). Dedica-se também, desde 2000 à coleta de material e estudos para um livro ainda inédito: uma abordagem filosófica ampla da transgressão e da punição. Além disso deu palestras em universidades sobre poesia, tradução e sobre Edgar Allan Poe e O Corvo. Humanos conquistou um bom espaço na imprensa de vários estados brasileiros, inclusive em programas de televisão de âmbito nacional, principalmente considerando-se o fato de ser uma edição do autor.

Em 2001 casou-se com Elizangela de Carli. Em 2002 nasceu sua primeira filha, Talita Luísa.

Em abril de 2003 passou a escrever uma coluna semanal (que saia às quartas feiras) no jornal O Paraná. Ocupou esse espaço com textos de gêneros diversos, como artigos sobre política e conjuntura internacional, crônicas, contos humorísticos, e artigos filosóficos sobre a época em que vivemos. Os artigos receberam uma resposta bastante positiva, tanto dos leitores locais, como de outros jornais, que solicitaram permissão para republicações, entre eles o Jornal da União Brasileira dos Escritores.

Em 2004, por problemas de saúde ligados ao excesso de atividade, André deixou de escrever sua coluna no jornal. Mas continua a trabalhar em sua obra filosófica sobre a transgressão e a punição.

A Casa da Cultura foi idealizado por ele em 2003, mas atualmente, participa dela com idéias gerais, e ocasionalmente redigindo algum texto. Toda a gerência executiva do site está a cargo de sua esposa Elizangela de Carli Masini.

Fonte:
Casa da Cultura.

Geoffrey Chaucer (excertos de "Os Contos de Cantuária")


Excertos do Prólogo

Quando o chuvoso abril cortou feliz
A secura de março na raiz,
E banhou cada veia no licor
Que tem o dom de produzir a flor;
Quando Zéfiro com o alento doce
Para as copas e os campos também trouxe
Tenros brotos, e o sol de pouca idade
Do curso em Aries percorreu metade,
E a passarada faz o seu concerto,
E dorme a noite inteira de olho aberto
(Que a natureza acende o coração),
Então se vai em peregrinação,
E até nos mais inóspitos confins
Aos santuários chegam palmeirins;
Enquanto na Inglaterra toda gente
Visita Cantuária especialmente,
A fim de conhecer a sepultura
Do santo mártir que lhes trouxe cura.
Naquele tempo, um dia aconteceu
Que em Southwark, no Tabardo, achando-me eu
Pronto a seguir em peregrinação
A Cantuária, todo devoção,
Vieram essa noite à hospedaria
Bem vinte e nove numa companhia
De pessoas diversas que os destinos
Reuniram, por serem peregrinos
Buscando o mesmo fim de igual maneira.
Eram amplos os quartos e a cocheira,
E assim tivemos lá ótimo pouso.
E logo quando o sol buscou repouso,
Falara com cada um, se bem me lembro;
Assim, da comitiva fiquei membro,
E concordei em levantar-me cedo
Para partir, como a narrar procedo.
Potêm enquanto tenho tempo e espaço,
E antes que nesta história avance o passo,
Creio de bom alvitre e boa razão
De cada um descrever a condição,
Mostrando, em meu juízo pessoal,
O modo de posição de cada qual,
E também suas roupas e ativo:
E com um cavaleiro principio. (vv. 1-42)


O CAVALEIRO

Havia um Cavaleiro, um homem digno,
Que sempre, tendo as armas como signo,
Amou a lealdade e a cortesia,
A honra e a franqueza da cavalaria.
Nas guerras de seu amo lutou bem,
E mais distante não andou ninguém,
Entre os pagãos ou pela cristandade;
E sempre honrado por sua dignidade.
Já vira Alexandria prisioneira;
Muitas vezes tomara a cabeceira,
Precedendo às demais nações na Prússia;
A Lituânia visitara, e a Rússia,
Onde cristão tão nobre não se vira.
Em Granada, no cerco de Algecira,
Estivera também, e em Belmaria.
Passou depois por Ayas e Atalia
Quando Caíram, e no Grande Mar
Pôde altos desembarques presenciar
Travou lutas mortais, uma quinzena,
E pela fé bateu-se em Tramassena,
Em três justas, matando ao inimigo,
A este bravo levou então consigo
Certa vez o senhor de Palatia,
Contra um outro pagão lá na Turquia:
Louvores mereceu de todo lábio.
E, além de ser valente, ele era sábio,
Modesto qual donzela na atitude,
Pois jamais dirigiu palavra rude,
Em toda a vida, a estranho ou companheiro.
Era um gentil, perfeito cavaleiro.
Quanto à aparência, era isto que vos falo:
Simples no traje; bom o seu cavalo.
Via-se a grossa túnica manchada
Pela cota de malha enferrujada,
Pois voltava de mais uma missão,
Saindo logo em peregrinação. (vv. 43-78)


A PRIORESA

E estava lá uma freira, prioresa.
Sorria assim como a modéstia sói,
E, se jurava, era por Santo Elói
Essa dama chamava-se Eglantina.
Sempre cantava a prática divina
Com voz fanhosa tal como convém;
Falava ela francês bonito e bem,
Como em Stratford-at-Bow a gente o diz,
E não com o sotaque de Paris.
Sua conduta à mesa era educada;
Da boca não deixava cair nada,
Nem no molho afundava muito os dedos.
Da graça no comer tinha os segredos,
Sem uma gota respingar no peito.
O seu refinamento era perfeito.
Limpava tanto o lábio superior
Que a taça em que bebia o seu licor
Nenhum indício tinha de gordura;
Sabia ela servir-se com finura.
E era de ânimo alegre, certamente,
E se mostrava amável e contente;
As etiquetas copiava inteiras
Da corte, para ter boas maneiras
E de todos granjear a reverência.
Para falar, porém, de Sua consciência,
Tinha tanta piedade e fino trato,
Que até chorava quando via um rato
Morto na ratoeira, ou a sangrar
Os seus cãezinhos vinha alimentar
Com pão branquinho e leite e carne assada.
Mas, se um deles levasse bastonada,
Ou se morresse, ardia de aflição:
Era toda consciência e compaixão.
O véu pregueado lhe estava mal;.
Nariz reto; olhos cinza, de cristal;
Pequena a boca rúbida e macia;
Bela testa sem dúvida exibia,
Com quase um palmo de largura, eu acho;
Não era nada magra por debaixo
Das vestes, apropriadas por sinal.
Tinha ao braço um rosário de coral
Com as contas maiores esverdeadas,
E um medalhão de refrações douradas
Onde se lia, coroado, um A,
E depois: Amor vincit omnia. (vv. 118-162)


O MÉDICO

Conosco estava um MÉDICO também;
Em todo o mundo não existe alguém
Tão bom em medicina e cirurgia,
E alicerçado assim na astronomia.
Previa a hora propícia contra o mal
Pelo uso da magia natural.
Com firmeza traçava ele o ascendente
Dos amuletos para o seu paciente.
Via a causa de cada enfermidade
No frio, calor, secura ou umidade,
Onde nascia, e qual o seu humor;
Era um perfeito, um ótimo doutor.
Sabendo a fonte de onde o mal provinha,
Receitava ao enfermo sua mezinha,
Surgiam a seguir os boticários
Com suas drogas e remédios vários,
Pois a esta classe aquela classe obriga
Numa amizade já bastante antiga;
Seu Esculápio conhecia bem,
Rufus e Deiscórides também,
O velho Hipócrates, Ali, Galeno,
Serapião, Razis e Damasceno;
Avicena, Averróis e Constantino;
Bernardo e Gatesden e Gilbertino.
Tinha a dieta muito moderada,
Pois de supérfluo não comia nada,
Mas só alimento rico e digestivo.
Em ler a Bíblia parecia esquivo. É
De vermelho e de azul vinha vestido;
De seda e tafetá era o tecido
Gastava o seu dinheiro com cuidado,
Guardando o que na peste havia lucrado.
Como o ouro entre os cordiais tem mais valia,
Ao ouro mais que tudo ele queria. (vv. 411-444)

