sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Assis Brasil (Beira Rio Beira Vida)


Beira rio beira vida é o primeiro livro da série intitulada "Tetralogia piauiense", projeto literário do escritor piauiense Assis Brasil. As obras são ambientadas na cidade de Parnaíba, no período da primeira metade do século XX.

A obra põe em evidência os moradores e trabalhadores do cais: canoeiros, embarcadiços, estivadores, prostitutas, enfim o lumpemproletariado na hostil submissão à deidade-mercadoria. No livro, a prostituição marca gerações de mulheres, que, sufocadas pelo sistema, concebem-na como sina, uma maldição para a qual restava apenas a subserviência.

Para o entendimento da obra, começaremos com uma rápida reflexão sobre o título: Beira Rio (o porto, o contínuo movimento do rio que traz e leva esperanças, marinheiros, desilusões); Beira Vida (a marginalização social).

Essa marginalização é o tema predominante. A pobreza, o preconceito e a falta de oportunidades acabam por balizar o destino das personagens. Isto fica bem evidenciado em:

(...) Nunca conheci outra vida, tudo foi se ajeitando normalmente, acontecendo, acontecendo.
Tudo parecia natural para mim, não era de pensar muito.(...)


Em Beira rio beira vida, lancinantes reminiscências atravessam a trama, memórias vão grassando formas estéticas aos episódios, cuja narração remete à agitada rotina do cais de Parnaíba. A vida ribeirinha mobilizada pelas embarcações matiza gerações de marinheiros, canoeiros, barqueiros, taifeiros, enfim de todos os que têm suas trajetórias proliferadas em meio à agitação das águas, dos passos, dos gritos. Meretrizes se arranjavam pelas proximidades, dada a concentração da população masculina.

A ênfase da narração recai sobre a temática da prostituição em dois enfoques, especialmente: um exógeno, que fica a cargo do narrador impessoal de primeira instância; e outro endógeno, sob o comando da personagem Luíza, que vai tecendo a narrativa segundo a fruição de suas memórias.

Como veremos mais adiante, Luíza advém de uma tradição de mulheres do cais estigmatizadas pela prática do “comércio da carne”.

Adentrou o universo da prostituição como quem cumpre uma sina – a vida da avó, da mãe, uma maldição que se repetia nela. Cremilda, sua mãe, ouviu de uma antepassada que uma mulher havia sido presa, acusada de assassinar o amante, um rapaz rico por quem se apaixonara. Inconformada por pagar por um crime que não cometera, gritava e maldizia a tudo e a todos ao longo das noites na cela, submersa em uma revolta implacável. Ao dar a luz, amaldiçoou a filha e toda a sua descendência: “teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro”.

Embora o autor permita à personagem Luíza os discursos memorialísticos dos quais brotam a narrativa, a vida social do cais é a base espacial sob a qual o enredo é engendrado: “A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a calçada escura, cheia de lembranças”.

Uma vez que não apresenta ordem cronológica dos fatos, o romance se apóia no tempo da memória para dar coerência à narrativa, ou seja, apóia-se na maneira que o narrador relembra o próprio passado de uma maneira específica, com recortes específicos, num período de tempo específico. Nesse caso, o tempo da memória citado quer dizer um tempo sem qualquer coerência externa à mente do narrador. A beleza reside justamente nas características particulares do ato de lembrar, praticado no romance por Luíza: falhas, idas e vindas no tempo, a escolha de determinadas emoções e sensações. Utilizando como recurso estilístico a repetição constante de falas e ações, o autor consegue enfatizar a mesmice dos dias e a estagnação das personagens. As horas passam devagar e se tornam um fardo para aqueles que não têm rumo certo ou esperança de transformação. As mulheres do cais, especialmente, percebem o tempo de forma diversa. Para elas, os dias não são determinados pelo calendário, mas sim pela presença dos homens nas suas camas: Os homens deixaram a casa um a um – foram desaparecendo em silêncio. Contava a passagem dos anos pela freqüência deles. A figura masculina vem ressaltar a situação de dependência em que elas se encontram e a falta de controle sobre seus próprios destinos. Os retratos dos ‘clientes’ nas paredes de Cremilda são a prova de que também na realidade ficcional, as personagens só conhecem o tempo da memória e vivem das glórias da juventude e dos feitos de outrora.

Se o tempo pesa e seus efeitos não podem ser ignorados, o espaço não é diferente. A cidade de Parnaíba, especialmente o cais, exerce forte atração sobre os habitantes, não permitindo que se afastem dali sem que haja uma punição.

Isso acontece porque também o espaço conserva sua memória, aprisionando seus filhos eternamente nas mesmas posições da escala social: Você ficaria sempre com a marca do cais e ia acabar mesmo era amigada com um deles, Mundoca. Diante da inconstância do meio de vida do cais, o lugar de origem torna-se sinônimo de conhecimento e segurança, a única coisa realmente concreta na vida dessas pessoas: esperava sentada no cais, com a paciência e a certeza de tantos anos. Certeza de que só o cais existia realmente. E as coisas lhe aconteciam a partir dali e só tinham significação se começassem no cais.

Beira Rio Beira Vida é resultado de uma percepção muito particular da miséria e da prostituição. Uma vez que todo o romance é construído pelas lembranças de Luíza, parece coerente fazer uma análise do texto a partir dos fatos mais marcantes da sua narração, significativos não somente na vida da personagem, mas na fundamentação da denúncia social contemplada por suas lembranças, escolhidas de forma a ressaltar a situação de miséria em que ela se encontra, assim como os legitimadores dessa miséria (o que ela algumas vezes chama de sina, mas que em outras ocasiões ela identifica como a ação de pessoas de um meio social mais elevado). Essas lembranças fundamentam a realidade injusta denunciada através do romance.

Partindo desses episódios, também se identificam outros, pertencentes ao cotidiano da cidade, que oferecem informações importantes para a compreensão do contexto social em que ela está inserida. Dessa forma, evidencia-se com maior clareza a trajetória de Luíza e a formação da sua visão de mundo. Consideram-se, então, três momentos fundamentais das suas memórias.

O primeiro deles descreve o nascimento da sina do cais, ou seja, a maldição que teria dado origem ao meio de vida das prostitutas de Parnaíba. O caso, contado a Luíza por Cremilda, diz que um dia, a mais bela e bem sucedida prostitua do cais se envolveu com um rapaz de família abastada e conhecida.

Apaixonado, ele anunciou o casamento para a família e, depois de ser perseguido pela cidade e deserdado, acabou assassinado por um marinheiro “amigado” com a tal mulher do cais. Acusada de participação no crime, ela foi para a cadeia e, mais tarde, descobriu-se que estava grávida. Passava as noites a perturbar a cidade com seus gritos de revolta, levando as damas da sociedade de Parnaíba a defenderem sua internação na Santa Casa até o nascimento da criança. Porém, o padre não aconselhou a transferência, alegando apenas que seria um “mau exemplo”. Motivo de vergonha para toda a comunidade, ela permaneceu presa:

A mulher passou os nove meses de gravidez gritando e chorando de noite, para que toda a cidade ouvisse. E quando a filha nasceu ainda chorava e gritava, blasfemando. Passou a maldizer o futuro da menina, que ela era culpada, haveria de penar, penar e pegaria barriga de marinheiro, e teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro.

A sina do cais é, portanto, uma conseqüência da omissão da igreja, da língua ferina e preconceituosa da cidade e da transgressão de um jovem que ousou unir as duas pontas de uma sociedade desigual, provocando o surgimento de uma maldição que há anos condena as mulheres nascidas na beira do rio. Nesse contexto, existe um elemento fantástico para justificar um abuso real – a força das palavras, proferidas durante um sofrimento intenso, é tamanha que atravessa os anos a produzir novas vítimas.

O que Cremilda conta nada mais é que um mito, o relato de um acontecimento primordial que condicionou a existência das outras prostitutas a partir de então.

A explicação mitológica para a vida miserável que levam as prostitutas é a sina do cais; ela determina toda a realidade e faz com que essas mulheres creiam na incapacidade de escrever a própria história. Toda vez que uma delas engravida de um marinheiro, é como se repetisse um ritual que remonta àquela praga, o erro original. Suspende-se a passagem do tempo e por um instante, volta-se àquele momento inicial, no qual mais um destino é marcado para sempre. As vidas se repetem indefinidamente, condenadas a esse ciclo de infelicidade, mas compreende-se o porquê e se aceita o fado.

A sociedade retratada no romance se assemelha às arcaicas, nesse aspecto da busca por imagens mitológicas para justificar a realidade. A crença na reprodução eterna dos eventos e nos desígnios de uma entidade superior também é um indício dessa aproximação. Todavia, na comunidade piauiense não há uma renovação do tempo, no sentido de purificação dos pecados, ou uma reverência sagrada ao passado. Há apenas uma repetição de arquétipos, uma incapacidade de escrever histórias particulares gerada pela pobreza e injustiça do meio social em que se encontram.

É importante ressaltar que, apesar de acreditarem num destino já traçado, as personagens ainda esboçam uma certa reação contra a realidade indesejada. Porém, sabem de antemão que se trata de uma tentativa vã, principalmente se essa reação é intermediada pela figura masculina. É o que acontece com Cremilda, na ocasião da perda de seu armazém, o qual havia obtido através de um ‘casamento de interesses’. Depois de anos de trabalho e dedicação, só lhe resta resignar-se diante do fracasso: “A gargalhada da mãe, a sua ironia – ‘mas de que adiantou tamanho sacrifício se eu sei, sempre soube, que um dia ia perder tudo? Mas foi divertido – no começo foi ainda mais divertido, eu ganhava dinheiro, era uma mulher de negócio, cheguei até mesmo a esquecer quem era, quem um dia voltaria a ser’”.

A impossibilidade de vitória diante desse fado é a fonte de sentimentos de vingança e revolta. A sina é imposta pela reprodução sexual, transformando a maternidade num momento de conflito - enquanto a filha se ressente da falta de escolha, a mãe se vinga da gravidez indesejada sobre a própria cria, transmitindo o fardo pesado da vida do cais: Minha mãe nunca me perdoou. A vingança foi ver a minha vida repetindo a sua, toda noite, todo dia, até o fim. Ela teve culpa, mas, não sei porque, nunca se julgou culpada. Quem sabe o que não sofreu da própria mãe? A prostituição se torna um veículo de expressão da revolta. O dinheiro e os presentes que recebem são uma maneira de retirar algo de uma sociedade que lhes nega uma vida mais digna. Para tanto, utilizam o próprio corpo: era um gosto esquisito de vingança, tinha que se vingar do mundo, ou mais particularmente deles, dos desgraçados. Estranho que fosse uma vingança na própria carne, na própria alma. Todavia, com a passagem dos anos e a chegada da velhice, a inutilidade dessas batalhas vai ficando cada vez mais evidente. Diante das forças invisíveis que manipulam o cotidiano e da convicção de que nada pode ser feito contra elas, surge uma aceitação que não é fruto da passividade, mas da desesperança: Quantas vezes não lhe contara aquelas revoltas que se foram aplacando, dando lugar àquela paciência de gente sem destino, sem sorte”.

Arraigada profundamente no imaginário dessas mulheres e determinando crenças e escolhas, a sina se faz presente de inúmeras formas no dia a dia do cais. Ela condiciona, por exemplo, a escolha dos nomes das meninas nascidas ali. Como numa transferência simbólica de cargos e fados, as filhas recebem os nomes das avós, prolongando indefinidamente a ação da praga rogada há tantos anos. Na tentativa de interromper o ciclo de sofrimento e desgraça, Luíza chama a filha de Mundoca, ao invés de Cremilda, como seria o habitual: Tudo teria um fim com Mundoca, aquela dinastia do cais. Aquele destino do cais.

Entretanto, é preciso mais do que um nome para se escapar dessa estranha dinastia, é preciso afastar-se da sua presença maléfica. O convívio diário com a exploração sexual acaba proporcionando um ‘aprendizado’ da sina, uma familiaridade que aproxima a mulher de seu destino e impede que a maldição do rio se dissipe no tempo: Sem querer se vigiavam – a conversa com os marinheiros, as histórias, feias e bonitas, mais feias do que bonitas, aprendiam nomes, aprendiam novas posições no ofício, discutiam, se admiravam tanto da esperteza de cada uma – concorrentes no mesmo jogo, lutavam rivais e com fúria.

Essa realidade cruel da prostituição é o tema anunciado pelas epígrafes do romance. São duas frases que sintetizam o cotidiano das prostitutas não somente de Parnaíba, mas de qualquer outro lugar. A primeira, retirada de um texto de Cornélio Penna, sugere tanto uma dissimulação quanto um engano: VIA MÁSCARAS, ONDE ERA NECESSÁRIO, PREMENTE, VER ROSTOS. Dissimular é uma atitude comum às prostitutas, as quais necessitam ‘usar máscaras’ e representar personagens, num processo de anulação da individualidade que as transformam em estereótipos e deturpam a auto-imagem, como sugere outro momento do texto:

“Como seria realmente? O espelho do guarda-roupa lhe puxava a testa para cima, ou o queixo de lado – a boca debruada ou os lábios apertados.
Botava os dentes para fora, fazia caretas, a sua imagem tomava novas formas, ‘é o diabo que está dentro da gente’.