A MULHER DE BATH

Uma mulher de Bath havia em cena;
Mas era meio surda, o que era pena.
De bons tecidos era fabricante,
Chegando a superar Yprês e Gante.
Tirar-lhe alguém na igreja a precedência
No beijo da relíquia era imprudência,
Porque ela abandonava as boas maneiras
E perdia de vez as estribeiras.
Seus lenços, feitos das melhores fibras,
Por certo pesariam bem dez libras,
Que aos' domingos na testa carregava.
Nas calças justas o escarlate usava,
E era novo e macio o seu calçado;
Rosto atrevido, belo e avermelhado.
Em sua vida digna. e benfazeja
Cinco vezes casara-se na igreja —
Fora os casos de sua juventude
(Falar disso, porém, seria rude).
Com três viagens a Jerusalém,
Atravessara rios mais que ninguém;
Em Roma tinha estado, e mais Boulogne;
Na Galícia, em Santiago, e então Colônia.
Vira assim muitas coisas diferentes.
Mostrava uma janela entre seus dentes.
Num cavalo equipado, usando um véu,
Cavalgava debaixo de um chapéu
Mais largo que um broquel ou que um escudo;
Sobre os amplos quadris, um sobretudo;
De esporas pontiagudas se servia.
Ria e tagarelava em companhia.
Dos remédios de amor tinha abundância,
Pois dessa arte sabia a velha dança. (vv.445-476)

A SUGESTÃO DO TABERNEIRO

"Senhores", disse, "agora eis o melhor;
E fazer pouco caso ninguém deve.
Este o ponto - serei rápido e breve:
Que cada um, já que a estrada é tão comprida,
Conte dois contos na viagem de ida
A Cantuária, e que, também depois,
Na volta, cada qual conte mais dois,
Sobre casos antigos do passado;
E aquele que melhor tiver contado,
Ou seja, quem narrar, na circunstância,
Os contos de mais graça e mais substância,
Vai ganhar de nós todos um jantar,
Sentado mesmo aqui neste lugar,
Quando acabar-se a peregrinação.
E, para que haja mais animação,
Eu com prazer me agrego à companhia,
Às minhas próprias custas, como guia.
E quem contradisser meu julgamento
Das despesas fará o pagamento.
Se com isso vós todos concordais,
Dizei-me logo,, não se fala mais,
E eu vou me preparar para a partida." (vv. 788-809)
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Existem ainda em Os Contos de Cantuária:

O conto do Moleiro
O conto do Feitor
O conto do Cozinheiro
O conto do Magistrado
O conto do Homem-do-mar
O conto de Chaucer sobre Sir Topázio
O conto de Chaucer sobre Melibeu
O conto do Monge
O conto do Padre da Freira
O conto do Frade
O conto do Beleguim
O conto do Estudante
O conto do Mercador
O conto do Escudeiro
O conto do Proprietário de Terras
O conto do Vendedor de Indulgências
O conto da Outra Freira
O conto do Criado do Cônego
O conto do Provedor
O conto do Pároco
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Fonte:
VIZIOLI, Paulo. A Literatura Inglesa Medieval. São Paulo: Nova Alexandria, 1992. Edição bilíngüe

Geoffrey Chaucer (c. 1340 – c. 1400)



Geoffrey Chaucer nasceu em Londres por volta de 1340. Foi pajem da Condessa de Ulster e depois de algum tempo combateu na França, onde caiu prisioneiro em 1359. Foi resgatado pelo rei Eduardo III, por uma quantia inferior à que o monarca pouco antes pagara por um cavalo. De volta à Inglaterra, casou-se e passou a servir na corte. O novo ambiente e as viagens que, de 1370 a 1378, fez à França aumentaram o seu interesse pela literatura desse país. Também entrou em contato com a literatura da Itália, península que visitou duas vezes (em 1372 e 1378) no cumprimento de missões diplomáticas. O poeta faleceu, ao que parece, em 1400.

A obra de Chaucer é geralmente dividida em três períodos: o francês, o italiano e o inglês. No primeiro, que se inicia com a tradução do Roman de la rose, ele imitou os modelos da poesia palaciana francesa. As melhores obras dessa fase foram The boke of the duchesse (O livro da duquesa) e The parlement of foules (O parlamento das aves). No período seguinte (1370-1384) Chaucer introduz temas e técnicas inspiradas principalmente por Dante e Boccaccio. A influência de Dante esta presente em alguns ecos no esquema rítmico dos decassílabos e na elaboração de The house of fame (A casa da fama) em forma de sonho. Por outro lado, o poeta inglês encontrou em Il Filostrato e na Teseida de Boccaccio os argumentos para TroyIus and Cryseide, uma de suas maiores obras, e para o poema que depois figuraria nos Contos de Cantuária como "O conto do cavaleiro". Na mesma fonte (e em Ovídio) colheu o material para a coletânea incompleta de histórias trágicas em tomo de mulheres famosas do passado, The legende of good women. Finalmente, ao último período (1384-1400) pertence a sua obra, máxima, The Canterbury Tales (Os contos de Cantuária), onde o seu gênio se revela livre e plenamente.

Na verdade, Os contos de Cantuária constituem uma gigantesca pintura da sociedade da época e, pela variedade dos gêneros em que se enquadram os diferentes contos, apresenta um panorama completo da literatura medieval. Mais que tudo isso, porém, é uma análise profunda da natureza humana, realizada com humor e simpatia.

O plano geral da obra é simples. Vários peregrinos, que pretendem visitar o túmulo de Santo Tomás Becket em Cantuária, reúnem-se por acaso na taverna do Tabardo, ao sul de Londres, e, por segurança, resolvem cavalgar juntos. Para que a viagem transcorra mais agradavelmente, o taberneiro sugere que cada um conte duas histórias na ida e duas na volta, prometendo um belo jantar ao melhor narrador. Como os peregrinos (com Chaucer) eram trinta, o livro deveria perfazer 120 histórias; mas o poeta não chegou a escrever três dezenas. Os contos são precedidos por um "Prólogo", onde se faz a apresentação das personagens. Nessa galeria de retratos há representantes da baixa aristocracia (o Cavaleiro e seu filho Escudeiro), do clero (a Prioresa, o Monge, o Frade, a Freira, o Secretário da Freira, o Oficial de Justiça Eclesiástica, o Pároco pobre, o Estudante de Oxford e o Vendedor de Indulgências), da burguesia (o Mercador, o Médico, o Advogado, a Fabricante de Tecidos — conhecida como a Mulher de Bath — e o Proprietário de Tentas) e das classes inferiores (como o Moleiro, o Feitor, o Provedor, o Carpinteiro, o Tapeceiro, o Marujo, o Cozinheiro, o Camponês e vários outros). Ao descrever cada tipo, Chaucer demonstra os mais variados sentimentos, desde a admiração pelo Cavaleiro e o afeto pelo Pároco pobre até a crítica sutilmente irônica à Prioresa e a mal disfarçada reprovação pelo Vendedor de Indulgências. Mas a nenhum deles permanece indiferente, procurando retratá-los não com a parcialidade do moralista rigoroso, mas com a objetividade do observador perspicaz e tolerante, que ama a vida e compreende a natureza humana.

A grandeza do autor se torna ainda mais evidente quando notamos que cada narrador conta uma história quase sempre de acordo com sua profissão, seu nível cultural e seu temperamento. Assim, o "Conto do Cavaleiro" é, muito apropriadamente, um romance em estilo nobre e trabalhado; os contos do "Moleiro" e do "Feitor", indivíduos grosseiros das camadas inferiores, são fablieaux obscenos; o “ Conto do Vendedor de Indulgências" é, ironicamente, um exemplum moralista; o "Conto do Pároco" não passa de longo sermão sobre os sete pecados capitais; e assim por diante.

Bibliografia:

Há duas edições muito boas das obras completas de Chaucer. Uma delas é a de W.W. Skeat, The complete works of Geoffiey Chaucer (Oxford, 1594-97), em sete volumes; e a outra, em apenas um volume, é a de F.N. Robinson (ed. revista, Boston1 1957), também intitulada The complete works of Ceoffiey Chaucer. Quanto as traduções modernas de The Canterbury Tales, recomendamos a de Nevill Coghíll (Penguin, 1951).

Traduções de Chaucer para o português também podem ser encontradas: Olívio Caeiro, G. Chaucer: Os contos de Cantuária ("Prólogo Geral", "0 conto do Cavaleiro" e "O conto da Mulher de Bath"), Lisboa: Brasília Editora, 1980; e Paulo Vizioli, G. Chaucer: Os contos de Cantuária (tradução integral em prosa), São Paulo: T.A. Queiroz, 1988 (1ª reimpressão, 1991).

Fonte:
VIZIOLI, Paulo. A Literatura Inglesa Medieval. São Paulo: Nova Alexandria, 1992. Edição bilíngüe

Ryunosuke Akutagawa (Rashômon)



Era o entardecer. Um servo de baixa condição esperava, sob o Rashômon, que a chuva passasse.
Sob o grande portal não havia mais ninguém. Somente um grilo pousado na enorme coluna circular, que tinha partes descascadas em seu vermelho laqueado. Uma vez que o Rashômon se situava na Avenida Suzaku, era de esperar que houvesse mais pessoas, com seus chapéus cônicos ou alongados, abrigando-se da chuva. Entretanto, além deste homem não havia mais ninguém.

Isso porque, nos últimos dois ou três anos, Kyôto sofrera seguidas calamidades, como terremotos, redemoinhos, incêndios e fome. Assim, era enorme a desolação da capital. Rezam as antigas crônicas que naquele tempo se destruiam estátuas de Buda e objetos de culto budista, que eram empilhados na beira da estrada para se vender como lenha a madeira ainda laqueada ou folheada a ouro e prata. Se até a capital se encontrava nessas condições, da conservação do Rashômon, então, nem sequer se cogitava. Assim, tirando partido do abandono em que este se encontrava , raposas e texugos começaram a se abrigar no portal. E também ladrões. Até que, passado um tempo, vieram também a depor no Rashômon cadáveres não identificados. Ao cair da noite, tal era o pavor que ninguém mais ousava se aproximar.

Corvos começaram então a se juntar em bandos, vindos não se sabia de onde. Durante o dia, inumeráveis, eles descreviam círculos e grasnavam ao redor da alta cumeeria. No crepúsculo, quando o sol se avermelhava sobre o portal, facilmente podiam ser divisados, como grãos de gergelim dispersos no ar. Vinham, obviamente, alimentar-se da carne dos mortos abandonados na galeria... se bem que, naquele dia, não se avistasse nenhum deles, talvez devido ao adiantado da hora. Mas podia-se notar seus excrementos pontilhados de branco sobre os degraus de pedra quase em ruínas, em cujas fendas crescia capim. Acocorado no último dos sete degraus, sobre o pano surrado de sua vestimenta azul-escura, o servo olhava a chuva distraído, sentindo-se incomodado com a enorme espinha que lhe aparecera na face direita.

Escreveu o autor anteriormente: “Um servo de baixa condição esperava a chuva passar”. Mas, mesmo que a chuva passasse, o servo não teria, na verdade, nada a fazer. Normalmente, é claro, deveria retornar à casa de seu senhor. Acontece que fora dispensado havia quatro ou cinco dias. Como também se escreveu antes, a cidade de Kyôto, por essa época, se encontrava em acentuado estado de decadência. E o fato de ter sido dispensado pelo senhor, a quem servia durante longos anos, não passava de uma pequena conseqüência dessa decadência geral. Seria, portanto, mais adequado dizer “um servo de baixa condição, preso pela chuva, estava desnorteado, sem saber para onde ir” do que “um servo de baixa condição esperava a chuva passar”. Além do mais, o tempo chuvoso contribuía sensivelmente para a disposição de espírito desse homem da era Heian. A chuva que começara a cair depois das quatro horas da tarde parecia que não ia mais parar. Assim, havia algum tempo, o servo ouvia, com ar ausente, o barulho da chuva que caía na Avenida Suzaku ruminando pensamentos desconexos, procurando resolver, antes de mais nada, a questão de sua sobrevivência, questão que ele sabia ser insolúvel.

A chuva, envolvendo o portal, trazia a massa do som até das gotas mais longínquas. A escuridão aos poucos fazia abaixar o céu; quem levantasse os olhos veria o telhado do Rashômon, que se projetava em diagonal, sustentando nuvens pesadas e sombrias.

Quando se tenta resolver uma questão insolúvel, não há tempo para escolher os meios. Se demorasse muito na escolha, o servo certamente terminaria morrendo de fome ao pé de um muro de barro ou à beira de uma estrada. E certamente seria trazido até o portal e abandonado como um cão. “Se não escolher...” Seu pensamento, depois de muitos rodeios, finalmente empacou neste ponto. Entretanto, este “se” continuava sendo, afinal de contas, o mesmo “se”. Mesmo admitindo não haver escolha de meios, ele não tinha coragem suficiente para aceitar de forma positiva a resposta inevitável à questão: “A única saída é tornar-me ladrão”.

Depois de um forte espirro, o servo se ergueu preguiçosamente. Em Kyôto, onde as tardes são frias, a temperatura baixara a ponto de fazê-lo desejar um braseiro. Na escuridão, o vento soprava implacável por entre as colunas do portal. Até o grilo pousado na coluna laqueada de vermelho já havia desaparecido.

Encolhendo-se todo e erguendo a gola da vestimenta azul-escura que envergava sobre a roupa amarela, correu os olhos em volta do portal. Procurava um lugar onde pudesse passar a noite tranqüilo, longe de olhares estranhos e ao abrigo do vento e da chuva. Então, por sorte, descobriu uma escada larga, também laqueada de vermelho, que conduzia a uma galeria sobre o Rashômon. Lá em cima, o máximo que ele poderia encontrar seriam cadáveres. O servo, assim, cuidando para que a espada presa à sua cintura não se soltasse da bainha, pousou no primeiro degrau o pé calçado de sandália de palha.

Subiu então, daí a alguns minutos, a meia altura da ampla escada que conduzia à galeria do Rashômon. Um homem, o corpo encolhido como um gato, sustendo a respiração, espreitava o que se passava ali em cima. A luz que vinha da galeria tocava levemente sua face direita. Era uma face com uma espinha vermelha e purulenta em meio a uma barba rala. O servo, desde o início, tinha a certeza de que ali no alto só haveria cadáveres. Todavia, depois de subir dois ou três degraus, pareceu-lhe notar alguém que se movimentava. Logo isto se confirmou, pois uma claridade turva e amarelada se refletia, oscilante, nos vãos do teto cobertos de teias de aranha. Não podia tratar-se de uma pessoa comum quem, numa noite de chuva como aquela, portasse um luzeiro no interior daquela galeria do Rashômon.
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Rashômon: Portal de entrada sul da antiga capital imperial, Kyoto.
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Fonte:
Instituto de Letras da UFRGS

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Trova XI

T. S. Eliot (Cristais Poéticos)


CANÇÂO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK

S'io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s'i'odo il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.
Dante Alighieri. Ladivina Commédia
Inferno, XXVII, 61-66 (N. do T.)

Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: "Qual?"
Sigamos a cumprir nossa visita.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.

A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.

E na verdade tempo haver á
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. "Ousarei" E . . "Ousarei?"
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: "Como andam ralos seus cabelos!")
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: "Mas como estão finos seus braços e pernas! ")
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.

Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?

E já conheci os olhos, a todos conheci
- Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?

E já conheci também os braços, a todos conheci
- Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
.......

Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela
debruçados?

Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
.......

E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
servida numa travessa,
Não sou profeta - mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.

E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: "Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei."
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: "Não é absolutamente isso o que quis dizer
Não é nada disso, em absoluto."

E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos . . .
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
"Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto."

Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.

Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.

Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.

Não creio que um dia elas cantem para mim.

Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.

Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
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GERONTION's

Thou hast nor youth nor age, But, as it were,
an after dinner's sleep, Dreaming on both.
(William Shakespeare, Measure for Measure,
"Não és jovem nem velho, / mas como, se após o jantar
adormecesses,/ Sonhando que ambos fosses.")