Ao olhar-se como uma ‘mascarada’, a prostituta permite ao homem usá-la e, assim, ele também passa a enxergá-la não como ser humano, mas como máscara que encobre o rosto real da miséria e da humilhação. O homem se engana, assim como o resto da comunidade, porque não considera o indivíduo, mas o objeto, o jogo egoísta do prazer; enganam-se todos porque desumanizam essas mulheres simplesmente para aceitarem com mais facilidade suas desgraças.

Já a segunda epígrafe é uma passagem do próprio romance, a qual se refere ao envelhecimento de Cremilda e à sua ‘substituição’ nos negócios por Luíza: A REDE BRANCA DE VARANDA BORDADA ERA DELA AGORA, ROBE FLORIDO, O LEQUE PERFUMADO – NOVA RAINHA NO TRONO. Através da descrição dos itens de sedução e beleza utilizados na prostituição e que são repassados para Luíza, a frase destaca justamente a ‘transmissão’ da praga do cais com a chegada das novas gerações, as quais retomam as atividades das mães num ciclo interminável. Nota-se, então, que as epígrafes de Beira Rio Beira Vida sustentam a hipótese levantada neste estudo sobre a presença de um mito no comando da vida dessas mulheres. O jogo das máscaras é ilusório, assim como é a origem mitológica da sina, a qual explica um problema social através do sobrenatural. O posto de “nova rainha do trono” e os objetos marcam um rito de passagem, e rituais são necessários na restauração do tempo ab origine do mito, concretizando a transmissão da maldição rogada naquela época.

Com características também similares a um ritual de passagem, a primeira menstruação de Luíza é outro momento fundamental das suas lembranças, o qual define seu lugar no mundo. Apesar da convivência com a prostituição desde a infância, a primeira menstruação é a porta de entrada para essa vida de exploração e humilhação. Diante da metamorfose da filha, a mãe é categórica: - Agora você pode ter homem, besta. E até que pode ajudar sua velha mãe. A menina, por sua vez, reconhece na menstruação a prova física da condenação, o anúncio de uma existência desgraçada:

Cansei de ver os panos dela, a vida que ela levava, aqueles homens – juntava tudo que via com o tipo de vida que ela tinha. E de repente me via suja como ela. Juro, Mundoca, que pensei que só mulher da iguala de minha mãe tinha aquilo, que era como uma sina ou um castigo, uma espécie de marca. E eu fora atingida, minha vida seria igual à dela, quer quisesse ou não.

A primeira menstruação não consolida somente a crença num destino repetitivo e imutável, ela também abre caminho para outras experiências importantes em sua vida, como a primeira relação sexual, ocorrida com um marinheiro quando tinha apenas quinze anos: Quantas vezes teria de esperar pela sua volta? Nuno lhe foi a chave de todo aquele mundo que povoava a cabeça de sua mãe. Abriu o caminho, bem sabia, para mais uma mulher do cais – um filho na barriga, a saudade prendendo os passos. Apesar de ser um agente da sina, o primeiro homem de Luíza se torna referência de porto-seguro, uma espécie de ‘paraíso perdido’, o passado idealizado ou um futuro não-realizado: Nuno não necessitou do retrato na parede, ficou além de todos os outros que se repetiam com suas palavras, suas promessas, seus passos no cais (...) Nuno fora a única projeção nítida, mesmo sem retrato para a volta ao passado. Ele remete a um tempo em que ainda era possível sonhar com um futuro diferente, quando ainda havia esperança. Assis Brasil recorre então à imagem do fruto proibido para simbolizar que Nuno, seu navio e a promessa de uma vida melhor não estão ao alcance de Luíza: Ao morder a maçã identificou o cheiro do navio – o desejo de comer a fruta vermelha marcou seu tormento durante a gravidez de Mundoca. O cheiro e a lembrança de Nuno. Para essas mulheres do cais, a possibilidade do amor é instável como as cheias do rio. Ao contrário do que se poderia pensar, a incerteza não é um tempero para a rotina monótona, mas sim fonte de angústia e desesperança. O grande tormento é saberem que não possuem paragem certa: Deixou que ela ajeitasse o camarote, como se fosse seu ou dos dois o pequenino aposento – se aliviava da casa escura, do cheiro ruim – ah, se aquilo, aquele sonho estivesse em terra firme e não fosse embora. Ah, se tudo não passasse.

O resultado dessa experiência sexual é a primeira e única filha, que vem completar mais um ciclo da maldição do cais. Curiosamente, a mesma gravidez que anuncia o fado é via de liberdade e afirmação da identidade: Jogou tudo na cara dela, tudinho, mais com um sentimento de vingança. Era a sua maneira de se sentir um pouco livre (...) a barriga grande lhe dava uma certa importância, um misto de vaidade e confiança. A mãe nem podia compreender, apenas aceitava a sina, o fato como o complemento de seu destino desgraçado.

Pressentindo que não há mais salvação pessoal, Luíza passa a acreditar que pode contribuir para a libertação de Mundoca. Ao relembrar seu passado de sofrimento, ela tenta mostrar o caminho que a filha deve tomar para que escape à maldição. A grande vitória de Luíza reside no fato da vida de Mundoca não repetir a sua: Mundoca quebrara a tradição das filhas das mulheres do cais. Não explorava os homens, não se impressionava com as embarcações do rio. Nota-se então uma ruptura com o mito ou, pelo menos, uma possibilidade de ruptura.

O trecho sugere que:

a) Assis Brasil, intencionalmente, não desenvolveu a personagem por acreditar que, dessa forma, ressaltaria a sua inutilidade e insignificância na escala social de miséria ali retratada; ou
b) a personagem não ganha mais espaço porque não representa nada de especial na trama, é “apenas um elo quebrado”.

Analisados a partir do ponto de vista do presente estudo, nenhum dos dois pontos procedem. Se por um lado, concorda-se com a intenção do escritor em deixar a personagem Mundoca fora do centro das atenções, por outro se acredita que seus motivos são outros: ela não seria a imagem do fracasso, mas da esperança; ela representa sim algo muito especial na trama, a promessa de libertação. Enquanto Fausto Cunha enfatiza o pessimismo da realidade retratada na obra (o que não deixa de ser um fato), propõe-se aqui que a mensagem é, na verdade, otimista e vislumbra uma forma de reação.

O limbo criador em que Mundoca se encontra é repleto de possibilidades e o seu comportamento, contrário ao das mulheres do cais, aponta para uma quebra da cadeia de miséria e estagnação, a tal praga que na trama simboliza a dura realidade sócio-econômica, assunto que será tratado ao final, junto com a mensagem de transformação contida nos quatro romances da Tetralogia Piauiense.

Dona de uma personalidade peculiar, Mundoca não reclama, sonha ou faz projetos. Parece ter nascido naturalmente desinteressada pelas coisas do cais e da vida como um todo. Não brinca com a boneca Ceci, testemunha silenciosa do sofrimento da mãe e da avó: ao desprezar o brinquedo, a menina despreza todo o passado de prostituição que ele presenciou. Também não deveria ter uma filha, o que Luíza considera essencial para acabar de vez com a sina do rio, nem a máinfluência de suas atividades noturnas: De uma coisa eu procurei livrar você, Mundoca: do meu barulho com os homens, para que não tivesse vergonha diante de sua mãe. A vaidade, que lhe apareceu ainda na infância despertando o desejo de ganhar dinheiro e, conseqüentemente, a busca por ele a qualquer custo, não se manifesta em Mundoca: Você não tem vaidade nem nada. A mulher só tem vaidade quando tem homem em casa. Todas essas qualidades apontam claramente: para se fugir de uma vida desgraçada, deve-se fugir dos homens. Em diversas ocasiões, Luíza associa momentos de felicidade ao fato de não depender de favores ou humilhações, especialmente provenientes deles. Ser livre significa estar livre das obrigações com os homens, do passado que condena e determina todos os seus passos: Correu para o cais, certa da morte de Jessé, o único que quisera mudar sua vida. Mas a transformação teria que partir dela, de uma delas, como acontecia agora com Mundoca – distante, o rio, os marinheiros, as fardas, as embarcações, não seriam mais um passado.

A liberdade completa, entretanto, só pode ser alcançada através da própria morte. O que não quer dizer o fim definitivo da maldição, apenas o término de um ciclo pessoal de sofrimento para o renascimento de outros.

Em Beira Rio Beira Vida, a morte é uma via para a repetição dos mesmos erros. A vida continua a se renovar, mas não se purifica: o passado não é esquecido e as falhas acumulam-se sobre as próximas gerações. Por isso, a morte de Cremilda é considerada o terceiro momento fundamental das lembranças de Luíza. Com a partida da mãe, finda-se um ciclo de miséria para o início de outro: Luíza é a próxima na fila do destino e deverá passar por tudo aquilo pelo qual Cremilda passou. Outras questões também podem ser abordadas a partir dessa morte, como a velhice e a exclusão social, situações muito próximas que requerem um olhar mais atento.

Cremilda morreu sozinha, bêbada, numa noite de Natal. Foi enterrada com o dinheiro doado por um cliente de Luíza, ao qual esta retribuiu “com a consciência de um negociante”. Sepultada sem a presença do padre, pelas mãos de estranhos, foi reconhecida e lamentada por poucos. Passado o funeral, as marcas da sua presença são sistematicamente eliminadas. A figura velha e rabugenta já não é mais um incômodo e a casa até parece maior. É tempo de Luíza retomar o trabalho com novo fôlego:

Pôde arrumar a casa à vontade, abriu as janelas, vasculhou o telhado, as paredes. Limpou tudo, Mundoca ajudando. Ajeitou os poucos móveis. – Eles não devem saber que ela morreu aqui. Desencardiu o piso – debaixo da rede dela, o cuspe empretecera as tábuas. Jogou creolina pelos cantos para afastar o cheiro de sujo – seria bom pintar as portas.

Cremilda foi ‘despachada’ exatamente da mesma forma que havia feito com a própria mãe – primeiro a faxina, depois a volta ao trabalho. O comportamento diante da morte se repete, caracterizando mais um ritual que assegura (inconscientemente, é bom lembrar) a permanência da praga: tanto na vida, quanto na morte, as prostitutas são semelhantes entre si e o aprendizado desses costumes permanece indefinidamente. Se essas condições de morte são próprias do meio de vida do cais, as emoções experimentadas na hora da perda se revelam mais ordinárias, como a empatia. O defunto é a imagem refletida daquele que o observa, o futuro mais do que certo:

Mas muitos chegam por puro egoísmo, como numa corrida para ver quem vive mais – o enterro dos parentes e dos amigos vai soando como estranhas vitórias. ‘Hoje enterrei mais um’ – quantos não dizem isso com satisfação bem no fundo. Eu mesmo senti uma coisa estranha quando enterrei minha mãe – a gente mistura compaixão com alívio, sei lá.

Todas as características apontadas até aqui demonstram que o momento da morte não difere muito da vida retratada no romance. Vive-se e morre-se sozinho, esquecido. A imagem derradeira é suja e vergonhosa. A miséria elimina as pessoas bem antes da hora marcada e aqueles que ficam têm urgência em apagar seus vestígios.

A morte é, pois, um agente a serviço da sina: leva a mãe, para que a filha assuma seu posto; e leva o homem, para que ele não a retire do cais. Antes da partida de Cremilda explicitar o fim que lhe aguardava, a morte de Jessé significou o enterro definitivo da esperança de felicidade. Amigo de infância, Jessé era órfão de pai e mãe quando foi acolhido por Cremilda no armazém. Desde pequeno, se mostrava inconformado com a pobreza e batalhava muito por uma vida diferente.

Conseguiu realizar por um tempo o sonho de trabalhar nas embarcações, navegando pelos rios e visitando outras cidades. Porém, morreu queimado num acidente quando voltava para visitar Parnaíba e Luíza. Seu principal erro foi pensar que poderia mudar seus destinos: Jessé bom, queria remediar tudo, remediar o destino, coitado, como se tivesse poder para tanto. Mesmo não tendo nascido ali, Jessé já estava marcado pelo cais, assim como Luíza. Homens como ele não ficavam ricos; mulheres iguais a ela nunca se casavam: A morte de Jessé, para que ela não virasse uma senhora casada (...) A morte, para que Jessé não a tornasse respeitável. A morte aparece, então, para atestar a impossibilidade de transformação e colocar todos nos seus devidos lugares, assegurando a presença da sina.