Eis-me aqui, um velho em tempo de seca,
Um jovem lê para mim, enquanto espero a chuva.
Jamais estive entre as ígneas colunas
Nem combati sob as centelhas de chuva
Nem de cutelo em punho, no salgado imerso até os joelhos,
Ferroado de moscardos, combati.
Minha casa é uma casa derruída,
E no peitoril da janela acocora-se o judeu, o dono,
Desovado em algum barzinho de Antuérpia, coberto
De pústulas em Bruxelas, remendado e descascado em Londres.
O bode tosse à noite nas altas pradarias;
Rochas, líquen, pão-dos-pássaros, ferro, bosta.
A mulher cuida da cozinha, faz chá,
Espirra ao cair da noite, cutucando as calhas rabugentas.
E eu, um velho,
Uma cabeça oca entre os vazios do espaço.

Tomaram-se os signos por prodígios: "Queremos um signo!"
A Palavra dentro da palavra, incapaz de dizer uma palavra,
Envolta nas gazes da escuridão. Na adolescência do ano
Veio Cristo, o tigre.
Em maio cqrrupto, cornisolo e castanha, noz das
faias-da-judéia,
A serem comidas, bebidas, partilhadas
Entre sussurros; pelo Senhor Silvero
Com suas mãos obsequiosas e que, em Limoges,
No quarto ao lado caminhou a noite inteira;
Por Hakagawa, a vergar-se reverente entre os Ticianos;
Por Madame de Tornquist, a remover os castiçais
No quarto escuro, por Fraülein von Kulp,
A mão sobre a porta, que no vestíbulo se voltou.
Navetas ociosas
Tecem o vento. Não tenho fantasmas,
Um velho numa casa onde sibila a ventania
Ao pé desse cômoro esculpido pelas brisas.

Após tanto saber, que perdão? Suponha agora
Que a história engendra muitos e ardilosos labirintos,
estratégicos
Corredores e saídas, que ela seduz com sussurrantes ambições,
Aliciando-nos com vaidades. Suponha agora
Que ela somente algo nos dá enquanto estamos distraídos
E, ao fazê-lo, com tal balbúrdia e controvérsia o oferta
Que a oferenda esfaima o esfomeado. E dá tarde demais
Aquilo em que já não confias, se é que nisto ainda confiavas,
Uma recordação apenas, uma paixão revisitada. E dá cedo
demais
A frágeis mãos. O que pensado foi pode ser dispensado
Até que a rejeição faça medrar o medo. Suponha
Que nem medo nem audácia aqui nos salvem. Nosso heroísmo
Apadrinha vícios postiços. Nossos cínicos delitos
Impõem-nos altas virtudes. Estas lágrimas germinam
De uma árvore em que a ira frutifica.

O tigre salta no ano novo. E nos devora. Enfim suponha
Que a nenhuma conclusão chegamos, pois que deixei
Enrijecer meu corpo numa casa de aluguel. Enfim suponha
Que não dei à toa esse espetáculo
E nem o fiz por nenhuma instigação
De demônios ancestrais. Quanto a isto,
É com franqueza o que te vou dizer.
Eu, que perto de teu coração estive, daí fui apartado,
Perdendo a beleza no terror, o terror na inquisição.
Perdi minha paixão: por que deveria preservá-la
Se tudo o que se guarda acaba adulterado?
Perdi visão, olfato, gosto, tato e audição:
Como agora utilizá-los para de ti me aproximar?

Essas e milhares de outras ponderações
Distendem-lhe os lucros do enregelado delírio,
Excitam-lhe a franja das mucosas, quando os sentidos esfriam;
Com picantes temperos, multiplicam-lhe espetáculos
Numa profusão de espelhos. Que irá fazer a aranha?
Interromper o seu bordado? O gorgulho
Tardará? De Bailhache, Fresca, Madame Cammel, arrastados
Para além da órbita da trêmula Ursa
Num vórtice de espedaçados átomos. A gaivota contra o vento
Nos tempestuosos estreitos da Belle Isle,
Ou em círculos vagando sobre o Horn,
Brancas plumas sobre a neve, o Golfo clama,
E um velho arremessado por alísios
A um canto sonolento.
Inquilinos da morada,
Pensamentos de um cérebro seco numa estação dessecada.
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OS HOMENS OCOS

"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.
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(tradução dos poemas de Ivan Junqueira)
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Fonte:
O Poema

T. S. Eliot (A Função Social Da Poesia)



É de tal modo provável que o título deste ensaio sugira coisas diferentes a diferentes pessoas que posso desculpar-me por explicar de início o que ele não significa, antes de tentar esclarecer o que significa. Quando aludimos à “função” de qualquer coisa, provavelmente estamos pensando naquilo que essa coisa deve produzir em vez daquilo que ela produz ou haja produzido. Trata-se de uma importante distinção, pois não pretendo falar sobre aquilo que julgo que a poesia deva produzir. Pessoas que nos disseram o que a poesia deve produzir, sobretudo se são poetas, têm habitualmente em mira a espécie particular de poesia que gostariam de escrever. É sempre possível, naturalmente, que a poesia possa desempenhar no futuro um papel distinto daquele desempenhado no passado: mas, ainda assim, vale a pena decidir primeiro qual a função por ela exercida no passado, seja numa ou noutra época, seja nesse ou naquele idioma, e de um ponto de vista universal. Poderia escrever facilmente sobre o que eu próprio faço com a poesia, ou o que gostaria de fazer, e então tentar persuadir alguém de que isso é exatamente o que todos os bons poetas têm tentado fazer, ou devem ter feito, no passado — só que não o lograram de todo, embora talvez não por sua culpa. Mas me parece provável que se a poesia — e refiro-me a toda grande poesia — não exerceu nenhuma função social no passado, não é provável que venha a fazê-lo no futuro.

Quando digo toda grande poesia, pretendo abster-me de outro meio através do qual possa ocupar-me do assunto. Alguém poderia estudar as diversas espécies de poesia, uma após outra, e discutir a função social de cada uma delas sucessivamente sem tangenciar a questão geral de qual é a função da poesia como poesia. Desejo distinguir entre as funções gerais e particulares, de modo que saibamos do que estamos falando. A poesia pode ter um deliberado e consciente propósito social. Em suas mais primitivas formas, esse propósito é amiúde absolutamente claro. Há, por exemplo, antigas runas e cantos, alguns dos quais revelam propósitos mágicos verdadeiramente práticos, destinados a esconjurar o mau-olhado, a curar certas doenças ou a obter as boas graças de algum demônio. A poesia era utilizada primitivamente em rituais religiosos e, quando entoamos um hino, estamos ainda utilizando-a com um determinado propósito social. As primitivas formas do gênero épico e a saga podem ter transmitido aquilo que sustentamos como história antes de se tornar apenas uma diversão comunitária, e antes do uso da linguagem escrita, uma forma de verso regular deve ter sido extremamente proveitosa à memória — e a memória dos primitivos bardos, dos contadores de histórias e dos sábios deve ter sido prodigiosa. Nas sociedades mais evoluídas, tal como a da Grécia antiga, as funções sociais reconhecidas da poesia são também bastante conspícuas. O drama grego se desenvolve a partir dos ritos religiosos, e permanece como cerimônia pública formal associada às tradicionais celebrações religiosas; a ode pindárica se desenvolve em relação com uma determinada ocasião social. Certamente, tais usos definidos da poesia deram a ela uma estrutura que tornou possível alcançar a perfeição em gêneros particulares.