Ao fim da existência, os pecados cometidos em vida não são redimidos e o ‘defunto antepassado’ carrega consigo as suas agruras:

Você deve perguntar, Mundoca, por que nunca vou ao cemitério rezar pela alma de Jessé. Não, nunca vou mesmo, e digo a minha razão: é porque ela está lá também, bem perto dele. Está lá, como se ainda tomasse conta do pobre, como se perseguisse ele no tempo do armazém (...) Por isso não vou ao cemitério. Não é desprezo, não. É pra lá que vou algum dia, mas aí já é diferente. Depois vai você, Mundoca, e tudo está terminado.

A atitude no pós-morte não se modifica: Luíza ainda culpa a mãe pela vida que teve, por isso evita ficar perto dela. O que não configura uma vontade de encobrir a morte, uma vez que ela se mostra consciente da própria finitude. As ações e pensamentos são formados racionalmente, inclusive a expectativa de libertação da sina através da morte de Mundoca. Percebe-se pelo comportamento diante da morte que, em Beira Rio Beira Vida, ela não é temida, mas vista apenas como o componente natural de um quadro de renovação constante: é necessário que se morra para que outros assumam seu lugar na linha de pobreza. Esse tipo de morte não causa grandes comoções ou conflitos internos. Também não levanta uma preocupação com a alma ou questionamentos sobre o além-túmulo. Na verdade, o envelhecer nesse mundo se mostra um processo muito mais dramático que o morrer.

Antes de ser o prenúncio da morte física, a velhice determina a hora em que o homem deve se afastar do trabalho, o que na maioria das vezes significa transformar-se em um ser inútil e descartável para a sociedade. A velha prostituta precisa lidar não somente com a perda do vigor e da beleza (o que, diante das condições precárias em que vive, acontece prematuramente), mas também com o seu sustento, uma vez que se encontra numa situação de total abandono em relação às políticas sociais. Dessa forma, ela testemunha o corpo que lhe sustentou por tantos anos, envelhecer e condenar sua existência: o que minha mãe queria era uma vida segura para ela, tão medrosa com aqueles olhos murchando ante a velhice. Sabia que muito cedo os homens iam sumir da vida dela. O meretrício revela ainda uma triste dinâmica da relação mãe e filha – aquela a quem se deveria amar incondicionalmente, é também sua maior rival na luta pela sobrevivência: Compreendera tanto, a mãe se desesperando, de olhos tristes para ela que ainda sorria jovem.

O confronto entre Cremilda e sua deterioração, presenciado (e esperado) por Luíza, inspira um pensamento revelador:

Ia se vingando, tudo tinha que ser tomado, arrebatado, enquanto as forças estavam vivas e a consciência não atrapalhava. Mas a velhice é bem uma doença, Mundoca. Satisfeitos os primeiros desejos, amortecidos os primeiros ímpetos, o desencanto vem para completar a história. Isso não falha, como um desígnio. Se você me perguntasse, Mundoca, que história é essa, eu podia dizer que é a história de todo ente vivo. Podia até ajuntar que ricos e pobres seguem a mesma história. Se a gente adivinhasse o que é ficar velho, o que é chegar ao fim, não sei não.

Durante a narrativa, Luíza menciona diversas vezes a situação de abandono do cais velho, o qual deve ser substituído por outro em construção. Esse painel de fundo reafirma o caráter transitório das coisas - o local vai sendo esquecido, abandonado, consumido pelos anos, juntamente com seus habitantes e suas lembranças.

Caminhando em direção contrária, como numa tentativa de sobreviver a essa destruição, Luíza se recorda, se segura firme nas histórias que o tempo vai levando. Lembrar é uma função social dos velhos; eles se ocupam do passado enquanto os outros se ocupam do trabalho

No romance, o passado acaba funcionando como um combustível para a sina. As pessoas que viveram em Parnaíba ou passaram pelo cais são a consciência desses lugares. Através das histórias que contam, transmitem hábitos e preconceitos com um atestado de importância adquirido naturalmente com a idade. Dessa forma, tornam familiar a praga, validam a sua existência e tudo continua à imagem e semelhança do ontem. Mexer nessa estrutura é perigoso e, geralmente, resulta em nada. O processo se revela um paradoxo para os habitantes à beira do rio: quanto mais se recordam do passado, mais se vêem presos a ele e à miséria que ele representa. A força maléfica da sina tem origem nas lembranças que persistem daquela história original, que camuflam as verdadeiras causas do problema. O recordar como mecanismo de fuga é atraente: A mãe falava, falava, como se procurasse fugir daquelas noites sem sono, que terminavam sempre iguais. Quanto mais falava do passado, mais a vida dela se extinguia. Por não haver expectativas de uma vida melhor no futuro (até mesmo porque esse futuro já chegou para os velhos), volta-se para o passado e para as possibilidades não realizadas que ele conserva.

De fato, ao dividir seu passado com Mundoca, Luíza arrisca-se a alimentar a maldição do cais. A velhice a torna propensa a esse saudosismo, à busca pela compreensão daquilo que viveu. Porém, o que deve ser ressaltado, em concordância com a tal denúncia social pretendida por Assis Brasil, é a natureza do discurso de Luíza, que questiona e tem como intenção mudar a sorte da filha.

Sentada nas pedras do rio, à beira da vida, Luíza percebe que algo pode (e deve) ser feito para acabar com tanto sofrimento. Certamente que sua reação não abrange a totalidade da problemática social que vivencia. Diante de tanta miséria, poucas coisas podem ser feitas individualmente para atenuá-la. Na verdade, o estágio de exclusão social em que se encontram esses moradores do cais os torna praticamente invisíveis para o restante da sociedade, aproximando-os de um estado de morte.

Talvez por esse motivo não existam medo ou expectativas quanto à morte, uma vez que ela está presente no cotidiano; ao contrário, anseia-se por aquilo que está distante, a fugaz sensação do ‘estar vivo’: e a vida a visitara uma vez, assim como dizem que é a morte que visita as pessoas. Essas pessoas se encontram numa imobilidade quase total na escala social. O sucesso não pode ser alcançado, mas todos correm o risco de descerem alguns degraus.

Ricos (na sua comodidade) e pobres (no seu desconhecimento) crêem que os desígnios divinos e outras forças superiores determinam essa realidade, o que torna ainda mais difícil mudá-la: Os mesmos atos, palavras – uma submissão completa. Assim, assim, nada mudava, todos sabiam e aceitavam, a vida era aquela, botar os passos no rumo e pronto. Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.

A exploração dos mais fracos surge naturalmente nesse cenário de injustiça e estagnação. Enquanto Cremilda é usada pelos homens em troca de dinheiro, e Jessé é escravizado por ela em troca de comida, todos são consumidos pela cidade de Parnaíba: Ela lá trancada na Santa Casa, demente, comendo da mão dos outros – eu aqui, quase cega, sentada nessas pedras, comendo da esmola de um emprego. E o certo, Mundoca, é que essa cidade vai matando a gente, consumindo. Referindo-se à personagem principal de A Filha do Meio Quilo, segundo romance da Tetralogia, Luíza ressalta a situação de subjugação e dependência que todos se encontram em relação à cidade. Termo usado de forma abrangente, ‘a cidade’ como agente supremo da miséria é a falta de emprego, de casa, de saneamento; é o descaso das instituições religiosas, a maledicência da elite, a omissão dos órgãos públicos.

A sina do cais, que atinge as prostitutas da cidade, também é a sina de todos os desprovidos de Parnaíba: a carência de condições oferecidas pelo meio social. Aqueles que se encontram mais bem posicionados para enxergar a injustiça, perpetuam a crença numa vontade superior que condiciona tudo isso. A desgraça do povo vira espetáculo para aqueles distantes da sua realidade: Os curiosos mais afoitos repugnaram as cenas, voltaram pela rua do Rosário (...) de novo em suas vidas calmas, rotineiras, sem novidades, além das novidades dos filhos e da morte na velhice – o cais era para ‘aquela gente’, eles concluíam. A morte de Jessé, mais um pobre do cais, queimado sobre a embarcação, é real demais para os olhos que insistem em desviar-se da verdade: prostituta, dama, marinheiro ou prefeito, a vida é a mesma, nascer, procriar, envelhecer, morrer. Somente um detalhe os diferencia, o berço. Em Beira Rio Beira Vida, o cais não é somente o lugar da marginalização e da miséria, é o ponto de contemplação do que não se tem. O rio ou a existência passam pelo cais, sem que se possa ali viver no sentido amplo do termo. Os breves contatos da vida com o cais, representados pelas gravidezes das prostitutas, são o pequeno quinhão que recebem os que estão à beira do rio, à beira da vida, em ciclo eterno e mítico, explicável tão somente pelas forças que mantêm tudo e todos do mesmo jeito de sempre.

PERSONAGENS

Como já pudemos perceber, a personagem principal é Luíza. Filha de Cremilda (prostituta), era constantemente humilhada pela mãe. Não tendo pudor para com a sua filha, desde cedo deixa claro para Luíza que o único caminho a seguir é a prostituição. A mãe da personagem mostra-se amargurada, oportunista (em alguns momentos) e, acima de tudo, sem perspectivas. Quando esta herda do "velho Santana" um armazém, vê a chance de sair daquela vida. Acaba perdendo-o. A sociedade se fecha para Cremilda ao tentar comprar uma casa, discriminada socialmente:

- Eles disseram que meu dinheiro não dá.
- Pra quê?
- Pra comprar uma casa aqui na cidade. Sei que é mentira, eles não querem é me vender. Um ainda disse: 'Mesmo a senhora não pode se mudar pra cidade.'Foi o que um deles disse, Luíza, e os outros acharam graça.

Esse mundo sem possibilidades pode ainda ser evidenciado na forma de organização da obra: o final repete o começo, não acenando para possíveis alterações na vida daquelas personagens. Isso é ainda mais reforçado pela repetição dos ambientes e das situações no transcorrer da narrativa, mostrando um mundo monótono e fechado para as prostitutas do porto. Essa idéia é reforçada por Herculano Moraes ao ressaltar: "Os elementos do instrumental ficcionista utilizado por Assis Brasil em Beira Rio Beira Vida são quase sempre o rio, o cais, as embarcações subindo e descendo o rio, os marinheiros, a vida nos armazéns do cais."

Luiza, antes de sua degeneração, entrega-se para seu grande amor (Nuno - marinheiro). Deste relacionamento surge Mundoca. Luiza deposita suas esperanças na filha, para que esta não tenha o mesmo destino da mãe e da avó. O crítico Fausto Cunha, ao retratar Luiza, ressalta que ela "é uma espécie de barro original, a partir do qual são formados os outros personagens. Seu sonho, sua luta, é a evasão pelo amor, num meio em que o amor tem câmbio específico. Realiza-se vicariamente através da boneca Ceci ('personagem' às vezes demasiado literária em seu simbolismo ostensivo) e não percebe que de certa maneira venceu ao não conseguir passar a tocha da degradação à sua filha. Mundoca não sai do limbo criador - como se estivesse fora do foco do romancista. É apenas o elo quebrado de uma cadeia. Nela se conclui o processo através do qual uma sociedade petrificada elimina as sementes inúteis."

Na obra há uma grande distinção entre a cidade e o cais: "(...) a vida era aquela, (...). Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.". Enquanto a cidade tende ao desenvolvimento, buscando inclusive a construção de um novo porto, o desnível social vem aumentando vertiginosamente.

O conservadorismo se faz presente na sociedade (revelada em sua hipocrisia, tentando abafar seus escândalos) e no clero (representado por padre Gonçalo), que ignora os menos favorecidos em detrimento da elite. Isto acaba provocando um desamparo e insatisfação nos primeiros, como pode ser constatado abaixo:

(...) O padre velho Gonçalo, esse nunca apareceu no cais que eu saiba. Fica lá nos batizados dos ricos, nos banquetes, nos casamentos.

Ou no enterro de Cremilda:

(...) enterro sem padre, deve ser uma das mulheres, será a Cremilda?

Mundoca mostra-se triste e introspectiva. Fala pouco, é humilhada e assediada no trabalho. O sentimento de repulsa e asco acabam por determinar seu mundo interior:

(...) Sua vida era plana, passava pelo cais de manhã e à noite, não como etapas de cada dia, mas como etapas de um caminho repetido, sem começo nem fim. Não ia nem vinha. Ia sempre para o mesmo lugar, ou vinha sempre da mesma porta.
(...)
Mundoca nunca amou.
(...)
Tinha raiva de tudo, nada era importante, nada tinha alguma significação.

Jessé representa o inconformismo com a sua condição. Criado por Cremilda desde pequeno, tem anseio de ascender economicamente. É reprimido pela mãe de Luiza quando mostra seu desejo de estudar. Chega a capturar borboletas e criar bichos (porcos e marrecos). Transforma-se em marinheiro, morrendo em um incêndio no navio-gaiola.

Toda essa dimensão é enfocada em um plano psicológico (narrado em 3a pessoa). A interiorização das personagens, revelando seus desejos simples, suas amarguras e frustrações, dá à obra uma forte dimensão dramática. A intratextualidade é outro recurso utilizado pelo autor (A Filha do Meio Quilo, Pacamão).

Predomina o discurso indireto e indireto livre. Quando o discurso direto se faz presente, são falas curtas, incisivas, secas, ríspidas ou nostálgicas, ampliando a carga de comoção do texto.

Fonte:
Procampus | Francigelda Ribeiro | Maria Janaína Foggetti (UEL) Disponível em Passeiweb

Marcelo Spalding (A Capacidade de Expressão e o Ensino de Língua Portuguesa)


Ensinar língua nativa, por exemplo português para brasileiros ou inglês para ingleses, é sempre muito difícil, pois a rigor todos os nativos de uma língua a conhecem desde os dois, três anos de idade (embora todos vivam com a sensação de falá-la erradamente, motivo pelo qual muitos não escrevem um texto por conta própria há anos).

É preciso, porém, entendermos que uma coisa é a capacidade linguística e outra, a capacidade de expressão. A capacidade de expressão é aquela que nos permite narrar fatos, defender ideias, descrever situações, responder complexas questões de concurso, falar com nossos amigos, falar em público, falar ao telefone, etc.

A capacidade linguística, por sua vez, é o conhecimento da estrutura de um idioma em especial, sua ortografia (que é apenas um dos itens do idioma), sua estrutura, seu léxico. Aqui ainda temos a capacidade de interpretação, que exige capacidade linguística, mas também um certo conhecimento de mundo.

Em geral, treina-se nas disciplinas de Língua Portuguesa a capacidade linguística, fazendo os alunos ler, escrever, interpretar, ensinando ou relembrando convenções ortográficas, estruturas sintáticas e morfológicas, etc. Esse conhecimento é infinito, quanto mais se estuda uma língua e mais nos aprofundamos nela, mais dúvidas temos e, por vezes, mais inseguros nos sentimos (quem acha que sabe tudo de seu idioma, procure saber o que é fonologia, etmologia ou pragmática, por exemplo).

O problema é que o público leigo, que realmente acredita que não sabe sua língua nativa, usa isso como desculpa para não exercitar sua capacidade de expressão, o fazendo apenas quando é obrigado a tal, como numa entrevista de emprego. Com isso, não escrevem e até evitam falar em público para não errarem, deixando de praticiar aquilo que é o mais importante para qualquer ser-humano: a comunicação.

Para que se deve ter capacidade linguística, afinal de contas, se não for para nos expressarmos, nos comunicarmos?

Claro que algumas pessoas têm uma invejável capacidade de expressão sem necessariamente ter um grande conhecimento linguístico. Nosso ex-presidente Lula é um bom exemplo. Alguns músicas e escritores também demonstram genialidade em suas áreas, ainda que nunca tenham estudo a fundo questões de gramática. Mas parece inegável que quanto mais capacidade linguística tivermos, mais ferramenta para usarmos com nossa capacidade de expressão teremos.

E ter capacidade de expressão, repita-se, é fundamental para sermos bons profissionais, bons cidadãos, participarmos ativamente da sociedade. Ter capacidade de expressão é decisivo para convencer, explicar, contar. Ter capacidade de expressão linguística é, em última análise, o que nos diferencia dos outros tantos animais.

Fonte:
texto enviado pelo autor

Audioteca Sal e Luz (Livros para Deficientes Visuais)


A Audioteca Sal & Luz é uma instituição filantrópica, sem fins lucrativos, que produz e empresta livros falados (audiolivros) para pessoas cegas ou com deficiência visual, em todo o território nacional.

Seu acervo conta com mais de 2.700 títulos que vão desde literatura em geral, passando por textos religiosos até textos e provas corrigidas voltadas para concursos públicos em geral. São emprestados sob a forma de fita K7, CD ou MP3. São livros que alcançam cegos e deficientes visuais (inclusive os com dificuldade de visão pela idade avançada), de forma totalmente gratuita. Para ter acesso ao acervo, basta se associar na sede, situada à Rua Primeiro de Março, 125 - Centro, Rio de Janeiro. É possível também solicitar o livro pelo telefone ou escolher o título pelo site, que será enviado gratuitamente pelos Correios.

Acesse o site: http://audioteca.org.br/noticias.htm ou entre em contato pelo número (21) 2233-8007.

Fonte:
Câmara Brasileira do Livro

Felipe Daiello (Projeto Balcão da Cultura)



Iniciado em dezembro de 2011, o projeto de escritor Felipe Daiello é sucesso no GNU — Alto Petrópolis. A troca de livros, a possibilidade de empréstimo bem como a doação de obras de literatura, foi bem aceita pelos associados.

Inclusive, como modelo pioneiro, está sendo implantado na SAPT — Sociedade dos Amigos da Praia de Torres. O novo balcão da cultura deve ser inaugurado dia 18/02/2012, antes do carnaval. Para prestigiar os nossos autores, os livros fornecidos pela AGE são de autores gaúchos. Precisamos de divulgação para implantar mais balcões pelo Rio Grande. A Cultura agradece.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Guerra Junqueiro (A Igreja do Rei)


Era uma vez um rei que quis edificar uma igreja magnífica em honra da Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse contribuir para a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o edifício se concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei gravar numa pedra de mármore uma inscrição em letras de ouro, que dizia que só ele, e mais ninguém, tinha levado a cabo aquela obra monumental. Mas na noite seguinte o Dome do rei foi apagado da inscrição, substituído pelo de uma pobre mulherzinha do povo. O rei ao outro dia tornou a mandar gravar o seu nome na inscrição, b de novo foi substituído pelo da pobre mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de cólera, ordenou então que lhe levassem a mulher à sua presença.

– Proibi a todos os meus vassalos, disse ele, que contribuíssem fosse com o que fosse para a edificação desta igreja; vejo que não cumpriste as minhas ordens.

– Senhor, respondeu a velhinha toda trêmula, eu respeitei as vossas ordens, apesar da mágoa que sentia por não poder oferecer o meu pequenino óbolo em honra da Virgem, mas julguei não desobedecer a vossa majestade, deixando por vezes de jantar para comprar um pouco de feno, que eu levava às escondidas aos bois que conduziam as pedras destinadas à construção da igreja.

– O teu nome é mais digno do que o meu de figurar em letras de ouro na inscrição do monumento, disse-lhe o rei.

Mas na noite seguinte uma invisível mão restabeleceu na lápide da igreja o nome do rei, que desde então lá se conserva ainda.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - III – As árvores gêmeas


Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na quantidade certa, nem mais, nem menos, se não vai parar para lá ou para cá do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito diferente do País das Fábulas. Em vez do lindo campo de veludo verde, cortado pelo rio na beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano, com enormes rochas negras dum lado e o mar de outro. Nem floresta, nem vegetação nenhuma — além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o burro parara. Assim que pulou em terra, Pedrinho correu os olhos em torno.

— Erramos, vovó! — disse ele. — Isto nunca foi o País das Fábulas. Está me cheirando a alguma das terras das Mil e Uma Noites.

— E agora? — perguntou a velha, já com medo. – Melhor voltarmos. Estou sentindo uma coisa esquisita no coração...

— Sim, podemos voltar — concordou o menino — mas primeiro temos de tomar fôlego e esperar que passe a sua tontura.

Dona Benta concordou e, suspirando, sentou-se numa das raízes da árvore, a abanar-se com o lenço, muito queixosa da falta de ar.


Pedrinho amarrou o burro pelo cabresto e pôs-se a examinar a paisagem.

— Que árvores tão esquisitas! — disse erguendo os olhos para cima. — Os troncos sobem em linha reta, mais grosso no alto do que embaixo!...

— E repare a copa — disse a menina também de nariz para o ar. — Não parece formada de folhas, como todas as árvores, e sim de penas, ou coisa parecida. A casca também, veja, não se parece com casca de nenhum pau conhecido. Toda escamada, como pele de jacaré.Francamente, estou desconfiada destas árvores...

Os troncos tinham as raízes de fora, quatro raízes para cada árvore, terminadas em pontas curvas, como enormes chifres de boi.

De repente a raiz onde se sentara dona Benta mexeu-se.

— Acudam! — berrou a pobre senhora dando um pulo. — A raiz mexeu!...

Aquele grito assustou as árvores gêmeas, fazendo-as se destacarem do solo, com raízes e tudo, e erguerem-se no ar, levando o pobre burro pendurado pelo cabresto.

— Misericórdia! — gritou dona Benta no auge do pavor. – Não eram árvores! Eram as pernas do pássaro Roca que confundimos com árvores! Sentei-me em cima do dedo do pássaro Roca pensando que era raiz...

Tinha sido isso mesmo. Por um desses acasos da vida, os nossos viajantes haviam parado justamente debaixo do gigantesco pássaro das Mil e Uma Noites e tomaram as suas monstruosas pernas como troncos de duas árvores gêmeas... Felizmente eles eram pequeninos demais, em comparação com o pássaro Roca. Nem foram percebidos.

Do contrário, teriam sido destruídos como se fossem pulgas. Estavam salvos, com exceção do burro falante, que lá se balançava no espaço, a espernear...

— Que pena! — exclamou dona Benta compungida. — Um burro tão boa pessoa, tão bem falante!... Tia Nastácia vai ficar inconsolável...

— Podemos salvá-lo, vovó — disse Pedrinho abrindo o mapa do Mundo das Maravilhas. — O barão de Munchausen tem um castelo aqui perto. Ele é o melhor atirador do mundo. Pode, com uma bala, cortar o cabresto do burro e salvá-lo. Resta que eu ache o barão em casa...

Pedrinho resolveu ir procurar o castelo. Tomou uma pitada do pó de pirlimpimpim e cheirou-o, depois de recomendar:

— Não me saiam deste ponto. Dou um pulo ao castelo e já volto.

— Pelo amor de Deus, Pedrinho, não nos abandone neste maldito deserto! — implorou a nervosa velha. — Melhor irmos atrás desse barão todos juntos...

Muito tarde. Pedrinho já havia cheirado o pó mágico, cujo efeito era instantâneo. Começou a virar fumaça de gente, breve desaparecendo da vista de todos. Dona Benta abanava-se, abanava-se, cada vez mais aflita. Aquilo lhe parecia o fim do mundo. Narizinho procurou consolá-la.

— Não seja tão boba, vovó! Não tenha medo, que nada adianta. Faça como eu, que estou fresca da silva. Há tanto tempo que vivo nesta vida de aventuras, que já não sei ter medo. Seja lá o que apareça, leão, cuca, saci, onça ou pássaro Roca, a gente dá um jeito e no fim sai vencendo. Para que tremer assim, justamente agora que o perigo passou?

— Não posso minha filha. Não está em mim. Quando me lembro que uma criatura pacata como eu, de mais de sessenta anos, esteve sentada no dedo do pássaro Roca, meu coração pula dentro do peito como se fosse um cabrito...

Até Emília caçoou da coitada.

— Tamanha mulher! Tremendo porque esteve sentada num pé de galinha! Pois eu até no bico desse tal pássaro era capaz de dormir um sono sossegado.

— É que você é inconsciente, Emília. Se eu fosse de pano, era provável que também não tivesse medo. Mas sou de carne...

— Isso não, vovó! — protestou a menina. — Eu também sou de carne e não tenho medo de nada.

— Você é outra inconsciente, minha filha. Tem a inconsciência natural da idade. Quando crescer há de ficar medrosa como eu.

Estavam nessa conversa, quando Emília gritou:

— Lá vem vindo Pedrinho com o barão de Munchausen!

Todos voltaram-se e viram o vulto dos dois, lá longe. Estava o barão vestido de caçador, grandes botas, chapéu de três bicos, espingarda a tiracolo. Ao seu lado marchava Pedrinho, muito lampeiro de ver-se em tão nobre companhia. Vinha contando histórias das suas caçadas no sítio. Naquele momento o pássaro Roca reapareceu no céu, a grande altura, descrevendo círculos. Voava tão alto que nem dez tiros emendados poderiam alcançar metade do caminho.

— Temos de esperar que ele baixe — disse o barão.

— Enquanto isso o senhor dá uma prosinha com vovó, que deve estar morre não morre de medo.

— Medo de quê?

— De tudo. Vovó tem medo até de baratas. Hoje foi a primeira vez que a trouxemos ao mundo das aventuras. Mas erramos de terra e viemos parar bem embaixo do pássaro Roca. A coitada sentou-se no dedo dele e agora nem pensar nisso pode. Sente uma pontada no coração.

O senhor de Munchausen contou que construíra ali aquele castelo justamente por causa do pássaro Roca. Já havia caçado quanta fera existe, desde rinoceronte até condor, menos pássaro Roca. Por isso jurara matar aquele. Queria ter entre os troféus da sua sala de armas pelo menos uma unha daquela gigantesca ave, já que o bico, perna ou asa não cabiam lá dentro.

— Mas com essa espingarda o senhor não faz coisa nenhuma — disse o menino. — Bala, do calibre que for, é o mesmo que poeira para tamanho monstro.