Algumas dessas formas persistem na poesia mais recente, como é o caso dos hinos religiosos a que me referi. O significado da expressão didática, para poesia, passou por algumas transformações. Didático pode significar “transmissão de informação”, ou significar “administração de instrução moral’’, ou pode equivaler a algo que abrange ambas as coisas. As Geórgicas de Virgílio, por exemplo, são poesia belíssima e contêm considerável dose de informação sobre a boa agricultura. Mas pareceria impossível, nos dias de hoje, uma obra atualizada sobre a agricultura que pudesse também ser poesia refinada: de um lado, o próprio assunto tornou-se muito mais complexo e científico; de outro, pode ser mais facilmente desenvolvido em prosa. Nem poderíamos, como o fizeram os romanos, escrever tratados astronômicos e cosmológicos em verso. O poema, cujo objetivo ostensivo é transmitir informações, foi suplantado pela prosa. A poesia didática tornou-se aos poucos restrita à poesia de exortação moral, ou poesia que pretende persuadir o leitor a aceitar o ponto de vista do autor sobre alguma coisa. Por conseguinte, ela inclui em boa parte aquilo que se pode chamar de sátira, embora esta se confunda com o burlesco e a paródia, cujo propósito é, fundamentalmente, causar hilariedade. Alguns dos poemas de Dryden, no século XVII, são sátiras na medida em que têm em mira ridicularizar os objetos contra os quais apontam, e são também didáticos quando objetivam persuadir o leitor a aceitar determinado ponto de vista político ou religioso; e, ao cumprir esse desígnio, eles se utilizam do método alegórico, que apresenta a realidade como ficção: The hind and the panther, que se propõe a persuadir o leitor de que a razão estava do lado da Igreja de Roma, contra a Igreja da Inglaterra, é seu mais notável poema desse gênero. No século XIX, boa parte da poesia de Shelley inspirou-se num entusiasmo pelas reformas políticas e sociais.

Quanto à poesia dramática, que hoje tem uma função social peculiar, pois enquanto a maior parte da poesia atual é escrita para ser lida em solidão, ou em voz alta em pequenos grupos, o verso dramático tem em si a função de provocar uma impressão imediata e coletiva sobre um amplo número de pessoas reunidas para assistir a um episódio imaginário encenado num palco. A poesia dramática é diferente de qualquer outra, mas, como suas leis específicas são as do drama, sua função em geral se funde à do drama, e não me refiro aqui à função social específica do drama.

No que se refere à função particular da poesia filosófica, implicaria esta uma análise e uma explicação de certa amplitude. Penso que já mencionei bastantes gêneros de poesia para deixar claro que a função específica de cada um deles se relaciona com alguma outra função: a poesia dramática, com o drama; a poesia didática informativa, com a função de seu assunto; a poesia didática filosófica, ou religiosa, ou política, ou moral, com a função de tais temáticas. Podemos considerar a função de quaisquer desses gêneros poéticos e, ainda assim, deixar intocado o problema da função da poesia, pois todas essas coisas podem ser abordadas na prosa.

Mas, antes de prosseguir, quero descartar uma objeção que pode ser levantada. As pessoas suspeitam às vezes de qualquer poesia com um propósito particular, isto é, a poesia em que o poeta defende conceitos sociais, morais, políticos ou religiosos, assim como outras pessoas julgam amiúde que determinada poesia seja autêntica só porque exprime um ponto de vista que lhes apraz. Eu gostaria de dizer que a questão relativa ao fato de o poeta estar utilizando sua poesia para defender ou atacar determinada atitude social não interessa. O mau verso pode obter fama temporária quando o poeta reflete uma atitude popular do momento; mas a verdadeira poesia sobrevive não apenas à mudança da opinião pública como também a completa extinção do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve apaixonadamente envolvido. Os poemas de Lucrécio não perderam sua grandeza, embora suas noções de física e de astronomia hajam caído em descrédito; os de Dryden também, embora as controvérsias do século XVII há muito já não nos digam mais respeito; da mesma forma, um grande poema do passado ainda nos agrada, mesmo que seu assunto seja um daqueles que deveríamos hoje abordar em prosa.

Mas se estamos à procura da função social essencial da poesia, precisamos olhar primeiro para suas funções mais óbvias, aquelas que precisam ser cumpridas, se é que algum poema o faz. O principal, suponho, é que possamos nos assegurar de que essa poesia nos dê prazer. Se alguém perguntar qual o gênero de prazer, só poderei responder: o gênero de prazer que a poesia proporciona; simplesmente porque qualquer outra resposta nos levaria a nos perdermos em divagações estéticas e na questão geral na natureza da arte.

Suponho que se deva concordar com o fato de que qualquer poeta, haja sido ele grande ou não, tem algo a nos proporcionar além do prazer, pois se for apenas isso, o próprio prazer pode não ser da mais alta espécie. Para além de qualquer intenção específica que a poesia possa ter, tal como foi por mim exemplificado nas várias espécies de poesia, há sempre comunicação de alguma nova experiência, ou uma nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e para o que não temos palavras — o que amplia nossa consciência ou apura nossa sensibilidade. Mas não é com esse beneficio individual extraído à poesia, nem tampouco com a qualidade do prazer individual, que este ensaio se relaciona. Todos compreendemos, creio eu, tanto a espécie de prazer que a poesia pode proporcionar, quanto a diferença que, para além do prazer, ela pode oferecer às nossas vidas. Caso não se obtenham esses dois resultados, simplesmente não há poesia. Podemos reconhecer isso, mas ao mesmo tempo fazer vista grossa para algo que isso faz por nós coletivamente, enquanto sociedade. E falo no mais amplo sentido, pois creio ser importante que cada povo deva ter sua própria poesia, não apenas por causa daqueles que gostam de poesia — tal pessoa poderia sempre aprender outras línguas e apreciar a poesia delas —, mas também porque isso estabelece de fato uma diferença para a sociedade como um todo, ou seja, para pessoas que não gostam de poesia. Incluo até mesmo aqueles que ignoram os nomes de seus próprios poetas nacionais. Eis o verdadeiro assunto deste ensaio.

Observa-se que a poesia difere de qualquer outra arte por ter um valor para o povo da mesma raça e língua do poeta, que não pode ter para nenhum outro. É verdade que até a música e a pintura têm um caráter local e racial; mas decerto as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro, são muito menores. É verdade, por outro lado, que os textos em prosa têm um significado em suas próprias línguas que se perde na tradução; mas todos sentimos que perdemos muito menos ao lermos uma novela traduzida do que um poema vertido de outro idioma; e na tradução de alguns gêneros de obra científica a perda pode ser virtualmente nula. O fato de que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser comprovado na história das línguas européias. Ao longo de toda a Idade Média e no curso dos cinco séculos seguintes, o latim permaneceu como a língua da filosofia, da teologia e da ciência. O impulso concernente ao uso literário das linguagens dos povos começa com a poesia. E isso parece absolutamente natural quando percebemos que a poesia tem a ver fundamentalmente com a expressão do sentimento e da emoção; e esse sentimento e emoção são particulares, ao passo que o pensamento é geral. É mais fácil pensar do que sentir numa língua estrangeira. Por isso, nenhuma arte é mais visceralmente nacional do que a poesia. Um povo pode ter sua língua trasladada para longe de si, abolida, e uma outra língua imposta nas escolas; mas a menos que alguém ensine esse povo a sentir numa nova língua, ninguém conseguirá erradicar o idioma antigo, e ele reaparecerá na poesia, que é o veículo do sentimento. Eu disse precisamente “sentir numa nova língua”, e pretendi dizer algo mais do que apenas “expressar seus sentimentos numa nova língua”. Um pensamento expresso numa língua diversa pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou uma emoção expressos numa língua diferente não são o mesmo sentimento nem a mesma emoção. Uma das razões para que aprendamos bem pelo menos uma língua estrangeira é que isso nos permite adquirir uma espécie de personalidade suplementar; uma das razões para não adquirirmos uma nova língua em lugar de nossa própria é que a maioria de nós não deseja tornar-se uma pessoa diferente. Uma língua superior raramente pode ser exterminada, a menos que se extermine o povo que a fala. Quando uma língua suplanta outra, isso acontece habitualmente porque essa língua tem vantagens que a recomendam — e que oferecem não uma mera diferença, mas um espectro mais amplo e refinado, não só para o pensamento, mas também para sentir — preferencialmente à língua mais primitiva.