— Sei disso, e por isso não atiro com chumbo ou bala. Atiro com caroço de cereja. Esses caroços germinam na carne do pássaro e vão crescendo até virarem cerejeiras. Vou assim transformando o pássaro Roca em pomar. Um dia o peso das árvores fica demais para as suas forças e ele cessa de voar. Creio que já plantei uns cem pés de cereja no lombo do pássaro Roca!

— Oh! — exclamou Pedrinho — muito melhor seria atirá-lo com semente de jequitibá.

O barão, que nunca ouvira falar em tal árvore, franziu a testa.

Pedrinho explicou:

— É uma árvore que fica enorme, da grossura da mais grossa pipa. Na minha opinião, com meia dúzia de jequitibás plantados a tiro no pássaro Roca ele perde a cisma de voar pelo resto da vida.

O senhor de Munchausen muito admirou a esperteza de Pedrinho, que ficou de lhe mandar sementes de jequitibá pelo primeiro portador. Nisto chegaram ao ponto onde dona Benta morria de medo ao lado de Narizinho e da boneca. O barão saudou-a cortesmente, à moda dos alemães.

— Obrigada por ter vindo em nosso socorro, senhor de Munchausen! — disse dona Benta, retribuindo a cortesia. — Estou aqui mais morta do que viva, de medo daquele monstro que lá está voando no céu. Imagine, barão, que estive, muito fresca da minha vida, sentada, como pata choca, no dedo dele!...

— Sossegue, minha senhora, que cá estou para defendê-la. Moro num castelo aqui perto, onde Vossa Excelência poderá repousar e acalmar os seus nervos. Já dei ordem aos meus criados para que a venham buscar na minha caleça. E esta menina? — disse mostrando Narizinho.

— Minha neta. Uma danada, senhor barão! Não tem medo de coisa nenhuma. Está aqui a rir-se da pobre vovó medrosa...

— Eu também não tenho medo de nada, senhor barão! – disse Emília com aquele seu célebre espevitamento.

— Oh — exclamou o senhor de Munchausen, pegando-a do chão. — Se não me engano, é esta a tal boneca falante que está tão famosa no reino das fadas. Não há princesa que não conte histórias dela.

Emília inchou de gosto.

A conversa correu nesse tom por alguns minutos. Por fim dona Benta abriu o cesto onde estava o mexido de galinha que trouxera.

— Aceita uma coxinha, senhor barão?

— Obrigado! Só como carne de animais ferozes.

— Um pedacinho só, prove! — insistiu dona Benta. – Este mexido foi feito com o frango mais valente do terreiro.

Tão cheiroso estava o petisco que o senhor de Munchausen perdeu a cerimônia. Sentou-se com os outros em roda do farnel e quase que sozinho deu cabo de tudo.

— Parece sonho! — pensava consigo dona Benta ao ver aquilo.

— Quando me lembro que eu, a pobre Benta Encerrabodes de Oliveira, uma coitada que nunca saiu da sua toca, está aqui, neste deserto misterioso, com o pássaro Roca a lhe voar em cima da cabeça e o mais famoso barão do mundo a comer com tanto gosto o mexido de galinha que ela mesma fez, até fico boba...
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – IV – Um soco histórico

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Trova Ecológica 73 - Wagner Marques Lopes (MG)

J. G. de Araújo Jorge (Com Os Moços)


Imagine-se a notícia, em manchete, no jornal sensacionalista:

"Cabeludo pulava todas as noites a janela do apartamento da namorada!"

E a história: as famílias se odiavam, não queriam o namoro. Mas eles desobedeciam os pais, e resolviam a seu modo o romance proibido. Os comentários viriam unânimes: "Transviados!"

Se transferíssemos, cena e romance, para os fins da Idade Média, para uma pequena cidade italiana no sopé dos Alpes, teríamos o drama imortal. Quem não se emocionou com o idílio de Romeu e Julieta - o amor que acabou em tragédia pela rivalidade das famílias Montecchio e Capuleto?

E embora se negue a existência real dos dois amantes shakespearianos, eles ficaram como um símbolo dos arroubos e da paixão dos jovens, reagindo, e às vezes pagando caro a incompreensão e os preconceitos levantados pelas velhas gerações.

E que me conste, nunca chamaram a Romeu e Julieta de "transviados"...

Na verdade, quando penso na juventude, lembro-me do verso de Keats:

"A thing of beauthy is a joy for ever"

Não sei quem teria inventado a frase infeliz com que se procura ferretear indistintamente os moços: "juventude transviada".

Toda juventude é naturalmente explosiva, exuberante, excessiva, apresenta transbordamentos inevitáveis. Do contrário seria madureza, velhice precoce.

Não compreendo um moço comedido, meticuloso, voltado para dentro de si mesmo. Nessa idade, o mundo exterior é todo encantos, atrações, convites. Não há trilhos, nem trilhas, ou roteiros preestabelecidos. É a época das descobertas, da aventura, da ânsia por obstáculos que sejam desafios à coragem, à audácia, à necessidade de auto-afirmação.

E é, ao mesmo tempo, uma idade dramática, fase de transição, alvorada de contradições, de conflitos, de dúvidas, quando faz falta uma luz à frente, uma mão companheira, um guia.

E eis também, de certa forma, justamente, o que não têm encontrado os jovens de nossos dias.

Posso testemunhar: convivo com eles há muitos anos. Encontro-os todos os dias como professor. Nem está tão longe o meu tempo de moço que não possa lembrá-lo, ou tenha me esquecido de seus impulsos, seus " vôos cegos ", seus desregramentos e sonhos.

Se tivesse que diferenciar a juventude de hoje da minha, diria que nós éramos mais " acadêmicos ", mais " clássicos ", posávamos mais de sérios. E, de certa forma, mais ingênuos. Que de caminhos a realidade tinha que percorrer antes de nos encontrar. Os veículos de comunicação eram poucos e tardios.

Entre nossos mundos, o historiador de amanhã colocará certamente o marco que separa dois períodos históricos.

A juventude de hoje é mais dinâmica, inquieta, politizada.

Constato isto, por exemplo, por um caderno de recordações onde recolhi impressões de meus antigos companheiros de turma no Colégio Pedro II, e pelo nosso álbum de formatura - "Adeus", - onde, sob as fotografias, aparecem os lemas de cada um: todos ingênuos, românticos, jactanciosos.

Assim éramos nós, nas atitudes e nas palavras. Absorviam-nos preocupações literárias e esportivas. Fundávamos e dirigíamos jornais, grêmios culturais, academias. Poucos de nós espiavam sobre os altos muros que nos cercavam para descortinar outros horizontes. As lutas políticas nos esperavam mais adiante, no Curso Superior, nas Faculdades, onde nos engolfaríamos em agitações nacionalistas, em campanhas democráticas contra o fascismo e a ditadura.

A juventude de hoje ( e tinha que ser assim) é atraída, desde cedo, pelos grandes problemas.
As fronteiras secaram. O homem devassa o espaço. O mundo encolheu.

A história não, vem nos livros, acontece diante de seus olhos. É testemunha dos fatos. Os povos se debatem. Sucedem-se crises e guerras. A fantástica visão dos cogumelos atômicos é uma ameaça sinistra no ar! Os moços não podem fugir às contingências de seu tempo. Seria deserção e covardia.

Sou dos que pensam que, desde o curso secundário, a juventude pode e deve tomar conhecimento da realidade que a cerca, sem prejuízo de seus estudos. É um conhecimento necessário, uma aprendizagem humana e cívica que deveria ser considerada como uma atividade extra-escolar normal.

Não concebo um moço que não seja idealista, generoso. Mocidade é sinônimo de pureza de intenções, entusiasmo, lealdade.

Sua presença na política se constitui sempre num elemento decisivo para distinguir as boas e más causas, os bons e os maus propósitos. Só os que receiam ser desmascarados em seus objetivos escusos a temem.

Por isso escrevi "Posição", um poema de "Mensagem".

Parece haver uma atitude preconcebida dos mais velhos, de gerações frustradas, contra os jovens. Esta atitude deixa à mostra um complexo de inferioridade, ou um sentimento de culpa, diante de uma mocidade que caminha por si, e vai se realizando apesar de tudo, sem orientação, ajuda, e, o que é pior, compreensão.

Uma mocidade que não vê, portanto, porque tenha que seguir os mais velhos Afinal, por quê;? Para onde? E para quê? Para que o mundo continue como está.; Então, é preferível seguir só, denunciando inclusive os culpados pela herança que terão que receber.

A verdade é que a mocidade de hoje é uma mocidade que não se envergonha de pensar por si, de sentir, de se olhar no espelho sem qualquer hipocrisia.

Afirma-se tal como é, choque a quem chocar. E daí? Não terá ela também o direito de se sentir chocada com o mundo que seus pais lhe deram?

 Compreendo os moços. Sinto que poderia ser um deles, e que, de certa forma, continuo sendo. Que alegria quando escuto dizer que sou o " poeta do povo e da mocidade"! Eles querem apenas ser. Ser como são, e melhor que nós. Confio neles. Tenho a certeza de que podemos passar-lhes o bastão sem medo. Eles encontrarão o caminho que não lhes indicamos, e reconquistarão, por nós, não para nós, o tempo e o mundo perdidos.
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Raimundo Carrero (A Sombra Severa)


A sombra severa, de Raimundo Carrero, não é um livro prolixo. Os episódios são narrados de forma seca, com frases curtas e incisivas, numa economia verbal que espelha um dos personagens centrais, o lacônico Judas.

O que acontece é que tal concisão de linguagem não se mantém o tempo todo. Vez ou outra o narrador conclui a descrição de uma cena com uma frase feita, quase uma moral da história, perfeitamente dispensável. Frases como "os dedos que tecem a morte cosem a mortalha", ou "uma mulher tem segredos que os olhos não podem conhecer", ou ainda "um homem só é capaz desse nome quando enfrenta ousadias" beiram o lugar-comum e ocupam o espaço que caberia de direito ao leitor, impedido, assim, de imaginar ele próprio algum provável sentido para o que acaba de ler.

No início, o romance parece apontar para uma história sangrenta, impressão que vai sendo reforçada à medida que a trama ganha corpo: dois irmãos, Judas e Abel, apaixonados por uma mesma mulher, Dina. Abel, o primogênito, rouba a moça da casa dos pais e a leva para morar na velha casa de fazenda, onde também mora Judas. A provável vingança da família da jovem desonrada surge como mais um elemento a indicar que o duelo será inevitável. De fato, ele acontece, mas não como se espera. Habilmente, o narrador nos leva a seguir uma pista falsa, e a verdadeira batalha será travada não entre Judas e Abel, ou entre estes e a família de Dina, mas entre adversários mais sutis. Algum sangue será derramado, é certo, mas com alcance mais profundo, envolvendo sentimentos contraditórios, como ódio, amor, inveja, culpa, perdão.

Numa época marcada por reescrituras, o maior mérito de Sombra severa talvez esteja no fato de poder ser lido como uma interessante retomada de uma vertente que acompanha nossa produção em prosa desde os tempos de Alencar: o regionalismo. No romance de Raimundo Carrero, permanece como que o esqueleto, a espinha dorsal do modelo regionalista, que se caracterizou, sobretudo, pela descrição de cenários rurais ou de pequenos povoados no interior do país e o relato dos costumes pautados pela rigidez moral e pela religiosidade.

Tudo isso está presente no romance, mas apenas como pano de fundo para o desenrolar de uma história passada muito mais dentro do que fora dos personagens. Não há indicações precisas de tempo ou de espaço - o enredo pode situar-se em qualquer vilarejo, do passado remoto ou recente, ou mesmo de hoje - e os nomes dos personagens ou são de inspiração bíblica ou são nomes que não trazem em si nenhuma marca regional. Isso porque o importante de fato é o que acontece no íntimo dos personagens, em seus duelos, épicos e silenciosos, com a própria consciência. Ao mesmo tempo, cada um é obrigado a lidar com o silêncio do outro, buscando entender o que o outro possa estar sentindo ou pensando, o que deflagra o jogo das hipóteses, das leituras cruzadas. É no terreno da autoconsciência e da dúvida, portanto, que o conflito se instala.

Estilo

O traço regionalista aparece quase como uma citação, uma referência inicial que o romance vai esvaziando à medida que avança. Nesse sentido, Sombra severa é uma releitura e uma reescritura da velha fórmula regionalista, cultivada de forma expressiva por românticos, naturalistas e modernistas e meio que abandonado nesses tempos pós-modernos. O autor mantém apenas o arcabouço do antigo modelo e nele insere uma narrativa que mais se aproxima da tragédia. Judas, por exemplo, convive o tempo todo com a sombra severa de uma consciência culpada, que se apresenta sob a forma de súbitos fantasmas, um deles de carne e osso, a assombrar-lhe o dia e a noite na quase solidão da fazenda.