A emoção e o sentimento são, portanto, melhor expressos na língua comum do povo, isto é, na língua comum a todas as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o modo de falar de uma língua expressam a personalidade do povo que a utiliza. Quando afirmo que a poesia, mais do que a prosa, diga respeito à expressão da emoção e do sentimento, não pretendo dizer que a poesia necessite estar desprovida de conteúdo intelectual ou significado, ou que a grande poesia não contenha mais esse significado do que a poesia menor. Mas para levar adiante essa investigação eu teria que me afastar de meu propósito imediato. Admitirei como aceito o fato de que as pessoas encontram a expressão mais consciente de seus sentimentos mais profundos antes na poesia de sua própria língua do que em qualquer outra arte ou na poesia escrita em outros idiomas. Isso não significa, é claro, que a verdadeira poesia esteja restrita a sentimentos que cada um possa identificar e compreender; não devemos restringir poesia à poesia popular. Basta que, num povo homogêneo, os sentimentos dos mais refinados e complexos tenham algo em comum com os dos mais simples e grosseiros, algo que eles não tem em comum com as pessoas de seu próprio nível ao falar outra língua. E, quando se trata de uma civilização sadia, o grande poeta terá algo a dizer a seu compatriota em qualquer nível de educação.

Podemos dizer que a tarefa do poeta, como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e aperfeiçoá-la. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, também ele está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está tornando as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem, e por conseguinte, ensinando-lhes algo mais sobre si próprias. Mas o poeta não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas, e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos sentimentos que ainda não haviam experimentado. Essa é a diferença entre o escritor que é apenas excêntrico ou louco e o autêntico poeta. Aquele primeiro pode ter sentimentos que são únicos, mas que não podem ser partilhados, e que por isso são inúteis; o último descobre novas variantes da sensibilidade das quais os outros podem se apropriar. E, ao expressá-las, desenvolve e enriquece a língua que fala.

Já disse absolutamente o bastante sobre as impalpáveis diferenças de sentimento entre um povo e outro, diferenças que se afirmam e se desenvolvem através de suas diferentes línguas. Mas as pessoas não sentem o mundo apenas diferentemente em diferentes lugares; elas o sentem distintamente em tempos distintos. Na verdade, nossa sensibilidade está constantemente se transformando, assim como o mundo que nos rodeia se transforma; o que sentimos não é o mesmo que sente o chinês ou o hindu, mas também não é o mesmo que sentiam nossos ancestrais vários séculos atrás. Não é o mesmo que nossos pais; e, finalmente, nós próprios já somos totalmente diferentes do que éramos há um ano. Isso é óbvio; mas o que não é tão óbvio é que esta constitui a razão pela qual não podemos nos dar o luxo de pararmos de escrever poesia. As pessoas mais educadas têm um certo orgulho dos grandes autores de sua língua, ainda que nunca os tenham lido, da mesma forma como se orgulham de qualquer outra qualidade que distinga seu país: alguns autores tornam-se amiúde celebrados o bastante para serem citados ocasionalmente em discursos políticos. Mas a maioria das pessoas não percebe que isso não é o bastante; que a menos que se continue a produzir grandes autores, e particularmente grandes poetas, sua língua apodrecerá, sua cultura se deteriorará e talvez venha a ser absorvida por outra mais poderosa.

Uma coisa é absolutamente certa: se não dispusermos de uma literatura viva, nos tornaremos cada vez mais alienados da literatura do passado; a menos que mantenhamos continuidade, nossa literatura do passado tornar-se-á mais e mais distante de nós até nos parecer tão estranha quanto a literatura de um povo estrangeiro. É que nossa língua está se transformando; nossa maneira de viver também muda, sob a pressão das transformações materiais de toda ordem em nosso meio; e a menos que disponhamos daqueles poucos homens que associam a uma excepcional sensibilidade um excepcional poder sobre as palavras, nossa própria capacidade, não apenas de nos expressar, mas até mesmo de sentir qualquer emoção, exceto as mais grosseiras, se degenerará.

Pouco importa que um poeta haja alcançado uma ampla repercussão em sua própria época. O que importa é que possa ter sempre existido, pelo menos, um pequeno interesse por ele em cada geração. Entretanto, o que acabo de dizer sugere que sua importância se relaciona à sua própria época, ou que os poetas mortos deixam de ter qualquer utilidade para nós, a menos que tenhamos também poetas vivos. Eu poderia até impor meu primeiro ponto de vista e dizer que se um poeta alcança um grande público muito rapidamente, isso constitui antes uma circunstância suspeita, pois nos leva a desconfiar de que ele não esteja realmente produzindo algo de novo, que esteja apenas proporcionando às pessoas aquilo a que estas já estão habituadas e, por conseguinte, o que já receberam dos poetas de gerações anteriores. Mas se couber a um poeta tal regalia, um pequeno público em sua época é importante. Haveria sempre ali uma vanguarda de pessoas, apreciadoras de poesia, que são independentes e estão algo adiante de seu tempo, ou prontas para assimilar mais rapidamente a novidade. Desenvolvimento da cultura não significa trazer todo mundo para compor a linha de frente, o que equivale apenas a fazer com que todos mantenham a marcha: significa a manutenção de uma tal élite. Com a massa principal e acomodada de leitores distante não mais do que cerca de uma geração para trás. As mudanças e os desdobramentos da sensibilidade que afloram de início em alguns começarão a insinuar-se gradualmente na língua, através de sua influência sobre outros, e mais facilmente sobre autores populares; e com o tempo tornam-se bem definidas, exigindo assim um novo avanço. Ademais, é através dos autores vivos que os mortos permanecem vivos. Um poeta como Shakespeare influenciou profundamente a língua inglesa, e não apenas pela influência que exerceu sobre seus sucessores imediatos. Pois os poetas de maior estatura têm aspectos que não se revelam de imediato; e ao exercerem uma influência direta sobre outros poetas séculos mais tarde, continuam a afetar a língua viva. Na verdade, se um poeta inglês aprende a usar palavras em nosso tempo, deve dedicar-se ao rigoroso estudo daqueles que melhor as utilizaram em sua época, daqueles que, em seus próprios dias, reinventaram a língua.

Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio eu, pode-se dizer que se estende a influência da poesia; e isso pode ser melhor expresso pela afirmação de que, no decurso do tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma comunidade, de todo o povo, independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os nomes de seus maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de ser comprovada. É como acompanhar o trajeto de um pássaro ou de um avião num céu luminoso: se alguém os percebeu quando estavam muito próximos, e os manteve sob a vista quando se afastavam cada vez mais, poderá vê-los a uma grande distância, a uma distância na qual o olho de outra pessoa, de quem se tenta chamar a atenção para o fato, será incapaz de percebê-los. Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois numa sociedade saudável há uma influência recíproca e uma interação continuas de uma parte sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social da poesia em seu mais amplo sentido: é isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a sensibilidade de toda a nação.

Ninguém deve imaginar que estou dizendo ser a língua que falamos exclusivamente determinada por nossos poetas. A estrutura da cultura é muito mais complexa do que isso. A rigor, é igualmente verdadeiro que a qualidade de nossa poesia depende do modo como o povo utiliza sua língua: pois um poeta deve tomar como matéria-prima sua própria língua, da maneira como de fato ela é falada à volta dele. Se a língua se aprimora, ele se beneficiará; se entra em declínio, deverá tirar daí o melhor proveito. Até certo ponto, a poesia pode preservar, e mesmo restaurar, a beleza de uma língua; ela pode e deve ajudá-la a se desenvolver, a tornar-se tão sutil e precisa nas mais adversas condições e para os cambiantes propósitos da vida moderna, quanto o foi numa época menos complexa. Mas a poesia, como qualquer outro elemento solitário nessa misteriosa personalidade social a que chamamos nossa ‘‘cultura’’, deve permanecer dependente de muitíssimas circunstâncias que escapam ao seu controle.

Isso me conduz a algumas reflexões posteriores de natureza mais geral. Minha ênfase nesse ponto tem sido sobre a função local e nacional da poesia, e isso deve ser explicado. Não desejo dar a impressão de que a função da poesia é distinguir entre um povo e outro, pois não creio que as culturas dos diversos povos da Europa possam florescer isoladas uma das outras. Não resta dúvida de que houve no passado altas civilizações que produziram grande arte, pensamento e literatura, e que se desenvolveram sozinhas. Não posso falar disso com segurança, pois algumas delas podem não ter sido tão isoladas quanto inicialmente parece. Mas na história da Europa não tem sido assim. Até mesmo a Grécia antiga deveu muito ao Egito, e algo às suas fronteiras asiáticas; e nas relações dos Estados gregos entre si, com seus diferentes dialetos e seus diferentes costumes, podemos encontrar uma influência recíproca e estímulos análogos aos que os países europeus exerciam uns sobre os outros. Mas a história da literatura européia não indica que qualquer literatura tenha sido independente das outras, revelando antes um movimento constante de dar e receber, e que cada uma delas, sucessivamente, vem sendo revitalizada por estímulos externos. Uma autarquia geral na cultura simplesmente não funcionará: a esperança de perpetuar a cultura de qualquer país repousa na comunicação com as demais. Mas se a separação de culturas dentro da unidade européia é um perigo, também o seria uma unificação que levasse à uniformidade. A variedade é tão essencial quanto a unidade. Por exemplo, há muito a ser dito, para certos propósitos limitados, de uma língua franca universal como o esperanto ou o inglês básico. Mas supondo que toda a comunicação entre as nações fosse conduzida por uma língua artificial, quão imperfeita ela seria! Ou antes, seria absolutamente adequada em alguns aspectos, e apresentaria uma completa falha de comunicação em outros. A poesia é uma constante advertência a tudo aquilo que só pode ser dito em uma língua, e que é intraduzível. A comunicação espiritual entre um povo e outro não pode ser levada adiante sem indivíduos que assumam o desafio de aprender pelo menos uma língua estrangeira tão bem quanto é possível aprender qualquer língua que não a sua própria, conseqüentemente, que estejam capacitados em maior ou menor grau, a sentir em outra língua tão bem quanto na sua. E a compreensão de outro povo por parte de qualquer pessoa necessita, dessa forma, ser complementada pela compreensão daqueles indivíduos dentre esse povo que se esforçaram para aprender a sua própria língua.

Pode ocorrer que o estudo da poesia de um outro povo seja particularmente instrutivo. Eu disse que há qualidades poéticas em cada língua que só podem ser entendidas por aqueles que dela são nativos. Mas há também um outro lado da questão. Descobri algumas vezes, ao tentar ler uma língua que não conhecia muito bem, que não conseguia compreender um texto em prosa senão na medida em que o digeria conforme os padrões do professor: ou seja, eu estava seguro quanto ao significado de cada palavra, dominava a gramática e a sintaxe, e podia então decifrar a passagem em inglês. Mas descobri também algumas vezes que um texto poético, que eu não conseguia traduzir, incluindo muitas palavras que não me eram familiares e orações que eu não conseguia interpretar, comunicava-me algo vívido e imediato, que era único, distinto de qualquer coisa em inglês — algo que eu não podia transcrever em palavras e, não obstante, sentia que compreendera. E ao aprender melhor aquela língua, descobri que essa impressão não era ilusória, ou algo que eu imaginasse existir na poesia, mas algo que estava de fato ali. De modo que, em poesia, vez por outra alguém pode penetrar em outro país, por assim dizer, antes que seu passaporte seja expedido ou que seu bilhete de viagem seja comprado.

Toda a questão do relacionamento entre países de línguas diferentes, mas que possuem afinidades culturais, no âmbito europeu, é por conseguinte aquela à qual somos conduzidos, talvez inesperadamente, pela investigação relativa à função social da poesia. É claro que não pretendo passar desse ponto para questões estritamente políticas; mas gostaria que aqueles que se ocupam das questões políticas pudessem mais amiúde cruzar a fronteira que conduz aos problemas que acabo de examinar pois são estes que conferem ao aspecto espiritual das questões o aspecto material de que se ocupa a política. Do lado em que me encontro na fronteira, uma dessas questões se relaciona com as coisas vivas que têm suas próprias leis de crescimento, as quais nem sempre razoáveis, mas que somente devem ser aceitas pela razão; coisas que não podem ser caprichosamente planejadas e postas em ordem da mesma forma que não podem ser disciplinados os ventos, as chuvas e as estações.

Finalmente, se eu estiver certo de que a poesia tem uma “função social” para o conjunto das pessoas da língua do poeta, estejam elas conscientes ou não de sua existência, conclui-se que interessa a cada povo da Europa que os demais devam continuar a ter sua poesia. Não posso ler a poesia norueguesa, mas, se fosse dito que não mais está sendo escrita qualquer poesia em língua norueguesa, eu sentiria um sobressalto que seria muito mais do que uma generosa simpatia. Eu o veria como um indício de doença que provavelmente estaria difundida por todo o continente, como o início de um declínio significando que os povos de toda parte houvessem deixado de estar aptos a expressar, e conseqüentemente a sentir, as emoções dos seres civilizados. Isso, é claro, poderia ocorrer. Muito já se falou em toda parte sobre o declínio da crença religiosa; não tanto quanto se observa relativamente ao declínio da sensibilidade religiosa. O problema da idade moderna não se resume apenas à incapacidade de acreditar em certas coisas em relação a Deus e ao homem em que nossos antepassados acreditavam, mas à incapacidade de sentir Deus e o homem como eles o fizeram. Uma crença na qual ninguém mais deposita sua fé constitui algo que, até certo ponto, alguém ainda pode entender; mas quando desaparece o sentimento religioso, as palavras com as quais os homens lutaram para expressá-lo perdem o sentido. É verdade que o sentimento religioso varia naturalmente de país para país, e de época para época, da mesma forma como ocorre com o sentimento poético; o sentimento varia, mesmo quando a crença e a doutrina não se modificam. Mas essa é uma condição da vida humana, e o que me deixa apreensivo é a morte. É igualmente possível que o sentimento pela poesia, e os sentimentos que constituem a matéria-prima da poesia, possam desaparecer em toda parte: o que talvez pudesse favorecer aquela unificação do mundo que alguns povos consideram em si desejável.

Fonte:
ELIOT, T. S. De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.

A Obra Poética de T. S. Eliot

Noah Mitchel (Garotas Gregas)
The Love Song of J. Alfred Prufrock (1915)

Em 1915 Ezra Pound, editor da revista "Poetry", recomendou a Harriet Monroe, fundadora da revista, que ela publicasse "The Love Song of J. Alfred Prufrock". Embora Prufrock parecesse tratar-se de um homem na meia idade, Eliot escreveu a maior parte do poema quando tinha apenas 22 anos. Os seus hoje famosos primeiros versos, que comparam o céu ao entardecer com "a patient etherised upon a table" (algo como "um paciente anestesiado sobre a mesa.") foram considerados chocantes e ofensivos, ainda mais numa época na qual a poesia Georgiana imperava, com suas derivações românticas do século XIX. O poema retrata uma experiência consciente de um homem, Prufrock, sob a forma de um "stream of consciousness" (figura de linguagem típica do modernismo, que consiste em mostrar por escrito o monólogo interior de um personagem). Prufrock lamenta sua inércia física e intelectual, as oportunidades que perdeu ao longo de sua vida e a falta de um progresso espiritual, recorrente de amor carnal que não conseguira atingir.

Os estudiosos não sabem dizer se o narrador sai de sua casa ao longo da narração, pois as localidades descritas podem ser interpretadas tanto como experiências reais, lembranças, ou mesmo imagens simbólicas do subconsciente, como por exemplo no refrão "In the room woman come and go / talking about Miguel Angelo".

A estrutura do poema foi imensamente influenciada por Dante Alighieri. Há ainda referências a Hamlet de Shakespeare e outras tantas obras literárias: essa técnica de alusão e citação foi muito usada em toda poesia posteriormente escrita por Thomas Stearns Eliot.


The Waste Land (1922)

Em outubro de 1922, Thomas Eliot publicou "The Waste Land" no jornal "The Criterion". Composto durante um período turbulento na vida do autor - seu casamento estava acabando, pois tanto ele quanto sua esposa Vivienne sofriam de uma desordem neural - este poema é muitas vezes lido como uma alegoria à desilusão experimentada pela geração pós-guerra. Mesmo antes de "The Waste Land" ser publicado como livro (em dezembro de 1922) Eliot já havia se distanciado da visão desesperadora do poema: "No que diz respeito a "The Waste Land", esse poema ficará no passado, pois agora estou trabalhando com formas e estilos diferentes", escreveu ele para Richard Aldington no dia 15 de novembro de 1922. A despeito da obscuridade do poema - que tem sátiras e profecias; mudanças abruptas de narrador, localidade e tempo; além de invocar uma vasta e dissonante gama de culturas e obras literárias - ele acabou se tornando referencial da literatura moderna, sendo considerado o reflexo poético de um romance publicada no mesmo ano: Ulysses, de James Joyce.