As frases feitas, as imagens que, pretensamente poéticas, esbarram numa incômoda previsibilidade e a recorrência a inexplicáveis inversões sintáticas comprometem, porém, o resultado final. Curioso é que em algumas das últimas cenas, em que o narrador apresenta episódios da infância dos dois irmãos, isso não acontece e a história caminha num ritmo exato, sem excessos. Fosse todo o romance narrado como se narram tais episódios, A sombra severa faria jus aos comentários elogiosos de Santarrita, na orelha do livro.

Fonte:
Passeiweb

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 476)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Se não praticas o bem,
para um pouco, pensa e muda:
quem não ajuda ninguém
precisa urgente de ajuda!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Uma Trova Potiguar


Daria tudo pra ser
a camisola macia
e no meu cheiro envolver
a deusa que me extasia.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Se no espelho eu fito bem,
meus olhos, juro por Deus,
que vejo os olhos de alguém
brilhando dentro dos meus.
–THARCÍLIO G. MACEDO/SP–

Uma Trova Premiada


2012 - Concepción/CHILE
Tema: Identidade - M/H


Brasileiro, professor,
casado, Terceira Idade
e aprendiz de trovador...
- Eis a minha identidade!
–RENATO ALVES/RJ–

Simplesmente Poesia

Pedágio de Carinho
–GISLAINE CANALES/SC–


Vou fazer
um pedágio
de carinho,
para encher
o vazio do meu pobre
coração,
tão carente,
pobrezinho!
Bate triste,
mas resiste
esta imensa
solidão!

Estrofe do Dia

Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo:
Numa fração de segundo
A roda do tempo gira;
Um instante se retira,
Outro pula no tablado;
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente...
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

Se Tu Me Amas...
–RENÃ LEITE PONTES/AC–


Se tu me amaste muito loucamente,
Fruta do amor, estojo dos segredos...
Vai! Grita aos prados, grita aos arvoredos
Que tu suspiras só por mim, somente.

Se me dedicas todos teus carinhos
Com louco amor imenso e tão profundo.
Vai! Grita aos prados! Vai dizer ao mundo,
Acorda a flor, acorda os passarinhos!

Faze do teu lençol redemoinhos...
Recita versos, dize insanidades,
Promete-me mil beijos comezinhos

Com reprises dos tempos em que amamos...
E, num encanto, vão voltar saudades
Das mil juras de amor que não trocamos.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (O Linho)


O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais delicadas e transparentes do que asas de moscas. O Sol espalhava os seus raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer, como o de um filho, quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.

– Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz. Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou. Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder ser!

– Como és ingênuo! disseram as silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras temos uma larga experiência.

E rangendo lastimosamente, cantaram:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

– Não tão cedo como vocês imaginam, respondeu o linho; está uma bela manhã, o Sol resplandece, e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e florir. Sou muitíssimo feliz.

Mas um belo dia vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro mergulharam-no em água, como se o quisessem afogar, e depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!

– Não se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si, é necessário sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.

Mas ais coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no, cardaram-no e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no numa roca, e então perdeu a paciência inteiramente.

– Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades perdidas.

E ainda estava dizendo – perdidas – e já o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de pano.

– Isto é extraordinário, nunca o imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas eram aquelas silvas quando cantavam:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca. Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata da gente, e não bebemos outra água a não ser a da chuva, Agora é o contrário: que cuidados! as raparigas estendem-me todas as manhãs, e à noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça da paróquia. Não posso ser mais feliz.

Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável, mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas magníficas.

– Agora decididamente começo a valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e ser feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável felicidade!

O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.

– Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda, mas não se fazem impossíveis.

E as camisas foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.

– Oh! que agradável surpresa, exclamou o papel, agora sou muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras! O que não escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!

E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas diante de numerosos ouvintes, e os tornaram mais sábios e melhores.

– Ora aqui está uma coisa muito superior a tudo o que eu tinha imaginado, quando vivia na terra, coberto de flores. Como poderia eu supor que ainda havia de servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte, foi Ele que gradualmente me elevou, até chegar à maior glória. Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: – Acabou-se, acabou-se – tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis: agora as minhas flores são os meus elevados pensamentos. Sinto-me feliz, imensamente feliz!

Mas o panei não foi viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo o que lá estava escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.

– É justo, disse o papel, não tinha pensado nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu que recebi as letras, as palavras caíram directamente da pena sobre mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me feliz.

O papel foi empacotado e lançado para uma estante.

– Depois do trabalho é agradável o descanso, pensou ele. É neste isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmos é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda acontecer? Progredir, está claro.

Passados tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar. E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo arder, e ver também, depois da labareda, os milhares de faíscas vermelhas, que parece fugirem, e se apagam instantaneamente uma após outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão alto, como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de pano nunca tinha tido um brilho semelhante.

Todas as letras, durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as ideias desapareceram em línguas de fogo.

– Vou subir até ao Sol – dizia uma voz no meio da labareda, que pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé, e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos do homem. Eram tantos quantas tinham sido as flores que o linho tinha dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra, ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a, pequeninas centelhas encarnadas.

As crianças cantavam à roda da cinza inanimada:

Crie, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

Mas cada um dos pequenos seres dizia:

– Não, não se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e julgo-me feliz.

As crianças não puderam ouvir, nem compreender essas palavras; mas também não era necessário, porque as crianças não devem saber tudo.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - II – Dona Benta de cabeça virada


Não durou muito aquela situação. Tia Nastácia foi perdendo o medo que tinha ao burro e acabou grande amiga dele. Era quem o tratava, quem lhe dava milho e água e ainda quem lhe passava a raspadeira todas as semanas. Enquanto isso, conversavam. Tinham prosas tão compridas que a boneca chegou a dizer, piscando os olhinhos de retrós:

— Isto ainda acaba em casamento!...

Peninha havia desaparecido na mesma noite da chegada, depois de restituir a Emília sua pena de papagaio e prometer a Pedrinho voltar mais tarde a fim de levá-los ao Mar dos Piratas.

Dona Benta ouviu a história do passeio ao País das Fábulas com especial interesse para tudo quanto se referia ao senhor de La Fontaine, cujas obras havia lido em francês. Sempre tivera grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do mundo.

— Estou lamentando não ter ido com vocês — disse ela. – Uma prosinha com o senhor de La Fontaine seria dum grande encanto para a minha velhice...

Tais palavras fizeram Pedrinho bater na testa...

— Tive uma grande idéia, vovó — berrou ele. — Levar a senhora lá!... Já sabemos o caminho e temos o burro falante para nos conduzir. Que acha?

A grande idéia tonteou dona Benta como se fora uma paulada no crânio.

— Que despropósito, Pedrinho! Não sabe que sou uma velha de mais de sessenta anos? Que não diria o mundo quando soubesse dessa extravagância?

— O mundo não precisa saber de nada, vovó. A senhora vai incógnita, como os reis quando querem divertir-se. Deixe o negócio por minha conta, que sairá tudo direitinho...

A idéia de conhecer pessoalmente o senhor de La Fontaine virou duma vez a cabeça da boa senhora. Três dias passou a pensar naquilo, vai, não vai, sem ânimo de decidir-se. Pedrinho, porém, tanto insistiu que...

— Vou, menino, vou! — disse ela afinal. — Mas pelo amor de Deus não me atropele mais.

As crianças ficaram num delírio. Levarem sua querida vovó ao País das Fábulas foi coisa que nem em sonhos lhes passara pela cabeça.

— Era o suco! — dizia Pedrinho dando pinotes.

A semana passou-se assim, em discussões e preparativos, tudo em segredo para que tia Nastácia não desconfiasse. Era preciso que nem a negra soubesse da “caduquice” de dona Benta. Afinal chegou o grande dia.

— Nastácia — disse dona Benta sem ânimo de a encarar de frente — vou fazer hoje um demorado passeio com os meninos. Se aparecer alguém, diga que estou na casa do compadre Teodorico.

Saíram, a boa velha na frente com os netos, Emília e o Visconde atrás, este arcado ao peso da célebre canastrinha. Fingiram ir do lado da fazenda do tal compadre Teodorico, mas na primeira curva do caminho esconderam-se numa moita enquanto Pedrinho voltava para pegar o burro. Tudo para que tia Nastácia não desconfiasse de nada.

Veio o burro e dona Benta tentou montar. Quem disse! Não houve meio. Sem uma cadeira não ia.

— Já não tenho a agilidade dos bons tempos — suspirou ela.

— Creio que nunca poderei montar neste burro...

— Ali adiante há um toco que poderá servir de cadeira — murmurou o burro na sua voz mansa de animal falante.

Apesar de corajosa, a boa velha não deixou de sentir um frio na espinha, ao ouvir tais palavras pronunciadas por tal boca. Dirigiram-se ao toco indicado e, afinal, com a ajuda dos meninos, da Emília e até do Visconde, dona Benta pôde montar. Narizinho pulou à garupa, com Emília no bolso. Pedrinho ocupou a frente e o Visconde foi amarrado à crina do animal.

— Tudo pronto? — gritou Pedrinho.

— Parece que sim — respondeu dona Benta.

— Nesse caso, cheire isto, vovó! — disse ele, tirando dum canudo uma pitada do pó mágico e chegando-a ao nariz da velha.

— Oh, Pedrinho! — exclamou dona Benta escandalizada. – Bem sabe que não tomo rapé.

Todos caíram na gargalhada.

— Não é rapé, vovó! É muito bom pó de pirlimpimpim, que Peninha me deu. Sem cheirar este pó nunca chegaremos ao País das Fábulas.

Ao ouvir aquilo, Emília arregalou os olhos.

— País das Fábulas? Então é para lá que vamos outra vez? Vocês prometeram que a segunda viagem seria para o Mar dos Piratas!...

— Ao Mar dos Piratas temos de ir com o Peninha. É coisa para outro dia. Hoje vamos apenas dar um pulinho ao País das Fábulas para apresentar vovó ao senhor de La Fontaine.

— E por que não apresentar dona Benta a um pirata? Os piratas são muito mais interessantes que os fabulistas.

— Para você. Vovó prefere meia hora de prosa com um fabulista a ver todos os piratas do mundo.

— Então não vou! — disse Emília, emburrando.

— Sua alma sua palma — respondeu secamente a menina, tirando-a do bolso. — Ninguém a obriga — e fez um gesto de a arremessar ao chão.

Vendo que o negócio era sério, Emília armou cara de riso, muito desconchavada, e disse:

— Estou brincando, boba!...

Todos cheiraram o pó de pirlimpimpim, e imediatamente começaram a sentir a vista turva, a cabeça tonta, com uma zoada de pião nos ouvidos — fiunn...

Dona Benta, assustada, quis apear-se.

— Parece que vou morrer! — gritou. — Acudam-me!...

— Não tenha medo, vovó! É assim mesmo. Este fiun dura enquanto estivermos voando. Depois pára — sinal de chegada.

De fato foi assim. O fiun zuniu no ouvido deles por algum tempo e por fim cessou.

— Chegamos — disse Pedrinho descendo do burro — Pode apear, vovó.

Dona Benta estava mais morta que viva.

— Uf! — exclamou, escorregando do animal abaixo – Estou muito velha para estas maluquices. O tal fiun me deixou tonta, tonta...
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – III – As árvores gêmeas

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Trova Ecológica 72 - Wagner Marques Lopes (MG)

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 475)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

O que mais queres, querida,
se já te dei tudo, enfim?
Até minha própria vida
não pertence mais a mim.
–CLÊNIO BORGES/RS–

Uma Trova Potiguar


Minha vida o que seria
sem o diploma de esteta,
pois sou filho da poesia
e a poesia me completa!
–JOAMIR MEDEIROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


A dor que mais amargura
a gente guarda e não diz:
– é uma forma de ventura
alguém fingir-se feliz...
–CARLOS GUIMARÃES/RJ–

Uma Trova Premiada


2012 - Concepción/CHILE
Tema: IDENTIDADE - M/E


Ante à multiplicidade
dos sentimentos que lavra,
o poeta é a identidade
de toda e qualquer palavra.
–SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP

Simplesmente Poesia

Mote :
SELMA PATTI SPINELLI/SP


Sou fiel e não te nego
este dever que é uma lei:
Não pelo amor que foi cego,
mas pelo "sim" que te dei!

Glosa:
PROF. GARCIA/RN


Sou fiel e não te nego
por te amar, sempre pequei,
este pecado eu carrego...
Só que até quando eu não sei!

Mesmo o amor cego, me ensina,
este dever que é uma lei:
Não é em qualquer esquina,
que vive o amor que sonhei.

Aos teus anseios me entrego,
mesmo sofrendo de dor,
Não pelo amor que foi cego,
mas por ser cego de amor!

Meu pesadelo é sem fim,
desde o tempo em que te amei...
Não porque disseste sim,
mas pelo "sim" que te dei!