Entre seus muito famosos versos estão "April is the cruellest month" (referência ao fato que abril é o mês de recomeçar a plantar, e não há colheitas na Europa), "I will show you fear in a handful of dust" e "Shantih shantih shantih", (Sânscrito que deve ser lido pausadamente e de forma onamatopeica. Algo como "Xantir... Xantir... Xantir...". Shantih significa "paz" e o sânscrito segue uma súplica pela paz).

A obra de Eliot foi muito apreciada pelos poetas da geração de trinta. Em certa ocasião W.H. Auden leu em voz alta todo o poema durante um encontro social. A publicação do esboço do poema em 1972 mostrava uma grande influência de Ezra Pound sobre a sua forma final. A parte IV, "Death by Water", fora reduzida de noventa e duas linhas para dez apenas, e com dez linhas foi publicado. Pound repreendeu Eliot por ter rasgado a maior parte do poema. Eliot o agradeceu por "incentivar-me a fazer as coisas do meu jeito".

The Hollow Men (1925)

Publicada em várias partes e com vários títulos diferentes, a versão final de "The Hollow Men" data de 3 de março de 1925. O poema faz referências a diversas obras do próprio Eliot e, embora tenha grande densidade literária, muitos críticos o consideram somente como um post scriptum de "The Waste Land".

Seu conteúdo é metafórico e de difícil interpretação, mas estudiosos dizem tratar-se de um poema que filosofa sobre os aspectos da mente humana num contexto ora social, ora religioso. Trata ainda dos medos humanos, considerando-os "more distant and more solemn/than a fading star" (mais distantes e solenes/que uma estrela cadente) e mostrando que mesmo nos sonhos é difícil visualizá-los sem temor. São estes medos "Eyes I dare not meet in dreams/In death's dream kingdom" (olhos que temo encontrar em sonhos/e no reino de sonho da morte). Esses olhos são muito similarmente descritos aos olhos de Beatriz, em "A Divina Comédia".

Há ainda uma passagem que mostra um ritual dançante, "Here we go around the prickly pear" (andamos em torno da pêra espinhenta) que tem relação com os rituais missais, sendo a pêra a representação de um altar, sem ter portanto, centro exato, mas sendo o centro em si. O poema tem ainda grande musicalidade, com várias repetições e rimas eventuais.

Four Quartets (1943)

O próprio Thomas Eliot considerava "Four Quartets" sua obra-prima, embora muitos críticos literários preferissem seus trabalhos anteriores.

"Four Quartets" é baseado nos conhecimentos de Eliot nas áreas de misticismo e filosofia. O poema consiste de quatro poemas longos, que foram publicados individualmente: "Burnt Norton" (1936), "East Coker" (1940), "The Dry Salvages" (1941) e "Little Gidding" (1942), cada um deles dividido em cinco partes. Embora seja difícil fazer comparações entre eles, nota-se que cada um tem uma descrição geográfica da localidade em seus títulos, todos especulam sobre a natureza do tempo, seja ela teológica, histórica ou física, e sobre a influência exercida pelo tempo nos humanos.

Além disso, cada um está associado a um elemento da antigüidade clássica: ar, terra, água e fogo, respectivamente. Eles se aproximam nas idéias, de forma variável porém intercalada. Os poemas não esgotam seu questionamento e nem obtêm respostas suficientes às perguntas feitas.

"Burnt Norton" (ar) questiona de que adianta considerar o que podia ter sido e não foi. Há nele a descrição de uma casa abandonada, e Eliot brinca com a idéia que todas essas possíveis realidades estão presentes simultaneamente, mas invisíveis para nós: todas as formas de atravessar o jardim se transformam numa vasta dança que não podemos ver, e crianças que não estão ali se escondem nos arbustos. Burnt Norton é uma casa de campo situada em Cotswold Hills, na cidade de Gloucestershire, Reino Unido.

"East Coker" (terra) continua a examinar o tempo e seu significado, mas agora focando também na natureza da linguagem e da poesia. Saído da escuridão, Eliot fortalece a sua idéia de solução: "I said to my soul, be still, and wait without hope" (algo como "Eu disse à minha alma: fique quieta, e espere sem esperança"). East Coker é uma pequena vila, no sul do Reino Unido.

"The Dry Salvages" (água) trata do elemento água via imagens de rios e mares. Nesse poema, os opostos parecem se aproximar de forma impossível, como no barroco: "...the past and future/Are conquered, and reconciled" (algo como "...o passado e o futuro/são conquistados e reconciliados"). The Dry Salvages são um grupo de rochas com um farol para navios em Cape Ann, Massachusetts, como explicado no prefácio do poema.

"Little Gidding" (fogo) é o mais antagonizado dos quartetos. As próprias experiências do autor como voluntário na equipe civil antiataque aéreo dão força ao poema, e ele se imagina encontrando com Dante no meio do bombardeio alemão. O cenário mostrado no começo dos quartetos ("Houses.../Are removed, destroyed" ou "Casas.../são removidas, destruídas.") haviam se tornado uma experiência cotidiana, o que cria uma série de imagens, entre elas a do amor: a força condutora de toda a experiência. O quarteto acaba então com uma frase de Julian of Norwich: "all shall be well and/All manner of things shall be well." ou "Tudo ficará bem e/todo tipo de coisa ficará bem". Little Gidding é uma igreja localizada em Huntingdonshire, Reino Unido.

Old Possum's Book of practical Cats (1939)

É composto por quinze poemas com a temática "Gatos". Cada um dos poemas conta a história em particular ou uma característica de um determinado gato. Eliot os escrevera ao longo da década de 1920 como presentes de aniversário para seus afilhados, herdeiros do dono da editora Faber & Faber. Os poemas são, no mais íntimo, metáforas com os testamentos da sociedade. Durante muito tempo os poema ficaram esquecidos dentro dos pertences dos afilhados, até que um deles já adulto, mexendo em velhos papéis, os encontrou e notou a grande possibilidade de publicá-los. Eliot, entretanto, ficou apreensivo com as críticas, pois considerava os poemas fracos e exclusivos para crianças. Uma semana antes da publicação mudou-se para uma vila no interior da Inglaterra, tamanho era o seu medo, mas, logo depois do lançamento em Londres, recebeu um telefonema do afilhado dizendo que o livro fizera o maior sucesso. Na década de 1970, já 10 anos após a morte de Eliot, o então jovem Andrew Lloyd Webber musicou aguns dos poemas e fez uma versão reduzida do musical Cats. A viúva de Eliot, Esme Valerie Eliot, após assistir essa prévia do musical, presenteou o jovem autor musical com rascunhos de um poema inacabado pelo falecido marido. Esse poema chamava-se Grizabella: The Glamour Cat, e foi determinante para a finalização do famoso musical, dando abertura para a composição Memory, gravada por mais de 170 artistas até hoje. Os quinze poemas que compõe o livro são:

The Naming of Cats;
The Old Gumbie Cat;
Growltiger's Last Stand;
The Rum Tum Tugger;
The Song of Jellicles;
Mungojerrie and Rumpleteazer;
Old Deuteronomy;
Of the Awefull Battle of the Pekes and Pollicles;
Mister Mistoffelees;
Macavity: The Mistery Cat;
Gus: The Theatre Cat;
Bustopher Jones: The Cat About Town;
Skimbleshanks: The Railway Cat;
The Ad-dressing of Cats;
Cat Morgan Introduces Himself.

Note o senso de humor no último poema, feito exclusivamente para finalizar o livro, na última estrofe:

"So if yo 'ave business with Faber - or Faber - I'll give yu this tip, and it's worth a lot more: You'll save youself time, and you'll spare yourself labour If jist you make friends with the Cat at the door. MORGAN."

Fontes:
Wikipedia