Estrofe do Dia

O Poeta na terra sente o toque
das palavras que Deus do céu transmite;
já nascemos portando os dons divinos
e não tem por aqui quem nos imite,
acredite poeta, tens razão;
eu também já cheguei a conclusão
que a poesia não tem nenhum limite.
ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Um Velho
–REGINALDO ALBUQUERQUE/MS–


Ouço em surdina, enquanto a plena lua
banha a face da terra adormecida,
alguém contar de um bem, da mais querida,
na pequenina praça ao fim da rua.

Quem é esse que, de forma tão sentida
e saudoso da graça que foi sua,
diz frases onde o pranto se insinua
e rasga cicatriz de minha vida?

Doces lembranças vêm abrir-me a porta...
Longe a imagem de um velho erguendo a taça
de emoção que julguei há tempos morta.

Ando até a ele e o enigma me apavora...
Na solidão em que se encontra a praça,
vejo o meu triste coração que chora…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas II)


A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina,
choveu grosso, com trovoada e clarões,
exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

CORRIDINHO

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

DOLORES

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:

"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.

Eduardo Campos (Três Peças Escolhidas)


O livro Três Peças Escolhidas, do cronista e romancista Eduardo Campos, reúne as peças Rosa do Lagamar, Morro do Ouro e A Donzela Desprezada. As duas primeiras foram dos maiores sucessos da Comédia Cearense, com prêmios em festivais pelo Brasil e temporadas em cartaz. Escritas em meados da década de 60, quando a cidade de Fortaleza começava a se expandir em bairros cada vez mais distantes e precários, elas continuam atuais, ao trazerem à cena dramática a questão da inclusão/exclusão social.

O estilo de Eduardo Campos é resultante de dois elementos formadores: de um lado, as aptidões artísticas nascidas do seu temperamento, de sua personalidade interior; de outro lado, as influências das idéias estéticas vigorantes na época e no meio em que ele manifestou e permaneceu.

Pelo seu regionalismo, podemos aproximá-lo de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, e por ter utilizado o elemento chuva em sua obra À véspera do Dilúvio (1966), aproxima-se de Antonio Sales.

Eduardo Campos gosta de explorar o campo sensorial, no intuito de fixar bem as imagens descritivas.

Tem preferência pela descrição, pois, conscientemente, sabe que ela possui um apelo sensorial que permite ao observador delinear os elementos apresentados aos poucos, isto é, lentamente pela narrativa.

Essa preferência é importante porque a apresentação dos seus personagens é feita mostrando-os em ação. E, aos poucos, vai compondo o perfil dos caracteres psicossomáticos que os organizaram. Com exemplo, podemos citar, o tipo do agente ferroviário, o cangaceiro ou o delegado.

Eduardo Campos utiliza-se do discurso indireto livre que serve para expressar a fala ou o pensamento das personagens e que tem sido muito usado pelos autores contemporâneo através do narrador.

Quanto aos temas utilizados, que parecem sempre atuais, são frutos do homem contemporâneo que vive angustiado por descobrir o estado de abandono completo em que se encontra, mesmo em relação a seus semelhantes. Daí só lhe restar ironizar a própria sorte.

Em suas peças, procura denunciar, pela ficção, as injustiças sociais a que os personagens estão submetidos. A exposição delas é feita de tal modo que os expectadores não podem permanecer impassíveis. Antes ficam revoltados contra essas injustiças. Ao mesmo tempo são alertados para as táticas utilizadas pelos agentes do poder.

A solidariedade dá o tom aos protagonistas de Eduardo Campos, nestas três peças, onde há também uma denúncia de injustiça por parte do poder que nada faz para minimizar a situação de desamparo das populações desprivilegiadas, mas, ao contrário, procura alimentar-se desse estado de miséria para fortalecer-se.

O Morro do Ouro

Lá para os lados da Barra do Ceará fica o lugar conhecido desde os anos 50 como Morro do Ouro. Era uma comunidade pobre que surgiu em torno do aterro da cidade de Fortaleza, muito tempo antes do Jangurussu. Este é o cenário da peça que leva o mesmo nome, que tem como protagonista a prostituta Madalena e seu amante, o traficante do morro, Zé Valentão. É assim que ela é conhecida na zona. É uma mulher que veio do interior e, por não ter nenhuma qualificação, só encontrou um caminho para viver: prostituindo-se.

Os personagens que compõem a peça vão aparecendo, bem caracterizados. São eles: Ezequiel, cambista, vive do jogo do bicho, é bem humorado e tem sempre uma palavra para se sair das enroscadas, um jeito de rebater a quem lhe destrata; o Aleijado, que pede esmola e que se recusa a ir para um asilo do governo, porque, lá, não pode pedir esmolas, uma irônica, sarcástica e caricatural. É mais um personagem que compõe um conjunto de necessitados; o bodegueiro Patrício, as assistentes sociais, um candidato a vereador - dr. Gervásio, entre outros.

O drama retrata o conflito de Madalena com a chegada da mãe, beata, católica fervorosa e devota de Padre Cícero. Ela não quer que a mãe a identifique como prostituta da zona.

A história então começa com Madalena e Zé Valentão na cama, depois de uma noite de folia. O amante escapole antes que a polícia venha. É de manhã, e logo a favela fica animada com a chegada de uma máquina de costura, entregue ali por ordem do candidato.

Quem também chega são algumas assistentes sociais, e nestas cenas o autor põe à mostra o proselitismo oco, de um lado, e o tal espírito moleque do povão - picaresco e por isso tão escancaradamente verdadeiro, real. "Veja que estou aqui, saindo do meu conforto, para cuidar de vocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível! (Pausa). E esse mau cheiro? É sempre assim?", pergunta a assistente social. A lavadeira, trouxa na cabeça, responde: "Não, não sinto não... Será esta catinguinha? É do lixo! Todo o lixo da cidade é botado na rua". O tensão da peça começa com a chegada de dona Elvira, mãe de Madalena, que vem do interior e nem desconfia da vida que a filha leva. Com a ajuda dos amigos, ela disfarça suas "atividades".

Depois que sua mãe chega, tudo se modifica, porque, sendo devota, vai impor seu ritmo de vida aos demais moradores, e tais moradores modificam-se, realmente.

Logo, dona Elvira inventa uma novena em plena zona do cabaré, que consegue reunir todos os moradores. Mas ela não sabe que sua filha é prostituta, nem que o local onde mora é um cabaré. A sua inocência acaba contagiando os moradores.

A partir da preparação da novena, os moradores vão percebendo que a mudança é benéfica para eles. Assim, o bodegueiro, que só vendia cachaça, passa a vender refresco; o cambista (´Ezequiel´, cujo apelido é ´seu Fortuna´), em vez de fazer as pules do jogo, vende medalhas de santos, etc. Há, portanto, uma grande transformação no morro, e a personagem ´Elvira´, mãe de ´Madalena´, passa a ser a personagem mais importante, a protagonista, pelo menos durante os preparativos da novena.

A escolha do nome para a protagonista, Madalena, é uma referência bíblica, a amiga de Jesus, que se arrepende dos pecados e que passa a seguir os ensinamentos do Filho do Deus.

Os personagens estão juntos pela mesma condição de miserabilidade da favela, do lixão (como se diz hoje): a favela é chamada ´O Morro do Ouro´ por ironia, pois lá é despejado o lixo da cidade. Portanto, são personagens que vivem abaixo da linha da pobreza. É uma zona de risco, como se diz hoje.

Tais personagens, apesar da miserabilidade, estão unidos pela solidariedade. Mesmo com as brigas e com as desavenças que ocorrem, eles se ajudam, afinal estão todos num mesmo miserável espaço, daí o despertar da ajuda mútua ser quase instintivo.

As assistentes sociais, que para lá se deslocam, para ´estudar´ a vida dos miseráveis, são caricaturais, e o que elas fazem, anotando o cotidiano dos favelados em suas cadernetas de campo é motivo de riso.

Outro personagem caricatural é o político, ´Dr. Gervásio´, que é apresentado distribuindo máquinas de costurar, para trocar por votos. É malandro, desonesto, sem escrúpulos; há a sugestão de que ele só possui uma máquina, e que ele faz todo o jogo de enganação, dizendo que já distribuiu centenas delas, e que, quando for eleito, irá morar no Morro do Ouro, para ver como vive a pobreza: um discurso, portanto, demagógico, enganador e oportunista, que se vale da miserabilidade dos moradores da favela para deles tirar proveito.

Há um momento em que tudo muda, e em que se percebe um pequeno questionamento da protagonista.

Quando Zé Valentão sai da cadeia e procura Madalena, e vê que tudo está mudado, inclusive a própria Madalena, que, agora, usa vestidos de manga, comporta-se como uma senhora, ele não entende o que está ocorrendo e cobra de Madalena a antiga postura, o que ela revida dizendo que é outra, que vai mudar de vida, mas o namorado diz que ela é a ´quenga´ dele e que deve ir dizer isso para todo mundo.

É aqui o final e a parte mais tensa da peça. Madalena, por um instante, não sabe onde está a verdade dela: se é prostituta ou se é beata. O que decide o seu dilema é a grosseria de Zé Valentão, que rasga seu vestido, e Madalena, desamparada, corre para a rua e vai se abraçar com a mãe. É aqui que a peça termina.

Há, portanto, um final regenerador: é a Madalena arrependida da Bíblia.

A mensagem desta peça de Eduardo Campos está muito clara na transformação de todos os personagens.

É uma peça mais linear, de poucos questionamentos, mas extremamente realista, que representa muito bem todo o sofrimento da parcela excluída da sociedade.

Portanto, em Morro do Ouro, há a descrição da vida em uma favela de Fortaleza. Os personagens são representantes de um universo que reflete a conseqüências da miséria e do isolamento. A estes junta-se a ironia, que, por paradoxo, cria cenas de humor.

Essas cenas são percebidas por ocasião da visita das assistentes sociais, já citada, que vão ao morro fazer uma pesquisa e se escandalizam com a situação de pobreza e acham que está decore da falta de educação. Na realidade, o autor denuncia, através dessa peça, que os poderosos não têm a intenção de resolver os problemas, e muitos até se beneficiam com essa situação.

A Rosa do Lagamar

Em A Rosa do Lagamar, temos outra vez a presença de mulheres determinadas, fortes, que aprenderam a se virar sozinhas, e romperam os limites sexistas da moral e dos bons costumes sem discurso nem alarde. Como continuam a fazer, ainda agora. Rosa é uma batalhadora. Ela saiu do Lagamar e comprou um terreninho na Aldeota, onde montou uma birosca que serve café e refeições para os trabalhadores de uma obra em construção. O dono do casarão quer o terreno de Rosa, ela não vende. Mas acaba perdendo tudo, porque o documento que tem é falso. Na hora do despejo, Rosa pede para contar as telhas e caibros de sua casa, pela última vez. "São vinte e dois caibros e 72 telhas. Só depois que eu conto é que durmo. É um velho hábito de solidão".

A casa de Rosa estava situada, por um desses descuidos da administração municipal, em local onde, de futuro, se edificaria uma rua. Daquela, vê-se a sala da frente, que é a de uma tapera sem maiores pretensões, guarnecida de móveis rústicos, improvisados. À esquerda, além de parede divisória, avançava para a rua uma puxada a abrigar o recinto que servia de café e restaurante aos trabalhadores de construções do bairro que, embora o mais elegante da cidade, oferecia por vezes visível desigualdade de existência entre os seus habitantes. Adiante, na mesma linha de visão, uma pilha de tijolos e, de permeio a estes, material facilmente identificado como sendo de construção. À frente da casa e do lado direito nota-se, no desenrolar da ação, o trânsito de pessoas, como se de fato ali já se insinuasse uma rua. Na sala da frente da casa de Rosa, que é a dona da tapera e do café ao lado, tudo se assentando caprichosamente, demonstrando pulso forte, e também zelo, de mulher voluntariosa. Numa das paredes vê-se o retrato do marido, o capitão Crispim, que, saindo de Fortaleza como embarcadiço, nunca mais voltou ao lugar. Seu regresso, posto sempre em perspectiva, é um motivo de encanto e ao mesmo tempo de turbulência na vida de Rosa.

É madrugadinha quando se inicia a ação. Na semi-escuridão que ainda faz, destaca-se a figura de Rosa às voltas com os seus afazeres domésticos. Há um ir e vir no interior da casa, passando pela porta que dá acesso ao local do café, a conduzir xícaras, bandejas e confeitos que, é a impressão, prepara naquela ocasião.

A Donzela Desprezada

A Donzela Desprezada é a história de Amelinha, uma moça sonhadora, filha da viúva zeladora da igreja, que transa com o namorado, motorista do caminhão da entrega do gás. Ela é a candidata do partido azul, na quermesse da igreja. Quando a mãe descobre que a filha "se perdeu", fica maluca. Com a ajuda de um jornalista sensacionalista e um policial corrupto, ela convence a filha a dar parte do namorado ao delegado, para forçar o casamento. O motivo pode ter ficado, e ficou, anacrônico, mas a peça não: é arte. A capa do livro traz um óleo sobre tela do artista plástico Nogueira, Casamento no Arraial, bem de acordo com o colorido universo popular de Manelito Eduardo (como o dramaturgo também é conhecido).

O cenário amplo revela os diversos locais em que se desenrolam as cenas.

À esquerda, o quarto de Amelinha, personagem principal da história. Cômodo, modesto, com cama, da qual se verá apenas o essencial, afim de que haja espaço suficiente para as posteriores marcações solicitadas.

Defronte ao espectador, tomando boa porção do palco, o sítio propriamente dito da quermesse, com um bar de três mesas de ferro e cadeiras. Ao lado direito a barraca ou quarto da cartomante, onde Lolita faz a leitura do baralho. Há cerca improvisada partindo do canto esquerdo do bar, a se estender até o proscênio, e, nela, o portão de acesso para a quermesse. Quando corre o pano, Lolita está sentada a uma mesinha entretida com o baralho, deitando-lhe as cartas em cruz. O bar, soturno, não começou a operar mas transcorrem preparativos para a noitada. Soam as seis horas da tarde. O quarto de Amelinha segue no escuro, mas distinguida aí a sua presença. Está sentada na cama, de combinação, e metida em visível prostração. De momento a momento ergue as mãos à cabeça, como se quisesse segurá-la, enquanto os seus movimentos não disfarçam o desespero que a acode.

No outro lado do palco, após instante, Lolita levanta-se. A uma espécie de armário de vidro vai apanhar um vidro de remédio. Serve-se em colher de sopa. Nauseada, treme. Treme e tosse. E cessa de tossir quando bebe a segunda dose. Nessa hora desce até a mesinha, onde estava, e retoma o trato das cartas. De repente a luz do quarto de Amelinha... é estabelecida por Valdelice, que, do interior, veio verificar a razão do silêncio.

Fonte parcial:
Teatro Completo de Eduardo Campos, Vol. II, UFC. Disponível em Passeiweb

Hermoclydes S. Franco (Parque Itatiaia: A Natureza , O Poeta e o Insensato)

Fotos de Parque Nacional do Itatiaia
Essa foto de Parque Nacional do Itatiaia é cortesia do TripAdvisor

A NATUREZA

Itatiaia, parque dos meus sonhos,
Monumento vivo à natureza,
Desfrutar teu verde exuberante
É escutar os sons do teu silêncio!...
Itatiaia, mundo de emoções,
Dos regatos límpidos, travessos,
Dos sagüis brejeiros, assustados,
Dos ipês valentes, mais floridos!...
Nas manhãs de inverno, entre neblinas,
Nos teus bosques voam, peregrinas,
A ves livres, lindas borboletas,
Beija-flores gentis e sensuais...

O POETA

Quantos versos de amor inspiraste,
No esplendor de tua mata virgem,
No remanso de tuas colinas,
Nas tardes de rubro por-do-sol...
Quantas noites claras e formosas,
De luar prateando a serrania...
Sonha o poeta que sempre conserves
O mágico esplendor e a realeza!...
Na pureza dos teus mananciais,
Corre a seiva livre da poesia
Que alimenta a lira do poeta
Ao tanger dos lindos madrigais!...

O INSENSATO

Eis que existe o homem do machado.
O insensato da tocha incendiária,
O inimigo cruel, destruidor,
Que não tendo os olhos do pintor,
Nem a alma gêmea à do poeta
Ou, sutil, a argúcia da mulher,
Vai – com fúria vil, devastadora –
Queimando a floresta sem piedade,
Represando os rios de águas mansas.
Massacrando pássaros e plantas...
...Tal o algoz mortal da natureza,
Por si mesmo antítese da vida!


Poema vencedor do Concurso Nacional “O Homem e a Natureza” comemorativo do cinquentenário do Parque Nacional de itatiaia, Resende/RJ - 1987

Fonte:
Poema enviado pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 474)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Que importa ao dono da cova
laje limpa, vela e flor!
É na vida que se prova
em atenções, o amor!
–ELIANA PALMA/PR–

Uma Trova Potiguar


Divagando, sem guarida...
Sem destino, seminua...
A menina desvalida
vende o seu corpo na rua.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Fui alegre, e tive sonho,
dei todo o amor que era meu,
alegrei alguém tristonho:
– Hoje o tristonho sou eu!
– P. DE PETRUS/RJ -

Uma Trova Premiada


2011 - Niterói/RJ
Tema: MEMÓRIA - Venc.


Seu amor foi pesadelo,
mas, dos meus sonhos não sai...
Sempre que tento esquecê-lo,
minha memória... me trai!
–THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA/SP–

Simplesmente Poesia

M O T E :
DIRCE DAVENIA GUAYATO/PR


No silêncio é que floresce,
com Deus, uma comunhão,
que é firmada pela prece,
nascida no coração.

GLOSA :
ANTONIO JURACI SIQUEIRA/PA


No silêncio é que floresce,
as mais lindas intenções,
o coração enternece
ao ver pura as emoções.

Firmamos, ao meditar,
com Deus, uma comunhão,
se o pensamento parar,
ouvimos o coração.

De paz a mente abastece,
libertando deste mundo,
que é firmada pela prece,
ao levitar num segundo.

A fé tem que ser real,
tem que gerar emoção
acima de qualquer mal,
nascida no coração.

Estrofe do Dia

O dinheiro na verdade
compra iate e avião,
casa de praia, mansão
e carros em quantidade;
não compra a felicidade
nem um amor verdadeiro,
nesse caso o financeiro
perde toda a serventia;
amor não se financia
nem se compra com dinheiro!
–IPONAX VILA NOVA/PE–

Soneto do Dia

Mil Luzes
–GABRIEL BICALHO/MG–


Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se odiasse tudo quanto é feio:
do frio bisturi que te reparte
ao duro “silicone” do teu seio.

Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se amasse e odiasse, meio a meio,
teu corpo transformado em obra de arte
e a torpe cirurgia em nosso enleio.

De ódio tão cego quase me rejeito,
ao ver-te retocada e sem defeito,
estátua que a vaidade perpetua!

E quando tu me expulsas do teu leito,
apaga-se esta chama no meu peito
e acendem-se mil luzes, lá, na rua!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Inconveniente da Riqueza)


Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia, foi surpreendido pela noite à entrada de uma aldeia. Procurou de um lado para o outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas estavam todas fechadas, não se via nem um raio de luz através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim de um beco se ouvia o barulho de mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio havia uma pequenina luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou rente do muro de uma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha veio abrir.

– Faz-me um favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite? Não se há-de arrepender.

E acrescentou:

– Visto que já todos estão deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?

– Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite que ia ser perseguido por um credor sem entranhas se lhe não pagasse amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida. Depois não nos fica nada, e não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus quiser!

Ao dizer isto o camponês limpava o suor da testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O Senhor teve dó dele, e disse-lhe:

– Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias de arrepender de ma haver dado. Vou provar-te.

Pegou na candeia, que estava suspensa de uma das traves do celeiro, e aproximou-a do trigo.

– Que vai fazer? disseram assustados os trabalhadores, vai deitar fogo a tudo?

Mas no mesmo instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa. Á vista de um tal milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.

– Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te enriquece.

Dito isto desapareceu.

E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão alto como a igreja.

O camponês pagou as suas dívidas, comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários, tanto e tanto fizeram, que se arruinaram e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria. Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou no celeiro, e, recordando-se do milagre que o enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na candeia, aproximou-a de um feixe de palha, comunicou-lhe o fogo, ardeu a casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais absoluta.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - I - O burro falante


Dona Benta estava na cozinha conversando com tia Nastácia.

— Que terá havido? — dizia ela. — Os meninos ontem foram para a cama cedo demais. Percebi logo que era sinal de grossa travessura para hoje. De manhã, quando me levantei não vi nenhum. Tinham sumido sem ao menos tomarem café. Por onde andarão os diabretes?

A negra, que estava frigindo uns lambaris, apenas disse:

— Essas crianças fazem coisas da gente se benzer com as duas mãos, sinhá. Com certeza foram visitar algum rei lá na terra das fadas. Mas não se incomode, sinhá. Quando a fome der, largam todos os reis do mundo para virem correndo atrás destes lambarizinhos fritos.

— Inda é o que vale — concordou dona Benta. — A fome é a única coisa que faz Pedrinho e Narizinho não se separarem de nós...

Isso foi daquela vez em que partiram com o Peninha para a primeira viagem maravilhosa. Eles ainda não tinham voltado, mas já vinham vindo.

O relógio bateu seis horas.

— Tão tarde já, Nastácia! Estou com medo que lhes tenha acontecido qualquer coisa... — disse dona Benta apreensiva, indo postar-se na varanda, de olhos na estrada.

Minutos depois viu lá longe uma nuvem de poeira.

— Vem vindo um cavaleiro! Ande, Nastácia, você que tem melhor vista, venha ver se descobre quem é.

A negra veio da cozinha, com a colher de pau na mão, e olhou.

— São eles, sinhá. Vêm tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria...

O burro vinha na galopada e breve parou no terreiro com sua penca de gente no lombo. Peninha montava no meio, trazendo o Visconde na mão; Narizinho montava à garupa, com a Emília no bolso; Pedrinho ocupava a frente.

Pularam do animal e dirigiram-se para a varanda.

— Que coisa esquisita! — murmurou tia Nastácia — Repare, sinhá, que o Visconde vem pendurado no ar, com uma pena de papagaio voando em cima dele...

— Boa tarde, vovó! — gritou Narizinho ao pisar o primeiro degrau da escada. — Aqui estamos de novo, depois dum dia inteiro de aventuras espantosas...

— Estou vendo – respondeu dona Benta — e muito contente fico de nada de mau ter acontecido. Mas não posso compreender o que significa essa coisa do Visconde vir pendurado no ar, com aquela pena em cima...

Os meninos deram uma gargalhada.

-Nem que a senhora pense um século é capaz de adivinhar, vovó! Veja se consegue...

Dona Benta olhou, olhou, pensou, pensou e nada. Consultou a negra com os olhos. Depois disse:

— Impossível. Diga logo, que já estou ficando aflita.

— É o Peninha! — berrou Emília. A velha ficou na mesma. |

— É o Peninha que vem carregando o Visconde! — berrou a boneca inda mais alto.

A boa senhora olhou para a negra, fazendo beiço. Não entendia nada. Narizinho então teve dó dela e contou a história inteira do menino invisível que os levara ao País das Fábulas.

— Ele vem carregando o Visconde, mas como é invisível a gente só vê o Visconde...

As duas velhas não tiveram palavras para comentar o maravilhoso caso. Limitaram-se a abrir a boca, com os olhos fixos na peninha.

Nisto o burro relinchou no terreiro. Todos voltaram o rosto. Dona Benta perguntou de quem era o animal.

— De ninguém — respondeu o menino. — É nosso. Salvamo-lo das unhas do tigre e agora está tão amigo que vem morar conosco para sempre.

— É bom de marcha?

— Mais que isso, vovó. É um burro falante...

Os olhos da negra, já tão arregalados, arregalaram-se ainda mais e sua boca abriu, abriu, abriu de caber dentro uma laranja. Burro falante! Era demais...

— Será possível, sinhá? Mecê acredita?...

— Tudo é possível, Nastácia. Se papagaio fala, por que não há de falar um burro?

— Mas ele não fala como papagaio, vovó — explicou Pedrinho. — Papagaio só repete o que a gente diz. Este burro pensa para falar. Se a senhora ouvisse o discurso dele na assembléia dos animais pesteados, havia de ficar boba de espanto.

— Nesse caso, precisamos recebê-lo com toda a consideração.

Nastácia, leve-lhe umas espigas de milho bem bonitas e água bem fresca.

A negra obedeceu. Foi ao paiol escolher as melhores espigas e encheu uma vasilha com água da talha. Mas quando chegou ao terreiro parou, sem ânimo de aproximar-se do burro.

— Não tenho coragem, sinhá! — disse ela virando os olhos para dona Benta. — Se ele me diz uma graça, caio para trás, de susto...

— Não seja boba! Ele tem cara de pessoa muito séria.

A negra deu mais dois passos e parou de novo. Não tinha coragem!... O mais que fez foi botar o milho no chão, sobre uma toalha, com a vasilha d’água ao lado, murmurando:

— Ele se quiser que venha até aqui. Eu é que não chego perto — e recuou uns passos, para ver.

O burro compreendeu o medo muito natural da negra. Foi-se chegando devagarinho e comeu o milho e bebeu a água tão gostosa.

Mas como fosse de muita educação, lambeu discretamente os beiços.

— Muito obrigado, tia. Deus lhe pague — murmurou com toda a clareza.

— Acuda, sinhá! — berrou a pobre preta. — Fala Mesmo, o canhoto! — e botou-se para a cozinha, fazendo mais de vinte sinais-da-cruz.
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa